2º Semestre 2023
Argumento da Seção Clínica
Cristiana Pittella – diretora da Seção Clínica do IPSMMG
A Clínica universal do delírio
No 2º semestre, a Seção Clínica do IPSM-MG, continuará investigando A Clínica universal do delírio, proposta de Jacques-Alain Miller em 1988 [1]. Sua atualidade nos mantém em direção às XXVI Jornada da EBP-MG, Há algo de novo nas psicoses ... ainda, e rumo ao Congresso da AMP em 2024, Todo mundo é louco[2], também orientação de J.-A.Miller como um programa de trabalho e uma bússola para guiar-nos no ultímissimo ensino de Lacan[3].
As pesquisas dos seis Núcleos da Seção Clínica têm evidenciado que são proposições que ressoam nos dias atuais, seja no campo clínico, nos consultórios e instituições, quanto na articulação da psicanálise com outros campos de saber assim como nas manifestações político-coletivas[4].
Já no contexto freudiano, tanto a neurose quanto a psicose são modalidades de negação que recriam a realidade[5]. A loucura, o delírio, de todo falasser - mesmo que se manifestem diferentemente em cada estrutura -, concerne à fatalidade de que, ao falar, as coisas tornam-se inexistentes e lhe é conferido um ser[6]. Ao fazer existir o Outro, um sentido, o sujeito se protege do que lhe é insuportável, defendendo-se do real com o simbólico.
No detalhe clínico, poderemos destacar na experiência de um sujeito e na condução analítica, como nos indica Gil Caroz[7], as várias manifestações do Outro da linguagem - o parasitismo linguageiro do automatismo mental -; as manifestações da relação com o outro que J.A.Miller assinalou como uma paranoia generalizada; assim como as manifestações da foraclusão de um elemento simbólico que reaparece no real. São manifestações que atravessam todas as estruturas clínicas, sem entretanto, conduzir à supressão dessas estruturas[8].
Continuaremos assim a investigar como o discurso do analista pode operar. Seja na interface com outros discursos, seja na experiência analítica, face as modalidades distintas de defesa de um sujeito, assim como junto àqueles para os quais o simbólico é real. Tal como o esquizofrênico que nos ensina acerca de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem e um uso da ironia para atacar o Outro.
Quando Miller propõe[9] ao psicanalista se servir da ironia ele demonstra o quanto o discurso do analista não é louco[10], pois ele não se vale do sentido para tratar o real. Ao interrogar os significantes mestres pela interpretação e ato, ao destacar e isolar o S1 - o real do sujeito na operação analítica -, o discurso analítico permite que cada um possa se confrontar com a dimensão delirante do significante e se apoiar sobre a sua própria existência, seu modo singular, correlato do reconhecimento do real[11].
[1] JAM, Clínica Irônica
[2] Caroz Gil, O grau zero da loucura
[3] MILLER, J. A. Brújula de la última enseñanza (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed: Padiós (2020) p. 315.AM, Todo el mundo es loco pg 315 ,
[4] Laia Sérgio, Porque as psicoses...ainda, Curinga n.53
[5] FREUD, S., A perda da realidade na neurose e na psicose (1924) in __ Neurose, Psicose, perversão, obras incompletas de Freud: tradução Maria Rita Salzano Moraes - Belo Horizonte: Ed Autêntica 2016, p.284.
[8] Gil caroz
[9] Clinica irõnica
[10] Caroz
[11] caroz
A Clínica universal do delírio
Cristiana Pittella – diretora da Seção Clínica
“Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi que era um homem.
Agora não sei se sou um homem que sonhou ser borboleta,
ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem”
(mestre taoísta Chuang Tzu)
Tudo não passa de sonho? A questão da realidade, do ser e da existência é fundamentalmente humana.
Em Clínica irônica[i], Jacques-Alain Miller afirma que, para Freud, nada deixa de ser sonho; e que, para Lacan, a propósito de Freud, se tudo é sonho, “todo mundo é louco, isto é, delirante”.
A vida é sonho? O que se passa com o real?
Freud em seu texto Neurose e Psicose[ii], aproxima o sonho da psicose pois há uma realização alucinatória do desejo no sonho e, a ideia de que se alucina quando se dorme, atualiza a tendência do aparelho psíquico de se fechar. Se o sujeito acorda, é para continuar a dormir na rotina de sua fantasia e evitar o despertar para o real[iii].
No contexto freudiano, tanto na neurose quanto na psicose há uma perda da realidade e a criação de uma nova realidade[iv]. Neurose e psicose são modalidades de negação, de defesa face ao real.
Simplifiquemos, nos diz Miller: “o delírio é universal porque os homens falam e porque há linguagem para eles”[v]. A linguagem serve à tecitura das ficções com as quais ignoramos o que temos de mais real: a não-relação sexual e a nossa própria mortalidade.
A clínica universal do delírio, é uma primeira orientação temática para a investigação da Seção Clínica do IPSMMG no 1º semestre de 2023.
Essa proposta de Jacques-Alain Miller em 1988 encontra-se em seu texto a Clínica irônica e sua atualidade nos direciona rumo ao Congresso da AMP em 2024, cujo tema é Todo mundo é louco, orientação também de J.-A.Miller como um programa de trabalho e uma bússola para guiar-nos no ultímissimo ensino de Lacan[vi]. São proposições que ressoam nos dias atuais.
Com a clínica universal do delírio ele nos convida a apreendermos a posição do psicanalista como irônica, sustentado na inexistência do Outro. Advertido de que não há Outro do Outro, é um modo de fazer e interrogar os significantes mestres de nossa época pois os discursos são defesa contra o real.
O esquizofrênico nos ensina acerca de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem e um uso da ironia. É aquele que não tem a sua disposição o discurso como defesa ao real. Trata-se, nos diz J.-A.Miller, de uma exclusão interna, ele não se defende do real com a linguagem, pois, para ele, o simbólico é real. Se não há discurso que não seja de semblante, há um delírio que é do real, e trata-se do delírio do esquizofrênico[vii].
A neurose e a paranoia, entretanto, fazem existir o Outro defendendo-se do real com o simbólico.
Quais seriam as diferenças entre as modalidades de delírios dos neuróticos, articulados ao fantasma, aos ideais e às exigências superegóicas, com os delírios na psicose, paranoia e esquizofrenia? O que as psicoses ordinárias podem nos ensinar sobre a clínica universal do delírio?
Podemos investigar a loucura no ensino lacaniano em seus momentos diversos. Como se conjugam ou se articulam as afirmações lacanianas, “Não fica louco quem quer”[viii] com “Todo mundo é louco, isto é, delirante”? Louco e delirante são equivalentes? E ainda, a afirmação lacaniana: “E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade”[ix].
Como indica J.-A. Miller, em um paralelo com o fenômeno elementar e a função do delírio na psicose, trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, sobre os quais ele, em sua neurose, delirou[x]. O Um sobre o qual o neurótico construiu suas defesas, suas elucubrações ficcionais, histórias de família tecidas de identificações ideais e verdades mentirosas.
Uma análise pode reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido para fazer um uso do sinthoma.
Mas nos perguntamos: como tocar o real com as palavras?, Como tocá-lo de boa maneira? [xi]. Como um psicanalista na posição irônica permite interrogar os modos de defesa de cada sujeito? Como e quando perturbar uma defesa?
E nas psicoses? Pretendemos apagar ou acomodar o delírio, mas nunca nutri-lo[xii]. Quando a ironia é uma defesa e quando ela pode servir para perturbar a defesa?
A frase “Todo mundo é louco, isto é delirante”, ao universalizar a loucura e o delírio como um fenômeno de significação inerente ao ser em geral, aponta para um mais além das psicoses, mas, ainda, num campo que é clínico.
Ela também aponta para isso que, como psicanalista, trata-se de escutar o que se enuncia da boca do paciente, o que se vocifera do lugar de mais-ninguém[xiii], lugar do sujeito designado desde antes que o significante desenrole suas tecituras capciosas, que fazem esquecer que aí onde se sofre, se goza.
A ironia é assim, uma forma de interrogação em que as palavras podem dizer outra coisa do que dizem e confrontar o sujeito com a sua própria dimensão delirante. Exige uma investida, uma presença do analista, que ele aporte o tom, a voz, o acento, um gesto e o olhar, para que seu ato mobilize o corpo do falasser.
Como o psicanalista intervém protegendo a criança do familiarismo delirante de seus pais? E nos casos do enlace mãe e filho que têm um caráter de loucura a dois? Como aliviar os homens de seus delírios de paternidade?[xiv] Como o psicanalista em uma posição irônica pode intervir face a crença louca no pai?
O vazio da posição do analista enfatiza o não saber a cada vez e, ao não obturar com o saber, há possibilidade de invenção de um saber singular. Saber singular que distingue a psicanálise da psicoterapia, pois essa consiste em fazer o sujeito crer em seu pai[xv].
O saber e a crença, teriam um estatuto de delírio?[xvi]
Enquanto psicanalistas como podemos nos servir da ironia face à tendência atual à despatologização generalizada, ancorada nos “estilos de vida”, produto da substituição dos princípios clínicos pelos princípios políticos[xvii]?
J.-A. Miller ressalta que a própria psicanálise é repercutida nessa ideologia da despatologização, devido a importância que enquanto psicanalistas concedemos à escuta. Face a tirania do gozo, do efeito da reivindicação e da exigência do direito à despatologização, ancorada naquilo que um sujeito diz que é, ou que quer ser, escuta-se o dizer ao pé da letra.
Mas essa ideologia apaga completamente a psicanálise, as possibilidades da palavra do Outro, a saber, do inconsciente e da interpretação[xviii]. Nesses tempos em que o cogito contemporâneo é, como ressaltou J.-A. Miller, Sou o que eu digo, como introduzir a enunciação? A diferença entre o significante e o significado?
Quais as consequências e desafios os psicanalistas estão encontrando em suas práticas institucionais ou em consultórios, em sua articulação com outros campos de saber como a medicina, a saúde mental, o direito e a educação? Como os psicanalistas introduzem a clínica, operam e fazem valer o direito à interpretação? O que tem inaugurado e possibilitado essa experiência?
Ser analisante é aceitar receber de um psicanalista o que perturba a sua defesa[xix]. Como fazer existir o inconsciente quando a subjetividade de nossa época, fundamentada na autodeterminação, tenta romper o corpo e o falante? Como introduzir uma abertura ao lugar no Outro do desejo e do dizer, quando há uma crença delirante no mais de gozo?
Essas questões nos conectam à segunda orientação para as nossas investigações, a saber, a que nos coloca rumo ao próximo XII ENAPOL, que acontecerá em 2023: Começar a se analisar.
Todo mundo está em seu mundo, isto é, naquilo que seu sintoma fomenta e, com isso, nos viramos como podemos, nos entendemos e tentamos caminhar juntos[xx].
Bem vindos ao trabalho!
[i] MILLER, J. A. Clínica Irônica (1993) in ___ Matemas I, Campo Freudiano no Brasil, Jorge Zahar Editor, 1996, p. 192.
[ii] FREUD, S., Neurose e Psicose (1924) in __ Neurose, Psicose, perversão, obras incompletas de Freud: tradução Maria Rita Salzano Moraes - Belo Horizonte: Ed Autêntica 2016, p.273.
[iii] MILLER, J. A. Despertar, O sonho sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano, AMP, Silicet, EBP, 2020, p. 18.
[iv] FREUD, S., A perda da realidade na neurose e na psicose (1924) in __ Neurose, Psicose, perversão, obras incompletas de Freud: tradução Maria Rita Salzano Moraes - Belo Horizonte: Ed Autêntica 2016, p.284.
[v] MILLER, J. A. Clínica Irônica (1993) in ___Matemas; tradução Sérgio Laia; revisão técnica Angelina Harari __ Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. Pg 192.
[vi] MILLER, J. A. Brújula de la última enseñanza (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed: Padiós (2020) p. 315.AM, Todo el mundo es loco pg 315 ,
[vii] MILLER, J. A. Clínica Irônica (1993) in ___Matemas; tradução Sérgio Laia; revisão técnica Angelina Harari __ Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p.190.
[viii] LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica – 1946 in ___ Escritos; tradução Vera Ribeiro, Rio de Janeiro. Ed Aahar, 1998 (Campo Freudiano no Brasil) p.177.
[ix] idem
[x] MILLER, J. A. L’interpretation à l’envers, Cause Freudienne Revue de psychanalyse, n.32, Vous ne dites rien, 1996 ECF, Diffusion Navarin Seuil, p.12
[xi] MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed: Padiós (2020) p. 341.
[xii] MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed: Padiós (2020) p.338.
[xiii] MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed: Padiós (2020) p. 333.
[xiv] E. Laurent in https://elp.org.es/el_nino_como_real_del_delirio_familiar_e/
[xv] idem
[xvi] MILLER, J. A. Diversificación del uno (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed: Padiós (2020) p. 312.
[xvii] MILLER J.-A. Todo mundo é louco.AMP 2024. Opção Lacaniana 85. Revista Brasileira Internacional de Psicanalise, dezembro de 2022, ps. 8-17.
[xviii] MILLER, J. A., L´ecoute avec et sans interprétation, Jacques-Alain Miller, LWT, Miller TV, in YouTube, 15-05-2021.
[xix] MILLER, J. A., La experiência de lo real em la cura psicoanalítica, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed. Paidós 2014 , p.34.
[xx] MILLER, J. A. Cada uno en su mundo (2008) in __Todo el mundo es loco, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ed: Paidos (2020) p. 342.