A Linguagem Como Distúrbio Do Real
MIQUEL BASSOLS
Conhecemos, na orientação lacaniana, a fecundidade dos estudos sobre os distúrbios da linguagem no que concerne à clínica das psicoses. Fomos formados no estudo preciso desses distúrbios, considerando-os como um critério diagnóstico e mesmo como o critério diagnóstico por excelência, segundo a máxima que Jacques Lacan deduziu em seu seminário As psicoses, de 1955-1956. É nesse seminário, a propósito de um caso submetido à sua consideração, que ele assinalou:
“Eu me recusei a dar o diagnóstico de psicose por uma razão decisiva, é que não havia nenhuma dessas perturbações que constituem o objeto de nosso estudo este ano, e que são os distúrbios na ordem da linguagem. Devemos exigir, antes de dar o diagnóstico de psicose, a presença desses distúrbios. […] é essa, em todo caso, a convenção que lhes proponho adotar provisoriamente” (LACAN, 1955-1956/1985, p.109-110).
Era, com efeito, uma convenção, que devia ser provisória, mas que teve uma função de bússola para nossa orientação quanto à clínica e ao tratamento das psicoses.
Podemos fazer a lista desses distúrbios de linguagem nas psicoses, a partir da análise atenta e detalhada dos fenômenos surgidos na função da palavra e do campo da linguagem. São os distúrbios concernentes ao eixo da significação, por efeito da elisão do significante que faria escansão — a elisão do significante fálico. São os distúrbios induzidos por um deslizamento infinito da significação, sobre o eixo da metonímia: a fuga do pensamento, o discurso tangencial, com os fenômenos de conversação interior já isolados por Jules Seglas (1985). São também as frases interrompidas, as rupturas da cadeia significante, com os neologismos, os ritornelos ou a erotização do significante. Lacan ordenou esses diferentes fenômenos em torno de dois eixos (LACAN, 1958/1998). A partir da retomada da análise da metáfora e da metonímia do linguista Roman Jakobson, ele distinguiu os fenômenos de código e os fenômenos de mensagem e isolou seu ponto comum como sendo a irrupção, “a presença do significante no real”, com todas as novas viragens da significação da realidade, engendrada por esse surgimento, para o sujeito. Ele já via aí uma condição da “situação do homem moderno”, uma espécie de distúrbio generalizado da linguagem que a ciência induz com seus novos objetos.
Na época Geek,(1) marcada pelos efeitos da técnica sobre o sujeito da ciência, pode-se dizer que se passa dos “distúrbios de linguagem” à linguagem considerada ela mesma como um distúrbio do qual seria necessário curar a dita humanidade.
O Entrave Da Linguagem
Tomemos um exemplo, talvez limite, dessa nova perspectiva na interface das técnicas cibernéticas com as neurociências, um campo que se tornou uma referência fundamental para o cognitivismo atual e mesmo uma orientação que se pode designar por este neologismo surpreendente: neuropsicanálise. Nessa interface, Kevin Warwick, professor na Universidade de Reading, nos Estados Unidos, impulsionou o chamado Projeto Cyborg. Uma questão serve de bússola para sua pesquisa: What happens when a man is merged with a computer? — “O que acontece quando um homem é fusionado com um computador?” Deixaremos de lado os aspectos mais ou menos frankensteinianos dessa pesquisa e de seus resultados e as novas técnicas de implantação de chip e outros dispositivos eletrônicos no corpo do sujeito. Deixaremos de lado, igualmente, as finalidades consideradas benéficas no tratamento, por esse tipo de meios, de uma série de lesões do sistema nervoso. Nós nos interessamos antes pelo testemunho do sujeito mesmo dessa pesquisa. Esse testemunho visa, com efeito, nos parece, ao horizonte que é aquele do sujeito das tecnociências de nosso tempo.
Quando de sua recente passagem por Barcelona, Kevin Warwick testemunhou suas experiências. Ele conseguiu, dizia, conectar seu cérebro a um computador, situado em New York, e enviar impulsos, através da internet, a um braço robótico situado em seu laboratório na Inglaterra. Ele conseguiu mover esse braço, e mesmo “senti-lo”, como se fosse seu próprio braço. Mais ainda, no curso dessa experiência — que implica já um certo grau de despersonalização e de corpo despedaçado — ele conseguiu conectar, sempre pela internet, seu próprio sistema nervoso, sua própria rede neuronal, à de sua mulher. Ele tinha a ideia de poder comunicar-se com ela sem ter necessidade de falar. “Nosso corpo é apenas um entrave para nosso cérebro” (WARWICK, 2012), dizia. O paradoxo lógico, suposto por essa afirmação — tomar o cérebro como uma parte separada e mesmo diferente do próprio corpo — não constitui então, aqui, uma barreira à tentativa de escrever a relação sexual no real. O corpo despedaçado do sujeito da ciência poderá sempre pensar em se recompor no espaço virtual com o Outro, na medida em que ele, ou ela, poderá encarnar ou fazer semblante de um Outro gozo sempre possível.
Ainda assim, essas conexões não parecem ter resolvido um certo número de problemas entre o Sr. Warwick e sua mulher, problemas de identidade sexual e de comunicação, os quais ele não hesita em testemunhar. Irena, sua mulher, queixava-se de não ser suficientemente escutada por ele. Ele então conectou seu próprio sistema nervoso à mão de sua mulher. E, assim, quando ela mexia seu braço, ele recebia os impulsos em seu próprio cérebro. Ele sonhava realizar o sonho de Samuel Morse, o inventor do famoso código Morse: “enviar sinais de um cérebro a outro” de maneira direta, prescindindo de outros meios hardware. Mas o Sr. Warwick encontrou um obstáculo em sua empreitada, que parece ser a causa última de seu fracasso. Segundo seus próprios termos, ele encontrou “a barreira” da “arcaica linguagem humana” porque, se “os neurônios são conectados on-line por impulsos eletroquímicos, para chegar de um sujeito a outro, eles devem ainda necessariamente passar pela arcaica linguagem humana”. A linguagem, instrumento que deveria ser um meio de comunicação, se torna assim a última barreira ao estabelecimento possível de uma comunicação direta, e a causa principal de não comunicação, de não relação. A experiência do Sr. Warwick se choca então com a linguagem, como a um distúrbio do real, e que dá conta de um gozo inútil aos fins da comunicação. “Se se compara a linguagem com a transmissão instantânea e precisa da rede neuronal, ela se apresenta como um código muito ambíguo e impreciso.” Falar é apenas uma maneira “lenta e primitiva de emissão e de recepção de ondas sonoras!”
A linguagem, segundo K. Warwick, é, então, finalmente, um entrave, uma espécie de doença, uma doença mesmo um pouco arcaica, um vírus que faz intrusão no corpo, um entrave no real.
Um Novo Real
O Sr. Warwick tem razão. Lacan, na última parte de seu ensino, notadamente em seu Seminário XXIII, O sinthoma — 20 anos após seu seminário As psicoses, ao qual nos referimos antes — era da mesma opinião: “A questão é antes de saber porque um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (LACAN, 1975-1976/2007, p.92). E o sujeito psicótico é sem dúvida o mais indicado para apreendê-lo, tal como James Joyce pôde testemunhar. Foi justamente a experiência de escrita de James Joyce que mostrou a Lacan que não existem distúrbios de linguagem propriamente ditos, mas que a linguagem ela mesma é o distúrbio, um distúrbio do qual se pode, no melhor dos casos, fazer um sinthoma, uma maneira de gozar singular do sujeito.
É porque a linguagem, ela mesma, é um distúrbio do real, que podemos, aliás, sustentar que todo mundo delira. A linguagem, e o equívoco significante, introduzindo um abismo no real, uma dimensão do ser falante que o faz também sujeito de gozo, um gozo tão irredutível quanto a linguagem mesma. Se uma certa tecnociência anseia ainda por um real que seria curado do distúrbio da linguagem, a psicanálise mostra o incurável desse distúrbio no ser falante.
Na época Geek da tecnociência, há, então, ao menos, uma objeção ao ideal de um apagamento possível do distúrbio da linguagem da superfície da Terra. É a objeção do sujeito psicótico, que tenta fazer com a linguagem um sinthoma para acreditar nela de modo radical, como o indicava Éric Laurent (2013) na intervenção que inaugurou a preparação deste Congresso.
Em seguimento ao ensino de Lacan, nossa pesquisa concerne precisamente ao abismo introduzido no real pelo fato da linguagem, pelo fato do ser falante. Considerado com os instrumentos da psicanálise, à luz do sinthoma, o abismo implica a existência de um novo real, que nós não podemos conceber de maneira objetiva na medida mesma em que nós habitamos esse abismo. Há uma impossibilidade inerente a esse novo real, o qual a ciência não pode levar em conta, na medida em que ela se funda na foraclusão, no esquecimento mais absoluto desse abismo.
É a esse novo real que somos confrontados na perspectiva do próximo Congresso da AMP, que tem o título, tão promissor para a psicanálise, “Um real para o século XXI”.
Tradução: Márcia Mezêncio
Revisão da tradução: Jorge Pimenta
(1) Diz-se de pessoas “fissuradas” pelas tecnologias modernas dos aparelhos eletrônicos. Segundo a Wikipédia, os Geeks, ou Nerds, em geral, sofrem de neofilia (atração por tudo aquilo que é novidade). (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Geek. Acesso em: março de 2014).
Referências
LACAN, J. (1955-1956). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de janeiro: Zahar, 2007.
LAURENT, É. La psychose ou la croyance radicale au symptôme. Mental, Bruxelles, n.29, février 2013, p.65-74.
SEGLAS, J. “Première leçon, des hallucinations”, In: Leçons cliniques sur les maladies mentales et nerveuses. Paris: Asselin et Houzeau, 1985.
WARWICK, K. Entrevista ao jornal La Vanguardia de Barcelona, 19 de novembro de 2012. Project Cyborg. Disponível em: http://www.kevinwarwick.com. Acesso em: março de 2014.
Miquel Bassols
Psicanalista, Membro da ELP – Escuela Lacaniana de Psicoanálisis, da ECF, NLS e AMP E-mail: m.bassols@ilimit.es
O Corpo E O Outro
SANDRA ESPINHA
Segundo J.-A. Miller, “uma orientação da psicanálise para o real encontra, primeiramente, não o inconsciente, mas o sintoma” (MILLER, 2008, p.74).
C onsiderar o sintoma como o real da experiência psicanalítica, que nos levaria para além do inconsciente como produtor de sentido, é tomá-lo como um modo de gozo. Para Miller, o sintoma-gozo, tal como Lacan o elabora em seu último ensino, pode ser um nome para esse mais além do inconsciente (MILLER, 2008). Como um modo de gozo, o sintoma faz com que o corpo vivo seja introduzido no ensino de Lacan com o conceito de falasser, termo que reúne o sujeito e o corpo e estabelece uma nova versão lacaniana do significante, não apenas como o que mortifica o gozo do corpo, mas como um real, um condensador de gozo, que coloca em questão uma causa. “O significante é causa do gozo” (LACAN, 1972-1973/1985, p.36) que vivifica o corpo.
De mensagem endereçada ao Outro, a mensagem cifrada, cujo destinatário é o próprio sujeito, no monólogo autístico de seu gozo, o que passa a ser a referência do sintoma é uma cifra de gozo que não inclui o Outro. Segundo Miller (2008), essa nova articulação lacaniana entre o sintoma e o gozo constitui um retorno de Lacan ao Freud que aborda o inconsciente em sua articulação com a pulsão, que “quer gozar e goza de maneira derivada”.
De acordo com Miller:
O que é real no sintoma é o que serve ao gozo. Que isso fale, que seja uma mensagem, que se decifre, não está no mesmo nível daquilo para o que ele serve. Pois bem, eu digo que é este tormento, situado neste lugar, o que define hoje o que é ser lacaniano (MILLER, 2008, p.51).
O sintoma como o que serve ao gozo “vem do real” (LACAN, 1974/2011, p.17), o que não quer dizer que ele se oponha ao significante. Ele é, antes, o que aponta para o vazio inaugurado pelo encontro material da linguagem com o corpo como suporte de um “se gozar” (MILLER, 2004, p.48).
A s primeiras teorizações sobre o corpo no ensino de Lacan apresentam um corpo pensado a partir da vertente mortificante do significante. Se há gozo, como efeito do significante, este é um gozo residual, o gozo do mais-de-gozar (a), que se articula, na fantasia, como um suplemento de vida, ao sujeito já morto do significante (S/).
S/ a
É em torno do Seminário 20 que Lacan passa a privilegiar o efeito de gozo do significante sobre seu efeito mortificante. Ele vai chamar de sinthoma a incidência de gozo que o significante tem sobre o corpo, para além da fantasia. O saber do inconsciente trabalha para produzir gozo. Ele não é simplesmente uma estrutura, mas um funcionamento.
Aqui, o gozo não conhece oposição e está por todas as partes. Lacan faz dele uma outra satisfação, a satisfação do blá-blá-blá, que liga significante e corpo. Afirma-se que “não há gozo do corpo senão pelo significante, e há gozo do significante somente porque o ser da significância está enraizado no gozo do corpo” (MILLER, 2008, p.389). É nessa perspectiva que Lacan vai dizer que: “O inconsciente é que o ser, falando, goze e […] não queira saber de mais nada.”
A colocação, em primeiro plano, do efeito de gozo do significante privilegia o significante sozinho, o S1, em seus efeitos de afeto sobre o corpo. O enfoque é a conexão direta entre o corpo e a linguagem, a partir do qual o sintoma é pensado menos como o que integra a pulsão em um esquema de comunicação e mais como o que veicula uma cifra de gozo que “se basta” (LACAN, 1962-1963/2005), que não inclui o Outro, e cujo destinatário é o próprio sujeito.
É com o conceito de lalíngua que Lacan nos apresenta um simbólico desarticulado do Outro e referido ao Um do gozo, que fala para si próprio com a pulsão. No lugar do Outro que não existe, Lacan parte da evidência de que “há o gozo” como propriedade de um corpo vivo e que fala. “O inconsciente não é simplesmente ser não sabido.” O inconsciente consiste em gozar de um saber sem que seja necessário “saber que se sabe para gozar de um saber” (LACAN, 1975/1998, p.9)
A substituição da verdade pelo gozo implica a substituição da linguagem pela lalíngua. A ordem simbólica é substituída por um simbólico cuja característica não é o traço diferencial do significante, mas o buraco que ele faz no seu encontro traumático com o corpo. Na vertente da verdade e da linguagem, o sintoma é uma formação do inconsciente, que se decifra e faz sentido. Na vertente do gozo e de lalíngua, o sintoma é um nome para um inconsciente real, não analisável, que não trabalha para o sentido, mas para o gozo. Na lalíngua, a “linguagem é o real” (MILLER, 2011, s/p) ela se reduz à sua matéria significante, à letra, e não se presta à decifração. Aqui, o sentido do sintoma é o real (LACAN, 1974/2011), ou seja, o sentido do sintoma é o sem sentido do gozo. O real do gozo é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá (MILLER, 2011) pelo sintoma.
O inconsciente real é “o inconsciente como o impossível de suportar. […] o que é buraco (trou), o que é excesso (trop), o que é tropmatisme ou troumatisme” (MILLER, 2013, p.9). O falasser é diretamente confrontado com o real, sem a interposição do significante. No real de lalíngua, o Outro não é o Outro com o qual o sujeito tem uma relação significante, mas o Outro representado por um corpo vivo e sexuado. Nesse nível, não há relação significante (MILLER, 2008). No nível sexual, a relação passa pelo gozo do corpo, e o Outro é um sintoma do falasser, seu meio de gozo. No sintoma, goza-se do corpo do Outro, entendendo-se por corpo do Outro o corpo próprio, em sua dimensão de alteridade, e o corpo do próximo como um meio de gozo do corpo próprio (MILLER, 2008).
É a esse real de lalíngua e do gozo sexual que a criança é, primeiramente e de maneira bruta, confrontada. Mesmo que ela nasça em um banho de linguagem, a criança recém-nascida ainda não a tem à sua disposição, ela ainda não pode fazer uso do significante. A linguagem intervém sempre sob a forma desse real que é lalíngua (LACAN, 1975/1998). E é no confronto com esse conjunto dos equívocos da língua, nesse “motérialisme, que reside a tomada do inconsciente” (LACAN, 1975/1998, p.10). A criança apreende os significantes em sua materialidade, a fim de gozar ao nível do som ou de escutar um sentido diferente da intenção de significação emitida pelo Outro. O gozo do balbucio é um primeiro tratamento do real pela lalíngua, em que não se está no querer dizer, mas no querer gozar (MILLER, 1996/1998, p. 74).
Progressivamente, esse gozo autístico de lalíngua vai sendo substituído pelo gozo do significante, e a criança se curva à autoridade superior da linguagem. O Outro da linguagem substitui o Um sozinho de lalíngua, e, nessa passagem, dá-se o encontro da criança com a castração do Outro, com o desejo da mãe, que a confronta com o real do sexo como um impossível concernente ao gozo. A passagem de lalíngua para a linguagem implica que a criança se deixe dividir pelos significantes e sofra uma perda de gozo. Com a entrada na linguagem, o inconsciente se forma para cifrar o gozo de lalíngua, que resta com um real que escapa à articulação significante. O inconsciente se forma como “um saber-fazer com lalíngua” e torna-se “o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser falante” (LACAN, 1972-1973/1985, p.190). É a partir desse gozo interdito de lalíngua — gozo sexual — que, tendo-se entrado na linguagem, os sintomas necessariamente se formam.
Na “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Lacan afirma que a infância é uma época decisiva, na medida em que é nela “que se cristaliza, para a criança, o que se deve chamar por seu nome, a saber, os sintomas” (LACAN, 1975/1998, p.9). Lacan esclarece que, se os sintomas têm um sentido, como formulou Freud, este só pode ser interpretado corretamente em função das primeiras experiências do sujeito, isto é, a partir do encontro da criança com o que ele vai chamar, “na falta de poder dizer nem mais, nem melhor”, de “realidade sexual” (LACAN, 1975/1998, p.10), no que esta se especifica, no homem, “pelo fato de que não há, entre macho e fêmea, nenhuma relação instintiva” (LACAN, 1975/1998, p.11). Para a criança, o encontro com o real do sexo se dá pela incidência de um “primeiro gozar”, que lhe é desconhecido e que se apresenta como exterior a ela.
Lacan retoma o caso Hans para assinalar que é o encontro com sua própria ereção, experimentada como “o que há de mais hetero”, que está “no princípio de sua fobia” (LACAN, 1975/1998, p.10). O sintoma fóbico de Hans é a expressão do medo que suas próprias ereções lhe inspiram, no que esse gozo real separa seu pênis da unidade semântica de seu corpo e o confronta com uma hiância no saber. Sua significação é a recusa da questão que ele tem que enfrentar encarnada nesse objeto externo, elevado à dignidade de significante, que é “o cavalo que relincha, que dá coices, que salta, que cai no chão” (LACAN, 1975/1998, p.10), e que exprime o que acontece em seu corpo. É do gozo estrangeiro do seu órgão, encarnado nesse significante, que Hans tem medo. Seu sintoma é uma invenção, que amarra um gozo extraído do corpo a um elemento de sua lalíngua. Ele vem no lugar da causa do medo, como Hans afirma, ao dizer que pegou a sua besteira “por causa do cavalo”. A causa da hiância encontrada por Hans é atribuída à mordida do cavalo, signo da mordida da mãe (MILLER, 1997). É como o seu saber inconsciente interpreta a castração e veicula, pelo viés do sintoma fóbico, o gozo cifrado de lalíngua. Com sua fobia, Hans encontra uma solução simbólica para separar-se desse gozo, não sem conservar, na “mancha negra” do focinho do cavalo, os vestígios de sua angústia. O significante se introduz como um “aparelho de gozo” que traduz o gozo de lalíngua com uma significação que reestrutura, para Hans, o campo da realidade. Ao transformar a angústia em medo localizado, essa nomeação faz a “coalescência da realidade sexual e da linguagem” (LACAN, 1975/1998, p.11)
O sintoma é essa resposta ao encontro sempre traumático do sujeito com a sexualidade, no que esta faz valer, para cada um, desde as primeiras experiências, uma antinomia entre o sentido e o real. O sintoma se constitui a partir de um núcleo de gozo que remete a um real excluído do sentido, impossível de ser capturado ou dominado pelo saber. Aquém do sentido, ele está condicionado pelo sem sentido do gozo de lalíngua. O sintoma inclui essa relação ao real do buraco no saber e a invenção de saber que tenta preencher esse buraco.
O inconsciente feito de lalíngua é o inconsciente sujeito, que aparece e desaparece, cuja estrutura é a do “um da fenda, do traço, da ruptura” (LACAN, 1964/1985, p.30). É o inconsciente definido como algo de não realizado, “que quer se realizar” e que se apresenta como uma invenção, um achado, uma solução (LACAN, 1964/1985, p.30). É a partir desse sujeito suposto ao saber inconsciente que Lacan situa a transferência como o que faz ex-sistir o inconsciente como uma invenção de saber.
Inventar o inconsciente, que é a invenção mesma da psicanálise, é fazer com que, desse não realizado, dessa suposição, um saber se realize. Inventar o inconsciente implica supor um sentido ao sintoma sob a forma de um saber alojado no analista, isto é, é fazer com que nem tudo se passe no inconsciente real, sem o Outro (HOLVOET, 2010). O recurso ao sentido, como resposta ao gozo enigmático do sintoma, implica supor que o gozo é saber cifrado que se decifra.
O encontro com o analista oferece à criança a possibilidade de aceder ao saber inconsciente e reduzir a dimensão traumática de sua existência. O encontro de Hans com Freud, que lhe comunica o que seu inconsciente já havia interpretado, traduzindo “medo de cavalo” por “medo do pai”, abre-lhe um espaço de palavra que permite que ele invente uma ficção excepcional, por meio da qual ele constrói um objeto destacável do corpo, que o dispensa de sua fobia. Hans se separa do gozo veiculado pelo significante cavalo, que se repetia sem conseguir representá-lo e que o aprisionava nos limites estreitos que seu sintoma lhe impunha. A extração desse objeto é feita com os elementos de sua lalíngua. Em torno do significante cavalo, Hans desenvolve “todas as permutações possíveis de um número limitado de significantes”, por meio das quais a conversão da mordida do cavalo em desmontagem da banheira representa o declínio da mãe como uma potência opaca, ameaçadora e sem lei. A ficção da banheira dá um lugar a Hans e constitui uma solução que o separa do gozo mortífero de sua fobia.
As elaborações do último ensino de Lacan sobre o sintoma como um modo de gozo constituem um esforço para instalar o sentido no real (MILLER, 2008). O gozo do sintoma, no que ele supõe o silêncio da pulsão, coloca a questão do papel da interpretação. Para além do inconsciente como produtor de sentido, o modo de interpretação é, antes, um desarranjo do bom ordenamento do sentido. Nesse nível, o fundamento da interpretação está na materialidade do significante, no equívoco, no não senso, no corte que reconduz o sujeito à opacidade de seu gozo, ou seja, que intervém no nível do inconsciente como colocação em jogo da pulsão (LACADÉE, 2003).
Referências
HOLVOET, D. “Conditions actuelles du traumatisme”, Scripta documents: traumatisme et symptôme dans l’enfance, Publicação da Escola da Causa Freudiana, ACF – Envers de Paris, p.7-16.
LACADÉE, P. “La realité de l’inconscient e l’act analitique”, In: La malentendu de l’enfant. France: Payot Lausanne, 2003, p.283–295.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1974). “A terceira”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.62, 2011, p.11–36.
LACAN, J. (1975). “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.23, 1998, p.6-16.
MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.41, 2004, p.7-67.
MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2008.
MILLER, J.-A. (1996)”Monólogo da Apparola”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia. N.23, 1998, p. 68-76.
MILLER, J.-A. (2011) “Ler um sintoma”: Blog amp. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com.br/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html. Acesso em: 15/03/2014.
MILLER, J.-A. “O falo barrado”, In: Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.457-475.
MILLER, J.-A. “Préface”, In: L’inconsciente de l’enfant. Paris: Navarin, 2013, p.9-12.
Sandra Espinha
Psicóloga, Analista praticante, Membro da EBP. E-mail: sandra_espinha@uol.com.br
Almanaque On-Line Entrevista
CARTEL CLÍNICA DO TESTEMUNHO
Almanaque on-line entrevista os integrantes do Cartel “Clínica do Testemunho”: Jorge Pimenta, Lucíola Macêdo, Maria Clara Pêgo, Simone Pinho Ribeiro e Guillermo Belaga(1) (mais-um).
Guillermo Belaga, em seu texto “Incidências da psicanálise nos dispositivos públicos”, publicado nesta edição do Almanaque on-line, afirma que, além do trauma inicial, metaforizado na história da psicanálise como trauma de nascimento (que configuraria a entrada no tempo, no mundo do Outro, no mundo da linguagem), se faz presente também o trauma como acontecimento, nas contingências de uma vida, irrompendo nas representações simbólicas que sustentaram o sujeito até aquele momento, provocando-lhe a angústia generalizada.
Em seguida, ao comentar a apresentação, por Daniel Riquelme, do atendimento de um caso relacionado às violações de direitos vivenciadas durante a tragédia da ditadura militar na Argentina, Belaga reflete sobre o modo como a psicanálise se situa para operar frente a um vazio subjetivo, consequência de um trauma individual e social. Ao comentar a assistência que algumas instituições oferecem ao sujeito que foi afetado pela repressão e terrorismo político na Argentina, Belaga nos alerta para o risco da lógica do asilo e da proteção, o que não possibilitaria uma mudança em sua posição subjetiva.
No Brasil, o golpe militar, trauma histórico, completa 50 anos em abril. Entre outras ações de reparação das perseguições e torturas perpetradas pelos aparelhos repressivos da ditadura, há uma proposta do Ministério da Justiça, que são as chamadas “Clínicas do testemunho”. Entrevistamos os integrantes do cartel assim nomeado, inscrito na EBP, que está trabalhando a articulação teórica entre os conceitos de acontecimento, trauma, memória e reparação e a possibilidade de oferta de atendimento psicanalítico a vítimas e familiares.
1. O Que São As Clínicas Do Testemunho? Como E Por Que Se Constituiu O Cartel? Quais Os Temas E Como Se Articulam?
Jorge Pimenta: Clínica do Testemunho é um dispositivo de atenção psicológica às vítimas da ditadura civil-militar que teve lugar no Brasil entre 1964 e 1985. Trata-se de proposta da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (MJ), constante do programa de reparação que o Estado Brasileiro definiu a partir de exigências da sociedade civil organizada. O programa está voltado a todos aqueles que foram perseguidos pelo regime ditatorial. O MJ, através da Comissão de Anistia, já mantém um programa de reparação econômica a perseguidos que perderam seus empregos em instituições públicas ou privadas, quando tiveram que sair exilados do Brasil ou se encontravam presos, já que muitos foram demitidos e mesmo expulsos do trabalho. A proposta da Clínica do Testemunho traz uma inovação, pois, além de ser um programa de atenção psicológica aos perseguidos, também aí inclui o atendimento de seus familiares. Em edital público, o MJ escolheu, primeiramente, quatro projetos (dois em São Paulo, um no Rio de Janeiro, um em Porto Alegre e outro em Recife) que estão atendendo vítimas e ainda preparando e capacitando profissionais para atuar nessa atividade. Investe-se em construção de estratégias de resposta e reparação de danos. Essa é uma iniciativa já conhecida em outros países da América Latina, como Argentina e Chile, nações que, como Brasil, Uruguai e Paraguai, passaram por terríveis experiências de ditaduras civis-militares que cometeram atos de lesa-humanidade, como extermínios, torturas, prisões, exílios e violências diversas a cidadãos que ousavam dispor de sua liberdade de opinião e expressão.
O cartel Clínica do Testemunho se constituiu ao pensarmos e propormos que o tema trauma e seu tratamento é um assunto presente desde a criação da psicanálise por Freud. Para nós, o Cartel trata de um tema que tem contornos políticos importantes, toca a clínica psicanalítica em seu âmago e dialoga com o tempo presente. A questão ética que nos mobiliza é a mesma que Lacan nos propôs: a de que o analista tem de se haver com seu lugar e sua época. Queremos trabalhar a questão do testemunho e seu tratamento clínico a partir de experiências de determinados sujeitos com o trauma que lhes adveio com prisões, torturas, assassinatos e desaparecimento de familiares, exílios políticos, perda de empregos e violências diversas.
A investigação no Cartel centra-se nas seguintes questões:
– é possível uma narrativa do inenarrável do real traumático?
– o que fazer com um resto que ainda insiste e insistirá sempre?
– o que é possível e o que não é possível esquecer?
– esquecer, elaborar, sintomatizar?
– como tratar o tema da transmissão intergeracional do trauma?
– o que fazer com a questão da herança pelo esquecimento?
O meu tema específico é “O indizível do trauma”.
Lucíola Macêdo: Meu tema é “Testemunho e escrita do trauma”. A escolha desse tema se articula a uma pesquisa em curso, a partir da qual tenho investigado de que modo, no contexto da Segunda Guerra Mundial e do pós-guerra, o escritor Primo Levi encontrou-se com os limites da representação e com o caráter lacunar do testemunho. De quais recursos de linguagem se serviu para enfrentar a ilegibilidade e a opacidade da experiência traumática.
Simone Pinho Ribeiro: O cartel se constituiu a partir de nosso interesse em comum sobre o tema. Cada um de nós possui pesquisas anteriores ou em andamento que tocam de perto a questão do testemunho. No meu caso, trabalhei alguns anos com o tema “Psicanálise e campo de concentração”, que veio a resultar em uma Dissertação de Mestrado. Meu tema inicial no cartel era “O testemunho e o feminino”, mas ele anda um tanto claudicante. Venho rondando um novo tema, que se articula ao tema de Jorge e Clara e que concerne ao silêncio.
Maria Clara Pêgo: As Clínicas do Testemunho são voltadas para o atendimento de pessoas que foram torturadas durante a ditadura militar.
Também o testemunho público dado por estas pessoas, fora do consultório, faz parte das ações estimuladas pelo projeto das Clínicas do Testemunho.
O cartel se faz necessário para que cada um dos participantes possa trabalhar individualmente o tema da tortura e suas consequências traumáticas para o psiquismo humano.
Meu tema é “O trauma e o Silêncio”. O de Guillermo é “o analista ‘trauma’ e o traumático: tática, estratégia, política”.
O enfoque o trauma e do testemunho serão relevantes e articularão os temas individuais.
2. O Tema De Trabalho Lançado Para A Sessão Clínica Do IPSM-MG Para Este Ano Conjuga Os Conceitos De Trauma E Real, Destacando Que O Acontecimento Traumático Introduz Um Antes E Um Depois, Uma Ruptura. A Pergunta Dirigida Aos Núcleos De Pesquisa Interroga Os Praticantes Da Psicanálise Sobre As Incidências Do Trauma, “Pedaços De Real” Que Irrompem Em Sua Prática. O Que Vocês Consideram Que Seja O Trauma Na Experiência Pessoal E Profissional De Vocês? Com Que Referências Conceituais Vocês Estão Trabalhando?
Lucíola Macêdo: Farei um recorte levando em consideração o tema geral que nos coloca a trabalho no cartel: o trauma de 64. Parece-me que o que se atualiza do trauma de 64, e daí toda a pertinência das políticas de reparação — e, na esteira dessas políticas, as Clínicas dos Testemunhos — tenha-se dado principalmente em função do silêncio que se criou em torno do desaparecimento de pessoas e das práticas de tortura perpetradas no Brasil nessa ocasião. Nada foi dito e/ou investigado pós-golpe. Uma grande sombra de silêncio instalou-se não apenas durante a ditadura militar, como também após o restabelecimento da democracia em nosso país. Estamos no horizonte de uma das formas de negacionismo: a negação do trauma. O traumático, nesse caso específico, não se encontra apenas no encontro com o horror e suas marcas indeléveis, mas, sobretudo, na construção de traços factícios e falsas pistas (veja-se o caso do deputado Rubens Paiva, recentemente investigado e esclarecido pela Comissão Nacional da Verdade) a fim de dissimular os verdadeiros traços e de negar o horror, afirmando, desse modo, que o horror não existe nem nunca existiu.
Jorge Pimenta: Trabalharemos teoricamente a questão a partir de uma bibliografia que retoma a discussão da angústia no Seminário 10 de Lacan, a questão do trauma generalizado e a orientação lacaniana para sua abordagem clínica, discutindo o que chamamos de ação lacaniana a partir da orientação lacaniana proposta por Jacques-Alain Miller, com destaque para a questão da urgência subjetiva, seu manejo, a eficácia e a presença da psicanálise nos dispositivos da cidade, inclusive aqueles fora do “setting clínico” tradicional, que são nossos consultórios e o divã. Ciência e política do trauma, quando se sabe que há uma insistência no trauma que os standards clínicos não atendem: acontecimentos traumáticos, sua memória — qual reparação é possível e o que fazer com o que insiste e a violência sobre os corpos, corações e mentes? É possível haver atravessamentos? O que fazer com a singularidade de algo que é “inominável”, o que restou para esses indivíduos que passaram por essas experiências e o que fazem hoje com isso?
Entendo que esse tema do testemunho é fundamental para a formação do analista, e sua investigação enseja o que alguns colegas já puderam elaborar com seus finais de análises e o passe na Escola de Lacan. Com destaque para o que se poder fazer com os furos, lacunas, que deixam marcas e cicatrizes impossíveis de serem apagadas ou zeradas. Como inventar algo que possa funcionar como um enlaçamento possível, logrando que o sujeito possa obter um sopro vital necessário para continuar vivendo, trabalhando?
Maria Clara Pêgo: Sou ex-presa política e fui muito torturada. Considero que o trauma que sofri está assim entrelaçado:
– a tortura sofrida;
– o falecimento do meu pai, quando estava sob tortura;
– o cumprimento de parte da pena em isolamento de 1 ano, em quartel militar;
– a saída e o retorno ao Brasil, após viver 9 anos na antiga Alemanha Ocidental.
Tanto na minha experiência pessoal como profissional trabalho com os conceitos freudianos de trauma.
3. Na Experiência De Vocês, Em Que Sentido A Psicanálise Contribui Em Relação A Um Trauma Histórico, Inscrito No Coletivo? Ou, Como A Construção De Uma Narração Própria E A Consideração De Uma Singularidade, De Uma Subjetividade, Se Localiza No Campo Das Políticas Públicas, Que Visam Ao Universal E À Recomposição Do Tecido Social?
Simone Pinho Ribeiro: Tentarei enfrentar, de maneira breve, essa pergunta tão abrangente. A noção de trauma encontra-se na origem da psicanálise e é um de seus alicerces. Lidamos com os efeitos de mais de 20 anos de ditadura militar, não apenas em nossa vida cotidiana, mas também em nossa prática diária. Vale lembrar aqui um fato curioso, a psicanálise, no Brasil, começou a ser praticada nos anos 1960, sendo assim, os psicanalistas brasileiros se viram diante dessa questão desde sempre. Seria interessante explorar as possíveis implicações desse fato. Quanto à questão das políticas públicas, no ponto em que elas se ligam à saúde, penso que o universal se refere ao acesso, pois elas visam ao acesso universal aos serviços de saúde. É claro que esse objetivo nunca se concretizou de fato, até hoje. Evidentemente, a ciência, o capital e as normas institucionais e administrativas direcionam as coisas no sentido de uma homogeneização que vai de encontro à psicanálise. Mas é preciso observar que a psicanálise encontra um espaço dentro de algumas instituições muito mais amplo e ferramentas de assistência pública muito mais abrangentes no Brasil de hoje, me parece, do que em alguns países da Europa. A despeito do imensurável inerente à psicanálise e seus resultados, de sua aposta em soluções singulares e, principalmente, de sua ética, a psicanálise acaba por encontrar um lugar dentro de algumas políticas públicas. Lugar esse que, por mais improvável, é esse mesmo que a pergunta coloca, o de possibilitar a construção de uma narração própria e a consideração da singularidade.
Maria Clara Pêgo: Através da ligação da psicanálise com a sociologia e a política podemos inscrever o trauma individual no histórico do coletivo e no contexto universal, permitindo a abertura de políticas públicas de atendimento psicossocial e psicanalítico, como é o caso das Clínicas do Testemunho.
4. O Que Justifica A Presença Da Psicanálise No Campo Da Assistência Aos Traumatizados? Como Transformar O Ato De Retorno À Experiência “Traumática” Em Atravessamento? Este Poderia Ser Um Indicador Do Que Se Pode Esperar Dessa Assistência?
Lucíola Macêdo: Em relação à Clínica do Testemunho, o trabalho analítico é sensível às lacunas, mas também aos possíveis enlaces e quanto à invenção de cada um naquilo que concerne o trauma, a história e a memória. As concepções de trauma e memória em jogo, numa clínica como essa, fazem uma enorme diferença, assim como permitem uma orientação. Os “atravessamentos” não se fazem com a pura e simples rememoração ou lembrança do vivido; eles terão que “se fabricar” por meio de outra modalidade da memória; de uma memória inscrita no corpo — por meio da repetição e também no jogo fundamental da letra em sua iteração, que, fabricando-se, poderá constituir um novo acesso ao real que não estava lá, dentro das caixinhas das lembranças. Em psicanálise, a memória é inseparável do esquecimento, o que significa que seria preciso deslocar o esquecimento no texto, mas sem apagar suas conexões com o real. Assim sendo, o sintoma não seria apenas o arquivo rasurado que conteria a parte esquecida, denegada, foracluída ou censurada da experiência traumática, mas um modo de escrever uma relação inédita com a própria história.
Maria Clara Pêgo: O estudo do trauma, tal qual Freud o fez, justifica a presença da psicanálise no campo da assistência aos traumatizados e penso que o desejo de superação desse trauma (atravessamento) faz-me participar desse cartel, no intuito de colaborar com a assistência a outros traumatizados.
[1] Almanaque on-line agradece a Guillermo Belaga que contribuiu para essa entrevista com texto publicado na rubrica Encontros dessa edição. Texto que provocou a elaboração das questões propostas aos membros do cartel, a quem agradecemos igualmente a contribuição para o tema de trabalhado pelo IPSM-MG, bem como para o registro do evento histórico 50 anos do Golpe Militar, o qual consideramos não ser sem consequências para a prática da psicanálise no Brasil e para os contornos do trauma nos corpos e da violência em nossas cidades.
Crianças À Deriva: Reflexões Sobre A Construção, O Comentário De Casos E A Transmissão Da Psicanálise
JEANNINE NARCISO
No livro A violência: sintoma social da época, encontra-se o tema “desditas da infância”. Desventura é sinônimo da palavra desdita. Há crianças vivendo desventuras em série, que é inclusive o título de uma série de livros infanto juvenis e de um filme.[1] São crianças que vivenciam a infelicidade, a aflição e a falta de sorte. Como comentar casos que trazem esta particularidade?
Miller (2006), no texto A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan, aponta o caminho a percorrer entre o ponto de partida, que é a leitura do caso, e a busca por autores que já escreveram sobre o que é necessário saber para poder escrever um comentário. E vai dizer de duas vertentes do ensino: a investigação e a acumulação. A acumulação é a parte de procurar, nos livros, nos artigos, na internet, o que foi dito pelos que já se referiram ao assunto. E a outra parte é a investigação, a pesquisa, é o buscar, esperar o novo.
A partir do que diz Miller, torna-se importante pensar na pretensão que é comentar um caso. Tendo por certas as palavras de Lacan ao se referir à prática da psicanálise, “pretender, no profissional, ter um domínio de um real que não se presta a ser dominado” pode ser mesmo um “certo pecado” (Miller, 2006, p.19).
Na clínica psicanalítica, a construção, a apresentação e a escrita do caso clínico dão à psicanálise o estatuto de um saber transmissível. Miller vai dizer que, “na transmissão da clínica, devemos dar a primazia ou prevalência ao singular mais que ao geral e ao universal” (Miller, 2006, p.20). Ao privilegiar o caso de uma criança, interessa o detalhe, o que não pode ser generalizado. Não mais acreditar nos sistemas de classificação. O que não quer dizer que eles não existam, pelo contrário, estão presentes no dia a dia de todos nós. Frequentemente, somos convocados a avaliar ou a sermos avaliados.
Na psicanálise, as regras e as classes são o sujeito analisante quem inventa. Segundo Miller, cada analisante assume seu caso em um universal muito particular. Na época do mais, algumas crianças, por já terem passado pelo consultório de vários “psis”, já chegam dizendo que não querem que o que falam seja contado para os pais e que não querem fazer testes. E cada um, como a criança contemporânea que é, também quer dizer: “Não, sou apenas eu, não sou um número, não sou um exemplar” (Miller, 2006, p.21)
Como elaborar e transmitir a clínica no nosso tempo? A indicação que temos e que acontece no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais é que se trata de pensar o diagnóstico como uma arte. “Como uma arte de julgar um caso sem regra e sem classe preestabelecida” (Miller, 2006, p.27) Uma experiência bem diferente da tendência atual estatístico-classificatória que refere o indivíduo a uma classe patológica. O discurso do mestre atual promete construir, com grande eficiência, maneiras tecnológicas de fazer diagnóstico automático.
Em psicanálise, a apresentação de ideias gerais sobre um tema cede lugar ao caso particular. A cada caso apresentado, privilegiamos a decisão que leva a encontrar os princípios que podem orientar a condução: “o tato que cada caso requer”. A experiência permite elaborar o tato. Se, inicialmente, são esperados muitos dados “para concluir sobre a hipotética orientação do tratamento, com o tempo se conclui com menos” (Miller, 2006, p.28)
No Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental, alguns casos comentados não podem ser rigorosamente qualificados de caso clínico. Os casos são discutidos por serem situações de urgência, marcadas pelo excesso, pela violência e que demandam uma atenção. Segundo Viganó (2012), para possibilitar a construção do caso clínico a partir do caso social, é preciso um grupo de trabalho, o grupo de uma prática analítica na qual vários sustentam um desejo de saber visto como o êxito de uma experiência analítica e nomeado de transferência de trabalho.
Nesses casos, Laia (2010) considera que, às vezes, por serem situações relacionadas à violência, deslocam-se para um campo diferente da “psicanálise aplicada à terapêutica”, mas tampouco são da “psicanálise pura”. São considerados “problemas sociais” e, portanto, carregam a expectativa de “readaptação social”. O que exige do analista, presente nas instituições judiciárias, assistenciais e educativas, certo tato, já que não há nesses lugares uma transferência prévia à psicanálise, e muitos dos profissionais que ali trabalham não levam em conta a existência do inconsciente. Portanto, há o risco de fixar o sujeito em um discurso determinista.
Atualmente, um significativo número de crianças é encaminhado pelos programas de referência para a violência sexual e doméstica, para serviços em que trabalham psicanalistas. Muitas vezes, é a mãe quem procura o Outro da nossa época — o hospital, o poder público, para que traduza para ela o que está acontecendo com o filho. No momento em que é escutada, o que conta é a história da sua vida, da sua família e da criança. Na história de muitas crianças, a violência da qual se tornou vítima foi cometida pelo pai.
O relato de vida feito pela mãe mostra que os acidentes na vida da criança começam cedo. São vidas marcadas pela errância, pela dificuldade econômica, pela gravidez indesejada e pelo abandono. A criança chega ao mundo sem a garantia de inscrição no Outro. Segundo Lacadée:
Para um sujeito que chega ao mundo como um corpo, como um corpo vivo que goza, grita e chora, é muito importante encontrar um desejo que se debruce sobre ele e que não seja anônimo. Esse desejo só não é anônimo, quando a maneira como a mãe se refere ao corpo de seu filho, a maneira como ela se ocupa de suas necessidades, inclui um mistério que se chama ‘desejo’ (LACADÉE, 2006, p.68).
Quando a criança destina seu discurso a alguém que a escuta, logo inventa a sua maneira de fazer uso da língua para dizer o que se passa com ela. Assim, pode falar de um pai desajustado, que demonstra aos filhos não saber o que fazer com a vida, que não se apresenta como o agente da interdição sexual. É um adulto que não coloca obstáculo para sua própria satisfação, ao seu direito ao gozo. Assim, na ausência de um adulto que o oriente em direção ao Outro, a criança não “adquire uma certa intuição da situação que lhe é proibida” (LACAN, 1984/2002, p.42) e não consegue conter sua busca pela satisfação pulsional.
Segundo Laurent, a psicanálise pode-se posicionar e transmitir algum saber sobre o real em jogo nessas situações. Como analistas, devemos “dispensar os semblantes propostos à civilização” e sustentar que o “discurso da parentalidade, cortado da particularidade do desejo que produziu a criança, faz parte destes semblantes que recusamos” (LAURENT, 2007, p.278).
pO que a investigação sobre a transferência vai-nos trazer com toda a força é o desejo do analista como aquele que vai contra a “criança generalizada”, vai contra tomar o ser falante como objeto e deixá-lo sem palavra e sem responsabilidade. Ocupando um lugar no discurso analítico, tornamo-nos destinatários do sofrimento da criança, oferecendo-nos como seu complemento a partir do manejo de nosso ato e interpretação.
Por se opor ao discurso da “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p.367), o analista de orientação lacaniana se oferece como destinatário do sofrimento da criança, como seu complemento, como um parceiro. Ou seja, para Castro (2006), pode o psicanalista, a partir do manejo do ato clínico e da interpretação, favorecer a invenção, a construção de um saber que possibilite à criança não mais se submeter a um imperativo de gozo.
Algumas crianças estão à deriva, o seu sofrimento não para de agitar seus corpos. Elas parecem estar sem um destino. Compreende-se, assim, que é na experiência analítica, no momento do surgimento do significante carregado de gozo, que o analista pode manejar seu ato, para que, como sujeito, a criança se reconduza e se ancore, quando necessário, em um bom porto. E, a partir deste porto, cada uma possa partir para novas aventuras, sustentada por um desejo que não seja anônimo (LACAN, 1969/2003, p.373).
(1) “Desventuras em série” nome dado aos 13 livros de aventura pelo autor Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler). No Brasil, a série foi publicada pela Editora Companhia das Letras. Em 2004, foi lançada uma adaptação, para o cinema, de três livros da série.
Referências
CASTRO, H. “Ficções e fixões: ancoragens paternas”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.113-121.
LACADÉE, P. “O uso do nome-do-pai: a ferramenta do pai e a prática analítica”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.34-70.
LACAN, J. (1967). “Alocução sobre as psicoses da criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.361-368.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369-370.
LACAN, J. (1984). Complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.42.
LAIA, S. “Considerações psicanalíticas sobre a violência urbana”, Latusa Digital, Rio de Janeiro, ano 7, n.40-41, mar./jun. 2010.
LAURENT, É. “A criança no avesso das famílias”, In: ALVARENGA, E.; FAVRET, E.; CÁRDENAS, M. H., A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. Terceiro Encontro Americano do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p.20.
MILLER, J.-A. “A arte do diagnóstico: O rouxinol de Lacan”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.15-33.
TELLES, H. “Desditas da infância”, In: MACHADO, O.; DEREZENSKY, E. (Orgs.), A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, 2013, p.272-280.
VIGANÓ, C. “Servir-se do pai além do Édipo”, In: ALKIMIM, W. (Org.), Novas conferências. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p.175.
Jeannine Narciso
Psicanalista, responsável pelo Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental – Montes Claros e Ipatinga. Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail: jannarciso31@gmail.com
Pais E Mães Atuais: A Ciência Como Partenaire
MARIA RITA GUIMARÃES
Seria possível pensar no “atual” dos pais e da maternidade — entendida no sentido mais amplo — sem a presença massiva da ciência? Tentaremos destacar alguns pontos passíveis de nos encaminhar na questão.
O pai que não sabe o que fazer e que recorre ao especialista é o paradigma da paternidade de nossa época, mas, mesmo hoje em dia, tem-se a resposta à pergunta: “o que é um pai?”.
Lacan interroga. “Qu’est-ce qu’un père?” (LACAN, 1957/1994 p.205), e os elementos de resposta que auxiliam sua elaboração são absolutamente atuais. É com uma ilustração “la plus saisissante” que Lacan fala do “X da paternidade”. Trata-se de uma novidade que vem da América do Norte, e seu relato é surpreendente: uma mulher, desde a morte de seu marido, com quem ela tinha um pacto de amor eterno, a cada dez meses, dava à luz um filho do falecido. O congelamento do sêmen, naquela época, era algo absolutamente novo e produzia indagações. Lacan se serve do exemplo para retomar a noção do pai simbólico como sendo o pai morto, mas acrescenta: nesse caso, o pai real é também o pai morto. Naquela data, todavia, o “pai real” se confunde com o pai da realidade, disjunção que Lacan promoverá em seu ensino anos mais tarde. Em 1957, a ilustração permitiu a Lacan realçar a distância entre o que seja a função da procriação e a noção do que é, afinal, um pai.O que Lacan está formulando e que dirá, em 1967, é que o “X da paternidade” é o lugar do pai como vazio, necessário ao cumprimento de sua finalidade; para que opere como função, que é, afinal, a nomeação do desejo. “Que o desejo não seja anônimo”, como disse, em 1969.( LACAN,1969-2003,p.369) Sem dúvida, a questão do desejo e da mediação do nome do pai inquieta Lacan, pois, como disse, “no futuro, se fabricarão filhos diretos de homens de gênio”, e, em consequência de tais fatos, o pai sofreria um golpe em sua palavra de maneira ainda mais radical.
A questão é então saber como, por que via, sob que modo, se inscreverá no psiquismo da criança a palavra do ancestral, da qual a mãe será o único representante e o único veículo. Como é que ela vai fazer falar o ancestral enlatado (LACAN, 1956-1957/1994, p.386).
Hoje em dia, a questão é de ordem enlouquecedora, tal como se pode ler no seminário alemão Der Spiegel em setembro de 2013.(1) Segundo a publicação, o departamento para as crianças e saúde pública recebeu um informe de que “o homem deu à luz em casa.” O homem, um transexual que manteve seus órgãos sexuais femininos, deu à luz “um menino, depois da inseminação artificial”. Porém, requer ser registrado como “pai” no registro civil e não como mãe, “uma demanda que a administração respondeu favoravelmente.” A surpresa do caso não fica por aí: mais que isso, o “pai” da criança “[…] solicita que o sexo do bebê não seja declarado”, demanda que foi recusada. Esse caso recente extrapolou a administração de Berlim, mas não se trata de acontecimento único. Também sob outras modalidades de forçamento executadas através das técnicas da procriação, podem-se encontrar inúmeras ilustrações do sem limite instaurado no campo das relações e identificações dos lugares familiares: o real foi tocado. O preocupante é que, agora, não somente o real do corpo da mulher é tocado, porém, igualmente, o corpo do “novo homem”, efeito da ciência. Podem-se acompanhar as dificuldades colocadas para a justiça e a necessidade de inscrições de novas consideracões jurídicas sobre a figura do pai, e, quase sempre, na urgência. Como foi dito por Éric Laurent, “os comportamentos performativos singulares não cessam de criar perturbações nas categorias do Direito” (LAURENT, 2008, p.15)
Ao comentário da autoridade alemã responsável pelo citado caso: “Em um ou outro momento, esta criança vai descobrir que seu pai é, na realidade, sua mãe” acrescentaremos o imprevisível dos efeitos subjetivos para essa criança, ainda mais sobrecarregada pelo fantasma manifestado por seu pai/mãe de que não lhe fora concedida uma inscrição sexual: gênero neutro, o limbo da indiferenciação.
Éric Laurent nos tem mostrado, em diversos trabalhos, como vão as ficções: sejam as jurídicas, sejam as científicas, não estão feitas para dar conta do ponto real que é a origem subjetiva para cada um. Para utilizar suas palavras, trata-se “da malformação do que foi o encontro falido entre os desejos que, a cada um de nós, nos empurrou ao mundo” (LAURENT, 2008, s/p) A ciência se interessará pelo ponto obscuro da origem humana? Não é certo, já que se baseia pelo princípio da transparência: o pai por ela reconhecido é o pai do DNA, o que é validado pela ficção jurídica. Porém, cada vez mais, nesse campo da filiação, as exigências por novas ficções jurídicas não param. Existe, inclusive, a L’Association Procréation Médicalement Anonyme, que reúne os filhos nascidos de dom de gameta anônimo, mas, igualmente, os doadores. A polêmica discussão a respeito da interdição do conhecimento das origens genéticas divide a justiça, conforme as leis dos países em questão.
Através da Associação, passam, agora, a serem escutadas as primeiras vozes dos filhos do anonimato promovido pela prática de doação de esperma, tal como foi publicado no jornal francês Le Figaro em 09/02/13.
Um jovem de 23 anos, Roussial Clemente, nascido por inseminação artificial com doador anônimo, disse:
Tive problemas para encontrar as semelhanças com meu pai. Durante um passeio à beira d’água, finalmente me disse que ele não era a pessoa que me havia feito. Pulei em seus braços. Foi um choque, mas também um alívio. Antes, eu tinha imaginado uma violação, uma adoção.
Lemos, então, os testemunhos como parte do romance familiar de cada um, tal como Freud nos ensinou e, se falar de pais na atualidade é assunto multifacetado, “em todas estas variações ou criações diversas, distintos discursos vão entrar em conflito sobre o que são o pai ou a mãe nesta ocasião. Mas o que vemos é que ninguém quer ter filhos sem pais” (LAURENT, 2008, p.2)
No entanto, não se está promovendo um retorno da figura do pai, talvez menos na pele do pai edípico do que na pele do pai gozador, na tessitura do saber da medicina da procriação?
L’effet-Mére:[2] Sintoma Moderno
No caso do avanço da ciência no domínio da fertilidade humanam — seja quando nela se oferecem as possibilidades contraceptivas — para que a criança não venha quando ainda não é desejada — seja na oferta de técnicas para que a criança venha quando tudo indica que não virá — fica muito evidente a paixão do saber da ciência. O impossível, segundo se pode ler na literatura das novas tecnologias da reprodução (NTR), pode ser transgredido. Trata-se de um discurso que se opõe à castração.
Essa evidência está nos efeitos que o discurso da ciência promove no sujeito, fazendo surgir, na realidade, na cena mesma da realidade, o que pertence ao âmbito do inconsciente. A respeito da maternidade, Laurent formula a pergunta se é suficiente engravidar-se e dar à luz para se converter em mãe: ainda será necessário desejar o filho. É muito diferente a demanda que se faz a um médico e o desejo de ser mãe, o desejo de mãe. A mulher, na atualidade, encontra uma inscrição como sujeito desejante na resposta “prêt-à-porter” oferecida pela medicina da reprodução. Pode-se dizer que a solução já pronta e oferecida pelas novas tecnologias reprodutivas à problemática da feminilidade cria uma ambígua situação para a mulher contemporânea.
A partir da gestão científica da sexualidade humana, mais claramente, com a possibilidade de uma contracepção segura obtida pelo uso de pílulas e DIU, por exemplo, surge como efeito o desenlace entre a sexualidade e reprodução humana e, entre uma e outra, um tempo infecundo. Como disse Nicole Athéa, se antes a sexualidade era o objeto de interdição, esta se deslocou para a procriação. Trata-se de um discurso vigente cuja difusão ainda se processa. Os programas governamentais de saúde continuam valorizando os procedimentos pedagógicos, educativos, junto aos jovens, como prevenção à gravidez entre adolescentes. Nos tempos atuais, se acontece gravidez na adolescência, ela já é considerada como sintoma: “é num clima de esterilização que começa a vida sexual, com a consequência do medo frequente de ser estéril” (ATHÉA, 1990, p.38).[3]
Se a vida sexual se inicia pela esterilização, como se sabe da possibilidade da fecundidade? Trata-se da “programação” da concepção sustentada pelo voluntarismo e, nesse enquadramento, “ser estéril” para a mulher, para o casal, é não ter o filho no momento em que decidiram tê-lo. Somente nesse momento, portanto, é que se percebe como insustentável a ideia de que a fecundação esteja completamente dominada pelo saber da ciência em colusão com a Vontade. É que, até tal momento, o domínio científico experimentado pelo casal, no ato da contracepção garantida, confere e legitima a crença de que apenas a realidade da ciência se torna causa na procriação humana. Na verdade, a onipotência científica se encarna na palavra do médico, sujeito suposto saber do desejo do paciente. O saber oracular resulta, muitas vezes, em efeitos profundamente nefastos, mas pode ser que o médico nunca se dê conta disso, já que, em geral, não é sua preocupação interessar-se pelo sujeito. Marie-Magdeleine Chatel relata um caso que serve bem como exemplo de como os fatos acontecem.
Uma moça de vinte e três anos chega para uma consulta de rotina: o ginecologista é informado de que ela não utiliza anticoncepcionais seguros; ela sabe ‘tomar cuidado’, nunca engravidou e diz não querer filhos por ora. O médico, ainda assim, parece se surpreender com o fato de que, com uma contracepção tão incerta, ela nunca tenha engravidado: propõe-se a verificar isso. Ele preocupa a moça que, ao mesmo tempo em que não quer filhos, fica angustiada, quer saber se poderá tê-los algum dia, e começa a recear ser estéril. Ela se engaja numa série de exames exploratórios, bem como seu namorado, a quem a coisa repugna. Emitem-se hipóteses pouco significativas, como o muco e as variações do espermograma. Ela se apega a isso, pois teme jamais poder ter filhos. Hoje, está com trinta anos e engajada numa série de FIV. Diversos embriões se formaram graças ao encontro do esperma de seu namorado com um óvulo dela, mas não se implantam. Evidentemente ela se interroga, pois reconhece que nem ela nem o namorado sabem ainda, realmente, se desejam ter um filho. Para ela, é a ideia de impossibilidade de ter filhos que deve ser eliminada. Ela quer fazer a prova da sua fecundidade. E ele, por sua vez, faz tudo isso por ela. Ela se surpreende desejando, caso esteja grávida, ter um aborto espontâneo ou até mesmo fazer uma interrupção voluntária de gravidez (IVG). ‘Mas continua torturada pela angústia’ (CHATEL, 1995, p.90-91).
Nicole Athéa assinala que a sociedade moderna está instalada sob o mito do domínio perfeito da reprodução e que parece impossível voltar e a ele renunciar, renunciar a essa suposta segurança. A autora questiona se não existiria o risco para a sociedade, que, à força de prevenir os riscos da sexualidade, ficaria sujeita à própria desaparição.
Entretanto, a “contracepção segura” e seus efeitos, a maneira como tais efeitos se manifestam (a interpretação da infecundidade produzida via contracepção e, se, finalmente, resulta em uma infertilidade), se bem têm suportes no discurso social, são resultantes de sua incidência na singularidade de cada sujeito. Para a psicanálise, o sintoma tem determinações opacas que se devem à relação do saber com a pulsão. São relações particulares, peculiares ao modo como o sujeito as estabeleceu. Por singularidade de um sujeito compreende-se uma determinação de satisfação pulsional pelo inconsciente. Ao mesmo tempo, essa determinação depende da cultura, dos discursos em vigência na época como vínculos sociais. Se, para a Yerma de Lorca,[4] seu ser desejante pairava em suspenso, no tempo da espera do filho como dom de amor por parte do homem, e, para além disso, se seu desejo e a possibilidade de se identificar como mulher estavam totalmente recobertos pela “corrente maternal”, atualmente, podem-se catalogar os casos nos quais a mulher já não espera o dom do homem na forma de um filho: ao contrário, substitui o homem pela busca do sêmen armazenado pela ciência. Em última instância, em alguns casos, é a ciência o mais novo partenaire da mulher.
Se existem muitas mudanças nas relações das mulheres com os homens a partir das multiplicações das relações sexuais fora da instituição de um laço exclusivo e definitivo, também se fala de feminização mundo. Em tal expressão, não se trata de um problema numérico, de que haja mais mulheres que homens, porém se trata do que, em psicanálise, conhecemos como S de A barrado. Vemos um movimento que vai do universal do nome do pai à inconsistência do S de A barrado, ou seja, vai da consistência do Outro à inconsistência, ao não-todo.
Jacques Alain-Miller refere-se à feminização do mundo como sendo o fato de que as mulheres estão muito à vontade na atualidade porque essa época se caracteriza como “o novo reino do não-todo”, que é o modo de gozo próprio ao feminino, sem limites. O não-todo, situado nas fórmulas da sexuação elaboradas por Lacan, está à direita do universal masculino, em que se localiza a maternidade. É o acontecimento da maternidade que torna disponível para a mulher um significante possível. Não obstante, a maternidade, no enlaçamento da subjetividade contemporânea com o objeto, pode-se apresentar como o novo sintoma para a mulher. Ou, talvez, mais forte, tal como disse Miller, referindo-se à série em que um filho se inscreve para a mulher: “em certo sentido, a maternidade mesma pode ser considerada como formando parte da patologia feminina” (MILLER, 1997, p.9).
(1) Acessível no link: http://www.genethique.org/?q=content/allemagne-les-d%C3%A9rives-de-la-transsexualit%C3%A9.
[2] Conforme título do texto “Um nouveau symptôme de la femme”, de Éric Laurent, publicado na revista L’Âne, s.d.
[3] No original: “c’est dans un climat de stérilisation que commence la vie sexuelle, avec comme conséquence la peur fréquente d’être stérile”.
[4] Yerma é a tragédia da mulher estéril, criada por Federico Garcia Lorca, em 1934, na obra de mesmo nome.
Referências
ATEA, N. “Le magazín des enfants”, In: La stérilité: une entité mal definie. Collectif dirigé par J. Testart. Paris: Éditions François Bourin, 1990, p.38.
CHATEL, M. M. Mal-estar na procriação. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.
DELAISI, G.; VERDIER, P. Enfant de personne. Paris: Éditions Odile Jacob, 1994.
LACAN J., Le Seminaire, livre IV, La relation d’objet, Paris,Éditions du Seuil,1994.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J.( 1969-2003). Nota sobre a criança. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369.
LAURENT, É. El niño como real del delirio familiar. Disponível em: http://www.blogelp.com/index.php/el_nino_como_real_del_delirio_familiar_e. Acesso em 15/03/2014.
LAURENT, É. “Século XXI: não relação globalizada e igualdade dos termos”, Cien Digital, Boletim on-line do Cien Brasil, n.4, Belo Horizonte, jul. 2008, p.13.
LAURENT, É. “Como criar as crianças.” Disponível em
http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/textos/numero3/.pdf, p.2. Acessado em 15/03/2014
MILLER, J.-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes”, Revista de la Cause Freudienne, Paris: Diffusión Navarin, 1997, p.09.
PONTALIS, J. B. “Entretien avec Philippe Ariès”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.19, Paris: Gallimard, 1979, p.12-25.
Maria Rita Guimarães
Maria Rita Guimarães – Psicanalista, membro da EBP/AMP. E-mail: mariarita.guimaraes@gmail.com.
“Os Alicerço Da Terra”: Notas Sobre Ô Fim Do Cem, Fim…
LUCÍOLA FREITAS DE MACÊDO
I.
O delírio e a escrita de Paulo Marques de Oliveira conjugam ciência e religião: um delírio de fundo religioso e cosmológico é aparelhado pelo discurso da ciência, ao modo de um manual explicativo, com vide bula e modo de usar. Ele é, sobretudo, um orador, que não apenas escreve, mas desenha seu discurso. Procede a uma escrita da fala, em uma língua própria, a sua língua fundamental, permeada de neologismos. Em Ô fim do cem, fim… (2011), testemunha sobre seu inconsciente — a céu aberto — e sobre o modo como é habitado pela linguagem. Escrevendo sua fala, vai encontrando, também, como seus escritos atestam, seu modo singular de habitá-la.
Para Deleuze (1997), a psicose e sua linguagem são inseparáveis de um procedimento linguístico. Se, na neurose, navega-se nos mares da significação, nas psicoses, perguntaremos sobre o procedimento linguístico que lhe é específico: o procedimento começa a funcionar quando a relação entre as palavras e as coisas não é mais de designação; quando a relação entre uma proposição e outra não é mais de significação; e quando, por fim, a relação entre uma língua e outra já não será de tradução. É aquilo que manipula as coisas imbricadas nas palavras, e também aquilo que, de uma proposição a outra, constrói toda uma extensão de discursos, de aventuras, de cenas, de personagens e de mecânicas, e também isso que decompõe um estado de língua em outro e com essas ruínas, com esses fragmentos, com esses tições ainda incandescentes, inventa um novo cenário, outra língua. Quando a designação desaparece, quando a comunicação das frases pelo sentido se interrompe, quando o código é abolido, diante do apagamento de alguma dessas dimensões da linguagem: um órgão se erige, um orifício entra em excitação, se erotiza, e um aparelho de linguagem, um procedimento, poderá emergir (FOUCAULT, 2001, p.309-311).
Lanço a vocês a questão: qual é o procedimento de linguagem inventado pelo cientista Paulo Marques de Oliveira?
II.
“Estranhos poemas” é como Michel Foucault designa não o texto, mas a própria vida que o escreveu. Estranhos poemas são os escritores anônimos dos séculos XVII e XVIII visitados por ele nos arquivos de internação do Hospital Geral da Bastilha e nos arquivos da Biblioteca Nacional, aos quais dedica o seu artigo: “A vida dos homens infames” (1999b, p.389-407). O sonho de Foucault era o de, através da beleza e da poesia, do estilo clássico daqueles breves registros, datados de uma época ainda não impregnada pelo tecnicismo dos manuais diagnósticos, restituir a intensidade daquelas vidas, mas, “carente do talento necessário” para fazê-lo, contentou-se em dar voltas em torno delas.
O que encantou Foucault, naqueles escritos, foi sua luminosidade fulgurante, pois que revelam, ao fio da linguagem, um esplendor, uma violência que desmente, aos nossos olhos, a pequenez do caso e a mesquinharia das intenções: as mais lamentáveis vidas são ali descritas, e sua ênfase, que parece convir às vidas mais trágicas. Mas o que se extrai desses escritos é um efeito cômico, uma vez que se apela a todo poder das palavras, à soberania dos céus e da terra, em nome das desgraças as mais corriqueiras. Sua existência se inscreve no abrigo precário dessas palavras, encontradas ao acaso, por alguém inserido na ordem dos discursos e que faz desses estranhos poemas seres de quase ficção.
Foi assim que me senti diante da intensidade cravada na ponta da caneta e da profusão poética do “livro luz”, “o primeiro e derradeiro”, do cientista Paulo Marques de Oliveira. Em sua caprichada caligrafia, na delicadeza das suas ilustrações, experimentei a beleza e o espanto, a emoção, o riso, a surpresa e o calafrio causados pela leitura de seu “livro didático”, “a ensinar o sistema da bateria onde moram as nações, o Senado Federal como guverna, como faz o forno automático produtivo e os anéis de plantio, como trata do gorgulho nos siriais, a germinação dos viventes vertebrados e invertebrados, o modo de fazer a irregação, a medição cúbica de uma lagoa, com faz o plantio da bananeira, como trata do gado, do pasto e o carrapato, os alicerço da terra, a primeira carroça feita por Caim, o mapa da ôca universal, como faz a água transformar em vinho, como faz a caxaça da vida, o pudinho de bom xixi, como faz um prédio de duzentos andares, como Adão e Eva foi germinado, a semente do homem, o que é imjustissa, como faz o parto cem osar cesariano das clínicas, como fazê uma operação de hérnia, cadeira para quem trabalha em escritório, como gera o pinto no ovo, norma de carta para comdolência em falecimento, como faz xuveiro de água morna com lampião” (2011)…
O cientista Paulo Marques de Oliveira, “astrofísico, teólogo, sismografista e profulgenciado”, escreve seu compêndio, esse livro que “é luz do mundo: primeiro e derradeiro”, um “livro didático para todas as gerações”, que irá “brilhar semilhante a estrela da Álva”. À medida que o escreve e o ilustra com esmero, inventa seu procedimento e, com ele, uma ordem para o mundo, com “seus alicerço” e suas leis de funcionamento.
III.
Em 1933, em “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência”, Lacan chama a atenção, pela primeira vez, para a riqueza das produções plásticas e poéticas de sujeitos psicóticos, numa época em que a psicose ainda era amplamente concebida em termos de déficit, pela psiquiatria.
Já em 1955-1956, no Seminário 3, as psicoses, a propósito de Memórias de um doente dos nervos, de D. P. Schreber (1985), é enfático ao afirmar:
[…] se ele é com toda certeza um escritor, não é um poeta… há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa (LACAN, 1955-1956/1985, p.94).
A poesia, continua Lacan, faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, de Proust, ou de Gérard Nerval. Ela consiste na criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo, mas não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber. Ele é habitado certamente por todas as espécies de existências improváveis,
[…] mas cujo caráter significativo é certo, é um dado primeiro, e cuja articulação se torna cada vez mais elaborada à medida que avança seu delírio. Ele é violado, manipulado, transformado, falado de todas as maneiras, é, eu diria, tagarelado (LACAN, 1955-1956/1985, p.94).
Tudo o que ele faz existir é de alguma maneira vazio dele próprio. E adverte:
As produções discursivas que caracterizam o registro das paranoias desenvolvem-se com toda força, aliás, a maior parte do tempo, em produções literárias, no sentido em que literárias quer dizer simplesmente folhas de papel cobertas com escrita… vocês percebam o que falta aqui ao louco, por mais escritor que ele seja, mesmo a esse presidente Schreber que nos fornece uma obra tão surpreendente por seu caráter completo, fechado, pleno, acabado (LACAN, 1955-1956/1985, p.93).
Não haveria, portanto, na obra do escritor louco, o sentimento de uma experiência original na qual ele estaria incluído como sujeito. Seu mundo aparece esvaziado da presença daquele que testemunha. Com as folhas de papel cobertas com escrita, o louco buscaria integrar seu delírio em uma rede de sentidos e significações.
Outro aspecto distintivo entre o escritor louco e o poeta é assinalado por Lacan no Seminário 5, as formações do inconsciente (LACAN, 1957-1958/1999) e diz respeito à utilização das figuras de linguagem, metáfora e metonímia: não encontramos no texto do escritor louco o uso da metáfora, que é, por sua vez, um elemento constante, e mesmo paradigmático do fazer poético. Há uma preponderância da metonímia, das relações de contiguidade em detrimento daquelas de similaridade (LACAN, 1957-1958/1999). Com a abolição da função metafórica, não há intervalo ou substituição de um significante por outro (S1-S2). Sem esse intervalo, não haveria enunciação. Apenas uma chuva de enunciados. Ao invés de o S2 assinalar o sentido produzido no campo do Outro, ele retorna no real, produzindo o efeito e a certeza delirantes, ou então se cola ao S1, produzindo o efeito de holófrase. Tem-se uma série de S1s sem S2. Uma enxurrada de significantes em bloco, não desmembrável, em sequência monolítica e sem intervalos.
IV.
Lacan se interessou pela obra de Joyce porque este lançou mão de um procedimento de escrita que desconsidera completamente a distinção entre o significante e o significado, subvertendo o que se entendia até então por literatura, pois não necessita do recurso à metáfora como paradigma do fazer poético. De acordo com Miller, nesse momento de seu ensino, Lacan se arriscará a tratar a obra de arte, sobretudo a obra escrita, a partir da pulsão, “a partir… da pulsão escritural. Ela deve ser entendida no autoerotismo do falasser” (MILLER, 2011-2012). A ênfase será posta, desde então, em sua vertente econômica e na extração da libido do corpo. A linguagem, nessa vertente, não visa ao sentido. Concerne ao real do corpo de gozo. Miller (2013) explicita, ainda, a propósito das elaborações de Lacan sobre a escrita, o que chama de “teoria da dupla escritura” (MILLER, 2013, p.16): há uma escrita que está ligada à palavra, se constituindo como uma precipitação do significante (em alusão a “Lituraterra”). O que está em jogo, nessa vertente da escrita, é a precipitação do significante fônico, na medida em que o significante pertence à fala; na medida em que o significante é tido como um fenômeno da fonação. A fala é capaz de depositar-se sob a forma de escritura e ser recomposta a partir dessa marca deixada pelo significante. O que se deposita, sob a forma dessa escrita, é isso de que a voz, com suas modulações, é o suporte.
Mas há outra escrita que nada tem a ver com a fala e com a voz. É um puro traço escrito — o desenho. O nó borromeano representado, desenhado, é dessa ordem. No nó, há escritura, mas esta se apresenta desarticulada da voz e da fala portadora de sentido. Essa escritura não vem do significante, não é da ordem da palpitação do significante, e preserva uma autonomia em relação ao simbólico, não se articulando ao sentido. Interroga-se se essa dimensão da escrita não se prestaria ao horizonte do uso, de um uso da escrita que não se prestaria, por sua vez, à representação, mas ao erotismo do sujeito, à sua satisfação pulsional, ao nível do que Miller chamou de pulsão escritural, quando deu o exemplo de Joyce, que escrevia, sobretudo, para si mesmo, e cujo motor da escrita não era um ideal.
Parece-me que a escrita do cientista Paulo Marques de Oliveira, de modo particular, e a escrita cujo motor seja o delírio, de um modo mais amplo, se deem a ler nessa dupla vertente: por um lado, a da precipitação do significante, quando se trata do esforço de constituir, através do delírio, uma rede de sentido; mas, também, aquela de uma pura satisfação pulsional, movida pelo autoerotismo do falasser. De modo que caberia interrogar, acompanhando Lacan em suas elaborações sobre a escrita ao longo de seu ensino, se não se poderia afirmar que, para cada procedimento de escrita, haveria uma poética que lhe é própria.
Ricardo Aquino, diretor e curador do Museu Bispo do Rosário, observara que, ao criar suas obras, Bispo criava a si mesmo, trabalhando sem descanso, movido por uma força pulsional constante, tecendo com os restos e as sobras que encontrava: utilizava moedas, botões, talheres, canecas, potes e produtos utilitários, deslocados de suas funções originais, e, em seguida, catalogava seus produtos, numerando, listando, colocando placas identificadoras. Aquino nomeou o procedimento de Bispo do Rosário de “poética do inventário” (NAHAS, 2011, p.189). A poética do inventário se inscreve, por sua vez, nas poéticas da modernidade, que são poéticas da ruptura.
Mallarmé (1842-1898) inaugura, com o poema “Um lance de dados” (1897), publicado, pela primeira vez, em 1897, na revista Cosmopolis, um novo gênero de poesia: liberado de sua estrutura linear, desprovido de significação final, marcado por inversões sintáticas, pela suspensão do tempo e desprovido de sujeito. Ele abre as portas para uma nova concepção do poema e da poesia (CAMPOS et al., 1974).
Em sua análise da relação entre as palavras e as coisas, Foucault (1999) afirma que, a partir do século XIX, “[…] a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa” (FOUCAULT, 1999, p.61). Surge, a partir de então, uma nova legibilidade. O que era ilegível nas folhas de papel cobertas com escrita ganhará um lugar entre os discursos: as folhas de papel cobertas de escrita do cientista Paulo Marques de Oliveira fizeram-se obra, um livro muito bem editado, além de matéria viva do filme dirigido por Cao Guimarães, do qual acabamos de assistir um fragmento, e objeto de criação da última coleção do estilista mineiro Ronaldo Fraga. Seria possível, depois de tudo, afirmar que o procedimento do cientista Paulo Marques de Oliveira não é poesia?
(1) Texto apresentado por ocasião do Seminário Teórico “A ciência e a escrita do delírio”, no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicose.
Referências:
CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, D. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1980.
DELEUZE, G. Louis Wolfson, ou o procedimento, In: ______. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997, p.17-30.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999a.
FOUCAULT, M. “La vida de los hombres infames”, In: ______. Obras essenciales volumen II. Barcelona: Paidós, 1999b, p.389-407.
FOUCAULT, M. “Sete proposições sobre o sétimo anjo”, In: ______. Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.299-315.
LACAN, J. (1955-56). Seminário 3, as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1957-58). Seminário 5, as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999.
LACAN, J. (1933). “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência”, In: ______. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p.375-380.
MILLER, J.-A. Seminário de Orientação Lacaniana “O ser e o Um”, Lição XIV, 2011 (inédito).
NAHAS, V. “Retrato do artista como louco”, Arteira, Florianópolis, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina, n.4, 2011, p.187-190.
OLIVEIRA, P. M. Ô fim do cem, fim… Belo Horizonte: Vereda, 2011.
Lucíola Freitas De Macêdo
Analista praticante, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, Presidente do Conselho e Diretora de Ensino do IPSM-MG, Doutoranda em Psicanálise e Estudos da Cultura (FAFICH/UFMG). E-mail: luciola.bhe@terra.com.br.
Ver O Circo Pegar Fogo: O Que Você Está Olhando?
BRUNA ALBUQUERQUE
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê as medidas socioeducativas para responsabilizar o adolescente pelo cometimento de um ato infracional. A questão central deste artigo é transmitir que o cumprimento de uma medida socioeducativa passa pelos efeitos de um encontro entre adulto e adolescente. Fazer função de adulto nesse contexto é tarefa atravessada pela necessidade de encarnar o Outro social para o adolescente em um modo de organização contemporâneo do mundo que não favorece tal perspectiva. Lancemos o olhar sobre alguns aspectos que estão em jogo nessa relação.
A reprovação à conduta infracional inscreve uma tensão entre controle (restringir a liberdade) e socioeducação (garantir direitos) que tem na figura do agente de segurança socioeducativo[2] um paradigma. Tomemos então o agente como um dos principais sujeitos que deve haver-se com o lugar de adulto no sistema socioeducativo. Partimos de uma prática institucional[3] que indica a presença de processos de identificação entre adolescente e agente. Acrescentam-se elementos importantes: a escolha por tornar-se agente, às vezes, ancorada numa vontade de ser policial, marcada por um fascínio pelo significante segurança da função, associada a um possível contexto socioeconômico e cultural semelhante. Assim, destacamos uma dimensão fundamental que recobre o desafio de se colocar como adulto — a distinção de lugar — e que se revela de forma explícita nos modos de fala e seus efeitos na execução da medida.
Quem Sou Eu, Quem É O Outro?
Vez por outra, constata-se um modo de falar “igualitário”: agentes e adolescentes falam de maneira semelhante e torna-se difícil distingui-los. Esse falar pode apresentar-se sob a forma de um tipo de comunicação dito “de cadeia” que não parece diferir da fala “do mundão” que é utilizada pelos adolescentes em seu contexto, ou seja, algo do mundão se perpetua na instituição. Tal maneira bruta de se servir da linguagem, marcada por uma fala empobrecida, sem fineza, permeada de jargões e palavrões, certamente favorece uma indistinção de lugar.
Diante do efeito de indistinção, o lugar do agente, na relação com o adolescente, encontra-se numa encruzilhada: “Os agentes não têm proposição socioeducativa, ou eles partem pro pau, ou não fazem nada”, diz um diretor a respeito dos agentes. Não é raro ver que a posição tomada pelo agente pode oscilar entre a “guerra” e o “ver o circo pegar fogo”. Qual seria então a justa distância, o parâmetro que permitiria localizar o lugar do agente? Qual posição para os agentes: estão numa posição de espelho, como agentes do poder, ou numa posição de terceiro que reenvia a um registro assimétrico, ou seja, educativo e submetido à lei?
Desmunidos diante da agressividade e dos insultos dos adolescentes, os agentes podem responder de uma maneira “espelhada”. Como se depreende na fala de um agente com relação a um jovem: “ele me deu um chute, eu dei um chute de volta na bunda dele”. Ou, ainda, na fala de um diretor de segurança sobre o trabalho de sua equipe: “o mais importante é que os agentes não querem fazer o trabalho deles; é totalmente igual, o adolescente diz ‘desgraçado!’ e o agente responde ‘é você!’”.
O que é colocado pelo adolescente lhe é reenviado exatamente da mesma forma. Diante desse “eco”, o adolescente se depara com um duplo de si mesmo, num jogo interminável de espelho que reenvia a um processo marcado pelo registro imaginário e toda a dimensão de alienação e agressividade que lhe é própria. Torna-se difícil distinguir lugares, uma vez que se trata de um reconhecimento imaginário que convoca o pequeno outro, o semelhante, e instaura uma relação de dependência que impede a tomada de responsabilidade de ambos os lados (LEBRUN, 2008). “Olho por olho, dente por dente” também é frequentemente o modo de funcionamento dos próprios adolescentes e se opõe ao processo educativo e civilizatório marcado pela perda inerente ao pacto simbólico.
A distinção de lugar se constitui a partir da maneira de se servir da palavra. A noção de autoridade como algo simbólico articula essa maneira de uso da fala a uma responsabilidade por suas próprias contradições, um engajamento no falar que caracteriza uma posição de adulto com relação à Lei. O adulto, ao contrário da criança, assina aquilo que diz (LACAN, 1953-1954/1998). Onde não há um terreno propício para o surgimento de uma relação de autoridade, quer dizer, um reconhecimento da diferença entre os diversos lugares, a tomada de responsabilidade é colocada em apuros. A posição de adulto é ancorada na construção da diferença que permite a distinção de gerações e instala a responsabilidade de uma geração à outra. Ser adulto diante de um adolescente tem a ver com o modo de se responsabilizar por aquilo que se diz do lugar de sua geração, para ensinar à geração seguinte algo sobre um uso adulto da palavra (DUFOUR, 2007).
A dialética própria ao sujeito pode ser compreendida como uma dialética de identificação (LACAN, 1961-1962). Ao tratarmos da identificação, a alteridade é imediatamente colocada em primeiro plano. Lacan (1961-1962) nos adverte quanto à importância de distinguir a identificação que acontece na relação de um outro a outro daquela, simbólica, que se passa entre outro e Outro.
Em 1921, Freud apresenta o conceito de identificação sistematizado em três categorias. É o segundo tipo de identificação apresentado por Freud (1921/2001) e sua correlação à questão do significante que conduziram Lacan (1961-1962), durante suas investigações a respeito desse processo. Lacan (1964/1973) afirma ter colocado em destaque a segunda forma de identificação para dela poder extrair o traço unário, o fundamento do ideal do eu. É a identificação simbólica, como origem do sujeito, que está em jogo aqui, e o traço unário como a forma mais enxuta para ilustrar a essência do significante. O traço unário pode ser tido como diferença pura, uma vez que é o significante que introduz a diferença no real. O sujeito não surge do idêntico, mas da diferença. Esse tipo de identificação é, ao mesmo tempo, constituição e divisão do sujeito na relação com o grande Outro. A partir da identificação simbólica, concluímos que o sujeito apenas pode surgir de uma passagem pelo grande Outro, na medida em que este é marcado pelo significante. O sujeito depende do significante, e este lhe é dado pelo campo do grande Outro (LACAN, 1964/1973). A constituição do ideal do eu, como instância psíquica, pode ser considerada de importância capital para a inserção no laço social via grande Outro. Quanto à identificação imaginária, passemos ao circo.
Braços Cruzados, Pés Na Parede: Adulto Ou Espectador?
“Braço cruzado, pé na parede”, expressão utilizada para designar aquele agente-vigilante, não faz mais do que sujar as paredes com a planta do pé. A referida posição paralisada nos remete a outra também representativa dos agentes que, diante de situações de conflito, querem apenas “ver o circo pegar fogo”.
Numa unidade socioeducativa recém-inaugurada, havia agentes e adolescentes na quadra de esporte. Os adolescentes começam tranquilamente a destruir o jardim ao lado da quadra e as traves de futebol. Os agentes permanecem com os braços cruzados, olham a destruição, mas não fazem nada. A cena gravada pelas novas câmeras de vigilância da unidade é surpreendente: os agentes completamente imóveis, espectadores do circo.
Sabemos que circo era o local para assistir a corridas e espetáculos na Roma antiga. Significa também tenda ou arena circular na qual se assiste a diversos números: cenas cômicas, acrobacias, magia, apresentações com figuras bizarras como a mulher barbada e números perigosos com facas. Na linguagem familiar, circo pode designar atividade desordenada, agitação e desordem.
O circo nos reenvia a um registro principalmente imaginário. Um registro da fantasia repleto de personagens inusitados: palhaços, animais ferozes, mágicos, homens muito fortes, trapezistas e anões. O desafio e a contestação do limite estão presentes o tempo inteiro. Desafia-se a morte, o tempo, a altura, o medo e frequentemente estamos na dimensão da relação de força. Num mundo preferencialmente imaginário, sonha-se poder fazer e ter tudo o que se quer. Junta-se ao circo o elemento fogo, tão fascinante para o ser humano desde o início de sua existência.
Quando os agentes estão ali para “ver o circo pegar fogo”, prevalece a relação à imagem do semelhante. O registro imaginário é fundamental para a constituição da subjetividade humana, mas tal como os outros registros, não pode funcionar sozinho. Quando o imaginário toma a cena, deparamo-nos com um efeito de “encantamento de espelho”. Um exemplo nos seria dado se pudéssemos conceber a cena do estádio do espelho (LACAN, 1949/1998) sem a presença da mãe. Quer dizer que sem a encarnação do grande Outro que vem autentificar a imagem e introduzir-nos ao registro simbólico, permanecemos alienados no nível da instância imaginária que é o eu e não acessamos a dimensão significante do sujeito. O signo que a criança procura no adulto, no estádio do espelho, é o protótipo de seu ideal do eu, instância simbólica, representativa da identificação ao traço unário, responsável por regular as identificações imaginárias aos outros semelhantes.
Na relação imaginária dual, tomada pela dimensão narcísica aprisionante que não nos leva muito além da relação de força, o acesso à dimensão simbólica que permite o laço está barrado. A questão que está colocada é a impossibilidade de se ver a partir de um ponto de ideal que transcende e sustenta a relação dual. Para Lacan (1964/1973), o ponto do ideal do eu é aquele a partir do qual o sujeito se vê como visto pelo outro.
Para sair do campo do narcisismo e tocar a lógica do significante, campo do sujeito, é preciso se haver com a dimensão da falta. Pode-se estar no registro simbólico exatamente porque há coisas que não se inscrevem que estão justamente fora da lógica significante. Por isso, talvez, a fascinação pelo circo, onde aparentemente não é preciso lidar com a falta e pode-se chegar às últimas consequências. Num espetáculo, pode-se crer, ainda que por instantes, que tudo é possível: desafiar o limite e a morte, voar, desaparecer uma mulher, colocar a cabeça na boca do leão, ser atirado de um canhão e engolir fogo.
Os agentes hipnotizados pela atitude dos jovens que parecem negar a existência do limite tornam-se prisioneiros do espelho, fascinados por uma imagem à qual eles podem até mesmo se identificar: “eu te vejo fazendo aquilo que eu gostaria de fazer no seu lugar”. Por vezes, os próprios agentes parecem precisar de um adulto.
Para Lesourd (2006), todo laço social se constitui a partir da organização das diferenças e da localização dos limites propostos pelos discursos sociais. Ou seja, o Outro social deve propor referenciais de diferenciação que permitam a cada um construir-se subjetivamente. Os discursos organizadores do laço social ordenam a questão da diferença e distinguem lugares. A ausência de delimitação observada pode impedir a distinção necessária para um trabalho educativo. Com Kammerer (2000), concluímos que aquele que faz função de adulto sustenta um lugar de saber algo sobre as questões que atormentam o sujeito adolescente, para transmitir que a realização de seu desejo, exatamente da maneira como ele gostaria, é proibida pela lei.
O trabalho socioeducativo diante de um ato tem a ver com “aprender”[4] ao adolescente o valor da palavra. A partir de uma fala portadora de diferença, que se opõe a uma falação bruta e empobrecida, o adulto transmite que conhece e sustenta seu lugar. Como marcaram os adolescentes franceses:[5] o bom educador é aquele que não é “duas caras”, que respeita a lei da instituição e do país, sem estar totalmente alienado a uma regra de ferro.
(1) Referência à obra de Banksy What are you looking at? e a seu questionamento sobre o uso das câmeras de vigilância e os modos de controle no mundo atual. Neste artigo, abordaremos uma situação captada pelas câmeras instaladas em uma unidade socioeducativa: os agentes olham os adolescentes enquanto são olhados.
(2) Em Minas Gerais, as medidas socioeducativas de internação e semiliberdade (as mais gravosas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) são executadas pela Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE) da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) e contam com a figura e a função do agente de segurança socioeducativo entre os profissionais que trabalham no sistema socioeducativo. Os agentes estão no corpo a corpo cotidiano com os adolescentes.
(3) A autora deste artigo coordenou o Núcleo de Seleção da SUASE (na época SAME) e o processo de construção do perfil do cargo do agente de segurança socioeducativo nos anos 2005 e 2006. Em 2007, respondeu pela Diretoria de Orientação Socioeducativa. Atualmente, é diretora de Gestão da Medida Socioeducativa de Semiliberdade.
(4) Referência ao verbo francês “apprendre” que significa tanto aprender quanto ensinar (fazer saber).
(5) O recorte de um momento de oficina realizado com os adolescentes franceses no Centro Educativo Reforçado (CER) ilustra algo do que está em jogo com relação ao lugar do adulto. Ao mostrarmos fotos e vídeos das medidas socioeducativas em Minas Gerais, o tema que tomou a cena foi “O que é um bom educador?”. Os jovens explicaram que um bom educador é aquele que é justo, aquele que respeita a lei, a lei francesa, as leis do CER, designando com precisão o lugar do educador: tem a ver com respeitar a lei e reconhecer sua função.
Referências
BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Secretaria Especial dos Direitos Humanos; Ministério da Educação, Assessoria de Comunicação Social. Brasília: MEC, ACS, 2005.
DUFOUR, D. R. L’art de réduire les têtes: sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total. Mesnil-sur-l’Éstrée: Éditions Denoël et Société Nouvelle Firmin-Didot, 2007.
FREUD, S. (1920). Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XVIII).
KAMMERER, P. Adolescents dans la violence: médiations éducatives et soins psychiques. Mesnil-sur-l’Éstrée: Éditions Gallimard et Société Nouvelle Firmin-Didot, 2000.
LACAN, J. (1949). “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1953-1954). Le Séminaire, livre I: les écrits techniques de Freud. Paris: Éditions du Seuil, 1998.
LACAN, J. (1961-1962). Le Séminaire l’identification. Inédito. Transcription des séminaires de Lacan. Disponível em: <http://gaogoa.free.fr/SeminaireS.htm>. Acesso em: 12 fev. 2009.
LACAN, J. (1964). Le Séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1973.
LEBRUN, J. P. Clinique de l’institution: ce que peut la psychanalyse pour la vie collective. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érès, 2008.
LESOURD, S. Comment taire le sujet? Des discours aux parlottes libérales. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érès, 2006.
Bruna Albuquerque
Mestre em Psicologia, Psicopatologia e Estudos Psicanalíticos, pela Université de Strasbourg, França. Diretora de Gestão da Medida de Semiliberdade da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE). E-mail: bruquerque@gmail.com
Insensatez Do Corpo E Retalhos Na Carne
CLEYTON ANDRADE
O interesse deste texto é apenas o de tecer alguns comentários sobre o lugar do corpo na toxicomania como forma de manter aberto esse debate. Essa questão não vem marcada por nenhum ineditismo ou novidade, visto que, para nos restringirmos ao campo da literatura psicanalítica, ela remonta às contribuições freudianas. Evitando um recenseamento detalhado, destaco aquele que talvez seja o mais clássico extraído de Freud a respeito da questão. Refiro-me a “O mal-estar na civilização” (1930), em que o uso de drogas é uma das três saídas para o mal-estar, com a particularidade de ser, dentre as demais, a mais eficaz. O que confere tal eficácia e sua consequente condição de solução, segundo Freud, decorre dos efeitos das substâncias químicas sobre o corpo. Podemos extrair daí uma fórmula freudiana para a toxicomania: droga + corpo. Parece simples e ingênua, porém é uma tese que não encontrou até hoje nenhum antagonista à altura.
Ela nos sugere que, mesmo havendo uma infinidade de objetos e significantes intoxicantes, tal como os significantes da cadeia e do discurso, além da inequívoca toxidade da libido e do gozo, eles não bastam para explicar o fenômeno da toxicomania. Essas toxidades generalizadas nos tornam todos, de algum modo, toxicômanos. Porém, ao mesmo tempo, reservam um lugar de independência conceitual não assimilável à proposição “todo mundo é toxicômano”. Bastam significantes, libido e gozo para alguns efeitos tóxicos, mas eles são insuficientes para sustentar a nomeação “eu sou toxicômano”. Nomeação esta que não tem como se manter alheia ou independente da fórmula freudiana da toxicomania — droga + corpo.
A droga e o corpo são as condições mínimas para que se possa pensar esse fenômeno. Qualquer desmembramento eventual poderia resultar em discursos de valor especulativo, sem, contudo, responder à experiência clínica em sentido estrito ou amplo.
Longe de tentar propor uma tipologia clínica para a operação do uso do corpo na toxicomania, minha tentativa, em poucas palavras, é a de pensar que o uso do corpo tal como é feito na psicose pode ajudar a pensar a atualidade das duas faces da fórmula freudiana. Essa atualidade viria, principalmente, orientada pela composição lacaniana do paradigma joyciano para a psicose e para a segunda clínica. Penso que é por essa via aberta por Lacan que podemos manter vivo todo o vigor da junção entre droga e corpo apontada por Freud.
Diversos pacientes não conseguem viver sem drogas e acidentes que deixam expostas facetas da carne viva. Para alguns deles, as drogas e os acidentes compõem suas trajetórias ao longo da vida. Não é incomum que tais acidentes antecedam, histórica e logicamente, o uso de drogas, fazendo com que expressões como ”carne viva”, “detonar”, “destruir”, “rasgar”, “arrancar” apareçam como enxames torrenciais, sendo difícil dizer o que é mais presente nessas histórias: a droga ou a carne.
Após uma série de retalhos na carne, um sujeito[2] se recuperava de um grave acidente que lhe havia rasgado a perna, permanecendo dentro do quarto usando drogas. Um dia, a mãe entra motivada por um forte odor vindo de lá. É quando vê o estado da perna do filho: ela estava “apodrecendo”, “necrosando”. Essa falha no narcisismo, na imagem do corpo, quase lhe custara o membro. Algum tempo depois, uma contingência levou-o a trabalhar numa cozinha, sendo responsável pelo corte e preparo da carne, o que lhe poupou de cortar, rasgar e destruir a própria. Foi desse lugar que ele pôde reenlaçar o que se encontrava desenlaçado.
Houve um tempo em que esperávamos encontrar um elemento da neurose nos casos de toxicomania, mesmo que ao preço de um a menos de consciência implicada nessa empreitada. Era um tempo em que tentávamos fazer da neurose um modo de pensar a toxicomania. Isso, além de representar uma resistência aos pós-freudianos — que identificavam o toxicômano à perversão e à psicose — constituía uma forma de encontrar um sentido freudiano para o sintoma do uso de drogas. Esse empenho foi francamente contido pelo surgimento da noção de novas formas de sintoma, fundamental para as investigações sobre o tema da toxicomania.
Podemos nos perguntar se o risco que corríamos — em alguns momentos — ao adotarmos essa nova e importante perspectiva dos novos sintomas, não produziu como efeito uma noção negativa da toxicomania. A partir da leitura de Lacan, evitávamos a tentação de adotar uma concepção deficitária e negativa da psicose. Entretanto, o risco passaria a ser o de conceber a toxicomania como algo deficitário e negativo em relação ao sintoma, por exemplo. Um breve levantamento de textos de algumas décadas poderia nos acenar com uma percepção da toxicomania como resultado de algo que não se operou na neurose. Da tentativa de aproximação, passou-se a uma leitura quase pelo avesso.
Certa vez, chamou-me a atenção uma observação sagaz feita por Jacques-Alain Miller, ao comentar um caso de alcoolismo em uma mulher: trata-se, dizia ele, não de uma alcóolatra, mas de uma histérica que bebe. Essa distinção me parece, ainda hoje, de uma riqueza clínica peculiar. Ela nos permite separar o alcoolismo da histeria, mesmo que o álcool seja um objeto em comum.
O uso do corpo na toxicomania não passa pela identificação do desejo com possíveis manifestações corporais em que o corpo possa ser confundido com o desejo do Outro, ou com uma oposição a ele. É em virtude de que o alcoolismo de algumas mulheres pode vir a ser relido em termos de uma histérica que bebe, que não podemos nos autorizar a uma interpretação de que o uso do corpo na histeria seja o paradigma para pensar o uso do corpo na toxicomania. Nesse último, o uso não é marcado pela castração do Outro nem por um endereçamento. O corpo da histérica que bebe ainda se faz capturável pela leitura de um texto endereçado ao Outro, inteiramente assimilável ao que Freud transmitiu acerca do sentido do sintoma — mesmo que, de fato, a bebida dificulte tal leitura.
Na toxicomania, o corpo deixa de ser um espaço de leitura para ser reduzido à sua dimensão primária de uso. É verdade que o uso do corpo não é restrito a esses casos. Muito embora eles restrinjam o corpo à sua condição de servidão ao uso. O que a prática da droga evidencia é menos a própria substância do que o uso que se faz do corpo. Por isso, a crackolândia não é uma exposição de corpos decaídos e de modos obscenos de gozar pelas ruas das metrópoles. Eles não estão ali para mostrarem nem o uso da droga nem os corpos. A crackolândia é o novo fenômeno da hierarquia do uso do corpo e, consequentemente, do gozo sobre quaisquer outras formas do desejo. Encontrar ali um sentido regido pela norma fálica é, em última instância, a expectativa de conferir alguma significação a esse real das grandes cidades.
O uso do corpo pelo toxicômano não responde ao princípio da utilidade regida pelo contrato social regulado, por sua vez, pelo Nome-do-Pai. A assinatura do Pai não é reconhecida por aqueles que ali se reúnem. A crackolândia pode ser o exemplo de uma radical inobservância de tais princípios em prol de um uso específico do corpo. Parece estar em cena uma modalidade de gozo mais próxima da perspectiva do gozo autístico de cada um que ali se amontoa, e não de um gozo regulado pelo falo, pela civilização. Esse modo de tratamento do corpo e do gozo nos conduz a pensar a teoria e a clínica da psicose em função daquilo que elas nos apresentam como tratamentos possíveis.
Recorrendo novamente a outros tempos, é possível observar que essa clínica se ocupou com o problema do diagnóstico diferencial entre psicose e toxicomania. Hoje, parece-me mais frutífera a pergunta sobre os pontos em que pensar a psicose possa convergir para a possibilidade de pensar a toxicomania. Em outras palavras, se uma tradição psicanalítica e também psiquiátrica se valeu do paradigma da perversão para pensar o fenômeno toxicomaníaco, e boa parte da psiquiatria ainda insiste em confundir toxicomania com manifestações de uma psicose schereberiana, a orientação lacaniana toma outra direção. Esta pode apoiar-se no paradigma da psicose de Joyce.
O caso do pequeno Hans demonstra como um sujeito pode encontrar equivalentes fálicos apoiando-se no significante e no sentido. Por outro lado, tanto o toxicômano quanto o psicótico se vêm impedidos de contarem com esse recurso, ao menos na mesma medida. Nesse sentido, o gozo fálico não se apresenta como um índice da normalidade de um modo de gozo. Ao contrário, o que ele aponta é a própria anormalidade da qual padece um sujeito diante da não existência da relação sexual.
A inexistência da relação sexual, condição para a disjunção entre o gozo do corpo próprio e o Outro, impõe que o parceiro como sintoma seja o lugar vazio da interseção entre o simbólico e o real. A droga opera uma ruptura com o casamento anômalo que advém da inexistência da relação sexual e ao mesmo tempo sutura o lugar vazio do parceiro-sintoma com a substância, e com a insistência metódica do uso do corpo. Assim, a tentativa é de incidir uma negação na não relação, como se a positivasse. O parceiro se identificaria com o uso, tanto da droga quanto do corpo.
A interseção que está em jogo é entre o simbólico e o real, excluindo o imaginário. Esse enlace que exclui o imaginário, tal como se apresenta o sintoma na psicose, mostra-se como uma boa referência para pensar o sintoma na toxicomania. A insensatez do corpo em virtude da desvinculação com o Outro que proveria de sentido e significação o sintoma se enlaça diretamente com os retalhos na carne. Essa operação se mostra não interpretável. As diversas denominações fornecidas aos acidentes infligidos à anatomia não são dóceis à noção de significante, sendo refratários a uma adesão pelo discurso e à formação de cadeias. Carne viva, cortar, destruir, rasgar, etc., funcionam como enxames, como uma tempestade de letras que sulcam o terreno árido do real do corpo, da carne. A letra, por não se articular com outras, não demanda decifração. No mais, por estarem divorciados do sentido, esses cortes sobre a carne são como a expressão de um puro gozo da letra.
O corpo pode ser tomado com relação a cada um dos três registros. Com o Seminário 23, O Sinthoma, podemos falar que o corpo é imaginário. O problema é que o sintoma psicótico — e numa das formas possíveis de pensarmos o sintoma na toxicomania — o corpo que é colocado em cena exclui o imaginário. É possível pensar sobre falha da imagem do corpo, sobre a falha do narcisismo, como o lugar em que se instala um enlaçamento do corpo simbólico enquanto cadáver (MILLER, 2012), com o corpo real de gozo enquanto carne (MILLER, 2012). É um modo de pensar que se pretende oportuno para compreender o uso mortífero que alguns psicóticos podem fazer de seus acidentes tal como no episódio da carne morta, apodrecendo, que não gerou nenhuma estranheza por parte do sujeito.
A questão gira em torno do que o sujeito faz como expressão do seu esforço para localizar o gozo no corpo. Um neurótico pode-se apoderar de um discurso como método de tratamento do corpo. Enquanto que, fora do discurso, a incumbência do psicótico transforma-se na busca de um uso para o corpo enquanto carne. E nisso a toxicomania é uma oferta que vem a calhar. O uso do corpo se sobressai ao uso da linguagem para inscrever um gozo que não pode ser decifrado. A um sujeito que não tenha o que falar sobre os cortes que lhe retalham a carne talvez seja melhor que trabalhe com carnes.[3] Afinal, os cortes que passariam a ser feitos nos quilos que tem à sua disposição poderiam ter efeitos semelhantes aos de uma escrita. Não teriam absolutamente o mesmo estatuto da escrita de Joyce, é claro. Mas já seria um enlaçamento, um tratamento que sirva de apoio ao pensamento, o que antes não ocorria.
Com isso, poderia ser possível circunscrever um gozo bordejado pelos traços da lâmina da faca sobre a carne crua, impedindo que esse gozo transborde para sua própria carne. Frente à desorientação de uma experiência de vida e da deriva da libido, um sujeito pode inventar um método que vise a dar conta das perturbações tanto da linguagem quanto do corpo. A possibilidade, mediante o discurso analítico, de erguer uma prática do uso do corpo regulada pelo significante e pela nomeação talvez possa reinserir uma dimensão que antes se encontrava excluída.
(1) Apresentado no Núcleo de Pesquisa em Toxicomania e Alcoolismo do IPSM-MG.
(2) Caso apresentado e conduzido por Rachel Botrel.
(3) Saída encontrada pelo paciente do fragmento de caso apresentado.
Referências
BATISTA, M.; LAIA, S. (Orgs.). A psicose ordinária: a convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.
BATISTA, M.; LAIA, S. (Orgs.). Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010.
HARARI, A. Clínica lacaniana da psicose: de Clérambault à inconsistência do Outro. Rio de janeiro: Contra Capa, 2006.
LACAN, J. (1966). Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1975). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Trad. S. Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
Cleyton Andrade
Doutor em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, Professor Adjunto da UFAL. E-mail: cleytons@uol.com.br
Incidências Da Psicanálise Nos Dispositivos Públicos
GUILLERMO BELAGA
Em definitivo, o que fazer com aquilo que é necessário aceitar: que essa fissura, esse vazio, leva muito bem o nome trágico […] daquilo que não tem resolução, que não se paga nem com o castigo nem com o perdão. […]. Aceitar que nossa identidade coletiva tem esse vazio que ninguém poderá preencher, essa fissura com a qual devemos conviver, é algo sem dúvida inquietante, mas que não podemos desprezar (ARFUCH, 2004).
Preferi iniciar este comentário de um caso com as palavras de Leonor Arfuch, dada sua precisão para situar um ponto fundamental: o vazio constituinte de todo ser falante, essa fissura, mais claramente, um furo, com o qual temos que nos haver por habitar a linguagem. Vazio que, além de situar-se no trauma inicial, que, na história da psicanálise, se metaforizou como “trauma do nascimento”, que impossibilita a programação sem equívoco — no sentido dos computadores — do laço social, se faz presente também no trauma como acontecimento, nas contingências de uma vida; quando irrompe nas representações simbólicas que sustentavam, até esse momento, um sujeito, provocando-lhe a angústia mais generalizada.
Assim, a vinheta clínica que Daniel Riquelme[2] apresenta ilustra bem e ensina como a psicanálise se situa para operar frente a esse vazio subjetivo. Como responde a um trauma individual e social, nesse caso, a tragédia da ditatura militar na Argentina, o desaparecimento e assassinato dos pais e a expropriação dos filhos, rompendo sua identidade social e sua história de origem. Dessa maneira, Riquelme segue a orientação dada por Jacques Lacan quando definiu que “o inconsciente é a política”, conseguindo extraí-lo de uma esfera solipsista, colocando-o em relação com o Outro, com a Cidade, fazendo-o depender da História (BAUDINI, 2004).
Assim, poder-se-ia dizer que o psicanalista se responsabiliza por uma ação solidária com o desejo das Avós, desejo do Outro, que perturba o Mestre, que não consente com as identificações que propõe, situando-se nesse vetor (do lado do desejo das Avós), mediante o ato analítico em que subjaz outro desejo, o desejo do analista. Signo diferencial, que possibilitaria ao analisante encarar então o desejo do Outro (de origem) que se tentou foracluir — de forma mais ou menos bem-sucedida — e encontrar, finalmente, sua própria relação particular com esse desejo, encontrar sua própria narrativa, sua paleta biográfica, e seu modo de vida.
Nesse sentido, o que foi elaborado sobre o caso, sem dúvida, pode evocar diversas linhas de intervenção. Vou-me remeter àqueles pontos que, a princípio, mais me interrogaram e ressoaram.
O Problema Da Verdade, Do Trauma E Da História
Em um de seus livros, Jorge Alemán (2001) se pergunta sobre o esquecimento, sobre qual é o seu estatuto, se o esquecimento é uma omissão ou é um rechaço. Recorrendo à poesia, para obter as respostas, é dela que se desdobram dois tipos de poemas que tratam do tema:
a – Poemas do retorno: que falam sobre voltar a certo lugar para remediar o esquecimento.
b – Poemas do atravessamento: como o poema “Clown”, de Henri Michaux, paradigmático do atravessamento.
A marionete, cortando os fios que a atavam aos ideais, desprendendo-se da imagem de si mesma e da de seus semelhantes, atravessando a trama de ideias que os demais e ela mesma haviam forjado, por fim encontra o que lhe dá consistência de ser. Porém, nesse exemplo de atravessamento, também retorna o que é o sentido mais primordial. Desse modo, poder-se-ia concluir que, nas grandes vertentes do trabalho poético, atravessamento e retorno não são mais que um, ou um é o inverso do outro. Questão que a experiência analítica toma como sua, na qual precisamente atravessamento e retorno se encontram.
A análise que Heidegger faz do poema “Retorno à terra natal”, de Hölderlin, ilustra isso um pouco mais. O que, a princípio, parece ser um retorno à origem, a uma apropriação romântica da terra natal, que ia dar consistência a essa fantasia evanescente da tradição, transforma-se, nesse ato do retorno, em um atravessamento. Em coordenadas que ressoam no drama do caso clínico, Alemán assinala que o poema mostra que, na volta à terra natal, há algo que se recusa, que, alcançando o solo do familiar, se apresenta o estranho, que, apenas no poema do retorno, é que se alcança a terra natal, mas se a alcança em seu caráter mais estrangeiro. Assim, para Hölderlin, o poema conduz ao que se designa como “passar ao outro lado”.
A experiência tem, em seu seio, o unheimlich, o estranho, a “falta de lar” constituinte, e sua resolução implica cruzar a linha, um salto subjetivo com a consequente invenção. Assim, ambos os trabalhos, o poético e o analítico, têm como suporte fundamental as operações de abertura e de corte, em que se encontra o insuperável do esquecimento, que se contorna, desenha, escreve e, através de uma invenção, se nomeia.
Em sua ”Resposta a J. Hyppolite”, J. Lacan dá uma definição sutil do que entende por história. Parte da oposição entre Verwerfung, expulsão, abolição simbólica sobre a qual não se pode formular juízo de existência, e a Bejahung, afirmação primordial, emergência do símbolo, e pergunta: “O que acontece com o que não é deixado ser na Bejahung?” Acrescentando que o Verworfen não voltará a ser encontrado na história, se se designa com esse nome o lugar de onde o recalcado vem reaparecer.
Formar-se-iam assim duas vertentes. Uma, a do significante (em relação à Bejahung), em que o esquecimento contingente, o do recalque mesmo, volta transformando a memória; é o tratamento via retorno do recalcado.
A outra vertente é a da letra (do lado do que permanece Verworfen), que situa um esquecimento sob o modo lógico do necessário — excluído do sentido — relacionado à existência, a um resto indizível. Portanto, esse aspecto do tratamento é algo não historizável, é um vazio que permanece como um traço inevitável, que Freud chamou de “umbigo do sonho”. Em resumo, no percurso analítico, podemos distinguir: em princípio, o curativo, encontrar um sentido para o trauma como acontecimento, como irrupção do real. Pacificação que se consegue com uma inscrição no Outro. Mas também entendemos que o traço como marca do expulsado constitui uma fronteira, um limite topológico que une e separa o campo do sentido e um exterior fora de toda a historização. O sujeito, quando descobre que o Outro não é o lugar onde se aliena, onde se inscreve, aferra-se àquilo que resulta ser o ponto de amarração, ao que chamamos de objeto a e à letra. Essa borda heterogênea entre saber e gozo é o que se torna litoral para o sujeito e, justamente por se situar entre o dizer e o indizível, entre a decisão e o indecidível, resulta no saldo mais particular do tratamento.
Por Que Uma Instituição É Necessária? De Que Instituição Necessitamos?
A resposta poderia parecer óbvia, pensando que alguém, ao estar afetado pela repressão e pelo terrorismo político, necessita de um alojamento para se identificar frente ao que está fora. Sem dúvida, este poderia ser um aspecto possivelmente tranquilizador, mas não o mais determinante, inclusive parcial e até mesmo perigoso, porque deixaria o indivíduo situado em uma lógica de interior/exterior, em uma lógica de asilo e proteção, que não mudaria muito as coisas em relação à sua situação anterior.
Então, pensando que a situação é mais complexa, poderíamos generalizar e dizer que o sujeito moderno não pode estar sem uma instituição. Se entendemos que a instituição tem um duplo percurso semântico, entre regra e comunidade de vida. Nesse sentido, diariamente, se comprova como as instituições suprem a família.
Como reconhece Phillipe Ariès, o mundo pós-industrial, que se inicia no século XX, não foi capaz de manter a sociabilidade do século XIX, nem de substituí-la por uma nova, com o que se tenta e se exige da família que tome esse relevo impossível; uma hipertrofia de suas funções que não é capaz de assumir. Consequentemente, sua hipótese é a de que a crise atual não se deve buscar na família, senão na decadência da cidade e da sociabilidade pública. Daí que, por um lado, uma análise da época indica que a família tem uma missão impossível: suprir o que a cidade não pode oferecer, e, paradoxalmente, ao não poder cumprir essa função, o Estado deve prover o que a família não pode dar. Tema que se verifica com a infância, em que a criança começa a interessar ao Estado mais além da escolaridade; um exemplo disso é como a autoridade pública se ocupa das crianças em “risco”.
Desse modo, as instituições podem tentar suprir a família ou tomar para si responsabilidades da família, em que o Estado, na modernidade, considera que ela falha. Mas é necessário advertir que uma instituição que deixe de lado a particularidade do sujeito, colocando em jogo a psicologia das massas, não poderá ser uma suplência adequada da família, se consideramos que a família não pode ser digna e respeitável se não é o lugar em que cada um possa encontrar um espaço para o que é sua particularidade, já que devolver a particularidade ao sujeito é o contrário da intolerância e da segregação.
Assim, nossa prática ocorre com indivíduos que se encontram nesse novo regime social que corresponde a um mundo transformado pela ciência e a globalização econômica, em que o pai moderno é um pai que não pode assegurar a distribuição do gozo de maneira conveniente, em que as famílias já não contam com o Outro da Lei de outrora. Em suma, a sociedade atual deixou de viver sob esse mito. É o que sustentamos em nossa linguagem: a estrutura do Todo cedeu à do não-todo, que implica que não haja nada que constitua uma barreira que esteja na posição do proibido. O que faz com que o proibido já não seja difícil, que resulta contraditório com o movimento do não-todo. Dessa maneira, algo se dá sem encontrar limites, por exemplo, o consumo, mas também a precariedade do sujeito, o medo.
Deter-se nas novas organizações sociais tem suma importância, pois, como afirmava Lacan, o inconsciente obedece ao laço social, ou, com igual sentido, em uma definição contemporânea à já citada: “o inconsciente é Baltimore ao amanhecer”.
Transmite-se a ideia de que o conceito de inconsciente se conecta a um lugar, a um lugar estruturado como uma cidade, e, ao mesmo tempo, é indissociável de uma temporalidade. Do que se deduzem coordenadas clínicas fundamentais na prática da “urgência subjetiva”, da angústia, das catástrofes, etc., em que se deve contemplar uma estratégia frente ao espaço e ao tempo, como passo inevitável para sua resolução, dado que a topologia e o tempo se enlaçam ao redor da a-topia do sujeito.
Na Instituição
O lugar do analista na instituição e seus sintomas apresentariam dois aspectos (LAURENT, 2003). Primeiramente, está a instituição e, em um segundo tempo, coloca-se o sintoma em consequência do funcionamento institucional. Aqui, como se demonstra no caso, a interpretação sobre o sintoma — a pesquisa da história nos arquivos, a manobra para mudar o sujeito dessa posição — se realiza seguindo a escrita do matema da “Psicologia das massas”, de Freud, em relação ao ideal. Nessa vertente, a psicanálise da instituição consiste em indicar, da boa maneira, a falha do Outro: S(A/).
O segundo aspecto consiste em pensar a instituição não só como um conjunto de regras, mas também como uma comunidade de vida. Nesse sentido, J.-A. Miller fala de duas práticas da interpretação em relação ao ideal, destacando que o lugar deste em um grupo é um lugar de enunciação (MILLER, 2003).
Uma interpretação possível é a enunciada desde o lugar do ideal, o que resulta em um discurso massificante que repousa na sugestão. A outra é interpretar o grupo dissociando-o, remetendo cada um dos membros da comunidade à sua solidão, à solidão de sua relação com o ideal. Vertente desmassificante, que trata de despertar o sujeito para uma nova responsabilidade, inédita, que o enlace mais além de sua adaptação aos significantes-mestres
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