FENÔMENO E ACONTECIMENTO DE CORPO[1] 

SÉRGIO DE CAMPOS
Psicanalista, Analista Membro da Escola. EBP/AMP
sergiodecampos1@gmail.com

Resumo: O autor trabalha a diferença entre os conceitos de fenômeno de corpo e acontecimento de corpo, o primeiro, um gozo que se inscreve como traumatismo e que poderá, ou não, ganhar o estatuto de acontecimento de corpo.  Para traçar essa diferença, explora as noções -indissociáveis- de corpo e gozo, dado que o corpo vivo surge como a persistência de uma letra de gozo, um corpo consequência de marcas, traços, inscrições e acontecimentos contingentes. Além disso, apresenta três exemplos de acontecimentos de corpo: em Schreber, na relação de James Joyce e Nora e em um fragmento de sua própria análise.

Palavras chaves: fenômeno, acontecimento de corpo, gozo, corpo, sinthoma

BODY PHENOMENON AND BODY EVENT

Abstract: In this essay, the author discusses the difference between the concepts of body phenomenon and body event. The first, a jouissance that is inscribed as a trauma and that may, or may not, gain the status of a body event.  To trace this difference, he explores the -indissociable- notions of body and jouissance, since the living body is the persistence of a jouissance letter – a body that is a consequence of marks, traces, inscriptions, and contingent events. Moreover, he presents three examples of body events: in Schreber, in James Joyce and Nora’s relationship, and in a fragment of his own analysis.

Keywords: phenomenon, body event, jouissance, body, sinthome

Desali. Noia summer please corona

 

É sempre oportuno precisarmos e diferenciarmos os conceitos de fenômenos de corpo e os acontecimentos de corpo. Nesse sentido, tem-se que a palavra fenômeno, de etimologia grega, deriva da palavra phainomenon — o nome do brilho —, portanto, tudo o que pode ser observado pelos nossos sentidos e descrito no plano do conhecimento.

Os fenômenos de corpo, por sua vez, são frequentes e comuns. Os campos da psicanálise estão repletos de fenômenos de corpo, desde as histéricas de Freud, como Ana O., Dora e Elizabeth von R., com os seus quadros somáticos, dissociativos e conversivos; passando pelos dismorfismos corporais, tais como a anorexia, a bulimia e a obesidade; alcançando os fenômenos psicossomáticos; e, por fim, os fenômenos de corpo que ocorrem nas psicoses, tais como as alucinações de todos os tipos e os delírios cenestésicos e hipocondríacos. Desse modo, podemos concluir que os fenômenos de corpo, assim como os acontecimentos de corpo, têm lugar tanto nas neuroses quanto nas psicoses.

Na segunda clínica, Lacan migra do paradigma de o isso fala para o isso goza e que o real do inconsciente é o corpo falante. Logo, o corpo não é mais derivado do estádio do espelho, da imagem do corpo, de sombras e de reflexos, mas da corporização da imagem, de uma imagem corporificada. Com fins de sair do dualismo de Descartes, Lacan propõe a substância gozante para unir a res cogitans e a res extensas, de sorte a produzir o corpo falante, resultando em uma mônada, como uma máxima do monismo, que ele traduz como mistério. Em seu último ensino, Lacan retira a relevância das estruturas clínicas ao propor o conceito de falasser. Os fenômenos de corpo podem ser lidos como sinais de que o UOM tem um corpo e que isso goza.

Seguindo a análise, os fenômenos de corpo podem ser fugazes, transitórios ou permanentes, via de regra são fora de sentido, como a famosa dor sem razão encarnada e permanente da fibromialgia, ou podem estabelecer uma relação de nexo causal, como no episódio no qual Dora é assediada pelo sr. K. Assim, a sensação de pressão no tórax (que Freud compreende como deslocada) no caso de Dora, logo após o sr. K. pressionar o seu ventre com o membro ereto. 

A corporificação ou incorporação

Na segunda clínica, Lacan dispensa suas referências concernidas ao estádio do espelho com a finalidade de usar o conceito de corpo como gozo. Lacan recorre ao texto de Freud “Bate-se numa criança”, em razão de que esse postulado não se produz pelo efeito de verdade, mas pelo efeito de gozo. Logo, como significação absoluta, a fantasia se desequilibra e se capta pelo contrário, não mais como efeito de verdade, mas como efeito de afeto. Portanto, o significante é incorporado como afeto, como um afeto de gozo.

O conceito de gozo é, portanto, indispensável para se cogitar algo sobre o corpo, visto que é necessário ter um corpo para gozar. Nesse sentido, ambos os conceitos são indissociáveis, pois apenas um corpo pode gozar. Se o significante não necessita se apoiar em um corpo, mas em uma letra, é necessário que o gozo se manifeste em um corpo (MILLER, 1998, p. 93).

Ademais, Lacan leva em conta o conceito de lalíngua como um furo disjunto da linguagem, que antecede à fala e ao vernáculo, uma vez que encarna o gozo e produz um corpo vivo. Assim, o corpo vivo surge como a persistência de uma letra de gozo e passa a ser condição para tal. Logo, o corpo é consequência de marcas, traços, inscrições e acontecimentos contingentes, frutos da junção entre lalíngua e os afetos que se incorporam.

Com a finalidade de debater sobre como se faz um corpo, é necessário levar em consideração o conceito de gozo. O parlêtre experimenta o gozo em si: tanto o gozo do Um como o gozo do Outro. Se, por um lado, o gozo do Outro é conectado ao Outro sexo, o gozo do Um é solitário e assexuado. Logo, a relação do gozo do Um ao gozo do Outro sexo é disfuncional, visto que “não há relação sexual”. Aqui, o axioma “não há relação sexual” denota que o gozo do Um é sempre solitário e ele se encontra com o gozo do Outro apenas sob o regime da contingência (MILLER, 2003, p. 275).

Miller destaca que o gozo do Um é parasitário e se manifesta de diversas formas, por diferentes meios. O gozo do Um é conexo ao corpo próprio e não faz par, pois é sempre o corpo que goza e o gozo como Um não depende de uma relação com o Outro.

A cada uma das tentativas, imaginário, simbólico e real se revelam como insuficientes, mesmo porque o objeto a se revela como um semblante. No Seminário 20, Lacan descobre que o objeto a não consegue dar conta do gozo, visto que ele é um falso real que, em si, é um semblante. Então, a conclusão de Lacan é que o gozo não se reduz ao desejo, nem ao falo, tampouco ao objeto a (MILLER, 2009, p. 274).

No Seminário Mais, ainda, Lacan coloca em questão o conceito de linguagem, que passa a ser considerado um conceito derivado, e não originário, em relação à invenção de lalíngua — que é a fala antes do seu ordenamento semântico, gramatical e lexicográfico. Assim, Lacan, ao questionar o conceito de fala e linguagem, afirma que não há linguagem como comunicação, apenas como gozo. No ensino de Lacan, o gozo era sempre secundário em relação ao significante. Entretanto, o gozo sendo conduzido a uma relação originária nesse Seminário, a linguagem, que era considerada primária, surge como secundária e derivada. O que Lacan chama de lalíngua é a fala como disjunta da estrutura de linguagem, que aparece como derivada e efeito dessa atividade primeira e separada da comunicação.

Desse modo, Lacan isolou o conceito de lalíngua aquém da linguagem, aquém dos efeitos de significação. Lalíngua serve para muitas coisas diferentes da comunicação. Então, Lacan a localiza no nível homogêneo ao do inconsciente e mais aquém da linguagem, a qual se expressa como gozo; ela é um significante que está reduzido ao Um — S1 — e não se articula ao S2 em sua função de representação de sujeito. Portanto, o significante não é funcional para a comunicação, mas é usado para gozar. Lalíngua está incluída no pensamento e permanece indecisa entre o fonema e a palavra (Ibidem, p. 334).

Se a finalidade da psicanálise é modificar o modo de gozo, cabe indagar como o significante opera sobre o gozo. Nesse sentido, a mutação de gozo é o objetivo do processo analítico, cujo par significante e significado constitui uma abordagem parcial do gozo. Em razão disso, Lacan inventou o conceito de lalíngua como um furo no âmbito da linguagem. Logo, a linguagem é o fruto de uma elucubração de saber, de modo que ela é uma construção a partir de lalíngua e orientada em direção à significação (Ibid., p. 271). Portanto, para dar conta do gozo, é necessário arrancar o efeito de significação e substituí-lo por lalíngua.

A partir disso, a fala como comunicação, o conceito do grande Outro, o Nome do Pai, o símbolo fálico se desfazem e se reduzem apenas ao estatuto de semblantes e acabam por ser reduzidos a uma função de grampo entre elementos disjuntos. O paradigma da não relação traduz a disjunção entre o significante e o significado, o gozo e o Outro e o homem e a mulher sob a fórmula de que “a relação sexual não existe”. Assim, todos os termos considerados primordiais na obra de Lacan e que eram denominados transcendentais — visto que condicionavam toda a sorte de experiências e princípios da prática e garantiam a grande conjunção e harmonia entre elementos como o Nome-do-pai, o Outro e o falo ficam reduzidos a conectores. Então, o que era da ordem transcendental se torna uma pragmática social. A figura que pode representar esse paradigma são dois círculos de Euler indexados pela disjunção, cuja intersecção é vazia e que é passível de ser conectada por intercessores variados capazes de fazer suplência, os quais Lacan denominou sintoma.

Vale dizer que o Seminário Mais, ainda radicaliza o conceito de não relação e que, portanto, faz vacilar o conceito de estrutura, já que ela nada mais é do que uma variedade de articulações e de relações, o que, em síntese, a não relação amplia e aprofunda uma mudança total de paradigma. Nesse sentido, o seminário abole o conceito de estrutura e outros tipos de relação e articulações.

Lacan abandona, então, o sistema de significação com a finalidade de dar conta do efeito de gozo, de modo que ele o substitui pelo nó borromeano, capaz de enodar os três registros (RSI). Para tal, Lacan coloca o inconsciente como um dejeto da elaboração freudiana, como inconsciente real. Ademais, a interpretação ganha uma nova abordagem fora do sistema de significação, como perturbação da defesa.

Se Lacan destaca que, no início, está o significante, no Seminário 20, ele segue seu caminho inverso, já que parte da ideia de que o gozo é um fato. Assim, há um retorno à Coisa, com a finalidade de reduzi-la ao objeto a e torná-lo manejável. O ponto de partida dessa perspectiva não é “a relação sexual não existe”, mas, ao contrário, é que Há Um. Há gozo. Até o seminário Mais, ainda, havia uma satisfação que advém do fato de falar para um analista e que isso produz efeitos de verdade. Agora, a perspectiva é outra, pois se parte da premissa de que há gozo como propriedade de um corpo vivo e que o gozo se relaciona unicamente ao corpo vivo. Enfim, só há psicanálise de um corpo vivo e que fala.

Lacan relata que o corpo falante “é o que merece ser qualificado de mistério”. A psicanálise se dedica à substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Logo, a passagem do isso fala para isso goza implica uma disjunção entre o gozo e o Outro, instaurando a não relação entre eles. Então, temos o gozo do Um-totalmente só, separado do Outro. Logo, todo gozo efetivo, todo gozo material é gozo Uno, quer dizer, gozo do corpo próprio. Enfim, sempre é o corpo próprio quem goza, por qualquer que seja o meio. O gozo, como tal, é gozo Uno. É o reino do gozo do Um. 

Fenômenos e acontecimento de corpo

O fenômeno de corpo é um gozo que se inscreve como traumatismo, como choque do significante, de maneira contingente. Em “La Conversación”, Miller (2016) destacou vários fenômenos anormais, paradoxais e insensatos, cuja persistência adquire a função de suplências à foraclusão do Nome-do-pai.

Miller nos adverte que é apenas quando um fenômeno de corpo adquire permanência e consistência e ordena a vida do parlêtre que ele ganha o estatuto de sinthoma e de acontecimento de corpoVale dizer que os fenômenos de corpo são um conjunto maior, no qual está incluído o conjunto menor dos acontecimentos de corpo. Logo, todo acontecimento é um fenômeno de corpo, mas nem todo fenômeno é um acontecimento. Então, se, por um lado, o fenômeno é algo frequente e comumente observado na clínica, por outro, o acontecimento de corpo é algo excepcional e raro.

Por tal motivo, é necessário aguardar um tempo para saber se aquele fenômeno terá alguma função sinthomática para, depois, defini-lo como acontecimento. O que Miller chama de sinthoma é a consistência dessas marcas, e é por isso que ele o reduz e o equivale ao acontecimento de corpo (MILLER, 2016, p. 110). Logo, o acontecimento é um choque inaugural do significante que se fixa sobre corpo, e desse encontro nascem marcas que reiteram gozo sem cessar em um acontecimento permanente (MILLER, 2013, p. 75).

Três exemplos de acontecimento de corpo

Como exemplo clínico de acontecimento de corpo, relato três exemplos: o primeiro exemplo é uma hipótese extraída das Memórias de um doente de nervos, de Daniel Paul Schreber; o segundo, da relação de James Joyce e Nora e o terceiro está relacionado a minha experiência de análise, relatada com detalhes no meu testemunho de passe. 

Schreber

O livro Memórias de um doente de nervos, de Daniel Paul Schreber, foi o objeto do principal trabalho psicanalítico de Freud sobre as psicoses, conhecido como o caso Schreber. O livro de memórias é uma descrição minuciosa do delírio do paciente e de sua relação com Deus. Schreber descreve detalhadamente uma teologia na qual ele é o pivô do interesse sexual de Deus. Toda a relação é de grande sofrimento, visto que ele é submetido, por capricho divino, a uma feminização, contra sua vontade. Apenas quando Schreber consente em ser mulher de Deus é que o delírio se apazigua. Entretanto, por que há esse consentimento? Já quase no fim do livro, surge um elemento sutil que quase nos passa despercebido. Schreber destaca que “devo confessar que em parte só depois de anos reconheci as verdades nelas contidas, ao passo que no início, pelo menos com relação a algumas delas, eu me conduzia de modo muito cético”.

A esse contexto pertence, entre outras, a locução: “Por mim — deve ser a senha”. Com essa senha, Schreber tem a convicção que deve abandonar qualquer preocupação com o futuro — confiando na eternidade — e deixar com que seu destino pessoal se desenvolva tranquilamente, seguindo o curso natural das coisas. “Na época, eu ainda não conseguia reconhecer como adequado o conselho de me livrar de tudo que me acontecia com um indiferente ‘Por mim’ ”. Schreber destaca que a senha “por mim” tem relação com outra frase: “Todo absurdo se anula”. Completa ainda que “Naquela época em que ainda ouvia das vozes essa frase, há muitos anos, e agora não as ouço mais, não conseguia me convencer, de sua veracidade” (SCHREBER, 1984, p. 303–304).

É bastante instigante destacar que o fenômeno elementar, como um fractal em seu devaneio — “como seria bom ser mulher no ato da cópula” —, já antevia todo o delírio de Schreber no qual ele se coloca como objeto de transitivismo da volúpia divina. Não entrarei em detalhes da complexidade delirante de Schreber, no entanto, o que ocorre é que, em determinado momento, surge uma senha que, como um grampo, produz o consentimento e todo o estancamento da produção delirante de Schreber.

Vale dizer que a pequena alocução “por mim”, concernida ao seu narcisismo, faz a função de grampo capaz de cessar a produção delirante e adiar por séculos o seu desígnio de se tornar mulher de Deus. Nesse momento, cabe indagar se essa alocução “por mim”, de modo paradoxal, consegue grampear o grande e complexo delírio de Schreber produzindo, como acontecimento de corpo, o desaparecimento das alucinações e sua estabilização psíquica. Enfim, é necessário destacar que há um antes e um depois do aparecimento contingente da senha “por mim”, que provoca um acontecimento de corpo de duração suficiente, porém, não eterna. 

Joyce e Nora[2] 

O encontro de Joyce e Nora vale constatar como improvável e contingente, de modo que cabe indagar a razão dessa união ter sido duradoura. Qual é o papel de Nora na relação com Joyce? Teria Nora a função de acontecimento de corpo para Joyce?

Nora tinha uma espécie de função de luva ao corpo de Joyce, embora, quando virada pelo avesso, o botão da luva impedisse um ajuste perfeito. Se Nora serve como uma luva para Joyce, é porque ela tem uma função reparadora de fixação/aperto (serrage), de invólucro ao ego defeituoso, de forma que ela une e ata o corpo de Joyce que lhe escapa (ARPIN, 2016, p. 127). Logo, Nora suplementava a função da escrita.

Inobstante a Joyce desdenhar de sua mulher, por ser “adoravelmente ignorante”, ele não a dispensava ao escrever em razão de dois objetos: o olhar e a voz. Joyce necessitava do olhar de Nora. Ele usava de um expediente para escrever: ao sentar-se à mesa em frente a um espelho, postava Nora sentada ou deitada atrás dele, de modo que ele se sentia olhado por ela e era possível olhá-la quando desejasse (Ibid., p. 133). O olhar de Nora ganha uma função fundamental na medida em que Joyce vai perdendo sua visão.

A voz de Nora, por sua vez, com um sotaque de Gallway, cuja pronúncia se aproximava do gaélico, tinha um papel relevante em virtude da musicalidade de sua língua, já que ela utilizava expressões e reviravoltas que jamais ouvira. “Sua voz oferece um contraponto que torna seu escárnio excitante, exasperante e terno ao mesmo tempo” (Ibid., p. 124).

Os dois não se desgarravam, fazendo a relação sexual existir. “Se ele está em algures, ela está por perto. Se ele vai a nenhures ela também irá por certo”. Entretanto, Nora não será a Beatriz de Dante ou a Madeleine de Gide, como musas inspiradoras e idealizadas (ARPIN, 2018, [s.p.]), tampouco Joyce faz dela a causa de seu desejo. Nora é uma matadora de homens, mas fica com o único homem que não morre de amores por ela (ARPIN, 2016, p. 137).

De acordo com Lacan, no Seminário 23, sua escrita singular teve função de ego para Joyce. Trata-se de ego, e não de eu, visto que ele não está concernido à imagem corporal, ao estádio do espelho, mas a uma corporificação da imagem. Então, haveria uma diferença entre as funções da escrita e de Nora, como sua parceira? Nesse caso, caberia indagar se a escrita teria um papel de sinthoma e, Nora, uma função de suplência, ou se ambos, escrita e Nora, desempenham a mesma função, que não existe uma sem a outra? É evidente que Nora tem a função de atar o corpo de Joyce, portanto, poderíamos nos autorizar a dizer que o encontro contingente com Nora teve um papel de acontecimento de corpo para Joyce?   

Fenômeno e acontecimento de corpo e final de análise 

Antes de abordarmos o acontecimento de corpo no final de minha análise, narrarei um breve episódio que destaco como fenômeno de corpo ocorrido na minha juventude. Era início dos anos setenta, talvez 1972, eu tinha aproximadamente quinze anos. Tinha um sonho, como quase todo jovem de minha geração: ter uma calça jeans da marca Lee. Era algo muito raro e caro. Juntei ao longo dos meses o pouco de mesada que recebia. Certa vez, quando supus ter a quantia, dirigi-me à Galeria Ouvidor, uma espécie de shopping center da época, onde havia algumas importadoras. Sempre ia a essas importadoras, mas nunca encontrei a calça Lee. Porém, um dia, ao chegar à loja, o vendedor me avisou que a calça Lee havia chegado e tinha o meu número. Entrei no trocador e a experimentei: perfeita!

No momento em que ainda apreciava o modelo justo ao meu corpo, comecei a escutar uma música que me deixou totalmente atônito e arrepiado da cabeça aos pés. Tirei a calça resoluto e a entreguei ao vendedor que, perplexo, não entendia a razão pela qual não compraria a calça Lee, tão desejada. Cruzei o corredor da Galeria Ouvidor, dirigi-me à loja de discos e perguntei: que música é essa? Blowing in the Wind, de um tal de Bob Dylan. Nunca tinha ouvido falar em Bob Dylan, mas fui tomado de assalto por aquela musicalidade expressa por uma espécie de lalíngua, acompanhada por uma gaita que parecia um gemido. Esse episódio deixou marcas de satisfação no corpo, porém, não o considero acontecimento de corpo, mas sim um fenômeno de corpo.

No que se refere às sessões que serviram de epílogo para o final de minha análise, destaco uma passagem que pode ser inscrita como acontecimento de corpo. Em razão de o filho ter entrado, contingencialmente, na briga do casal parental, o pai o teria puxado e carregado pelos cabelos e o exibido em público durante um conflito por ocasião da separação conjugal litigiosa. Depois desse acontecimento, inscrito como trauma, o menino queria passar despercebido, desaparecer diante do olhar do Outro. Defronte a isso, a angústia se tornou minha companheira e a inibição ocorria no plano social e intelectual.

Após um longo período de análise, o analista interrompeu a minha sessão e olhou-me bem fixo nos olhos, pela primeira vez em dezenove anos, com o semblante mais maroto do mundo. Sua cabeça arredondada estava incandescente, como o pôr do sol, desses que acontecem no inverno de Belo Horizonte, quando o sol beija a montanha no final do dia (CAMPOS, 2014, p. 30).

Esse acontecimento de corpo estabeleceu um divisor de águas em minha vida, entre um antes e um depois. Parece que o acontecimento de corpo tem o mesmo estatuto do trauma, na medida em que ele tem um tempo um como inscrição e, depois, um tempo dois, como acontecimento que guarda fidelidade ao tempo um. Antes, o sintoma me prendia em um gozo enigmático, expresso como uma espécie de debilidade mental. Estava suspenso, aéreo, com os pés fora do chão, como um espectador distante da vida, imerso em procrastinações, fantasias e devaneios, os quais serviam de mecanismo de proteção, defesa e fuga da realidade. Era como se o tempo tivesse sido congelado em razão da cena traumática.

Após a conclusão da análise, paulatinamente comecei a constatar uma estranha precipitação sinthomática. O evento da alucinose da cabeça em brasa do analista ocorrida no ocaso da análise, no fundo nada mais era do que a projeção da cabeça quente, puxada pelos cabelos pelo pai na cena traumática. A partir de então, houve um deslocamento radical da debilidade para uma espécie de loucura. Miller destaca que o fenômeno de corpo, quando ganha permanência, é designado acontecimento de corpo e tem o estatuto de sinthoma (MILLER, 2016, p. 110). A cabeça aérea, fantasiosa, débil e anestesiada se transformou em uma cabeça inquieta, arejada, incandescente, desassossegada e fervilhante, promotora de satisfação.

A partir de então, mergulhei de cabeça na Escola. Durante três anos aconteceram os depoimentos do passe; em seguida, foram dois anos como integrante do cartel do passe; depois vieram a participação do conselho da EBP e a presidência da EBP. Enfim, há mais de seis anos, de modo dedicado e ininterrupto, abracei o desejo incandescente pelos “Seminários por conta e risco”, de onde extraio a enorme satisfação de transmitir a psicanálise.

 


Referências
ARPIN, D. Gault, J-L., L’épouse de Joyce. L’Hebdo-Blog, n. 154, 2018.
ARPIN, D. James et Nora Joyce. Couples célèbres. Paris: Navarin, 2016.
CAMPOS, S. Passema: testemunhos de um final de análise. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. La Conversación. In: Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2016.
MILLER, J.-A. Conferencias porteñas, Tomo 2. Significante y goce. Buenos Aires: Paidos, 2009.
MILLER, J.-A. El primado de la práctica. In: La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. O osso de uma análise. Salvador: Biblioteca agente, 1998.
MILLER, J.-A. Sintoma y sinthome. In: Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013, p.67-75.
SCHREBER, D.-P. Memórias de um doente de nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 303-304.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Psicose em 17/09/2021.
[2] Fragmento relacionado ao encontro de Joyce e Nora, extraído do relatório apresentado no X Enapol, no qual participaram Anamaria Vasconcelos, Ana Martha Maia, Blanca Musachi, Eder Galiza, Fernando Casula, Gisele Sette Lopes, Glacy Gorski, Katia Mariás, Loren Costa, Marcela Brandão, Maria Wilma Faria, Marina Cursino, Michelle Sena, Ruskaya Maia, Sérgio de Campos, Sérgio Mattos, Viviane Lafayette.