V. 6 – Nº 10 1º semestre de 2012

TRILHAMENTO


ENTREVISTA


INCURSÕES


 

ENCONTROS


 

DE UMA NOVA GERAÇÃO




O Sonho De Ser A Mais Bela

“Now what I love in women is, they won’tOr can’t do otherwise than lie, but do itSo well, the very truth seems falsehood do itAnd, after all, what is a lie? ‘T is butThe truth in masquerade…”(1)

(BYRON)

O trajeto que proponho é simples. A partir do sonho de uma mulher, o de ser a mais bela, irei desenvolver os diferentes aspectos da mascarada, para estabelecer a seguir um laço com a mulher sonhada por um homem.

1. Um Sonho De Mulher: “A Mais Bela”

Em 1920, Abraham publica “Manifestações do Complexo de Castração na mulher”. Entre os diversos pontos que estuda, menciona uma tendência que atenua o Complexo na mulher e se centra na possibilidade de um reconhecimento por parte do homem que a reconcilia com sua feminilidade. Diz: “Mencionarei um requisito que encontrei muitas vezes: ‘eu poderia resignar-me à minha feminilidade, se eu fosse a mais bela’.” Acrescenta, a seguir, que essa fantasia de ser a mais bela se constitui em três tempos. “O desejo original diz: ‘Eu gostaria de ser um homem’.” Quando isso é abandonado, a mulher deseja ser “a única mulher” (“a única mulher do pai” é a intenção original). Quando também esse desejo precisa ceder perante a realidade, surge a ideia: “como mulher, gostaria de ser inigualável”.

Esses três tempos ilustram a passagem do Complexo de Masculinidade da menina para a assunção de uma posição feminina, mas com uma característica particular. Frente à falta, o falo que a menina espera receber do pai não entra no domínio da equação criança=falo, ou seja, a solução através da maternidade, mas é posto em jogo seu próprio corpo — ainda que essas soluções não se oponham.

Sabemos com Freud que o medo da perda de amor da menina se instala no lugar do Complexo de Castração do menino. Isso explica a busca contínua, por parte da mulher, de pequenos sinais que cifrem o amor do parceiro.

No primeiro tempo, a menina sofre do Complexo de Masculinidade. Ao chegarmos nesse ponto, devemos lembrar que Freud diferencia dois tempos para esse complexo. O primeiro se refere ao desenvolvimento normal da menina e traduz a atividade fálica que acompanha uma relação exclusiva com a mãe: a menina identificada ao falo da mãe. Esse tempo é diferente do que constitui uma das respostas ao Penisneid, no qual se aposta na recusa ou na negação da castração. Nesses dois tempos, situa-se a passagem da mãe em direção ao pai e a expectativa de receber o falo do pai.

Na fantasia analisada por Abraham, o pai aparece depois da emergência do Complexo de Masculinidade. Nesse primeiro tempo, produz-se a passagem do ser ao ter o falo e a maneira de confrontar-se com a falta do ter.

“Ser a única mulher do pai” expressa tanto a rivalidade frente às outras mulheres, quanto a demanda de amor dirigida ao pai, de quem espera receber o falo ansiado através da metáfora do amor. Ela quer tornar-se o que falta a ele e evadir-se da sua própria falta. “Ser a única” guarda certa direção. Aponta para a captação do amor do pai e em direção a fazer operar a metáfora fálica que lhe permite ser no lugar da falta do ter, revelada no primeiro tempo.

Essa virada explica por que Abraham afirma que essa fantasia consegue mitigar o Complexo de Masculinidade das mulheres, uma vez que a solução do Penisneid não se conclui através da identificação viril, mas pelo caminho da demanda de amor.

No terceiro tempo, emerge a ideia de ser uma mulher excepcional ou de ser a mais bela, no qual a aparência, o semblante, situa-se no lugar da falta do ter.

A questão da falicização do corpo da mulher foi retomada em numerosas ocasiões na literatura analítica. Lacan evoca em particular a equação girl=falo proposta por Fenichel e a mulher enquanto objeto de troca nas estruturas elementares do parentesco. Mas outros autores, como Ferenczi ou Rado, evocaram as metamorfoses do Wunsch-penis que desembocam em que toda superfície do corpo passa a ser um substituto narcísico do pênis. É uma forma um pouco imaginarizada de nomear a ação da metáfora fálica operada sobre o corpo.

Esse brilho fálico é também um jogo de sombras que enlaça o semblante. Van Ophuijsen, em seu artigo sobre o Complexo de Masculinidade, evoca o jogo de sombras de uma paciente durante sua infância. Habitualmente, nas noites, ela ficava em pé entre o abajur e a parede e colocava os dedos na frente da parte inferior de seu corpo, de maneira tal que a sombra projetada evocasse a forma do pênis.

A falicização do corpo feminino faz parte também do jogo de sombras. As sombras projetadas vêm do simbólico, com sua ação sobre o imaginário, e indicam quais são as características do objeto desejado que a mulher deve tentar alcançar. Partindo das curvas femininas do século XIX, passando pelo modelo andrógino do começo do século XX, até chegarmos à mulher magra e atlética dos tempos modernos, toda uma gama de variações de semblantes é proposta através do discurso que atua sobre a invenção que as mulheres fazem delas mesmas. A mascarada é uma invenção que aponta para o desejo do homem e encoberta a falta ao mesmo tempo em que flerta com ela. Ela está determinada por cada história e cada posição subjetiva. Dessa maneira, se a contagem das mulheres deve fazer-se de uma em uma, alcançaremos uma ampla variação, a partir de um número reduzido de temas, que dá conta das sombras que as mulheres projetam sobre elas mesmas.

Não se trata somente de uma miragem. Longe de pensar a mascarada como engano sob o qual se encontra o verdadeiro ser, devemos concebê-la como a maneira particular em que se apresenta um sujeito no mundo, homologável às imagens evocadas por Freud em seu artigo sobre a transitoriedade. A beleza que se pode captar durante um instante somente não é menos verdadeira se desaparecer logo em seguida. No parecer se manifesta a maneira íntima de tratar a falta do ter, e no singular.

Em seu artigo sobre a mascarada feminina, Joan Rivière pergunta-se sobre a diferença entre a feminilidade como disfarce e a verdadeira feminilidade. Ela diz: “Que a feminilidade seja fundamental ou superficial, é sempre a mesma coisa”. E isso acontece, podemos acrescentar, porque não existe uma essência feminina. Tanto a posição feminina quanto a masculina são o resultado da inclusão do ser falante na linguagem.

Apesar de existir um laço íntimo entre a mascarada e o semblante, a mascarada pode ser abordada nos diferentes registros. No simbólico, expressa a ação do discurso que determina a maneira como o sujeito se apresenta no mundo para tornar-se desejável, quer dizer que permanece no circuito do desejo. No imaginário, concerne ao narcisismo do sujeito e às imagens que se sobrepõem sobre o corpo. E, no real, por mais que o semblante e o real estejam separados, a mascarada, de alguma maneira, permanece ligada ao gozo singular do sujeito, mesmo que seja somente sob a forma de seu uso em relação ao desejo.

A criação da mascarada não sutura a pergunta acerca de “o que é ser mulher”. É por isso que a fantasia de ser a mais bela não pode ser mais do que um sonho que algumas mulheres podem ter, mas que nenhuma delas se assume como o superlativo sonhado. Talvez essa seja a mulher que falte entre as mulheres.

2. Uma Mulher Sonhada

E por que uma mulher gostaria de ser a mais bela ou ser excepcional? Durante o curso do ano de 1991-92, Jacques-Alain Miller apresentou duas soluções frente ao “não ter”: fazer-se ser e adquiri-lo. A mascarada forma parte da solução de fazer-se ser o falo e conota uma solução que permanece no registro do ter: “ser tida pelo outro” (être eue par l’autre).

A condescendência da mulher para com a fantasia do homem expressa sua plasticidade no que tange à estratégia do desejo para conseguir despertá-lo. Isso se baseia nos traços particulares que determinam sua escolha de objeto. Dessa maneira, a mascarada, enquanto invenção, encontra seus limites em cada mulher. O mal-entendido é o preço que se paga nessa operação. O incontornável não era ela, nem tampouco era ele; mostra a sucessão de semblantes na comédia do amor. Devemos ressaltar que o medo da perda de amor faz com que as mulheres se ocupem mais que o homem pela mascarada que propõem ao seu parceiro, devido ao seu esforço para tornar-se a mulher sonhada.

Apesar de propor a mascarada como fazendo parte da posição feminina, podemos extrair da fantasia analisada por Abraham duas posições opostas.

Ser a única para o pai e depois para o homem que o substitui não é querer a excepcionalidade. No primeiro caso, a estratégia do desejo permanece ligada ao objeto escolhido; o segundo traduz o esforço da mulher em colocar-se no lugar da exceção. “Ser a única para” guarda uma direção, fixa o objeto e se inclui na demanda de amor. “Ser excepcional” deslocaliza o objeto e reenvia ao próprio sujeito o motor que liga a construção da mascarada.

Isso pode servir-nos para distinguir de outra maneira a feminilidade e a histeria. A primeira posição é tipicamente feminina, em que predomina o fazer-se amar, inclusive com a ambiguidade que comporta o “ser a única”: unicamente para ele, mas também a única que ele ama. A evolução dessa aspiração se modaliza nos labirintos da vida amorosa. Já a segunda posição, pelo contrário, expressa a identificação viril através da qual a histérica tenta responder ao enigma do que é ser mulher, ao mesmo tempo em que reivindica seu lugar entre os homens.

A sucessão de binômios nos permitiu desenvolver a questão da mascarada. A partir da solução que apresenta a equação corpo=falo, analisamos a fantasia de ser a mais bela e indicamos como ponto de partida a distinção entre a posição que resulta da identificação viril e a enlaçada à demanda de amor. Os três tempos da fantasia nos permitiram distinguir a tendência de fazer-se amar pelo pai e pelo homem que vem a ocupar esse lugar do desejo intenso de ser excepcional. O uso da mascarada toma uma orientação diferente nos dois casos, que nos conduziu à postulação de algumas distinções entre feminilidade e histeria.

Entre sombras e semblantes, as mulheres se inventam. Cada uma modaliza sua maneira singular de tratar a falta do ter; entre elas, para algumas, às vezes, o amor as torna as mais belas.

Tradução: Julieta Sueldo Boedo.

 

(1) “Agora o que eu amo nas mulheres é, elas não vão / Ou não podem fazer outra coisa senão mentira, mas fazê-lo / Tão bem, a própria verdade parece mentira ao fazê-lo / E, afinal, o que é uma mentira? É apenas / A verdade mascarada”

Silvia Tendlarz
Silvia Elena Tendlarz Psicanalista, Membro da EOL – Escuela de la Orientación Lacaniana e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: stendlarz@fibertel.com.ar



A Incidência Do Narcisismo Na Esquizofrenia E Na Histeria

GRACIELA BESSA

O estudo das neuroses de transferência — histeria e neurose obsessiva — tornou possível a Freud estabelecer uma teoria das pulsões. Basicamente, até 1914, os processos mentais giravam em torno da oposição entre as pulsões sexuais e as pulsões do eu. Contudo, no que diz respeito à sua aplicabilidade aos sintomas na paranoia e na esquizofrenia, essa concepção do funcionamento psíquico a partir da antítese entre os dois grupos pulsionais é insuficiente. Freud, ao escrever o texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1974), lança a hipótese de que a passagem do autoerotismo para a libido objetal não se faz de modo direto, há, entre os dois modos de satisfação da libido, a constituição do narcisismo. Aposta na ideia de que o estudo tanto da paranoia quanto da esquizofrenia esclarecerá o modo como a libido toma o eu como objeto de satisfação sexual, denominada de libido narcísica. Com esse trabalho, ele tem como objetivo demonstrar que o narcisismo é constituinte da teoria da libido, independentemente de qualquer patologia mental.

Num estudo comparativo, observa que, enquanto, nas neuroses de transferência, a libido, ao se retirar dos objetos, é investida na fantasia, já na paranoia, por exemplo, ela se retira para o eu, acarretando a megalomania. Mas essa retirada é, na maioria das vezes, parcial. Em consequência disso, Freud distingue, no quadro clínico da esquizofrenia, três grupos de fenômenos. Um deles se refere aos fenômenos residuais, que são aqueles que se assemelham aos processos normais de neurose. Essa discussão é retomada anos mais tarde, no texto “Esboço de psicanálise” ([1938] 1940/1974), ao afirmar que:

“Mesmo num estado tão afastado da realidade do mundo externo como o de confusão alucinatória, aprende-se com os pacientes, após seu restabelecimento, que, na ocasião, em algum lugar da mente (como o dizem), havia uma pessoa normal escondida, a qual, como um espectador desligado, olhava o tumulto da doença passar por ele” (FREUD, [1938] 1940/1974, p.231).

O outro grupo de fenômenos ele denomina de processos mórbidos, que corresponde ao afastamento da libido dos objetos. Nesse grupo, estão os sintomas da megalomania, da hipocondria, etc. E um terceiro grupo de fenômenos, que representa a tentativa de restauração, ou seja, a libido é novamente ligada aos objetos. De modo inesperado, Freud estabelece uma correlação entre esquizofrenia e histeria, ao afirmar que o retorno da libido aos objetos na esquizofrenia se dá como numa histeria. Embora ele ressalte que haja diferenças entre elas, não passa despercebida essa aproximação. A questão que coloco seria a seguinte: por que Freud aproxima a esquizofrenia da histeria no que diz respeito ao narcisismo?

Para que possamos iniciar uma discussão sobre o tema, sugiro partir do narcisismo, pois é ele o elemento que conduziu Freud a fazer essa aproximação. Devo esclarecer que este texto não tem a pretensão de realizar um estudo exaustivo sobre o narcisismo, desejando apenas abordá-lo por um viés que possa esclarecer nossa questão.

No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1974), Freud nos diz que o autoerotismo é o primeiro modo de satisfação encontrado pelas pulsões sexuais, é o que ele denomina de prazer do órgão. A pulsão encontra satisfação no próprio corpo sem recorrer a nenhum objeto, pois ainda não existe nenhuma unidade que possamos denominar de eu. “As pulsões autoeróticas, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo — uma nova ação psíquica — a fim de provocar o narcisismo” (FREUD, 1914/1974, p.93).

Segundo essa passagem de Freud, o eu é resultante dessa nova ação psíquica, é a representação que se tem de si mesmo e que pode ser investida pela libido, ou seja, pode ser tomada como objeto de satisfação da pulsão sexual. Isso quer dizer que, sem essa ação, não há formação do eu, consequentemente, o narcisismo não se funda. Segundo a teoria do narcisismo, o eu e o objeto surgem de um só golpe, isso porque o eu, ao se constituir, marca a diferença entre o que é eu e o que não é eu.

Identificamos na construção da fase do espelho a interpretação lacaniana sobre as considerações de Freud sobre o narcisismo. O estádio do espelho especifica que o eu se constitui como forma alienada na imagem do outro. Frente à sua própria imagem no espelho, a criança a toma, inicialmente, como se fosse a de um outro. Para se identificar a ela, é necessário que se cumpram duas condições. Uma é o consentimento de um adulto, confirmando que ela é essa imagem refletida no espelho. A outra é o investimento do Outro, reconhecendo a criança como um objeto real de um desejo singularizado. O estádio do espelho se concretiza, portanto, no encontro do sujeito com uma imagem que assume como sua, com o aval do Outro. É assim que a criança, que ainda não tem um domínio sobre seu corpo, que o experimenta de modo fragmentado, em decorrência de uma imaturidade neurológica, diante do espelho, vivencia o seu corpo a partir de uma Gestalt, tendo um domínio imaginário sobre ele. Ele se cristaliza nessa imagem, que não passa de uma imagem virtual, fazendo com que carregue em si algo de enganador e ilusório.

O estádio do espelho não está plenamente no imaginário, inclusive, ele opera a partir do simbólico representado pela presença do Outro. É esse Outro que, ao designar o significante que será o ideal do eu, I(A), livra a criança de ficar aprisionada na alienação dessa imagem. Então, o estádio do espelho comporta um duplo movimento. De um lado, está o elemento ilusório e enganador contido na assunção de uma imagem como sua, mas é o que lhe vai servir de referente em sua relação com a realidade, permitindo-lhe cernir o que é do eu e o que não é. Por outro lado, ele cria a possibilidade da criança de iniciar uma série de identificações significantes, favorecendo sua entrada no simbólico.

Se, para Freud, inicialmente, está o autoerotismo, é fundamental a constituição do eu, ou seja, a constituição dessa imagem i(a), pois é ela que irá dar forma, organizar as pulsões. Mas a criança só assume essa imagem como sua se ela estiver sustentada pelo olhar e pelo desejo do Outro. Ou seja, o corpo real só é vestido por uma imagem se houver a constituição de uma identificação simbólica I(A), que se apoia numa insígnia fornecida pelo Outro.

Nesse processo de constituição do eu, Elisa Alvarenga (1994) aponta três impasses e três soluções. O primeiro impasse seria a experiência da criança frente à sua impotência primitiva. A solução para esse impasse em que se encontra é a constituição da imagem especular, i(a), que organiza as pulsões. Essa solução, por sua vez, a conduz ao segundo impasse, que é a relação de agressividade narcísica — ou eu, ou você. A saída para ele é a presença do Outro simbólico, cuja função é posicionar o sujeito para além da relação especular, abrindo a série de identificações simbólicas. O terceiro impasse, Elisa Alvarenga discrimina a partir da falta de um significante no Outro que defina o ser do sujeito. A solução encontrada pelo sujeito para esse impasse é poder identificar-se com o objeto do desejo do Outro.

O que podemos pensar em relação à esquizofrenia? Com Freud, dizemos que essa nova ação psíquica não se efetiva. Ou seja, não há a constituição do narcisismo, e o tipo de satisfação que se experimenta é autoerótico.

Com Lacan, a partir de sua formulação sobre o estádio do espelho, dizemos que houve uma impossibilidade para a criança de se reconhecer nessa imagem, isso porque, do lado do Outro, há um desejo anônimo, nada vem nomear o desejo do Outro em relação a ela. Dito de outra forma, na esquizofrenia, é impossível, para a criança, isolar um nome no discurso do Outro materno que possa singularizar seu ser. É nesse sentido que Lacan, em O Seminário: a angústia (1962-1963/2005), diz que “a mãe do esquizofrênico articula sobre o que seu filho era para ela no momento em que estava em seu ventre — nada além de um corpo, inversamente cômodo ou incômodo” (LACAN, 1962-1963/2005, p.133).

O fato de o esquizofrênico não se reconhecer numa imagem como consequência de uma operação simbólica faz com que ele experimente um corpo despedaçado, sem limites precisos. Para Elisa Alvarenga (1994), não é possível ao esquizofrênico solucionar a impotência primitiva do ser com a constituição da imagem especular. Há, na esquizofrenia, uma impossibilidade de metaforizar, o significante incide sobre o corpo, em sua dimensão de real. Assim, o gozo retorna a um tempo anterior à construção dessa imagem gestáltica do eu, ficando o esquizofrênico entregue ao funcionamento real das pulsões. Em função disso, no campo imaginário do corpo, aparecem os fenômenos hipocondríacos, através dos quais o sujeito vivencia um gozo autístico; no simbólico, a cadeia significante se dispersa, havendo apenas o deslizamento significante.

Como pensar a histeria com base no desenvolvimento efetuado até o momento? Para isso, nortear-nos-emos pela seguinte questão: qual a consequência, na clínica da histeria, da inserção de uma função imaginária da imagem corporal entre o real do corpo e o processo do recalque?

Conforme se viu anteriormente, para que haja constituição da imagem corporal unificada, a função do Outro é decisiva, pois essa imagem depende da mensagem do Outro endereçada à criança. Na neurose, tanto há a constituição do eu ideal i(a), que corresponde à imagem unificada, como também a formação do ideal do eu I(A), que abre a série de identificações simbólicas e que se apoia num traço significante extraído do Outro — um desejo que particularize essa criança no desejo do Outro. É justamente essa identificação simbólica que permitirá que a criança possa ver ou não a imagem de si mesma. Essa imagem é uma espécie de vestimenta que confere uma unidade para esse corpo real experimentado pela criança como fragmentado, entregue à satisfação autoerótica das pulsões.

Observamos, na experiência clínica com mulheres, certo desconforto com sua imagem corporal, uma imagem que sempre vacila. Isso advém do fato de não existir, no Outro, o significante que especifique a condição feminina de uma mulher, fazendo com que a imagem corporal, numa mulher, não capsule e torne erótico completamente o real do corpo. Uma saída para isso é se fazer “toda fálica”, ou seja, abordar a sexualidade à maneira do homem, pela via da ostentação fálica, sem, contudo, assumir uma aparência masculina.

Talvez possamos identificar aqui o ponto que serviu de apoio para Freud (1914/1974) sustentar que, nas mulheres, “com o começo da puberdade, […] parece ocasionar a intensificação do narcisismo original, especialmente se forem belas” (FREUD, 1914/1974, p.105). Sob a perspectiva freudiana, é justamente porque não tem o falo que a mulher cuida de sua imagem corporal a ponto de fazê-la adquirir o valor de falo. Ou seja, por não ter o signo “pênis” que lhe confira uma identificação sexual, ela compensa tendo um corpo feminino. Na “Conferência XXXIII: Feminilidade”, Freud ([1932] 1933/1974) retoma essa questão trazendo um novo elemento. Ele diz o seguinte: “A inveja do pênis tem em parte, como efeito, também a vaidade física das mulheres, de vez que elas não podem fugir à necessidade de valorizar seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual original” (FREUD, [1932] 1933/1974, p.162). Interpretamos essa passagem dizendo que a exacerbação do narcisismo ligado à inveja do pênis teria como função velar essa falha no campo da imagem corporal.

Com a leitura lacaniana do narcisismo, ressaltamos que a identificação imaginária do corpo feminino, numa mulher, justamente por não existir o significante que defina o ser sexuado da mulher, é frágil e precária. Ela é experimentada como um artifício, um substituto.

Conforme Serge André (1987), a histeria teria como essência denunciar a falta de significante no Outro que identifique o que é ser mulher, e a consequência disso, no campo da identificação especular, é a produção de uma falha. Nesse sentido, a histeria traz em si um questionamento sobre o feminino.

Mesmo com toda essa problemática na construção da imagem especular, diferentemente da esquizofrenia, na histeria, a constituição de i(a) se dá, e, com isso, há um corpo sexualizado e uma imagem corporal erotizada. Por se tratar de uma neurose, o processo do recalque está presente, e seu efeito é determinar no corpo quais os lugares que servirão de ancoragem para a satisfação da pulsão sexual. A esses lugares Freud denominou de zonas erógenas. É nessas zonas que a pulsão sexual encontra não só satisfação, mas também se une a uma representação. A sexualidade, portanto, não está ligada estritamente aos órgãos genitais. A determinação dessas zonas erógenas implica uma seleção, algumas partes do corpo são eleitas, outras são abandonadas, pois, para Freud (1905/1974), qualquer região do corpo pode ser erotizada. Uma determinada zona do corpo é eleita se ela favorece a passagem da função orgânica para a satisfação da pulsão sexual.

Observamos que a noção de zona erógena comporta a ideia de que houve a incidência do simbólico sobre o corpo, efetuando uma separação entre gozo e corpo. A entrada da criança no discurso lhe possibilita estabelecer uma função para seus órgãos, segundo as leis significantes.

A histeria de conversão é um bom exemplo clínico disso. Os sintomas conversivos demonstram que qualquer lugar da superfície corporal pode ter uma função sexual a expensas da necessidade orgânica. No sintoma da cegueira histérica, trabalhado por Freud, em seu texto “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão” (1910/1974), o olho deixa de exercer sua função orgânica que é a visão e passa a legitimar a satisfação da pulsão sexual. O sintoma conversivo atesta que o limite entre o sexual e o não sexual, entre o desejo e a necessidade, não pode ser mais estabelecido. A fantasia, expressão do desejo sexual, se apossa do órgão e apaga sua função ligada à necessidade. Verificamos, no sintoma de conversão, que, entre a função real do corpo e a função simbólica — um corpo marcado pelo significante — se insere a função imaginária. Para Freud, essa função imaginária do corpo tem uma prevalência na histeria.

Na esquizofrenia, observamos uma falta de simbolização e, consequentemente, uma falta de sexualização. Isso porque, conforme abordamos anteriormente, a constituição de i(a) diz respeito a um investimento libidinal no eu que não se dá. Por conseguinte, não é possível que se forme uma Gestalt do corpo. O que prevalece é a “língua do órgão”, seguindo Freud em suas elaborações no texto “O inconsciente” (1915/1974), justamente porque o significante não está submetido à função simbólica, então, é tratado como coisa. Nesse caso, o significante é tomado pelo viés da identidade da expressão verbal, ou seja, a relação de palavra a palavra, e não pela via da significação, quando o recalque está presente. Para exemplificar o que quer dizer com isso, ele traz o caso de uma paciente de Tausk:

“Uma moça levada à clínica após uma discussão com o amante queixou-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos. Ela mesma explicou o fato, apresentando, em linguagem coerente, uma série de acusações contra o amante. ‘De alguma forma ela conseguia compreendê-lo, a cada vez ele parecia diferente; era hipócrita, um entortador de olhos, ele tinha entortado os olhos dela; agora via o mundo com olhos diferentes’” (FREUD, 1915/1974, p.226).

A palavra alemã Augenverdreher, entortador de olhos, possui o sentido figurado de enganador. Mas não foi pela via da significação, pela via da similitude das coisas designadas, que esse significante foi tomado por esse sujeito, mas pela relação de palavra a palavra. É uma prova de que o corpo do esquizofrênico não foi mortificado pela ação simbólica, sendo assim, não houve a disjunção entre significante e órgão, e, com isso, o corpo não passou de sua condição real para um corpo erógeno, um corpo recortado em zonas erógenas. Na esquizofrenia, o corpo é o lugar do gozo, um gozo não mediado pelo simbólico. O sujeito tem que se arranjar com seus órgãos quando nenhuma referência a um discurso estabelecido pode vir em seu auxílio.

Já na histeria de conversão, há não só um excesso de simbolização em decorrência do recalque, a representação ligada à pulsão sexual ganha a dianteira e se sobrepõe à função orgânica, como também um excesso de sexualização. Partes do corpo passam a ter uma função erógena.

O esquizofrênico atesta, através de sua fala e de seus sintomas no corpo, que há um impossível de simbolizar e de sexualizar, mesmo que possamos dizer que os fenômenos corporais aí presentes sejam uma tentativa de fazer a conjunção entre o real do corpo e a palavra. É o que Freud nos ensina, ao afirmar que a própria doença é uma tentativa de cura. Já os sintomas conversivos demonstram que são formações simbólicas passíveis de interpretações. Isso quer dizer que há, no sintoma de conversão, uma substituição metafórica de uma representação por um elemento significante do corpo.

Mas há aí um ponto de interseção. Há na constituição imaginária de um corpo dito feminino algo que fica fora de qualquer articulação significante que possa responder sobre a diferença anatômica. Há, portanto, um inefável, um não simbolizável sobre o ser feminino que é denunciado num ponto de falha na constituição de i(a), que, na histeria, fica tão evidente. O sintoma de conversão tenta reparar essa falha que se dá no campo da imagem, tenta revestir esse real do corpo, impossível de simbolizar.


Referências Bibliográficas:
ALVARENGA, Elisa. “A esquizofrenia e o estádio do espelho”, Revista de Psiquiatria e Psicanálise com crianças e adolescentes, Belo Horizonte, v.1, dez.1994, p.83-88.
ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
FREUD, Sigmund. (1905/1974) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora,v.7, p.123-252.
______. (1910/1974) “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, v.11, p.193-203.
______. (1914/1974) “Sobre o narcisismo: uma introdução”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, v.14, p.77-108.
______. (1915/1974) “O inconsciente”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, v.14, p.185-245.
______. ([1932] 1933/1974) “Conferência XXXIII: Feminilidade”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, v.22, p.139-165.
______. ([1938] 1940/1974) “Esboço de psicanálise”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, v.23, p.165-237.
LACAN, Jacques. (1962-1963) O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
MILLER, Jacques-Alain et al. “Esquizofrenia y paranoia”, In: Psicosis y psicoanalisis. Buenos Aires: Manantial, 1985. p.7-30.

Graciela Bessa
Graciela Bessa Psicanalista, Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). E-mail: gracielabessa@yahoo.com.br



Almanaque On-Line Entrevista

MARCELO VERAS

Almanaque On-Line: Publicamos, Neste Número De Almanaque On-Line, Um Belo Artigo De Silvia Tendlarz, No Qual Ela Se Remete À “Mascarada Feminina” De Joan Rivière E À Pergunta Sobre A Diferença Entre A Feminilidade Como Disfarce E A Verdadeira Feminilidade. Diz Rivière: “Que A Feminilidade Seja Fundamental Ou Superficial, É Sempre A Mesma Coisa”. Para Silvia, No Entanto, A Criação Da Mascarada Não Sutura A Pergunta Acerca De “O Que É Ser Mulher”. Que Resposta (Ou Respostas) Podemos Esperar Encontrar Nas “Figuras Do Feminino”?

Marcelo Veras: Há mais de um modo de responder à questão. Tomarei o caminho aberto por Lacan a partir da diferença entre identificação simbólica e imaginária. É fato que a figuração remete ao imaginário e ao simbólico: percepção da privação e aplicabilidade da função castração. Aqui não se trata apenas do imaginário da relação especular, presente em Freud, no texto sobre a diferença anatômica entre os sexos, mas do modo como a ereção permite localizar o gozo sexual através das culturas e dos tempos. Basta caminhar pelas ruas de Pompeia ou presenciar as festividades do solstício na Suécia até hoje — o Midsommar, festa familiar popular em torno de um enorme pênis — para perceber o triunfo do falo ereto. O gozo feminino, por sua vez, mobiliza o corpo de um modo totalmente distinto. Não deixa de ser relevante que o XIX Encontro se passe na Bahia, terra onde o transe místico tem uma função fundamental para o Candomblé. O transe não tem nada a ver com a histeria. Na histeria, os eventos corporais passam pelo corpo mapeado pela castração e pela falta simbólica, tal como podemos perceber na descrição que faz Freud da terceira modalidade de identificação, chamada de identificação pela falta ou histérica. No transe, o que está em questão é o gozo do corpo que escapa à lógica fálica, em conexão direta com os deuses politeístas que, no Candomblé, se inscrevem de um modo muito particular na lógica da sexuação.

Para a psicanálise, o desafio é maior. Não basta ser tomado pelo gozo que escapa à lógica fálica, é preciso um bem dizer sobre isso. Um ponto que tem sido colocado em relevo constantemente nos passes é o acontecimento de corpo, no final de análise, que não se conecta com a castração. O bem dizer implica poder falar desse acontecimento e não apenas experimentá-lo. Meu mestre de psiquiatria na Bahia, o falecido Professor Rubim de Pinho, dizia que as boas Ekedis, no Candomblé, sabem muito bem separar o que é uma manifestação de transe da loucura. As Ekedis, também chamadas, em alguns terreiros, de mães, assim como os Ogans, não entram em transe, pois devem estar acordados para orientar e assessorar os rituais. Arrisco-me a dizer que há algo da posição do analista nas Ekedis, elas aprenderam a organizar o mundo para além da lógica da castração.

Almanaque On-Line: O Que É Uma Verdadeira Mulher? O Que Distingue A Histérica E A Mulher Quanto Ao Gozo?

Marcelo Veras: Retomo um pouco a pergunta anterior. Quando fazemos a pergunta sobre a verdadeira mulher, nós já a inscrevemos no binário verdadeiro/falso, que nada tem a ver com o real. Desse modo, não há incompatibilidade em afirmar que “A” mulher não existe e, ao mesmo tempo, falar de uma verdadeira mulher. Sabemos que apontar para essa inexistência, na análise, muda o cerne da questão feminina, passando de uma impotência a uma impossibilidade. Há, nesse ponto, uma subversão do dispositivo da demanda que é crucial na clínica. É necessário um consentimento à castração para não perpetuar uma demanda que esgota o sujeito na busca de máscaras. Máscaras que nunca se adequam perfeitamente, sem restos. Podemos dizer que há uma mulher verdadeira, já que verdadeiro e falso são proposições constantes na relação do falasser com o Outro, quando seu dizer não se escora na rivalidade fálica e avança sem a garantia de que esse Outro obture sua falta com a castração. Ou seja, a mulher verdadeira não institui o Outro da castração como parceiro.

Almanaque On-Line: Como Retomarmos E Discutirmos Hoje A Expressão De Lacan: “Para O Homem, Uma Mulher Pode Representar A Hora Da Verdade”? O Que Quer Dizer Isso Hoje? De Que Forma O XIX EBCF, Com O Tema “Mulheres De Hoje: Figuras Do Feminino”, Atualiza E Aborda Essa Questão?

Marcelo Veras: Com Lacan, aprendemos que a verdade não é algo que se alcança pelo saber. Eis um ponto que faz com que a psicanálise não seja uma forma de filosofia. A leitura das fórmulas da sexuação nos ajuda a ver como o homem acredita que a mulher pode ser inscrita em seu desejo. Para construir esse espaço, ele se serve da fantasia fundamental; é pelo aparelho da fantasia que ele acredita na existência da mulher. Ocorre que o feminino aponta para algo fora da cena, algo que faz com que ela, desculpem se repito um bordão, esteja não-toda no campo da realidade. Então, respondendo à pergunta, para um homem, a verdade irrompe na parceria quando se ultrapassa o verdadeiro/falso da castração. É quando a parceira recusa a posição que lhe é assegurada pela fantasia masculina. Ela recusa a fantasia que a fixa na zona de conforto fálica, para fazer valer sua demanda de outra coisa, que não se relaciona com o falo e sim com um gozo suplementar, que escapa precisamente a esse gozo do falo. Musas, Medusas ou Medeias, as figuras do feminino que serão tratadas no XIX Encontro elevam, cada uma à sua maneira, o parceiro masculino a uma dimensão mais além do que pode ser obtido pela sua fantasia, é aí que se situa a hora da verdade.

Almanaque On-Line: O Tema Da Seção Clínica Do IPSM-MG, Para Este Semestre, É “O Fracasso Em Psicanálise Na Feminização Do Mundo”. Esse Tema Articula Fracasso E Sucesso, Se Pensarmos A Feminização Como Uma Valorização E Prevalência Da Posição Feminina No Mundo De Hoje. Se Tomarmos A Ideia De Lacan De Que O Sucesso Da Psicanálise Seria Seu Fracasso, Que Correlação Podemos Fazer Em Relação Ao Sucesso Feminino?

Marcelo Veras: Eu diria que há muita semelhança entre as duas formulações. A feminização do mundo ocorre naquele ponto em que o mundo recusa a ordem totalizadora e homogeneizadora dos mestres antigos ou atuais. Ela ocorre quando as formas de gozo se desprendem do Édipo e vão mais além. Assim é também a psicanálise. Já o sucesso, no mundo contemporâneo, é uma exigência onipresente em todos os setores da vida. Nesse sentido, não tem nada a ver com o feminino ou com a psicanálise, que recusam uma solução universal. Há uma certa vocação à segregação da psicanálise e da mulher, que é de estrutura. Daí o papel importante de uma Escola de Psicanálise, pois não são muitos os que suportam sustentar essa condição de exceção.




A Segregação Nossa De Cada Dia

LUÍS TUDANCA

É um prazer estar aqui, trabalhando com vocês as questões levantadas em meu último livro.[2] Agora posso dizer “meu último livro”, já que são dois.

Trata-se, então, da política pensada a partir da psicanálise e, mais estritamente, da política da psicanálise que chamo de “uma política do sintoma”, que é o título do livro. Tento sustentar-me nessa linha. Nesse sentido, parece-me que há uma ideia de Lacan da qual não se deve desviar, que é sua definição de política em relação à psicanálise. Lacan diz, textualmente: “O sintoma institui a ordem em que se revela nossa política, implica, por outra parte, que tudo o que se articula por essa ordem, quer dizer, a ordem do sintoma, seja passível de interpretação”. Assim, o que Lacan indica — e ele não se afastou nunca disso — e que faz com que Miller retome todas as discussões sobre a política e a psicanálise, nesse ponto, gira ao redor de três termos: política, sintoma e interpretação. Isso quer dizer que, em psicanálise, a política é a política do sintoma, e, com isso, o outro passo agregado por Lacan é aquele segundo o qual, se a política da psicanálise é a política do sintoma, a única ferramenta de que dispomos para essa política é a interpretação. Esses são os três eixos que vamos encontrar nos dois livros e em todas as ideias nas quais Miller insiste, e insiste muito, ultimamente.

Isso abre duas perspectivas, uma é a perspectiva para dentro, ou seja, para a psicanálise pura, e outra é a perspectiva para fora, quando dizemos ir desde a psicanálise ao social, ir desde a psicanálise à cidade.

Para dentro, a política da psicanálise é a política do sintoma, e isso nos leva ao passe. Por quê? Porque o dispositivo do passe investiga o sintoma, e essa é a política da psicanálise pura. Por outra parte, no dispositivo do passe, tenta-se verificar o que se passou com a interpretação em uma análise, se essa interpretação conseguiu fazer algo ou não com o sintoma do sujeito, e se houve modificação a tal ponto que se possa falar de sinthome no final de análise, um novo enodamento, isso é para dentro.

Para fora, em relação ao social, ocorre o mesmo, porém aí surgem nossos problemas. Porque a política para fora teria que estar restrita unicamente a localizar o sintoma, o sintoma no social, a cada vez; não há outra perspectiva senão essa. De modo que o trabalho em instituições, o trabalho no Estado, inclusive, etc., se alguém o aborda como psicanalista, tem que abordá-lo unicamente na perspectiva do sintoma, e aí sim se abre a perspectiva de interpretar esse sintoma que aparece no social, na sociedade concreta, na qual vivemos. Qual seria, no entanto, a especificidade dessa interpretação? Porque, se o abordamos, numa perspectiva geral, poderíamos dizer que todos interpretam o sintoma. O que quer dizer todos? Os filósofos, os sociólogos, os cientistas políticos, os literatos… Na televisão, há um excesso de interpretação do sintoma. O problema é que todas essas interpretações apontam para o sentido. A questão é: o que isso quer dizer? Eles convocam, na televisão, na Argentina é assim, aqui deve também, um cientista político, um deputado, um médico e um psicanalista.

Se alguém vai a essas mesas multidisciplinares, como psicanalista, deveria perguntar-se se pode dizer algo diferente. O algo diferente teria que estar fora dos sentidos que as demais disciplinas vão apresentar. É nisso que se torna tão difícil a intervenção de um psicanalista na mídia, seja em um jornal, na televisão, etc. Porque ele sempre deveria apontar para o que chamamos, em psicanálise, o fora de sentido.

É assim que a interpretação, como Miller a pensa e eu a retomo neste livro, é leitura do sintoma, sempre se trata de ler o sintoma. Ler o sintoma é interpretá-lo, interpretá-lo é, se não ir diretamente ao fora do sentido, é, pelo menos, tratar de podar os outros sentidos que estão em jogo em relação a esse sintoma. Essa me parece que é a intervenção mínima.

O outro ponto que Lacan assinala, e que sempre nos traz dificuldades, é sustentar nosso discurso num meio-dizer.

Há um exemplo que Lacan dá, no Seminário 17, e que sempre gerou, inclusive entre nós, os colegas, discussões. Lacan diz “evitando a denúncia”, não denunciando. Mas, se alguém permanece somente nessa frase, parece-me que não termina de entender a ideia de Lacan. Ele disse, efetivamente, “evitando denunciar, porque denunciar reforça o denunciado, salvo…”, e aí vem a segunda parte, “salvo que se o faça com um meio-dizer”. Então, não é exatamente não denunciar, mas denunciar de outra maneira, uma maneira difícil, uma maneira para a qual eu penso que é preciso preparar-se, porque a que nos ocorre é a outra, é a do filósofo, a do sociólogo, nos ocorrem estas. Não nos ocorre a denúncia como um meio-dizer, sem dizer tudo, apontando ao vazio, diminuindo o sentido, podando-o, rasurando-o. Parece-me que merece uma prática, uma maneira de ir-se instalando, aos poucos, nessas questões. Isso, como linha geral.

Como isso se encarna na ação política concreta?

Porque, de alguma maneira, e essa é a segunda parte, deve-se pensar a política já não somente a partir da psicanálise: a política, em geral, é ação. Vocês podem verificar a multidão de filósofos políticos que, pelo positivo ou negativo, sempre vai indicar que política é ação. Assim, o importante é pensar qual ação política, a cada vez, sem esquecer a perspectiva de que a ação política deve estar dirigida a ler um sintoma e interpretá-lo, essa é a política da psicanálise.

Não é pouco, ler um sintoma e interpretá-lo pode interferir diretamente no real de uma situação, não se deve pensá-lo como algo localizado fora da política concreta, ao contrario, isso é política concreta, e pode fazer mudar as políticas. A questão é: como mudar as políticas sem chamar muita atenção? Aí se coloca o impolítico,[3] porque a ação política permite uma dupla leitura: a da ação política pensada em direção a conseguir uma eficácia direta; e a da ação política pensada como o impolítico, possibilitando a leitura da ação política sustentada em uma eficácia indireta.

Aqui tenho que fazer uma pequena confissão: no primeiro livro, eu pensava que o impolítico sempre devia guiar a ação política. Hoje, não penso exatamente o mesmo, há uma variação entre o primeiro e o segundo livro. Não falo de complemento entre ambos, mas sim de suplemento; assim como falamos do gozo feminino como suplemento, podemos falar do impolítico como suplemento. Porém, às vezes, necessita-se da ação política sustentada na ação direta, na eficácia direta. Por exemplo, quando Miller funda a Associação Mundial de Psicanálise, aí não há nenhum ato impolítico, é um ato político de eficácia direta e com consequências, nesses 20 anos em que já se encontra estabelecida a AMP. É uma ação política concreta direta, não tem nada de indireto, com uma mensagem ao resto da psicanálise, com uma presença nova no real dos psicanalistas de orientação lacaniana em nível mundial. De forma que, há, nisso, uma política que não podemos chamar de impolítica.

O impolítico deve ser pensado como um dos nomes do que, em psicanálise, se chama de não-todo. Para mim, o impolítico é uma maneira de pensar o político sustentado no não-todo, o que corresponde à lógica feminina e não à lógica masculina, que aponta sempre para o todo, corresponde ao que eu transmitia, em meu testemunho de passe, como apontando ao A, A história, A política, A mulher. O impolítico é o que aponta ao não-todo sustentado na lógica feminina, que é, por outro lado, a lógica com base na qual Lacan pensa a posição do analista, mais do lado da lógica feminina, quer dizer, do não-todo, que do lado da lógica masculina, que aponta ao todo.

Por isso, digo, neste livro: há a ação política propriamente dita, que é a que remete à eficácia direta, e há a ação política mais sustentada no impolítico, que é a que assinala para a eficácia indireta, a ser atingida de lado.

Isso acrescenta um problema, o da decidibilidade, da decisão. Ou seja, cada um tem que escolher que coisa, a cada vez. Não se pode escapar da decisão. Isso é exatamente o contrário de um efeito de massa, porque, se alguém tem que decidir, a cada vez, elimina por completo o plano da sugestão e o efeito de massa, ou o efeito de grupo, esse é um tema a considerar.

O livro Uma política do sintoma deve um reconhecimento a um outro livro que não é de um psicanalista e que me permitiu entender alguns temas da psicanálise, de modo a iluminar alguns pontos obscuros para mim em relação à teoria psicanalítica. Esse livro é de Michel Foucault, e seu título é É preciso defender a sociedade.[4] Há uma tese central, nesse livro, que não é exatamente o que se toma em geral como a tese central que está no último capítulo, que é onde ele define a biopolítica. Há um capítulo do meu livro dedicado à biopolítica. Porém o desenvolvimento que se dá a ver no livro de Foucault é muito mais importante que o de seu último capítulo, ou seja, os quatro primeiros capítulos. Pelo menos, eu penso assim, porque a biopolítica é uma consequência do desenvolvimento que Foucault faz nesse curso, nas quatro primeiras aulas. Eu o recomendo especialmente, porque é um livro que serve a nós, psicanalistas, não para saber de filosofia política, mas para saber de nossos temas, nossos problemas. Nesse livro de Foucault, estão duas ideias fundamentais para mim, que constituem as hipóteses que sustento em meu livro.

A ideia de Foucault está sustentada na análise de uma fórmula. Ele diz que, antes, no discurso do mestre antigo, havia o direito, por parte do mestre, de “fazer morrer ou deixar viver”, essa é a fórmula que ele analisa. Ou seja, que o mestre, com relação ao súdito (para não dizer escravo, porém poderíamos dizer escravo), tinha o direito de fazer morrer, de matá-lo concretamente, e essa era uma lei inerente ao mestre. Ou de permitir-lhe viver, deixá-lo viver. Foucault expõe que, na sociedade contemporânea, no capitalismo contemporâneo, essa fórmula sofre uma transformação, que nos leva ao tema central do livro. Essa fórmula é substituída pelo poder de “fazer viver e deixar morrer”, é uma fórmula que deve ser destrinchada.

Em primeiro lugar, há um deslocamento do termo “direito” ao termo “poder”, e aí estamos na essência de todo o desenvolvimento de Foucault a respeito do que seja o tema central de sua obra, que é o poder e como um sujeito sofre em relação ao poder. A segunda questão é a inversão dos termos, antes era “fazer morrer”, agora a fórmula passa a “fazer viver”, antes era “deixar viver”, agora passa a “deixar morrer”. A inversão de vida e morte na fórmula mesma. O fundamental, e o que nos permitiria interpretar a inversão da fórmula, é que começam a nos dizer como viver. Isso eu creio que é claro para qualquer um.

Antes de dar um exemplo, no mesmo curso de Foucault, encontramos a ideia de que o mundo está basicamente dividido em duas raças. Essas duas raças podemos traduzir como dois bandos, dois grupos, e Foucault pensa que isso constitui a essência mesma de nossa sociedade. Na Argentina, pode ser River e Boca, pode ser peronismo e antiperonismo, os millerianos e os antimillerianos… Isso é essencial, na sociedade contemporânea, não ocorria tanto na sociedade antiga. Inclusive, quando se produziam guerras, nunca havia exatamente essa questão de dois bandos, isso é o que constitui um racismo contemporâneo, é o que eu chamo de o racismo nosso de cada dia. Aqueles que, alguma vez, rezaram o Pai Nosso recordarão essa fórmula, na parte em que se diz ”o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Faço uma ironia com ela, tomo da oração maior da religião cristã essa frase e a transformo em “o racismo nosso de cada dia”. Assinalo o pequeno racismo de todos os dias, que acontece quando tomamos um táxi, com o taxista, não ao racismo que termina no nazismo, por exemplo, e que pode resultar numa guerra, etc. A mim me preocupa esse racismo nosso de cada dia, que é o que cada analisante leva à análise e do que, a partir da psicanálise, devemos tentar dizer algo.

Também podemos dizer algo sobre o outro racismo, de fato um capítulo do livro que dedico às ideias de Lacan sobre o racismo e ao que acrescenta Miller a essas ideias, que são três. O racismo dos discursos em ação, a fórmula do racismo sustentado no ódio ao gozo do outro e uma terceira de que não me recordo neste momento, porém são três. Pode-se fazer isso também, e, de fato, é importante, mas, na condição de psicanalista, procuro elucidar o ponto do pequeno racismo, que é esse do qual ninguém escapa, incluídos nós, os psicanalistas. De forma que este é clínico, o interesse é político, mas também é clínico, porque depois é o que se escuta no discurso dos analisantes.

Então, agora sim, o exemplo, correndo o risco de que, ao ser dado, se constituam dois bandos. Na sociedade contemporânea, cada vez mais, pode-se fumar em menos lugares. Então, alguém pode dizer que isso é indicar-nos como viver. Impõem-nos que há um gozo que não devemos ter, outros não importam tanto, porém esse é um gozo em cuja erradicação a sociedade contemporânea, cada vez mais, tem decidido investir. Por quê? Já sabemos, como psicanalistas, que quanto mais se aponta à erradicação de um gozo, este volta por outro lado, isso já sabemos. Vamos deixar de fumar e seguramente nós iremos talvez às drogas, não importa.

Porém não sabemos tampouco quem detém o poder, porque uma das teses de Foucault é a de que se perde onde está o poder, cada vez mais. Antes, localizava-se o poder num rei, por exemplo, ou em alguém que mandava, agora não se sabe muito bem, o poder está completamente desfocalizado.

Voltemos ao exemplo: se eu pego um cigarro, vão me dizer: “não, aqui não, em Belo Horizonte, não se fuma aqui dentro, podemos ir lá fora para fumar”. Isso imediatamente constitui dois bandos, e é a sociedade na qual vivemos. Na Argentina, continua-se avançando no como viver, e agora não se pode colocar um saleiro na mesa dos restaurantes, é preciso pedi-lo ao garçom, se alguém quer colocar sal na comida. Então, indicam-nos que devemos consumir pouco ou nada de sal, e assim será com a água, que será com gás ou sem gás, de acordo com o que pense o poder, continuará com as comidas, não haverá mais carne de porco nos restaurantes… Exagero para que entendam a minha ideia.

Essa ideia está em Foucault e se verifica no que os analisantes nos contam de seus dramas. É o mesmo, porque os bandos devem ser pensados em termos psicanalíticos, em termos de homem e mulher. Por isso, é um milagre que tenham ocorrido a Lacan as fórmulas da sexuação, que eliminam os dois bandos: há dois gozos, não dois bandos, e cada um pode-se localizar de acordo com o gozo que tem. Um homem pode estar do lado direito, de fato estar do lado esquerdo, a estrutura da histeria o faz estar do lado esquerdo. Para a mulher, valem as quatro fórmulas, no homem, ao contrário, as duas da esquerda, e ele tem muito mais dificuldades para orientar-se para o lado direito. As fórmulas da sexuação são um exemplo, uma resposta ao problema dos dois bandos. Obviamente, não me imagino indo à televisão para explicar, numa mesa com filósofos e sociólogos, que o que dá a possibilidade de solucionar o problema das duas raças são as fórmulas da sexuação. É impossível, por isso, nossa intervenção é muito limitada. Mas temos que nos perguntar como podemos intervir, tendo essa ideia em mente. A partir desse ponto de vista, a filosofia política tomou as fórmulas da sexuação para explicar o mundo contemporâneo. Isso é feito por Milner, Badiou, assim como Ernesto Laclau, todos os filósofos políticos que consideram o pensamento de Lacan. Porém, do pensamento de Lacan, o que tomam fundamentalmente são as fórmulas da sexuação, não somente, mas fundamentalmente, repito.

E, nesse ponto, para dar-lhes outro exemplo, há outro capítulo que eu chamo “a época da vizinhança”. Vizinhança é um termo que Lacan usa no Seminário 21, e em todo o último ensino. É um termo que corresponde à lógica do não-todo, do pas-tout, inclusive como oposição a outra lógica, que é a lógica da fronteira. É sempre o mesmo tema, com distintos nomes. A lógica da fronteira é uma lógica de segregação, porque, onde há uma fronteira, há um bando e outro bando, e, a partir daí, começam as guerras, porque “você avançou um pouquinho, cem metros, e ocupou meu território, então, tenho que te expulsar”.

A lógica da fronteira é uma lógica da inclusão/exclusão, não tem nada de não-todo. Ao contrário, por isso, Lacan pensa que a lógica da vizinhança é a eliminação total das fronteiras.

Então, a filosofia política começa a pensar se poderia haver uma maneira de eliminar as fronteiras. Gostemos ou não, estejamos completamente de acordo ou um pouquinho em desacordo, o Mercosul é uma ideia de vizinhança, não é uma ideia de fronteira. E todas as discussões do Mercosul — “me impediste a importação”, “agora não me mandas aquilo, mas queres o meu” — isso é um retorno da lógica das fronteiras. Ou seja, a lógica da vizinhança é muito difícil de sustentar, no entanto, pareceria que há elementos que pouco a pouco se vão instalando na sociedade contemporânea, pelo menos na América Latina.

Isso teria que nos servir para pensar os problemas nas instituições psicanalíticas. Nelas, deixamo-nos levar pelo não-todo, pela lógica da vizinhança, ou caímos todo o tempo, como sintoma, na lógica das fronteiras, na lógica dos bandos, dos grupos? E, como sempre, ao cair nisso, deve-se interpretar o sintoma e encontrar soluções parciais para esse sintoma. Pelo pouco que conversei, em São Paulo e aqui, sei que isso acontece do mesmo modo como na Argentina, o tempo todo, e é necessário, a cada vez, interpretar o sintoma: como ele se deslocou e apareceu em outro lugar, como se deslocou e voltou a aparecer no outro lado, e como se pode resolvê-lo a cada vez. Para consumo interno, isso tem uma vigência extraordinária.

Debate

Sergio de Castro: Pergunta não audível a respeito da diferença entre o Mercosul e o mercado comum europeu.

Luis Tudanca: Sim, torna-se mais duro se se mantém a lógica das fronteiras, porque o que se mostra no mercado comum europeu é que está mantida a lógica das fronteiras, porque os maus alunos são castigados, os alunos que não fazem os deveres. Isso nos leva à lógica da avaliação, há um poder que avalia quem merece permanecer. Neste momento, é muito mais interessante a lógica do Mercosul que a do mercado comum europeu. Deve-se ver se isso vai seguir assim ou não, o Mercosul é uma mistura das duas lógicas, vamos ver o que acontece. Nesse sentido, Lacan era pessimista, falava do pessimismo da estrutura e somente localizava o otimismo do lado da ação. Então, devem-se pensar todas essas questões do lado da ação, porque, se as pensamos do lado da estrutura, já sabemos, como psicanalistas, o que acontece do lado da estrutura, nesse ponto.

O problema é a convivência de lógicas, e qual vai tendo maior peso em cada situação, essa é a questão.

Jésus Santiago: Porque, além da questão da fronteira e da vizinhança, tem um aspecto mais estrutural que, a meu ver, é a própria lógica do capital. Lacan, de alguma maneira, aponta para se considerar os mercados comuns como uma espécie de estímulo ao racismo. O que os mercados comuns denotam é o avanço do capitalista, portanto, da homogeneização, e isso iria contra os distintos modos de gozo. Não sei o que você pensa, mas talvez tivéssemos que introduzir a ideia, em torno do problema da vizinhança e da fronteira, de que, para além dele, haveria um certo processo de homogeneização, e que, em última instância, é a base do fenômeno do racismo, não?

Luis Tudanca: Essa é a distinção que temos de realizar, o que você disse é preciso. Em certo sentido, a lógica da fronteira já não existe, devido à uniformização que o capitalismo tem produzido, a homogeneização, porém a lógica da vizinhança não é isso. Então, deve-se extrair de Lacan essa ideia. Talvez a AMP possa dar uma injeção de vizinhança no capitalismo. Isso é o que temos que começar a pensar.

Jésus Santiago: Porque a ideia que eu penso que a própria Orientação Lacaniana introduz em relação à crise que vive a Europa, dos processos de homogeneização no nível da própria economia, a impressão que me dá é a de que, para se contrapor ao racismo, a resposta que tem que ser dada não é tanto uma resposta pela via do nacionalismo. Pois o nacionalismo reforça a lógica da fronteira. O que estaria em jogo seria um processo de civilização, não um projeto jurídico, não uma certa orientação da própria integração, de mercado comum, de propor uma unificação dos mercados, sem ter uma orientação em relação ao próprio estilo da vida civilizada.

Ludmilla Faria: A homogeneização, na verdade, traz como resposta a fronteira, leva à fronteira. Contra dois bandos, todos iguais, a tentativa é de constituir diferença, introduzir fronteira, acho que a gente tem fronteiras hoje, uma lógica de fronteiras. Parece-me que a homogeneização introduz a tentativa de diferenciação.

Pergunta não audível.

Luis Tudanca: A homogeneização deve ser pensada em termos de gozo. Quem idealiza as fronteiras torna os sujeitos idiotas e casados com seu gozo. Isso é o que chamamos de consumo, a homogeneização é o que Miller chama de “a ditadura do mais-de-gozar”. Sustentada numa ciência, que não é ciência, mas técnica, que produz objetos para alcançar essa homogeneização do consumo. A partir desse ponto de vista, a discussão da fronteira ou vizinhança passa para um segundo plano, porque já não há sujeito, por isso, Lacan recorre ao termo parlêtre, para designar alguém diretamente casado com o gozo. Já não há dois bandos, já não há dois grupos, na medida em que o que triunfa é o autismo do um, que não se dirige ao Outro de nenhuma maneira. Isso é clínica, e é clínica porque o que começamos a ver, em todas as nossas discussões sobre psicoses ordinárias, é isso. Percebe-se que, cada vez mais, está impossibilitado o enlace como tal.

É desde esse ponto de vista que se deve começar a pensar que política é possível nesse ponto. Sem a possibilidade de um retorno nostálgico à solução Nome-do-Pai, que já não tem retorno, mas tampouco sem uma solução para sustentar isso. Esse é o problema que temos, insisto, não se pode dar uma fórmula, não se pode dar uma lei, não se pode assegurar uma generalização, é a cada vez, em cada situação, a solução que nos venha à mente. A distinção entre fronteira e vizinhança está sustentada (tento fazer isso no livro), fazendo primeiro uma distinção de qual é a lógica do capitalismo atual, depois se verá como intervir a cada vez, porque não há receita, esse é o problema.


Texto estabelecido por Ernesto Anzalone (revisto pelo autor)
Tradução: Maria das Graças Sena
(1) Intervenção realizada em 18/05/2012, na sede do IPSM-MG, em atividade extraordinária do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito, coordenada por Ludmilla Féres Faria.
(2) TUDANCA, Luis. Una política del síntoma. Buenos Aires: Grama ed., 2012.
(3) A categoria do impolítico designa uma política que busca intervir em relação ao poder, mas sob a forma de uma “ação não atuante”, contrária à despolitização contemporânea.
(4) FOUCAULT, Michel (1976). É preciso defender a sociedade. [S.l.]:Livros do Brasil, 2006.

Luís Tudanca
Psicanalista, AME, Analista Membro da Escola, da EOL – Escuela de la Orientación Lacaniana e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: tudancaluis@fibertel.com.ar



A Sintonia Do Eu Com O Sintoma: A Problemática Da Angústia Na Neurose Obsessiva

SIMONE SOUTO 

A despeito de sua complexidade, se acompanhamos Freud no texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1976), acabamos por nos render a seu interesse e entusiasmo ao constatar a importância do estudo da neurose obsessiva para a compreensão dos mecanismos da formação do sintoma e sua relação com a angústia.

Assim, é “na esperança de aprender alguma coisa a mais sobre o sintoma” (FREUD, 1926/1976, p.135) que, a certa altura desse texto, Freud passa ao estudo mais detalhado da neurose obsessiva. Em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud considera a neurose obsessiva o tema mais interessante e compensador da pesquisa analítica. Possivelmente, porque, como veremos, no que se refere à formação dos sintomas, encontramos, na neurose obsessiva, uma multiplicidade de mecanismos que se sobrepõem e/ou se sucedem, cada um visando a compensar o fracasso do outro. É também na neurose obsessiva que encontramos uma maior sintonia do eu com o sintoma, não só porque, com a ajuda desses diversos mecanismos, o eu, em certa medida, incorpora o sintoma em sua organização, mas principalmente porque, como sublinha Freud, na neurose obsessiva, a forma que o sintoma assume torna-se muito valiosa para o eu, pois obtém para este não apenas certas vantagens — ganhos secundários, como no caso da histeria — mas uma satisfação narcísica. Esta é, a meu ver, o aspecto mais importante da relação do eu com o sintoma na neurose obsessiva: o sintoma, na neurose obsessiva, é acompanhado de uma sensação de prazer, e não de desprazer, como na histeria.

Como nos esclarece Freud, os sistemas que o neurótico obsessivo constrói lisonjeiam seu amor próprio, fazendo-o sentir-se melhor que as outras pessoas porque é especialmente limpo, ou especialmente consciencioso, ou especialmente organizado, etc. Dessa forma, podemos dizer que, se o sintoma, na histeria, nos coloca diante da dificuldade de reconhecer uma satisfação no desprazer, a neurose obsessiva nos coloca o desafio de lidar com um sintoma que é reconhecidamente uma fonte de satisfação, de prazer, do qual o sujeito não quer abrir mão.

Podemos inferir, portanto, que o grande interesse demonstrado por Freud em “Inibição, sintoma e angústia”, no estudo da neurose obsessiva, se deve ao fato de que, nessa neurose, encontramos, de maneira mais evidente, o sintoma como sendo a “significação de uma satisfação” (FREUD, 1926/1976, p.135) (Bedeutung eine Befriedigung). Ou seja, parece-me que Freud, nesse texto, não está interessado no sentido do sintoma, no sintoma como algo que pode ser decifrado, mas no sintoma como uma satisfação. É essa vertente do sintoma que, a meu ver, designa essa “alguma coisa a mais” que Freud pretende entender, quando recorre ao estudo pormenorizado da neurose obsessiva.

Como eu dizia anteriormente, na neurose obsessiva, os mecanismos de defesa se constituem de forma complexa e múltipla. Assim, podemos destacar três mecanismos de defesa presentes na formação dos sintomas na neurose obsessiva:

– Recalque

– Regressão

– Formações reativas

Recalque

A neurose obsessiva se constitui a partir do mesmo mecanismo presente na histeria: o recalque, que é, por excelência, o mecanismo de formação da neurose. O recalque é um mecanismo de defesa que, segundo Freud, visa a manter afastadas da consciência as experiências traumáticas vividas na infância, ligadas ao Complexo de Édipo. Isto é, o recalque visa a desviar as exigências libidinais do complexo edipiano e o consequente perigo da castração. Mas, apesar de se constituir a partir do mesmo mecanismo que a histeria, a neurose obsessiva vai-se modelar de forma bem diferente. Como já vimos, na histeria, as experiências da infância ligadas ao Complexo de Édipo são acompanhadas de uma sensação de desprazer, uma falta de prazer, um prazer a menos (-). Um exemplo disso é a repulsa ligada à cena primária de sedução, isto é, ao sexo. No caso da neurose obsessiva, ao contrário, as experiências da infância ligadas ao Complexo de Édipo serão acompanhadas de um intenso prazer, um prazer a mais (+).

Se seguirmos a lógica freudiana a propósito do mecanismo do recalque, constataremos que uma experiência só se torna traumática se causar desprazer, e esse seria o motivo pelo qual a lembrança dessa experiência seria afastada da consciência, ou seja, recalcada. Na verdade, é exatamente assim que ocorre, segundo Freud: a condição para que o recalque aconteça é que a força motora do desprazer adquira mais vigor do que o prazer obtido na experiência de satisfação. Estamos, então, com uma dificuldade no que concerne ao mecanismo do recalque na neurose obsessiva. Como explicar o recalque na neurose obsessiva uma vez que nela as experiências ligadas ao Complexo de Édipo são acompanhadas de intenso prazer? Por que, então, elas precisariam ser recalcadas?

Freud parte da constatação de que o aparelho psíquico funciona a partir do princípio de constância, ou , como diz Lacan, por homeostase. Isso significa que o aparelho psíquico busca sempre manter o nível de tensão o mais baixo possível. Assim, qualquer coisa que ameace esse equilíbrio, seja um prazer a menos (como na histeria), seja um prazer a mais (como na neurose obsessiva), é sentida pelo aparelho psíquico como um aumento de tensão que causa desprazer, tornando-se, assim, uma condição para o recalque. Porém, existe ainda outro fator a ser considerado, porque, no que concerne à experiência de satisfação, ela nunca se completa, ou seja, a satisfação obtida nunca será toda. Sempre haverá uma diferença entre a satisfação obtida e aquela que era esperada. Assim, no caso da neurose obsessiva, por mais prazer que o sujeito obtenha, isso terá um limite que também será sentido como desprazer, tornando-se, portanto, condição para o recalque. O recalque opera quando entra em jogo algo que não pode ser absorvido pela homeostase, isto é, algo que está para além do princípio do prazer.

A partir daí, podemos entender por que, para o neurótico obsessivo, o prazer a mais ou, para usar um termo lacaniano, o gozo, é muitas vezes acompanhado de sentimentos de angústia, pânico, culpa, depressão, etc. Ou, ainda, por que, muitas vezes, o obsessivo acaba por evitar o prazer para não ter que se haver com essa diferença entre a satisfação obtida e a satisfação esperada. É por isso que, na base da experiência do obsessivo, existe sempre o que Lacan chamou de “certo receio de desinflar” (LACAN, 1960-1961/1992, p.235), relacionado com o que resulta do encontro com a satisfação. Aqui, Lacan nos lembra da fábula da rã que queria fazer-se tão grande quanto o boi: “O miserável animal, como sabem, inchou tanto que estourou” (LACAN, 1960-1961/1992, p.235).

O testemunho de um paciente exemplifica bem esse impasse obsessivo: segundo ele, o sucesso lhe era proibido porque qualquer coisa que lhe deixava feliz, que lhe dava prazer, seja no amor, seja no trabalho, chegava sempre em um ponto, em um limite no qual se transformava em um sofrimento horrível. Assim, preferia evitar qualquer situação que o deixasse feliz, que lhe desse prazer. Dessa forma, isolava-se cada vez mais: não saía de casa, evitava o contato com as pessoas , etc.

Esse exemplo nos permite entender a constatação de Freud segundo a qual o resultado desse processo, na neurose obsessiva, será “um eu extremamente restringido que ficará reduzido a procurar satisfação nos sintomas” (FREUD, 1926/1976, p.141).

No início do texto “Inibição , sintoma e angústia”, Freud define o sintoma da seguinte forma: “o sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente; é uma consequência do processo de recalque” (FREUD, 1926/1976, p.112). Isso quer dizer que, primeiramente, o recalque não é totalmente eficaz, e que, de algum modo, a satisfação pulsional encontra um substituto, apesar dele. Mas, como substituto da satisfação pulsional, o sintoma tende a cumprir o mesmo destino desta, ou seja, tende a manter sua existência fora da organização do eu, mas que, no entanto, não deixa de ter incidências sobre ele, tal qual “um corpo estranho que mantém uma sucessão constante de estímulos e reações no tecido no qual está encavado” (FREUD, 1926/1976, p.120). De acordo com Freud, o sintoma é, portanto, uma peça do mundo interno (do eu) que é estranha a ele (pois advém do isso). Sendo assim, a luta inicial do recalque contra a satisfação pulsional se prolonga na luta contra o sintoma. O neologismo criado por Lacan, “extimidade”, localiza, de maneira precisa, essa posição do sintoma como algo que está excluído, mas internamente, ou seja, algo que é estranho, exterior, mas, ao mesmo tempo, íntimo.

Dessa maneira, observa-se que, na neurose obsessiva, nessa luta secundária contra o sintoma, o eu apresenta “duas faces com expressões contraditórias” (FREUD, 1926/1976, p.120): ao mesmo tempo em que luta contra a satisfação pulsional, utiliza o seu poder de síntese para impedir que os sintomas “permaneçam isolados e alheios, empregando todos os métodos possíveis para agregá-los a si e para incorporá-los em sua organização por meio desses vínculos” (FREUD, 1926/1976, p.120). Assim, os sintomas que fazem parte dessa neurose se enquadram, em geral, em dois grupos de tendências opostas:

1) sintomas negativos (proibições, precauções e expiação);

2) sintomas positivos (satisfações substitutivas que amiúde aparecem com um disfarce simbólico).

Segundo Freud, o grupo defensivo, negativo, dos sintomas, é o mais antigo dos dois, mas, no decorrer do processo, “as satisfações, que zombam de todas as medidas defensivas, levam vantagem” (FREUD, 1926/1976, p.135). Assim, como observa Freud, a formação dos sintomas, na neurose obsessiva, assinala seu triunfo, ao conseguir combinar a proibição com a satisfação, de modo que o que era originalmente uma ordem defensiva ou proibição acaba adquirindo, também, a significância de uma satisfação. Aqui, é preciso fazer um parêntese e sublinhar a importância do supereu na formação dos sintomas da neurose obsessiva, uma vez que o supereu, como nos esclarece Lacan, é exatamente essa instância que incorpora a proibição e a satisfação ao mesmo tempo, ou seja, a lei e o gozo. O supereu ordena o gozo.

Dessa forma, “o eu faz uma adaptação ao sintoma e passa a se comportar como se reconhecesse que o sintoma chegara para ficar e que a única coisa a fazer é aceitar a situação de bom grado” (FREUD, 1926/1976, p.121). Ou seja, o eu se adapta a esse corpo estranho que é o sintoma, ele o incorpora. Portanto, na neurose obsessiva, o sintoma se funde cada vez mais com o eu, colocando-se cada vez mais em sintonia com este, que passa a se apresentar, em sua glória, com todos os seus sintomas, que se tornam, dessa maneira, traços fundamentais de sua personalidade. Parece-me, então, que é na neurose obsessiva que temos a oportunidade de constatar a frase de Freud segundo a qual “o eu é idêntico ao isso, sendo apenas uma parte especialmente diferenciada do mesmo” (FREUD, 1926/1976, p.119).Por outro lado, o sintoma, por sua vez, para fugir ao recalque e ser aceito pelo eu, apresenta-se como um substituto da satisfação pulsional, mas de forma muito mais reduzida, deslocada e inibida. No entanto, a despeito desse disfarce, o sintoma renova continuamente suas exigências de satisfação, obrigando o eu, por sua vez, a dar um sinal de desprazer, ou seja, a se deparar com a angústia. Então, para fazer frente a essa falha do recalque e à consequente presentificação da angústia, o obsessivo lança mão de outro mecanismo defensivo fundamental: a regressão.

Regressão

Segundo Freud (1917/1976, p.419), os neuróticos repetem, na atualidade, através de seus sintomas, uma experiência traumática do passado, experiência na qual parecem ter-se fixado. Isso acontece desse modo porque, diante da impossibilidade de satisfação (perigo da castração), a libido é compelida a tomar o caminho da regressão para tentar encontrar satisfação em períodos anteriores do seu desenvolvimento. Podemos dizer, então, que há um retorno da libido para um ponto de fixação onde, ao mesmo tempo, a libido ter-se-ia fixado e interrompido seu percurso. Esse ponto de fixação nada mais é do que a experiência de satisfação ligada ao Complexo de Édipo, que, uma vez recalcada, passa a funcionar como um ponto de atração da libido no inconsciente.

 

 

fixação recalque

De acordo com Freud, no caso da neurose obsessiva, essas experiências traumáticas em que a libido se teria fixado possuem uma significação sádico-anal, isto é, são experiências, lembranças, que não teriam alcançado uma significação fálica, sexual. Segundo Freud, na neurose obsessiva,

“[…] a organização genital da libido é débil e insuficientemente resistente, de modo que, quando o eu começa seus esforços defensivos, a primeira coisa que ele consegue fazer é lançar a libido de volta, no todo ou em parte, ao nível anal-sádico, mais antigo” (FREUD, 1926/1976, p.136).

Assim, por exemplo, a cena de uma relação sexual entre os pais pode ser compreendida como uma agressão sadomasoquista, ou como coito anal.

Toda questão que aqui se coloca é que compreender o significado sexual significa se deparar com a castração feminina. Como todo neurótico, o obsessivo tem acesso à significação fálica, mas, para não ter que se haver com a castração feminina, ele acaba por desconhecer a significação sexual, fálica, regredindo a um modo de satisfação sádico-anal. Freud deixa bem claro que, na ocasião em que se entra em uma neurose obsessiva, a fase fálica já foi alcançada.

satisfação sádico-anal castração feminina

Assim, através da regressão, não só os impulsos agressivos iniciais serão despertados de novo, mas também uma proporção de novos impulsos libidinais terá que seguir o caminho prescrito para eles pela regressão e surgirá, também, como tendências agressivas destrutivas: “O eu nada poderá empreender que não seja atraído para a esfera desse conflito” (FREUD, 1926/1976, p.141).

Dessa forma, com o intuito de evitar a castração, os impulsos eróticos, na neurose obsessiva, tomarão o disfarce da agressividade. Como nos diz Freud:

“A luta contra a sexualidade, doravante, será levada sob o estandarte de princípios éticos. O ego recuará com assombro das instigações à crueldade e à violência não tendo qualquer ideia de que, nelas, está combatendo desejos eróticos, inclusive, alguns em relação aos quais não teria aberto exceção alguma” (FREUD, 1926/1976, p.139).

Freud chama atenção para o fato de que, no interesse da masculinidade, isto é, para fugir da castração, por vezes toda a atividade que pertence à masculinidade é paralisada; como observamos, por exemplo, em alguns casos de disfunções sexuais (impotência, ejaculação precoce, etc.). Nesse contexto, “devido à regressão da libido, na neurose obsessiva, o conflito é agravado em duas direções: as forças defensivas se tornam mais intolerantes e as forças que devem ser desviadas, se tornam mais intoleráveis” (FREUD, 1926/1976, p.140).

O problema é que esse mecanismo também fracassa no objetivo de evitar a irrupção das exigências pulsionais e, consequentemente, da angústia. Por isso, o obsessivo utilizará, ainda, outro recurso: as formações reativas.

Formações Reativas
As formações reativas são técnicas auxiliares e substitutas do recalque e da regressão, mas que, ao mesmo tempo, os pressupõem. São elas:

Desfazer o que foi feito

Isolar

Desfazer o que foi feito: o sujeito se esforça para dissipar a impressão traumática por meio de um simbolismo motor, repetindo, de maneira diferente, o que não aconteceu de forma desejada, fazendo-o como se não tivesse acontecido, ou seja, ele tenta consertar o que julga que aconteceu de maneira errada, repetindo a ação como se ela não tivesse sido feita. Dessa forma, uma primeira ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram. Freud nos diz que é uma tentativa de tornar o próprio passado inexistente. Mas o que acaba por acontecer é uma repetição infindável de ações motoras que, no esforço de desfazer a impressão traumática, acaba por repeti-la. O que o sujeito repete é o fracasso da ação.

Isolar: diante de uma impressão traumática, o paciente interpola um intervalo, suas conexões associativas são interrompidas, permanecendo isoladas. A experiência não é esquecida como acontece, por exemplo, na histeria, em que temos a amnésia. Ao invés disso, a experiência traumática é destituída de afeto, permanecendo isolada, não sendo reproduzida nos processos comuns do pensamento. O isolamento motor destina-se a assegurar uma interrupção da ligação de pensamento, e o efeito acaba sendo o mesmo que o da amnésia histérica, com a diferença que, uma vez destituídas do afeto, as coisas podem ser ditas, mas não são relacionadas, não são ligadas ao trauma, isto é, incluídas nas associações relativas à significação traumática. O efeito disso é que ficamos impressionados como na neurose obsessiva as coisas podem ser tão ditas e, ao mesmo tempo, serem tão desconhecidas do próprio sujeito. Isolar, segundo Freud, é remover a possibilidade de contato. É um método para evitar que alguma coisa seja tocada, e, quando um paciente isola uma impressão interpolando um intervalo, ele permite que se compreenda que não deixará que seus pensamentos entrem em contato associativo com outros pensamentos. Freud observa que “nesse esforço de impedir associações e ligações de pensamento, o eu está obedecendo a uma das ordens mais antigas e fundamentais da neurose obsessiva: o tabu de tocar” (FREUD, 1926/1976, p.145). Segundo Freud, o toque, ou seja, o contato físico, é uma finalidade imediata das catexias objetais tanto agressivas como amorosas:

“Visto que a neurose obsessiva começa por perseguir o toque erótico e, depois, após ter se verificado a regressão, passa a perseguir o toque erótico sob a forma de agressividade, depreende-se daí que nada é tão fortemente proscrito nessa neurose como tocar, nem tão bem adequado para tornar-se o ponto central de um sistema de proibições” (FREUD, 1926/1976, p.145).

O fragmento de um caso clínico nos demonstra claramente essa estratégia obsessiva: um músico que fez um sintoma no braço a partir do qual não podia mais tocar. Isso acontece logo depois da traição da namorada que ele idealizava, mantendo por ela um amor sublime que a conservava intocada. Subjacente ao problema do braço, aparece um sintoma de impotência como forma de evitar o toque erótico. A cena de traição lhe remete, depois de alguns anos de análise, a uma cena de infância na qual ele escutava os ruídos provenientes da relação sexual entre o padrasto e a mãe.

A Angústia: Um Resto A Concluir

Gostaria de concluir dizendo que, em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud, apesar de relacionar a angústia com a perda do objeto e não com a presença do objeto, como o fará Lacan, mais tarde (1962-1963/2005), acaba por reconhecer, no decorrer desse texto, que a exigência pulsional, ou seja, a iminência da satisfação, é o que faz surgir a angústia. Sendo assim, podemo-nos perguntar se a criação dos sintomas, na neurose obsessiva, toda essa parafernália que o obsessivo cria, não seria uma tentativa de fugir da angústia, sem abrir mão da satisfação. Para isso, ele se identifica ao sintoma, incorporando-o ao eu, ou seja, dando-lhe uma conformação narcísica, o que lhe custa o preço da anulação do desejo, tanto dele próprio, como do outro.

Talvez, seja este o cerne da análise, nos casos de neurose obsessiva: como ir além do narcisismo, como identificar-se ao sintoma sem anular o desejo.

 

[1] Texto apresentado nas Lições Introdutórias, atividade do IPSM-MG, em 19/06/2012.

Referências Bibliográficas:
FREUD, Sigmund (1926/1976). “Inibição, sintoma e ansiedade”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XX, p.107-198.
______ (1917/1976). “Os caminhos da formação dos sintomas”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XVI, p.419-439.
LACAN, Jacques (1960-1961). O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
______ (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

Simone Souto
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Diretora da Seção Clínica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais- (IPSMMG). E-mail: ssouto.bhe@gmail.com



A Insistência Da Pulsão E O Ideal De Bem-Estar

MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM

Este texto pretende trabalhar a relação, na contemporaneidade, entre uma nova modalidade de aparecimento do ideal — o ideal de bem-estar — e o fracasso desse ideal diante da insistência da pulsão. Para isso, este artigo será dividido em duas partes. Será abordado, inicialmente, o ideal de bem-estar, para, posteriormente, considerar-se seu fracasso na busca pela normatização da satisfação.

1. O Ideal De Bem-Estar

Costumamos dizer, parafraseando Jacques-Alain Miller, que, em nossa época, o Outro não existe. Uma das maneiras de Miller apresentar essa tese, em seu seminário El Otro que no existe y sus comités de ética, proferido em parceria com Éric Laurent, é comparar o mandamento superegoico que vigorava na época vitoriana, quando Freud fundou a psicanálise, com o supereu que prevalece em nossa época.

Seguindo Freud, no texto “O ego e o id”, Miller (2005) lembra a dupla dimensão dessa instância: de um lado, ele é o herdeiro do complexo de Édipo e dos ideais do edipianismo, o que Miller grafa com “I”. Por outro, ele é um mandatário do isso, a sede das pulsões, como Freud descreve, o que Miller grafa com “a”. Devido a essa dupla vertente, o supereu foi definido por Lacan como uma lei paradoxal e insensata, pois, como o próprio Freud definira, ele tem o preceito de ordenar o abandono da satisfação a partir do imperativo: “Você deve ser assim (como o seu pai)”, e, ao mesmo tempo, proíbe esse ideal com o mandamento: “Você não pode ser assim” (FREUD, 1923/1969, p.49).

Essas frases que encontramos no texto freudiano demonstram como o mandamento superegoico foi edificado a partir de um ideal. Pois, na civilização que Freud conheceu, as insígnias simbólicas do ideal estavam bem colocadas. Para todos, seria necessário erigir um ideal, a partir de uma identificação, veiculada a partir do lugar do pai. O que Freud ressaltava com o supereu era a impossibilidade de cumprir esse ideal e os efeitos para o sujeito diante desse fracasso: o supereu retomava a exigência de satisfação do isso. Freud, nesse mesmo texto, não diferenciava supereu e ideal do eu. O supereu trazia a marca da eleição de um ideal e sua proibição.

É preciso lembrar que a eleição de um ideal do eu estava de acordo com o ideal cultural da época: tratava-se de um tempo em que renunciar à satisfação em nome da honra, do pudor, da vergonha, era um ideal; ou seja, a abstenção em nome do social era a orientação a ser seguida para ser feliz. Por isso, o discurso que imperava era o que Lacan (1969-1970/1992) localizou como o discurso do mestre, em O Seminário 17: o avesso da psicanálise.

Miller (2005), no seu mesmo seminário, citado anteriormente, vai dizer que, em nossa época, houve uma queda dos ideais. Assim, o supereu freudiano apresentava a versão: I > a: o ideal maior que a satisfação, o ideal dominando a satisfação. Contrariamente, em nossa época, o supereu apresenta-se como I < a: ideal menor que a satisfação. Ou seja, com o declínio do que Lacan postulou como o Nome-do-Pai, surgem os mandamentos de satisfação, em sua grande maioria, através dos objetos de consumo produzidos em nossa civilização.

Destaque-se isto: nossa civilização demonstra uma prevalência de um imperativo de satisfação, no lugar dos grandes ideais de renúncia, ou, mesmo, do adiamento da satisfação, como na época vitoriana. Nessa época, a satisfação estava orientada por um ideal de abstenção socialmente compartilhado. Em nossa época, ao contrário, tem-se a satisfação pelo gozo dos objetos e do que se prestar para gozar.

Ao comentar essa mudança no programa da civilização, em O Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992) lembra que a psicanálise foi uma tentativa de transgressão, por isso ele a tomou como um discurso que seria o avesso do discurso do mestre. Ou seja, o discurso da psicanálise interpreta o discurso do mestre. Nesse seminário, na lição intitulada “O campo lacaniano”, Lacan fala de um retrocesso da psicanálise feito pelos psicanalistas pós-freudianos. Segundo ele, esses psicanalistas estariam fazendo propaganda da felicidade, do happiness, do bonheur, do bem-estar. Lacan aproxima esses significantes, e, aqui, neste texto, seguir-se-á o itinerário dessa indicação. Ele lembra que ninguém sabe o que é a felicidade, mas que ela se havia tornado um fator de política.

Essa consideração de Lacan parece fundamental para trabalhar o tema proposto neste trabalho: “A insistência da pulsão e o ideal de bem-estar”, podendo-se entender a constatação de Lacan da seguinte maneira: através da ciência, nossa civilização alardeia ter desvendado o impossível da felicidade, equiparando-a ao bem-estar. Na programação da vida, na atualidade, a promessa de felicidade passa pela busca do bem-estar e pela tão propalada “qualidade de vida”. Para conseguir atingir esse ideal, é preciso seguir um programa predeterminado que comanda: como comer, o que comer, o que beber, o que usar, como se portar, aonde ir, quais sinais observar em seu corpo — na pele, nos cabelos, na urina, nas fezes. Trata-se da disseminação de preceitos que recolocam novamente o ideal, mas de uma forma distinta de outrora — não pelo ideal, mas por normatizações. Isso pode ser traduzido da seguinte forma: goze através das normas estabelecidas pela ciência.

Marcus André Vieira, ao apresentar o argumento para o V Encontro Americano de Psicanálise de Orientação lacaniana, ENAPOL, que aconteceu no Rio de Janeiro, em junho de 2011, lembrava que, diante da ausência de definição do bem-estar para os fins de promoção da saúde, a saída encontrada é contabilizar. Dessa forma, tudo passa a ser contado, e “a quantificação da vida passa a guiar as opiniões e escolhas com seu enxame de índices, e a vender, como ideal, uma gestão economicista da existência” (VIEIRA, 2010, p.27).

Assim, o que é chamado de bem-estar, justificado pela busca da qualidade, torna-se quantidade. O cálculo do risco passa a fazer parte da vida e organiza a gestão das políticas, especialmente, as políticas de saúde. E, na busca pela tão propalada qualidade, prevalece uma lógica utilitária.

Éric Laurent (2011), na Conferência intitulada “O delírio da normalidade”, ao tratar da psicanálise aplicada no contexto da Saúde Mental, informa-nos que assistimos a uma nova definição de terapêutica. Segundo ele, passamos de uma definição da terapêutica como um saber clínico para a definição de normas sociais pela Organização Mundial de Saúde. Diferente da antiga definição, a saúde como o silêncio dos órgãos, “no final do século XX, a saúde foi definida como um estado de felicidade — ou de bem-estar — tanto corporal, quanto mental; o maior que se possa atingir” (LAURENT, 2011, p.47).

Laurent afirma que se trata de uma felicidade utilitarista, que não impõe limites no saber, posto que ela é postulada como objetivo ideal. Como consequência, a psicanálise aplicada no campo da saúde mental encontra-se num contexto definido pelo discurso do mestre, aplicada às novas normas do ideal.

Qualidade Total E Utilitarismo

A doutrina utilitarista tem grande repercussão em vários campos. Ela fundamentou a lógica penal e, mais recentemente, no Brasil, vê-se sua implantação na saúde. Calculando os riscos, controlando as ações, o utilitarista busca banir o acaso e prevenir. A prudência é reintroduzida na vida, não como virtude moral, mas pelo risco para a saúde e para o bem-estar que o excesso significa.

Localizamos a introdução do utilitarismo na saúde brasileira mais recentemente, a partir dos anos 90 do século passado. No final dos anos 80, a Constituição Brasileira, qualificada de cidadã, universalizou uma série de direitos para todos os brasileiros. Em decorrência disso, as políticas públicas criadas a partir da Constituição passaram a refletir o ideal de inclusão na cidadania: com o Sistema Único de Saúde, todos os brasileiros teriam acesso aos serviços de saúde; no campo da justiça, alternativas à prisão passaram a ser pensadas. Podem ser citados também a justiça infanto-juvenil, com a qual crianças e adolescentes passaram a ser vistos como pessoas com direitos de cidadania; a educação básica, que passou a ser universal; programas de renda mínima, que começaram a ser formulados. Enfim, era o sonho do estado de bem-estar social, ou Welfare State, tendo o modelo europeu como ideal. Contudo, antes que os serviços fossem realmente construídos, o sonho acabou: as políticas neoliberais vieram cortar os gastos, implantando outro modelo de estado: o estado mínimo, no lugar do provedor. Importante lembrar que, no estado social mínimo, passou a imperar o estado penal máximo.

Assim, saiu de cena a responsabilidade do Estado em criar programas e projetos visando ao bem-estar social e foi reintroduzida, para cada um, a responsabilidade pelo seu bem-estar a partir de normas determinadas, pois a maneira como cada um dispõe de seu tempo e goza de seu corpo afeta a conta a pagar por todos. Importante destacar que o termo responsabilidade está sendo usado aqui no sentido coloquial, não psicanalítico. No primeiro caso, o estado teria a incumbência de prover as políticas sociais, no segundo, trata-se de uma responsabilidade moral, pois cada um deve seguir as normas preestabelecidas.

Essas são formas contemporâneas do exercício de um poder totalitário, posto que utilitário. Ao criticar o utilitarismo, Jacques-Alain Miller (2000) afirma que o utilitarista calcula porque acredita que o ser humano é governável, que é uma máquina elementar, bastando deter o saber de suas molas. Tudo pode ser medido, não há contingência. Segundo ele, trata-se de um delírio da razão. Ele explica que no estabelecimento entre as causas e efeitos, tudo se torna exemplo de funcionamento para o utilitarista, desde que se estabeleça uma função. Qualquer coisa pode ter relação com outra. Nesse procedimento, o que é relativo a uma situação torna-se exemplar, absoluto. Um exemplo disso: certa vez escutei uma pessoa dizer que era contra a pena de morte por princípios humanistas. Contudo, essa pessoa disse que a defenderia se as pesquisas demonstrassem que ela seria eficaz para controlar a violência. Esse é um exemplo que demonstra que, para o utilitarista, não interessam os meios, desde que as coisas funcionem.

Voltando a Miller, ele afirma que o utilitarista é, no fundo, um humanista que almeja o bem-estar da humanidade. Na busca desse ideal, ele prescreve o bem e pune o mal. Essa frase esclarece por que ressurgem, a cada dia, práticas de segregação no âmbito de discussão de políticas de saúde. Por isso, a discussão sobre as drogas se torna especialmente importante nesse contexto, e a contribuição dos psicanalistas de orientação lacaniana nesse debate é uma tarefa que nos toca. Então, como exemplo mais recente, há a discussão atual das internações compulsórias para o abuso de drogas, especialmente o crack. Os partidários dessa política acreditam que a internação, para todos os usuários de crack, seria a forma de controlar o abuso dessa substância. “Para salvar esses fiapos humanos e suas famílias”, ouvi também essa frase de um defensor das internações compulsórias.

Nada mais avesso à psicanálise que a lógica utilitarista: Freud partiu da constatação da presença do mal-estar na cultura, e Lacan, por sua vez, vai definir a presença do gozo como o que não serve para nada, num contraponto ao princípio da transformação do dejeto de gozo em algo útil, a partir do ideal de controle.

Laurent (2011), na Conferência citada anteriormente, lembra-nos de que, diante da escalada dos ideais de saúde mental coletiva, Lacan provocava dizendo que “todo mundo é louco”. Ele não queria dizer que todos eram psicóticos, mas que não existe a possibilidade de visar a uma norma comum. Quanto mais tivermos uma norma para todos em um utilitarismo sem limite, mais precisaremos lembrar que todo mundo é louco, afirma Laurent, ou que “de perto ninguém é normal”, como canta Caetano Veloso. Segundo Laurent, “isso significa dizer que cada um é um obstáculo à norma de todos”. E ele conclui que, “no fundo, todo mundo faz de conta que entra na norma, mas o sintoma é um obstáculo a isso” (LAURENT, 2011, p.52).

Assim, passa-se ao segundo ponto desta discussão, a insistência da pulsão, acrescentando-se que nosso tema nos adverte que o sintoma de cada um demonstra o fracasso do ideal de bem-estar.

2. A Insistência Da Pulsão

Antes de iniciar a discussão sobre a insistência da pulsão, exploraremos um pouco a história da consideração do fracasso em psicanálise. No artigo “A psicanálise. Razão de um fracasso”, Lacan (1967/2003) faz uma crítica aos psicanalistas conhecidos como pós-freudianos, especialmente Daniel Lagache, dizendo que ele psicologizou a psicanálise ao desconsiderar a presença da metonímia, da falta, com seu postulado da personalidade total. Os discursos que preconizam o ideal do bem-estar também têm como objetivo alcançar uma totalidade, uma harmonia entre o corpo e a subjetividade. Outro ponto importante criticado por Lacan nesse texto foi o desvio realizado por esses psicanalistas com a noção de ideal do eu. Eles acreditavam que, almejando o ideal de um eu forte, seria possível acabar com o eu ruim, que era a forma que eles consideravam o isso. Para atingir esse objetivo, uma operação de fortalecimento do eu deveria ser realizada. É importante destacar esse ponto porque essa técnica de fortalecimento do eu e controle do isso é preconizada por certas práticas que defendem o ideal do bem-estar. Assim, pode-se dizer que, ao longo da história da psicanálise, encontram-se diferentes tentativas de pacificar seus aspectos contundentes, os pontos em que ela se tornou transgressiva em relação ao discurso do mestre, que preconiza o controle. Esse desvio da psicanálise, ao buscar um eu forte e controlador, pareceu-me exemplar para pensar os procedimentos preconizados pelo ideal do bem-estar diante da insistência pulsional: aprendizagem e controle.

Em O Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992) se refere aos discursos, afirmando que, em cada um deles, é preciso verificar o que se quer dominar. Acrescenta que a dificuldade do discurso do analista é que ele tem que ficar no oposto da vontade de domínio. Lacan lembra que é sempre fácil escorregar para a mestria, principalmente, diante da insistência da pulsão. E acrescenta que o discurso toca no gozo sem cessar, pois é do gozo que ele se origina, e ele, o gozo, contesta todo apaziguamento. Nesse Seminário, ele também critica os pós-freudianos. De acordo com Lacan, para eles, a mola mestra da análise seria a bondade. Com o apagamento de Freud que eles fizeram, puseram em evidência um ego autônomo, livre de conflitos, educável, como o eu preconizado pelas práticas do bem-estar. De acordo com Lacan, ao promoverem um modelo de análise baseado no ideal, eles empreenderam um retorno ao discurso do mestre. Por isso, não se trata de psicanálise, mas de domínio do gozo por um significante-mestre.

É preciso recordar que, como adverte Lacan, a psicanálise foi uma tentativa de transgressão. Para ele, haveria um retrocesso na propaganda da felicidade, happiness, do bonheur, do bem-estar, operada pelos terapeutas travestidos de psicanalistas. Ele retoma a descoberta de Freud de que há um “Além do princípio de prazer”. A pulsão insiste, apesar das tentativas de dominação, e a função do analista não é refazer esse elemento de dominação, de mestria, como os terapeutas. E ele acrescenta: “De fato, tudo gira em torno do insucesso” (LACAN, 1969-1970/1992, p.78). Ou seja, do fracasso dessas tentativas de dominar a pulsão.

No nosso tempo, quando se pauta como ponto para discussão no campo freudiano a questão das drogas e da violência, é porque estamos diante do que Lacan destacou em seus Escritos (LACAN, 1950/1998, p.46): o ideal de bem-estar e o retorno da pulsão de morte exercem uma função criminogênica que é própria da sociedade quando o utilitarismo e seus ideais normativos triunfam.

Como Operar Com A Insistência Da Pulsão
Jacques-Alain Miller (2010) inicia seu texto “A salvação pelos dejetos” lembrando que Freud fez a descoberta dos dejetos da vida psíquica: sonho, lapso, atos falhos e sintomas. E também a “descoberta de que, os levando a sério, o sujeito tem a chance de se salvar” (MILLER, 2010, p.19). Miller explica que o termo “salvar-se” é uma expressão religiosa. Esse termo traduz algo que diz respeito não simplesmente à ordem da saúde e da cura, mas ao que, além do sintoma, ou sob o sintoma, é uma verdade. Trata-se de uma revelação de saber que carrega uma realização de satisfação e o desenvolvimento de uma satisfação superior. Segundo Miller, a psicanálise apareceu como uma promessa de salvar pelos dejetos, diferente da salvação proposta pelos ideais.

Parece ilustrativo que Miller, nesse texto, retome o mito de Hércules, para o qual a humanidade estaria entre duas escolhas: o vício e a virtude. De forma correlata, estaríamos diante da recolocação desse mito — a salvação pelo bem-estar ou pelos dejetos. Por um lado, a salvação pelo ideal e a consequência a que isso leva: a presença da pulsão de morte, na forma da gula do supereu e os efeitos criminogênicos que Lacan ressaltou. Miller pergunta o que seria o dejeto. Ele responde que é aquilo que é rejeitado ao cabo de uma operação na qual se retém o ouro, a substância preciosa. O dejeto é o que cai quando algo se eleva. Ele se faz desaparecer quando o ideal resplandece. Não há como pensar o ideal sem o dejeto, e vice-versa.

Miller também observa que há um ponto problemático quando o gozo é colocado no lado do Outro. Ele vai dizer que isso é a paranoia, lembrando que ela é uma forma de consistência da personalidade: ela socializa o sujeito pela suposição no Outro de uma vontade de gozo, uma vontade que não é para o bem do sujeito. “Essa imputação de vontade malévola que o Outro social, ali onde ele é representado pelas instâncias legais, se empenha em desmentir” (MILLER, 2010, p.23). O povo administrativo diz: “Eu quero seu bem”. E Miller ironiza que é preciso muito pouca personalidade para se crer nisso.

Esse povo administrativo, que prescreve as fórmulas, que preconiza querer o bem, necessita, de outro lado, como parceiro, do que Miller chama de “pouca personalidade”, “traço comum desses que vêm se entregar às instituições de cuidado, que os acolhem, gratuitamente, de braços abertos” (MILLER, 2010, p.23), sob a égide do “eu quero seu bem!” E Miller completa: “Aqueles que podem crer nisso são os rebotalhos da vontade de gozo” (MILLER, 2010, p.23).

Certamente, a insistência do gozo pode ter como consequência para o sujeito a escolha pelo pior. De nossa parte, podemos considerá-la como uma maneira de não se assujeitar às normatizações, caso seja possível produzir um sintoma. Para os “administradores do povo”, muitas vezes, quando a pulsão insiste, quando o isso se apresenta, e o eu não se faz forte para contê-lo, isso pode ser traduzido pela constatação da presença do mal, do inimigo, daquele que tem que ser dominado, contra o qual é preciso entrar em guerra, isolando-o em novas formas de campos de concentração, por se tratar de um gozo subdesenvolvido.

 

[1] Texto apresentado no Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental – Montes Claros, no dia 17 de abril de 2012.

 

Referências Bibliográficas:
FREUD, Sigmund. (1923/1969) “O ego e o id”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v.19, p.13-83.
______. ([1929] 1939/1969) “Mal-estar na civilização”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v.21, p.75-171.
LACAN, Jacques. (1969-1970) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
______. (1972-1973) O Seminário, livro 20: mais, ainda. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
______. (1967) “A psicanálise. Razão de um fracasso”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p.341-349.
______. (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.238-324.
______. (1950) “Introdução teórica a todo desenvolvimento possível da criminologia”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.127-151.
LAURENT, Éric. “O delírio da normalidade”, In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011. p.45-56.
MILLER, Jacques-Alain. El Otro que no existe y sus comités de ética. Seminario en colaboración com Éric Laurent. Buenos Aires: Paidós, 2005.
______. “A máquina panóptica de Jeremy Bentham”, In: SILVA, T. T. (Org.) O panóptico. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2000.
______. “A salvação pelos dejetos”, Revista Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n.67, dez. 2010, p.19-26.
VIEIRA, Marcus André. “A saúde para todos, não sem a loucura de cada um”, Revista Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n.67, dez. 2010, p.27-29.

Maria José Gontijo Salum
Maria José Gontijo Salum Psicanalista, Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Professora Adjunta da PUC-Minas. e-mail: mariajgontijo@gmail.com



Corpo E Gozo Na Psicanálise Com Crianças

SUZANA FALEIRO BARROSO

“Não há nenhuma necessidade de ir muito longe numa análise de adulto, basta ser alguém que pratica com crianças para conhecer esse elemento que constitui o peso clínico de cada um dos casos que temos que manipular e que se chama pulsão. Parece então haver aqui referência a um dado último, ao arcaico, ao primordial. Tal recurso, ao qual meu ensino os convida, para compreender o inconsciente, a renunciar, parece aqui inevitável.”
(LACAN, 1964/1985, p.154)

A Pulsão, A Criança E O Sonho De Freud

A pulsão tem um percurso na psicanálise desde Freud até Lacan não sem passar pelos pós-freudianos. Ela implica a desnaturalização do corpo a partir da incidência da linguagem no mais íntimo do organismo. Desse modo, a função orgânica é habitada pela pulsão. O inconsciente estruturado como linguagem tem como parceiro o Outro enquanto corpo reduzido à gramática das pulsões. Por meio do circuito pulsional, os órgãos e as funções biológicas se inscrevem enquanto funções de gozo.

Conceito limite entre o psíquico e o somático, a pulsão também implica limites quanto às “mudanças, transformações e mutações que a análise pode efetuar nos modos de gozo do sujeito” (MILLER, 2005, p.49). Por sua dupla face de significante e de silêncio é que a pulsão interroga que o fato de falar pode acarretar mudanças no modo de gozo do sujeito. É com relação à pulsão que Lacan vai localizar o desejo do analista, como o que, em última instância, opera na cura.

Com esse operador clínico, a saber, o desejo do analista, Lacan fazia uma intervenção no campo dos ideais analíticos que o precederam com relação aos destinos da pulsão. Freud já nos havia advertido quanto aos limites e mesmo quanto ao fracasso da análise correlacionado ao impossível de educar e governar a vida pulsional. Ainda assim, parece ter sonhado com a eficácia do simbólico para promover o governo da pulsão.

A correlação entre a criança e a pulsão se encontra no conceito freudiano do perverso polimorfo. Trata-se da criança sob um regime anárquico de gozo a ser organizado e humanizado pela intervenção da ordem simbólica da qual se esperam a submissão do gozo à castração e a instalação do regime fálico de gozo. A humanização do desejo atribuída à incidência da autoridade parental sobre o caráter selvagem da pulsão interfere nos seus destinos segundo a lei do pai. Desse modo, podemos distinguir a neurose da perversão e da psicose segundo o fracasso da submissão da pulsão à autoridade paterna e suas consequências para o corpo e o gozo.

Na neurose, temos o exemplo do Pequeno Hans, que, segundo Freud, foi um modelo de todos os vícios. Esse caso ilustra a intervenção humanizadora da metáfora fóbica na vida pulsional, promovendo a extração de gozo e sua localização fora do corpo. Verifica-se, nos circuitos do Pequeno Hans, a montagem da pulsão. Na perversão, contrapondo-se ao Pequeno Hans, temos o caso de Gide, cuja falha na humanização do desejo e na sua compatibilização com o laço social fez com que a masturbação se mantivesse desde sua infância até a juventude enquanto satisfação selvagem da pulsão. Na psicose, o caso de Robert ilustra os efeitos da não inscrição do circuito da pulsão devido à não extração de gozo do corpo. A linguagem reduzida a um significante sozinho promoveu devastação e não simbolização ao nível do corpo e do gozo, de modo que foi pela via do ato que Robert tentou obter a extração de gozo.

Educar e civilizar a pulsão é o que a sociedade sempre esperou da família, motivo pelo qual a psicanálise com crianças foi de início questionada ou socialmente consentida desde que sustentasse uma aliança com a educação. Como aceitar um método que iria contra o processo de educação da criança, visto que ele supostamente liberaria seus impulsos os mais antissociais e contrários aos ideais da civilização? Disso decorre a inauguração do debate que envolveu a psicanálise e a educação.

De fato, não só Lacan reinventou a psicanálise como também as transformações sociais foram muitas desde o tempo de Freud. De modo que, a partir da orientação lacaniana, podemos pensar em como promover o laço social não a partir dos ideais, e sim a partir da pulsão.

Muitos analistas de crianças tentaram dar conta da questão da pulsão e do laço social, a exemplo de Anna Freud e de Melanie Klein. Anna Freud associou a tarefa de analisar com a de educar, acreditando que o analista deveria promover uma regulação da vida pulsional infantil. Para cumprir esse objetivo, ela defendia a ideia de um pacto com os pais, de uma aliança terapêutica, ou seja, aliança do analista com os pais em prol do fortalecimento do eu. Melanie Klein, ao voltar-se, sobretudo, para a vida pulsional, privilegiou o papel das pulsões estruturantes das relações objetais, o que lhe conferiu o apelido de “Tripeira”, dado por Lacan.

Ambas as analistas abordaram, cada uma à sua maneira, as duas faces da pulsão, a face que implica o Outro e a cadeia significante de sua demanda endereçada à criança e a face de gozo que implica o objeto mais-de-gozar. Enquanto Anna Freud parece ter valorizado demais o papel do Outro parental na organização da vida pulsional, em detrimento do objeto visado pela pulsão, Melanie Klein, ao contrário, valorizou, acima de tudo, o objeto, porém desconhecendo que a pulsão é capturada num sistema de significantes.

Lacan deslocou esse debate ao valorizar o fator satisfação implicado na pulsão, o que se sobrepõe à sua aliança com os ideais e a verdade. A satisfação da pulsão pode infiltrar-se até mesmo no processo de análise, na fala, na transferência e na interpretação. O problema, cada vez mais evidente, mediante o declínio da autoridade paterna e dos termos freudianos da organização edipiana da pulsão, é a tendência da pulsão de se satisfazer autoeroticamente, portanto, até certo ponto, à revelia do Outro e do laço social.

De fato, quanto à satisfação das pulsões parciais, nunca foi evidente a referência ao campo do Outro, à cultura, ao laço social. A pulsão genital, suposta pelos pós-freudianos como aquela que coroaria o desenvolvimento pulsional infantil para além de seus interesses parciais, não existe. Disso decorre a possibilidade de pensarmos a constituição do laço social a partir da parcialidade da pulsão. É o que a teoria lacaniana dos discursos vem demonstrar, desde que Lacan insere no âmago da estrutura discursiva o objeto mais-de-gozar.

As Duas Faces Da Pulsão

O Seminário 11 constitui um marco para a noção de pulsão em Lacan, visto que aí ela ganha o estatuto de conceito fundamental, ao lado do inconsciente, da transferência e da repetição. Nesse seminário, a pulsão é relançada além da primazia do simbólico, segundo a qual ela foi abordada, precisamente por meio da concepção da tríade necessidade, demanda e desejo. Para além de sua inscrição simbólica, definida até então pela fórmula do grafo do sujeito, ($◊D), Lacan concebeu as noções de alienação e de separação. São operações de constituição do sujeito que incluem as duas faces da pulsão, a simbólica e a real, respectivamente, o valor de verdade e de gozo, a face que fala por meio de uma gramática e a face silenciosa. Enquanto a dimensão simbólica da pulsão, representada pela intervenção da demanda do Outro sobre o organismo do falasser, concerne à operação de alienação, a dimensão real implica o mais-de-gozar e concerne à separação. A separação coloca em jogo o organismo vivo, a libido, os objetos pulsionais. Cada um dos objetos pulsionais é especificado por certa matéria na medida em que a esvazia. O objeto a, na verdade, é, para Lacan, uma função lógica, uma consistência lógica que consegue encarnar-se naquilo que cai do corpo sob a forma de diversos dejetos. É a dessubstancialização do objeto que evidencia a sua consistência lógica de vazio, de cavo (MILLER, 1994).

Lacan nos lembra, em 1964, do dizer de Freud de que as pulsões são nossos mitos e acrescenta que é o real que elas mitificam, reproduzindo a relação do sujeito com o objeto perdido.

“Não faltam objetos que passam por lucros e perdas para ocupar seu lugar. Mas é em número limitado que eles podem desempenhar um papel que se simbolizaria da melhor maneira possível pela automutilação do lagarto, por sua cauda desprendida com desolação” (LACAN, 1964/1998, p.867).

A noção freudiana de pulsão é por excelência a demonstração de que a fala tem efeito e ressoa no corpo. “O conceito de pulsão, explicado por Lacan, designa um traço comum às palavras e ao corpo. É o que é designado pelo traço do corte” (COTTET, 2000, p.70). Além disso, “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p.18). Para que esse dizer ressoe, é preciso que o corpo seja sensível, o que concerne aos seus orifícios dos quais o mais importante é o ouvido. “Porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde o que chamei de voz” (LACAN, 1975-1976/2007, p.19).

O corpo sensível às palavras está em jogo na constituição do circuito das demandas lastreado pelas zonas erógenas a partir da incidência do discurso do Outro sobre o infans. No encontro do ser vivente com a língua materna, o corpo se constitui não somente como imagem, mas também como eco pulsional do dizer do Outro. A substância corporal coloca em relevância a capacidade do dizer de afetar o corpo, de imprimir marcas sobre o corpo e desalojar o gozo. Trata-se da implicação da função do signo e sua incidência sobre o corpo mais do que a função do significante, visto que este sempre vem no lugar de uma falta, opera pela negatividade e não enquanto presença.

A montagem da pulsão supõe a constituição de um circuito de gozo em torno do furo deixado pela extração do objeto. O paradigma da extração do objeto é o fort-da freudiano, matriz da relação do sujeito com o significante e com o objeto. Ao observar o brincar de seu neto de um ano e meio de idade, Freud descreveu o jogo que ficou conhecido como jogo do fort-da e que marca a inserção da criança na dimensão simbólica. Ao afastar de si o carretel com o qual brincava, a criança enunciava o fort e, ao recuperá-lo, trazendo-o para junto de si, enunciava o da, expressando a alternância do desaparecimento e do retorno do objeto. “Foram esses jogos de ocultação que Freud, numa intuição genial, produziu, a nosso ver, para que neles reconhecêssemos que o momento em que o desejo se humaniza é também aquele em que a criança nasce para a linguagem” (LACAN, 1953/1998, p.320).

A criança demonstra aí seu compromisso com o discurso do Outro, reproduzindo, em seu fort e em seu da, os significantes que dele recebe.

“Pois sua ação destrói o objeto que ela faz aparecer e desaparecer na provocação antecipatória de sua ausência e sua presença. Ela negativiza assim o campo de forças do desejo, para se tornar, em si mesmo, seu próprio objeto. E esse objeto, ganhando corpo imediatamente no par simbólico de dois dardejamentos elementares, anuncia no sujeito a integração diacrônica da dicotomia dos fonemas, da qual a linguagem existente oferece a estrutura sincrônica e sua assimilação” (LACAN, 1953/1985, p.320).

Observa-se bem que o ato da criança, aparentemente ingênuo, é um ato de palavra que anula o objeto e implica uma cessão de gozo acarretada pela entrada no discurso. “Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como não reconhecer aqui […] que o objeto ao qual essa oposição se aplica em ato, o carretel, é ali que devemos designar o sujeito” (LACAN, 1964/1985, p.63).

Uma das interpretações mais correntes do fort-da é que, nesse jogo, por meio da repetição, a criança estaria elaborando a perda relativa à ausência da mãe, fazendo-se agente dessa perda. Nesse contexto, o carretel é a mãe. Para Lacan, fazer-se agente da perda torna-se um fenômeno secundário em relação à importância fundante do sujeito nesse jogo. O psicanalista desloca a questão da separação do par mãe-criança para a criança e o objeto, ao mesmo tempo íntimo e exterior a ela mesma. O carretel é, então, o objeto a. A necessidade do retorno da mãe poderia manifestar-se pelo grito. Há, portanto, algo mais do que o grito e a demanda que se inscreve no jogo do carretel e que o eleva à dimensão de um ato. O fort-da testemunha a perda inerente à introdução do sujeito na dimensão simbólica.

“A hiância introduzida pela ausência desenhada, e sempre aberta, permanece causa de um traçado centrífugo no qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura — onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a auto-mutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva” (LACAN, 1964/1985, p.63).

O que chamou a atenção de Freud foi, sobretudo, a necessidade da criança de repetir o jogo reiteradamente, revelando o verdadeiro segredo do lúdico, isto é, a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma. A repetição típica do fort-da é uma presentificação em ato do encontro com o real que Lacan nomeou de tiquê, em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

“É a repetição da saída da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito — superada pelo jogo alternativo, fort-da, que é um aqui ou ali, e que só visa, em sua alternância, a ser o fort de um da e o da de um fort. O que se visa é aquilo que, essencialmente, não está representado” (LACAN, 1964/1985, p.63).

A observação de Freud esclarece como o sujeito se produz a partir de sua inscrição na cadeia significante (fort-da). O que se destaca aí é a condição dessa operação, a saber, a extração do objeto que introduz uma negativização do gozo.

“O carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha […] é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura […] É com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que começa a encantação” (LACAN, 1964/1985, p.63).

O sujeito como efeito de significação é resposta do real à ausência do Outro. “O jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio — a borda do seu berço — isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto” (LACAN, 1964/1985, p.63). O salto é o ato e indica uma clínica do objeto para além de uma clínica do sentido.

Esse jogo infantil se tornou para Lacan o paradigma das operações de constituição do sujeito, a alienação e a separação. Pode-se extrair daí uma clínica do fort-da, isto é, uma clínica das relações do sujeito com o significante e com o objeto. O par fort-da corresponde ao par S1 – S2, necessário para definir a estrutura do Outro, segundo a primeira linha do discurso do mestre, no qual se inscreve a identificação do sujeito. A clínica do objeto concerne a uma orientação que prioriza a extração do excedente de gozo. O objeto a definido como um furo no Outro, um furo com uma borda que funciona como lugar de captura de gozo, proporciona uma forma ao gozo, pois isola uma unidade de gozo em relação ao seu caráter de absolutização e infinitização. Trata-se do isolamento de zonas especiais no corpo que se tornam lugares do mais-de-gozar.

A angústia na neurose demonstra a positividade do objeto e sua presença avassaladora para o sujeito nas “aparições, perturbações e separações” do objeto a (MILLER, 2005, p.54). As aparições dizem respeito a toda presentificação do objeto ali onde ele deveria faltar, a saber, no lugar de -. Nesse ponto, onde o neurótico sentiria angústia, devido a uma vacilação dos semblants, o psicótico sente horror e perplexidade, provocados, portanto, pela irrupção do gozo no corpo.

O menino do fort-da ilustra como a castração impõe a articulação da linguagem e faz com que uma palavra tenha que se articular a outra para produzir sentido, não sem uma perda de seu valor de gozo autoerótico. A passagem de uma alíngua à linguagem, isto é, o acesso à oposição mínima de dois significantes necessária à produção de sentido, supõe uma operação discursiva.

“Essa elucubração de saber pode ser vista como a incidência do discurso do mestre sobre alíngua, na perspectiva de sua decomposição, do isolamento de sua unidade elementar, no estabelecimento de suas relações fundamentais e de seu reordenamento numa estrutura de linguagem” (MANDIL, 2010, p.234).

Para pensar então o percurso infantil de alíngua à linguagem, a teoria lacaniana dos discursos torna-se fundamental. Com a formulação dos discursos, Lacan estabeleceu uma conjunção de elementos heterogêneos, isto é, o efeito de significação promovido pela oposição dos significantes S1 e S2 e o efeito da produção de mais de gozo, condensado no objeto a. O objeto a como mais-de-gozar advém da renúncia ao gozo exigida pela inserção do ser falante no discurso.

A Clínica Do Objeto E O Laço Social

Diante das transformações provenientes da inexistência do Outro da ascensão do objeto a ao zênite na civilização, Éric Laurent explica, no artigo “O objeto a pivô da experiência analítica” (2007), que o tratamento pelo objeto a pode ser uma via de abertura ao campo do Outro, ali onde o sujeito goza do autismo de seu sintoma. Ele defende que, a partir do objeto de gozo, a exemplo do que é a droga para o toxicômano, possa-se refazer o laço com o Outro. O objeto anal, na contemporaneidade, por exemplo, poderia vincular o sujeito ao Outro, ao promover a paixão pelas acumulações, fusões e aquisições financeiras, embora sempre à beira de uma ruptura, quebra ou crise. Com relação ao olhar, é a paixão para ver tudo que vem sendo explorada insistentemente, inclusive pela mídia.

No artigo “Uma clínica do objeto a em instituição” (2011), Rabanel define dois movimentos civilizatórios, dois modos de inserção social, a saber, por meio do Outro e por meio do gozo. A inserção social por meio do Outro depende das interdições, limites, normas, prescrições e aprendizagens, o que restringe bastante as chances de laço para o psicótico, sobretudo, o autista. Mas, por meio do objeto, seja a voz ou o olhar, por exemplo, alcança-se alguma inserção do sujeito, a partir de suas invenções.

A partir do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, a noção de discurso e de mais-de-gozar implica diretamente a pulsão em sua função de laço social.

“É um modo de, com o objeto, re-inscrever esse sujeito, supostamente separado de tudo, em um discurso […] este gozo também reúne o sujeito com o Outro. Ele não é só separação como exclusão, e sim um lugar êxtimo deste gozo no Outro” (LAURENT, 2007, p.115).

Longe de ser algo que só destrói os laços sociais, que significa uma ameaça para esse laço, pode ser, precisamente, o laço social que resta. A psicanálise pode então sustentar uma clínica do objeto visando à extração do excedente de gozo inclusive na psicose infantil. Trata-se de localizar o gozo fora do corpo por meio de intervenções voltadas para uma redução do gozo, sem a qual não há laço social possível.

Do lado do efeito de significação, os discursos promovem a falta-a-ser e a identificação do sujeito, sustentam a comunicação e o endereçamento ao Outro. Do lado do efeito de produção, os discursos localizam o ser do sujeito, um efeito de real e de gozo, que não comunica nem endereça nada ao Outro. Segundo a leitura de Miller (2009), por incluir no discurso os quatro elementos articulados, $, a, S1, S2, num sistema de quatro lugares, Lacan obtém a essência da estrutura clínica em psicanálise, para além de uma mera classificação, pois faz valer o acréscimo da causa às classes. O falasser, ser falado falante, é o conjunto dessa articulação e, por isso, adquire uma densidade especial.

O discurso visa a distinguir os elementos de alíngua, S1 e S2, estabelecer relações, articulações e fundar laços sociais. O significante, que se define apenas como uma diferença em relação a outro significante, é extraído de alíngua a partir da introdução da diferença enquanto tal pela operação do traço unário. Há estrutura de linguagem, propriamente dita, quando o S1 se articula a S2. Há, portanto, um real prévio à estrutura, definido como matéria de estrutura, fora do sentido.

“O último ensino de Lacan começa com essa clivagem entre a estrutura e os elementos prévios de acaso, os quais ela encaixa e significa. A prática da psicanálise ganha então outra ênfase. Trata-se de reconduzir a trama de destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora de articulação — ou seja, fora do sentido e, por serem absolutamente separados, podemos dizê-los ‘absolutos’ — reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente” (MILLER, 2009, p.28).
A estrutura quer dizer efeito de sentido e produção de mais de gozo, ou seja, é a estrutura do discurso. O laço social requer a relação com os significantes S1-S2 com produção de a, cuja resposta é o sujeito barrado. Antes que o par ordenado dos significantes inscreva o sujeito num discurso, o falasser está alienado a um gozo prévio que não se articula com a linguagem como um sistema de significantes. “Esse ser prévio é um ser de gozo, quer dizer, um corpo afetado de gozo” (MILLER, 2000, p.98). A incidência traumática de alíngua sobre o corpo instala o enigma do gozo, que poderá ser submetido ao seu regime paterno, no caso da neurose.

Numa análise, mediante a associação livre, o sujeito faz emergirem de sua narração sobre o que lhe acontece os axiomas que tecem a trama do sentido de sua existência, transformando a contingência em articulação. Um S1, ao acaso, articula-se com um S2, e se produz um efeito de sentido articulado, organizando os elementos do acaso que precedem a estrutura.

Os discursos estruturam modos diferentes de conjunção e disjunção das palavras e dos corpos. A condição maior da montagem de um discurso é uma perda, ou seja, a exclusão do gozo. De uma parte, encontra-se a antinomia entre o discurso e o gozo, delimitando a exterioridade absoluta do gozo em relação ao campo discursivo e, de outra parte, uma recuperação do gozo por meio da função do mais-de-gozar no discurso. A teoria dos discursos conta, portanto, com a solidariedade e não com a incompatibilidade do significante e do gozo. O gozo não contraria a ordem simbólica, mas supõe sua incorporação e o seu funcionamento. A prova maior de que o gozo não contraria o simbólico e que, ao contrário, se imiscui nele está no próprio processo civilizatório.

Cada um dos quatro discursos, a saber, o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista, busca recuperar algo do gozo do corpo que foi exilado sob a forma do mais-de-gozar. Os quatro discursos consistem em quatro aparelhos de tratamento do real do gozo por meio dos laços sociais. Os laços sociais escritos pelos discursos são articulados a partir do real como impossível de ser escrito, tributário da pulsão de morte e irredutível ao simbólico. Enquanto laços sociais, os discursos fazem conexões entre dois campos, o campo do sujeito e o do Outro. Cada discurso implica um modo típico de tratamento do gozo.

O ponto de inserção do aparelho significante é, portanto, o gozo. O paradigma do gozo discursivo não supõe uma lógica autônoma do significante, independentemente dos corpos, nem é transcendente ao corpo, mas, ao contrário, implica o corpo. O corpo é uma das condições de gozo, um corpo afetado pelo inconsciente, cujo gozo satisfaz a uma pulsão. O gozo implica a vertente da repetição que não conhece limite, senão a consumação do próprio organismo. A introdução de um modo de gozo estranho à sobrevivência do organismo e ao saber natural e instintivo do corpo torna esse gozo equivalente à pulsão de morte.

O campo do sujeito, no discurso do mestre, é regido pelo falo, que é também um dos nomes do S1, visto que esse significante determina a castração. O campo do Outro é ocupado pelo saber e pelo objeto mais-de-gozar. A fantasia comporta algo da vida, do corpo vivo e libidinal, por meio da inserção do pequeno a enquanto imagem de gozo capturada no simbólico. Sem o recurso de um discurso estabelecido, o sujeito não tem como levar em conta o lugar de objeto indizível que é ele mesmo e dar um tratamento a esse objeto pelo enquadramento fantasmático. O discurso do mestre está correlacionado ao discurso da família edípica, que insere a criança na civilização a partir da articulação dos significantes fundamentais, pai e mãe, que representam o sujeito, impõem uma renúncia à pulsão e permitem a localização do ser de gozo numa fantasia.

Quando uma criança é socializada e entra no discurso, ela apreende muito cedo a norma civilizatória que regula a sua relação com o corpo, ao internalizar a lei do pai, as regras do convívio social. “Ao tomar a palavra nesse discurso estabelecido, o sujeito recebe uma forma de regulação do vivo que agita seu ser, que Lacan nomeava falasser” (LACADÉE, 2009, p.1). Mas nem tudo da dimensão do vivo é regulado pelo discurso do mestre. Assim demonstra o Pequeno Hans, criança que se vê tomada pela angústia diante de um órgão, o fálico, que escapava à captura do corpo pelo discurso do mestre. A inscrição do sujeito no discurso leva em conta o lugar do objeto indizível que é ele mesmo. O significante do Nome-do-Pai tem efeitos de significação fálica, isto é, dar sentido e orientação à falta, em face do enigma do desejo do Outro. De início, o sujeito localiza uma parte de seu gozo nessa falta, separando-se e inscrevendo-se na linguagem que vem aparelhar o gozo em excesso.

Noutro texto, Há um final de análise para as crianças (1999), Éric Laurent já discutia a formalização da psicanálise com crianças e a direção da cura do ponto de vista da teoria fálica de Lacan e da teoria do objeto a. À medida que a promoção do objeto a como real se faz insistente, surge a crítica à referência exclusivamente edipiana na análise de crianças. A questão subjacente a essa crítica é a de que o aporte psicanalítico sobre o gozo, segundo a estrutura edipiana, demonstra-se insuficiente para o tratamento do gozo, na época do declínio social da imago paterna. Há outro artigo mais recente de Laurent, “A análise de crianças e a paixão familiar” (2010), em que ele ratifica essa contribuição anterior ao definir o que é a análise de criança. “Ela é a exploração dos circuitos pulsionais graças a esse objeto transicional fálico e também, mais além, a exploração do que é a versão cada vez mais particular de como funcionou a articulação entre o objeto pulsional e o falo” (LAURENT, 2010, p.31). Laurent nos indica então que o matema a/- se torna precioso para nossa investigação. Ele acrescenta que

“[…] analisar seria poder, ao mesmo tempo, articular estes dois planos: o plano da relação com a significação fálica e o da criança como objeto da fantasia da mãe. Analisar uma criança, então, é poder, com ela, extrair a história do que foi sua relação com essas duas classes de objetos, por meio da família, pai e mãe” (LAURENT, 2010, p. 32).

Essa definição abre uma série de possibilidades de investigação, a saber, as variedades clínicas derivadas das articulações e desarticulações de a e -. Proponho algumas perguntas: 1) quais os impasses contemporâneos para essa articulação? 2) como o corpo da pulsão é tomado nessa articulação? 3) o que se passa na neurose infantil e na psicose infantil a propósito desses elementos estruturantes do laço social? 4) o que a angústia revela sobre o objeto e o falo? 5) como as ficções familiares podem tratar esses elementos?

 

[1] Texto apresentado na reunião do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 07/03/2012.

Referências Bibliográficas:
COTTET, Serge. “Le langage, corps subtil”, La Cause Freudienne, Paris: Navarin, Seuil, 2000, p.69-73.
LACADÉE, Philippe. “A autoridade da língua”, Almanaque on-line, ano 3, n.4, jan./jun. 2009. Disponível em: www.institutopsicanálise-mg.com.br. Acesso em: 02 jul.2012.
LACAN, Jacques. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
______. (1975-1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edito, 2007.
______. (1964) “Do Trieb de Freud e do desejo do psicanalista”, In: Escritos. Rio de Janeiro: J.Z.E., 1998. p.865-868.
LAURENT, Éric. “O objeto a pivô da experiência analítica”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, v.49, ago. 2007, p.114-119.
______. Hay un fin de análisis para los niños. Buenos Aires: Coleccion Diva, 1999.
______. “A análise de crianças e a paixão familiar”, In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. Scriptum, 2010. p.27-43.
MANDIL, Ram. “O inconsciente como ‘parasita falador’ e seus destinos”, In: LAIA, Sergio; BATISTA, Maria do Carmo Dias. (Org.) Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum, 2010. p.233-242.
MILLER, Jacques-Alain. Silet, os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: J.Z.E, 2005.
______. “Jacques Lacan et la voix”, Quarto-révue de psychanalyse, Bruxelles, n.54, jun.1994, p.47-52.
______. “São os acasos que nos fazem ir a torto e a direito”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, v.55, nov.2009, p.23-33.
RABANEL, Jean-Robert. “Une clinique de l’objet a en institution”, La Cause Freudienne, Paris: Navarin, Seuil, n.78, 2011, p.64-76.

Suzana Faleiro Barroso
Suzana Faleiro Barroso Psicanalista, membro da EBP e da AMP. Professora da Faculdade de Psicologia da PUC-Minas, doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). E-mail: suzanafaleirobarroso@gmail.com



Perturbar A Defesa… Social?

MÁRCIA MEZÊNCIO 

Legítima Defesa?

Não por acaso, um significante chamou-me a atenção no trabalho de Mariana. Não será difícil adivinhá-lo: trata-se do significante “defesa”. Ela o traz para apresentar, via trocadilho, a questão que, para ela, constituiu o impasse que a levou ao Ateliê de Psicanálise Aplicada: como fazer a defesa do sujeito e do singular, atuando sob a égide do discurso do universal no espaço de uma política de defesa social? Como fazê-lo sem fazer da psicanálise um ideal, um S1 na direção de uma instituição do aparelho regulador do Estado? Como se utilizar das ferramentas da psicanálise nesse dispositivo de controle social?

No dicionário Aurélio, encontrei 14 significados para a palavra defesa, abrangendo suas acepções na linguagem comum, na linguagem jurídica, na psicologia, na tipografia, no futebol… Registra-se também um uso específico no Brasil, que remete ao “jeitinho brasileiro”: “proveito que habilmente se tira de algo, arranjo, cavação” (FERREIRA, 1975, p.426). E ainda: ato de defender: socorro, auxílio; aquilo que serve para defender: arma de defesa; ato ou forma de repelir um ataque; resistência; contestação de uma acusação; justificação, alegação; resguardo, proteção; impedimento, interdição… enfim, um vasto campo semântico. Em seu sentido brasileiro, ressoa a incorporação de uma prática utilitarista. Retenhamos essa concepção utilitarista, que nos pode orientar ainda sobre a proposta de uma “defesa” social, orientada pelos paradigmas do controle e avaliação, pelo funcionamento das normas e consequente segregação do sujeito.

A partir do significante defesa, no campo da psicanálise, podemos derivar: mecanismos de defesa, a ideia de que as estruturas clínicas se apresentam como defesas contra o real, o ato analítico como uma forma de perturbar a defesa, a proposta de se pensar a transferência na psicose pela vertente do analista como defesa (ou como ajuda) contra o Édipo. Não se trata de uma lista exaustiva, pensei apenas em levantar algumas indicações e direções possíveis para uma pesquisa sobre o tema.

Assim, percebe-se em Freud um longo percurso desde a introdução do termo defesa, em 1894, em “As neuropsicoses de defesa”, confundido com ou equivalente ao recalque, até a precisão do conceito de defesa como proteção do eu contra as exigências pulsionais, em “Inibição, sintoma e angústia”, em 1926. Proposição que permite uma aproximação da proposta de Miller (1996) de pensar as estruturas clínicas como diferentes modos de defesa contra o real do gozo.

Também no seminário “A experiência do real na experiência analítica”, de 1998-1999, Miller (2003) afirma que a defesa qualifica, de maneira eletiva, a relação subjetiva com o real. Ele remete ao Seminário 7, de Lacan, em que este afirma que a defesa qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. A prática analítica, que se apoia na palavra, isola o real, ainda que o analista se confronte com um vacúolo de real, em inclusão interna à sua prática. Miller discute as relações entre Real e semblante e a correspondência dessas categorias com as noções de defesa e recalque e faz alguns esclarecimentos importantes:

– A defesa não recai sobre um significante.

– Resistência não é defesa. Se, para os pós-freudianos, a resistência é tida como conceito global, que inclui defesa e recalque, Lacan, em “Variantes do tratamento-padrão”, afirma que a resistência está relacionada ao recalque e não à defesa. Referida à cadeia do discurso, a resistência faz obstáculo à emergência da verdade. Os analistas pós-freudianos acreditavam poder interpretá-la. Em paralelo à interpretação de sentido, que busca vacilar o sentido do enunciado, também se pode interpretar a resistência, quando não há o enunciado do sujeito, com o objetivo de extraí-lo. Mas o registro é ainda o simbólico.

– Defesa não se interpreta. Para Freud, qualifica uma relação com a pulsão para a qual não se indica a interpretação.

Assinalo que a relação ao real é o ponto de convergência da noção de defesa que privilegiaremos, seguindo Freud, Lacan e Miller. A orientação de perturbar a defesa não indica a interpretação. Miller, em sua intervenção de encerramento do VIII Congresso da AMP, reafirma essa indicação de Lacan.

“No século XXI, a psicanálise deve seguir outra via: a da defesa contra o real sem lei e sem sentido. Lacan nos indica a via do real, assim como Freud fez com o conceito mítico da pulsão. O inconsciente lacaniano, do último Lacan, está no nível do real, digamos para simplificar: ‘sob’ o inconsciente freudiano. Para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se centrar na maneira de incomodar a defesa, de desregrá-la contra o real” (MILLER, 2012).

Observe-se que o caráter da defesa aqui colocado apresenta-se em vertente negativa: uma defesa “contra”. O que propõe Mariana segue uma orientação contrária: ela fala de defesa, tal como nos processos jurídicos (o que é apropriado ao contexto das medidas socioeducativas), como falar a favor, posicionar-se do lado do sujeito. No dicionário (1975, p.426), encontramos essa definição: “Pessoa que, em juízo, patrocina outra”, e ainda uma última acepção, que também remete ao campo jurídico: “Legítima defesa — o emprego dos meios necessários para resistir à força ou agressão, sem que ultrapassem os limites da razão ou da justiça natural”.

Registremos, ainda, que, “na era do direito ao gozo”, observa-se o incremento dos movimentos de defesa dos direitos, sejam os das minorias segregadas, das comunidades de gozo, dos consumidores…

O Contexto: A Psicanálise Aplicada

Laurent (2011, p.45), em “O delírio de normalidade”, afirma que os psicanalistas “somos os últimos a falar do um por um”, ainda que, ou, talvez, mesmo em decorrência de uma expansão do discurso democrático e de uma ampliação inusitada da psicanálise aplicada. Ele coloca em questão esse sucesso, na medida em que implicou um “falar a língua do Outro” que ele chama de uma tentativa de sedução do discurso do mestre, num contexto em que era necessário lembrar a força e a utilidade social da psicanálise. Estavam, então, em questão a regulamentação da psicanálise e os protocolos avaliativos. Curiosamente, ao final desse artigo, apresenta também uma ideia de defesa — a ideia de que devemos nos defender do delírio de normalidade e de que devemos fazê-lo pelo esforço constante de mostrar que a saúde mental, o laço social e a psicopatologia não existem. É necessário saber disso para que nos aproximemos do sintoma como Real, ele afirma.

Parece-me que se trata de considerar o “esforço de cada sujeito para tratar do seu sintoma e do acolhimento que lhe damos em instituições que, sem nossa presença, teriam a tendência a tratá-lo como categoria” (LAURENT, 2011, p.45). É nesse ponto que me parece importante discutir (ou seria afirmar?) a pertinência da presença dos psicanalistas nessas instituições. Discussão que é o fio do trabalho apresentado por Mariana, que poderíamos formular pelas questões seguintes: De que forma pode-se pensar a psicanálise no espaço de execução de medidas socioeducativas? E, particularmente, no caso de sua localização no campo de uma política de defesa social? Ou seja, uma política que responde aos protocolos da gestão e da ordem e aos paradigmas contemporâneos de avaliação e controle e de problema-solução. A defesa social incorpora esse viés do controle, via segregação.

Resta verificar a acepção do significante defesa nesse contexto, aqui, em substituição aos significantes “segurança”, “repressão”, “justiça”. Vivemos sob o imperativo do politicamente correto. Ressonâncias da equivalência recalque-defesa com as quais Freud se embaraçou a princípio, até discernir o campo do recalque como o que concerne ao inconsciente e o da defesa concernindo ao real do gozo, do indizível e intraduzível, não interpretável.

A contribuição da psicanálise localiza-se mais além das classificações, que apontam para a irresponsabilidade do sujeito e, portanto, para sua segregação. A estratégia da psicanálise é de resistência ao controle social, “deslocando-se a ênfase do ideal da instituição para o real em jogo para cada sujeito”, como nos assinalou Elisa Alvarenga na abertura dos trabalhos do Núcleo no ano passado. Segundo ela, na relação da psicanálise com a instituição, não se trata de perguntar qual o lugar da psicanálise, mas que sujeitos, pacientes e praticantes, podem beneficiar-se dela para orientar seu tratamento ou sua prática (ALVARENGA, 2011).

A questão da responsabilidade me parece localizar um ponto de convergência/divergência entre o discurso jurídico e o discurso analítico. Ponto onde a “defesa” do sujeito pode-se assentar, na medida em que a responsabilidade somente pode ser remetida a um sujeito, ela não é anônima. Lembremos mais uma vez o dito de Lacan: “De nossa posição de sujeitos somos sempre responsáveis.”

Toda intervenção analítica no campo jurídico requer uma operação na qual o sujeito seja extraído do campo social. A sociedade é anônima, mas, para a psicanálise, o social não é anônimo. “A psicanálise como procedimento é uma experiência que opera sobre um sujeito e só a partir de respeitar essa singularidade pode-se esperar uma ação no social” (GREISER, 2009, p.11). Trata-se de uma nomeação não referida a uma classificação.

A subjetividade muda com as mudanças de época, mas o mal-estar em si mesmo é o irredutível que atravessa épocas e lugares e organizações sociais. Esse irredutível é a pulsão de morte e, como tal, impossível de educar ou interpretar. Não entra nas trocas sociais. A pulsão é associal, já o inconsciente é político, pois implica o laço do sujeito ao Outro, dado pelas ofertas identificatórias que variam segundo as sociedades e épocas. Ainda que a pulsão seja associal e ineducável, cada sociedade e cada época dão acolhimento diferente ao gozo. O discurso jurídico é uma forma pela qual esse acolhimento se apresenta. É o que Laurent explicita, de alguma forma, ao dizer que o mestre pós ou hipermoderno integrou as formas de contestações em seu próprio discurso. Ou que o discurso do poder inclui todos os discursos críticos ao exercício do poder. É o que se verifica no campo socioeducativo, por exemplo, com a passagem da doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral. Situação também da psicanálise aplicada em relação ao discurso do mestre: passamos de uma definição da terapêutica como um saber clínico para a definição de normas sociais — protocolos. Então, tem-se uma passagem da psicanálise aplicada (à terapêutica) à psicanálise aplicada às novas normas do ideal.

O contexto histórico no Brasil delineia a relação da psicanálise aplicada com as novas normas e ideais, colocados a partir da redemocratização do país. Vemos o enorme sucesso e a extensão do discurso psicanalítico aplicado e adaptado às novas normas do discurso do mestre. A questão que se colocam Miller e Laurent é a de saber se, em nossa tentativa de seduzir o mestre, não sucumbimos à sedução desse mesmo mestre e de seus novos ideais. A resposta deles é positiva e a conclusão é a de que se deve refletir e tomar medidas sobre isso. Colocam como proposta: fazer usos dos semblantes como resposta, ou seja, de discursos que fazem semblante de laço social. Remetem à afirmação de Lacan no seminário Ou pior…, de que só há laço social no discurso, quer dizer, que não há um laço social. Significa fazer uso dos discursos sem perder-se neles, mantendo a diferença própria ao discurso analítico.

Brousse (2007) propõe três pontos de ancoragem para evitar que o discurso analítico se dissolva nos discursos dominantes, tendo de responder a imperativos em contradição com seu discurso. Para estar nas instituições socioeducativas e permanecer no discurso da psicanálise, a resposta não pode ser a denegação, tampouco a colaboração. Os três pontos são os elementos operatórios do tratamento analítico, que ela denomina de os três S do matema da transferência — Sujeito-Suposto-Saber — e os apresenta como segue:

– S barrado: Sujeito dividido entre efeito de significantes e objeto de gozo desse Outro do significante. O sintoma não é social, ainda que seja uma forma de socialização, é do sujeito e nomeado pelo Outro. Manter a barra sobre o sujeito implica não abordá-lo a partir dos significantes segregatórios ou categorias que servem ao patrulhamento do gozo, mas abordá-lo a partir de sua própria fala.

– Suposição: Diz respeito ao estatuto do Outro (que não existe) em psicanálise, que é uma ficção, um semblante. A ética do discurso analítico se assenta no matema A barrado e tem como consequência a recusa do serviço dos bens, do Bem soberano, das boas intenções.

– Saber não é referencial, é textual. O saber a ser obtido, em psicanálise, é um texto de letras, que não quer dizer nada em particular, mas deve constituir, através da linguagem das fórmulas matemáticas ou do tratamento do sentido pela poesia ou pelo chiste, uma forma de ordenação e de acesso ao real.

Mantê-los, os três S, como referência, é a forma pela qual a psicanálise pode objetar ao tratamento do sujeito pela foraclusão produzido pelo discurso do mestre moderno e levar o sujeito à destituição de seu lugar de objeto. Assim, se, como propõe Laurent, o laço social não existe, a psicanálise opera através de um laço inédito — transferencial — que introduz a possibilidade de o sujeito se apresentar, destituído do véu de um significante-mestre e do lugar de objeto de um gozo do Outro.

Contra-Sociedade

A presença da psicanálise, nesse dispositivo regido pelo imperativo do bem-estar e inclusão, deve apontar para o tratamento do gozo singular e das incidências da intervenção da norma jurídica sobre o sujeito. Se a lei e a política pública se regem pelo universal, para o psicanalista, interessam o modo singular que cada um tem de subjetivar essa lei e a relação com o que para ele funciona como interdição, como limite ao gozo (como defesa?).

Tomarei a afirmação — “A medida socioeducativa tem o caráter de pena, mas não a finalidade de retribuição, seu objetivo é de ressocialização” — que pode ser lida reiteradas vezes nos “Termos de Audiência” e que resume, a meu ver, uma série de fundamentos políticos/filosóficos de ordenamentos legais e normativos. Essa medida é, pois, uma sanção. Ela só se aplica em resposta ao ato delituoso cometido pelo adolescente, mas considera a “condição peculiar de desenvolvimento” e trata a ruptura do laço social ocasionada pelo ato através da “socioeducação” e da “inclusão social”. Em resumo, trata-se da responsabilização do adolescente pelo ato cometido — através de uma pena privada da finalidade de castigo — e da sociedade — pela garantia dos direitos de cidadania do mesmo. Registro aqui que existem aqueles, mesmo fora do campo do discurso analítico, que discordam dessa concepção e articulam o direito à punição como condição da responsabilidade e da cidadania.

Para o analista, a questão é operar a partir da ética da psicanálise, não respondendo com a normatização do gozo — uma medida para todos — mas valendo-se da orientação da “medida” dada pela satisfação de cada um, fazendo do dispositivo ofertado pelo Outro social, que responde a uma ordem baseada no controle coletivo e na gestão, um lugar para o acolhimento da verdade singular, possibilitando ao sujeito responsabilizar-se pelo seu gozo.

O primeiro desafio é a questão da demanda, pois o que se apresenta é o sintoma social, e o demandante é o juiz. É necessário criar uma demanda a partir de uma oferta paradoxal e da condição de obrigatoriedade da sanção e daí extrair a singularidade do sujeito. Ou seja, estabelecer para cada caso o estatuto do ato e a relação de cada sujeito com a lei, de que forma se articulam o Outro, a culpa e a responsabilidade. Fazer da responsabilidade penal a condição da responsabilidade subjetiva. Recebemos sujeitos que não se enquadram na norma vigente, mas que podem encontrar acolhimento em um laço social inédito criado pela psicanálise, o laço transferencial. A posição do analista não é a de prover assistência e direitos, nem a defesa e restauração do tecido e da paz social, mas a de ofertar um lugar de escuta que ultrapasse o tratamento do sintoma social e caminhe no sentido de tratar o sintoma do sujeito, franqueando, para além dos efeitos terapêuticos — a dita ressocialização — efeitos propriamente analíticos ou efeitos do inconsciente. Segundo Miller (2008), um analista não pode funcionar se não estiver em conexão direta com o social, o que, para ele, significa dizer que a extraterritorialidade é um devaneio ou uma ironia de Lacan, pois a conexão com o inconsciente tem relação com a reconexão com o discurso do Outro.

A questão que nos ocupa, diante de uma demanda de intervenção nos dispositivos jurídicos, centros de assistência, centros socioeducativos, prisões, é: como deve responder o psicanalista? Deve ter em mente que não se trata de responder com o discurso do Outro, mas fazer uso dessas demandas e responder com suas próprias ferramentas, que não são as dos juízes, dos assistentes sociais, dos educadores.

“Fazer do sintoma social um laço social, sabendo que o laço social supõe sempre a particularidade do um por um. Por isso, Jacques-Alain Miller define a posição do analista como contra-sociedade, que não quer dizer colocar-se contra a sociedade, mas colocar-se na posição de extimidade, exclusão interna, que produz o discurso analítico que como tal é o avesso do discurso do mestre massificante” (GREISER, 2009, p.48).

É nesse sentido que Brousse (2007, p.23) cita Lacan em “A terceira”: a sobrevivência da psicanálise “depende de o real insistir. Para isso, é necessário que a psicanálise fracasse” — ela completa e esclarece — a psicanálise deve fracassar, justamente, em satisfazer a demanda do mestre moderno.

 


Referências Bibliográficas:
ALVARENGA, Elisa. A ação lacaniana nas instituições, Almanaque on-line, Belo Horizonte, Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, n.8, jan./jun. 2011. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque8.htm. Acesso em: maio 2012.
BROUSSE, Marie-Hélène. “Três pontos de ancoragem”, In: Pertinências da psicanálise aplicada. São Paulo: Forense Universitária, 2007. p.22-26.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975.
FREUD, Sigmund. (1926/1976) “Inibição, sintoma e angústia”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v.20, p.95-200.
GREISER, Irene. Delito y transgresión. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2009.
LAURENT, Éric. “O delírio de normalidade”, In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum, 2011. p.45-56.
MILLER, Jacques-Alain. “A clínica irônica”, In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p.190-200.
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______. “Rumo ao PIPOL 4”, Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro, n.60, 2008, p.7-14.
______. “O real no século XXI”, Lacan Cotidiano, Paris, n.216, 28/05/2012. Disponível em: ebp-veredas@yahoogrupos.com.br. Acesso em: 08 jun.2012.
i Reflexões produzidas a partir do texto: “Em ‘Defesa’ do sujeito: produções em um Ateliê de Psicanálise Aplicada”, de Mariana Furtado Vidigal.

Márcia Mezêncio
Márcia Mezêncio Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos), Psicanalista, Aderente da EBP-MG. E-mail: marcia.mezencio@terra.com.br



Apontamentos Acerca Da Transferência

ALEX KEINE DE ALMEIDA SEBASTIÃO

A transferência foi tomada por Lacan como um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Enquanto a importância da transferência sempre foi reconhecida ao longo da história da psicanálise, seu significado foi objeto de controvérsias entre linhas teóricas diversas. Há autores que defendem um conceito restrito de transferência, enquanto outros tendem a fazê-la coincidir com o próprio tratamento psicanalítico. Um repertório das teorias da transferência formuladas a partir da obra de Freud pode ser encontrado em “Le problème du transfert” (1952/1975), de Daniel Lagache. Lacan observa que o referido trabalho evidencia a parcialidade dos debates em torno da transferência, bem como a predominância de sua abordagem mais discutível, em que é tomada como “a sucessão ou a soma dos sentimentos positivos ou negativos que o paciente vota a seu analista” (LACAN, 1958/1998, p.608).

É de se observar, entretanto, que não se trata exclusivamente de construir um conceito teórico da transferência, mas também de delinear o seu manejo. Na verdade, o “manejo da transferência é idêntico à noção dela” (LACAN, 1958/1998, p.609). Ou seja, sustentar uma determinada noção de transferência implica já o modo de manejá-la, revelando um posicionamento do analista frente à prática da psicanálise. Se a psicanálise é marcada por uma relação de mão dupla entre teoria e prática, isso se torna muito mais evidente no que concerne ao conceito de transferência. Como nota Lacan, “este conceito é determinado pela função que tem numa práxis. Este conceito dirige o modo de tratar os pacientes. Inversamente, o modo de tratá-los comanda o conceito” (LACAN, 1964/1998, p.120).

Para Lacan, “a transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista”. Por consequência, não faria sentido distinguir a transferência, atribuída ao analisante, e a contratransferência, atribuída ao analista. Nesse sentido, “aquilo que se nos apresenta […] como contratransferência, normal ou não, não tem, realmente, qualquer razão de ser especialmente qualificada como tal. Trata-se aí apenas de um efeito irredutível da situação de transferência, simplesmente, por si mesma” (LACAN, 1961/1992, p.194).

Dizer que a transferência inclui tanto o sujeito quanto o analista não implica que eles aí estejam incluídos do mesmo modo. A assimetria se faz evidente. Lacan utiliza a expressão “disparidade subjetiva” e esclarece: “entendo com isso que a posição dos dois sujeitos em presença não é de modo algum equivalente” (LACAN, 1961/1992, p.197). Ainda assim, a transferência se estabelece a partir do encontro do desejo do sujeito em análise com o desejo do analista. Na base da transferência, Lacan aponta para o desejo do analista. A presença fundamental do desejo do analista na transferência se faz sob duas perspectivas. Da perspectiva do próprio analista, o que se chama desejo do analista é algo que se produziu nele a partir da experiência de seu próprio inconsciente, como resultado de “uma mutação na economia de seu desejo” (LACAN, 1961/1992, p.187). O analista é “possuído por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar às vias de fato com seu paciente, de tomá-lo nos braços ou atirá-lo pela janela” (LACAN, 1961/1992, p.187). Da perspectiva do analisante, o desejo do analista aparece como o desejo do Outro, sob o modo da interrogação “O que ele quer?”. As duas perspectivas estão diretamente conectadas, visto que a presença do desejo do analista como resultado de sua própria análise é condição indispensável para que o analisante possa interrogar-se sobre o que quer o analista, ou seja, sobre o desejo do Outro.

A análise busca permitir a emergência do desejo do sujeito. Considerando que “o desejo do homem é o desejo do Outro” (LACAN, 1964/1998, p.223), o analisante deverá passar pela questão do desejo do Outro, enquanto condição constitutiva de seu próprio desejo. A assunção pelo analista do lugar desse Outro requer que ele seja capaz de deixar fora da cena seu desejo enquanto sujeito, criando uma certa vacância nesse lugar e remetendo o analisante a seu próprio desejo. É justamente o desejo do analista que permite essa operação.

Uma importante contribuição lacaniana ao conceito de transferência é a noção de sujeito suposto saber. Segundo Lacan: “A transferência é impensável, a não ser tomando-se partida do sujeito suposto saber” (LACAN, 1964/1998, p.239). Além do laço propriamente libidinal que envolve analisante e analista, há um laço epistêmico que marca a relação entre eles. Ao lado da questão “o que ele quer?”, estaria a convicção “ele sabe”, em que ao analista seria atribuído pelo analisante o papel de sujeito suposto saber. O que ele seria suposto saber? Segundo Lacan, “pura e simplesmente, a significação”. Qual significação? A significação da fala, dos sintomas, enfim, do próprio ser do analisante.

Como nota Jacques-Alain Miller, “o sujeito suposto saber só intervém na teoria de Lacan em uma data relativamente tardia, pelos anos de 1964-1965” (MILLER, 1984a/1999, p.56). Ele destaca que Lacan atribuía ao sujeito suposto saber o papel de pivô da transferência. Sobre o sentido comumente dado à expressão, Miller afirma: “Pensou-se que o analisante começa supondo que o analista está de posse do saber que lhe concerne, e progressivamente descobre que não é assim, mas que a análise se estabelece sobre a base dessa suposição” (MILLER, 1984a/1999, p.56-57). Mas, na verdade, não é bem isso, aponta Miller:

“Sujeito suposto saber não é de modo algum, como se imagina, que o psicanalisante, aquele que vem pedir uma psicanálise, imagine que o psicanalista sabe tudo. […] Pode até desconfiar de seu psicanalista e, em vez de supô-lo tão sábio, colocar sua capacidade em dúvida” (MILLER, 1984a/1999, p.69).

Na origem do sujeito suposto saber, está o convite que se faz ao paciente para dizer tudo o que lhe vem à mente, o convite a se entregar à associação livre. Seria algo que se liga menos à pessoa do analista e mais ao dispositivo do tratamento. Isso que se diz sempre quer dizer alguma coisa, mesmo que não saibamos o quê.

Por outro lado, o próprio analista faz parte do dispositivo do tratamento, e ele o faz, oferecendo-se para ocupar o lugar de sujeito suposto saber. A suposição do saber no analista só ocorre na medida em que o analisante está em busca da verdade sobre si mesmo, sobre seu desejo. Como observa Miller,

“[…] o ouvinte, sua resposta, seu aval, sua interpretação decidem o sentido do que é dito e, ainda mais […], a própria identidade de quem fala. A esse respeito, existe o que Lacan não vacila em chamar de um poder, o poder do analista sobre o sentido” (MILLER, 1984b/1999, p.73).

Esse poder invoca uma responsabilidade correlata do analista que é a de se pautar pelo silêncio e de não se “precipitar a satisfazer a demanda do paciente, que é a demanda de: quem sou? qual é meu desejo? que quero de verdade?” (MILLER, 1984b/1999, p.73).

Importante destacar que oferecer-se para ocupar o lugar de sujeito suposto saber não é o mesmo que identificar-se com esse lugar. A análise progressiva da transferência deve desembocar na descoberta do que Lacan designa no título mesmo de um de seus escritos: “O engano do sujeito suposto saber” (1967/2003). É então fundamental a presença do desejo do analista, na medida em que ele é desejo de “não se identificar com o Outro, de respeitar o que Freud em sua linguagem chama de individualidade do paciente, não ser um ideal, um modelo, um educador, e sim deixar espaço para a emergência do desejo do paciente” (MILLER, 1984b/1999, p.89).

É comum haver no decurso de uma análise variações na economia da transferência tomada em seus dois vieses: o libidinal e o epistêmico. Em primeiro plano, está ora o analista como sujeito suposto saber, ora o analista como objeto libidinal. Na prática, o analista é um só, mas, dependendo do analisante e do momento que ele vive, a combinação entre a busca de amor e a busca de saber se apresentará de modo distinto. Miller aponta para uma variação no ensino de Lacan no que concerne a essa questão. Se, inicialmente, tinha-se o sujeito suposto saber como pivô da transferência, no último Lacan, tem-se a transferência como pivô do sujeito suposto saber, ou seja, “o que faz existir o inconsciente como saber é o amor” (MILLER, 2005, p.18). Em outras palavras, sem o investimento libidinal do analista pelo analisante, não se pode falar em transferência, tampouco se pode produzir a suposição de saber.

Há análises em que, já de início, observa-se uma emergência da transferência em seu viés epistêmico. A inflação do sujeito suposto saber corresponde a uma preeminência da interpretação e da busca pelo sentido como sendo a chave que permitirá o acesso do sujeito à sua verdade mais íntima, ao seu desejo. É como se ali se tratasse somente de uma decifração ou de uma pesquisa cujo termo garantiria a conquista da verdade do sujeito e a solução de seus sintomas. Com o decurso do tratamento, por vezes, ocorre uma deflação do sentido e surge a possibilidade de se reservar um lugar para o sem sentido ou para algo que não se sabe, nem se saberá. Tem-se, então, o reconhecimento de um papel maior à transferência em seu viés libidinal. É porque o analisante investe o analista como objeto libidinal que seu inconsciente se atualiza ali, na sessão de análise. E ainda que o significado de muita coisa possa escapar a ambos, essa atualização do inconsciente e o tratamento que lhe é dado pelo analista geram efeitos.

Pode-se traçar um paralelo entre essas análises em que a busca pelo significado assume inicialmente um papel predominante e a evolução da técnica psicanalítica, descrita por Freud, no Capítulo III de “Além do princípio de prazer”. Inicialmente, a psicanálise era, sobretudo, uma arte interpretativa. Visava-se a descobrir representações inconscientes e torná-las conscientes. Visto que, em muitos casos, isso era insuficiente para produzir a cura, a análise passou a cuidar não só da rememoração, mas também da repetição do material reprimido. O trabalho do analista envolve não só buscar o sentido oculto na fala do analisante, mas também manejar a neurose de transferência e a atuação do analisante, tomado pela compulsão à repetição. Na verdade, desde o relato do tratamento de Anna O. por Breuer, sabemos que o desafio maior que se apresenta ao analista não está no trabalho interpretativo, e sim no manejo da transferência como investimento libidinal do analista pelo analisante. Mais do que escutar, o analista deve estar preparado para suportar ser objeto do amor e do ódio que lhe poderá dirigir o analisante. É somente o percurso efetuado em sua análise pessoal que possibilitará ao analista não se precipitar nos desfiladeiros da transferência, manejando-a de modo a fazer o analisante deparar-se com a questão em jogo no seu desejo.

 


Referências Bibliográficas:
LACAN, Jacques. (1958) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.591-652.
______. (1961) O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
______. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______. (1967) “O engano do sujeito suposto saber”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p.329-340.
LAGACHE, Daniel. (1952) La teoria de la transferencia. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1975.
MILLER, Jacques-Alain. (1984a) “A transferência de Freud a Lacan”, In: Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.55-71.
______. (1984b) “A transferência: o sujeito suposto saber”, In: Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.72-89.
______. “Uma fantasia”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.42, 2005, p.7-18.
i Este trabalho começou a ser produzido ao término da Unidade I – O tratamento psicanalítico – do Curso de Psicanálise do IPSM-MG, ministrada por Helenice de Castro e Lilany Pacheco, no segundo semestre de 2010. Agradeço a Sérgio Laia pela orientação.

Alex Keine De Almeida Sebastião
Mestre em Filosofia, aluno do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. E-mail: keine74@uol.com.br.