Que Lugar Para O Analista Na Experiência Com A Psicose?
FERNANDO FERREIRA LINHARES
Na contemporaneidade, assiste-se à infinita pluralidade de apresentações da psicose, e a psicanálise é convocada para essa experiência nos consultórios, nas instituições ou nas discussões interdisciplinares. Então, qual é o lugar do analista na experiência com a psicose?
Em Freud, a aplicação da teoria da libido ao Caso Schreber origina a categoria “neuroses narcísicas”, que corresponde ao diagnóstico estrutural de psicose. Freud explica que o psicótico “retira das pessoas e coisas do mundo externo a sua libido, sem substituí-las por outras na fantasia”, e “a libido retirada do mundo externo é (foi) dirigida ao Eu” (FREUD, 1914/2010, p. 15-16), sendo incapaz de se ligar ao “médico”, impossibilitando a transferência. Freud comenta que, na “técnica analítica”, “a transferência é uma necessidade inevitável” (FREUD, 1905/1980, p. 113), logo:
[…] aqueles que sofrem de neuroses narcísicas não têm capacidade para a transferência […] sua libido objetal deve ter-se transformado em libido do ego […] por essa razão, são inacessíveis aos nossos esforços e não podem ser curados por nós (FREUD, 1917/1980, p. 520).
Já Lacan afirma: “[…] se a questão do louco pode se esclarecer pela psicanálise, bem, isso seria, obviamente, a partir de outro centramento […]” (LACAN, 1967/2012, p. 6), e “a psicose é isto diante do que um analista não deve recuar em nenhum caso” (LACAN, 1977/2012, p. 19, tradução do autor), abrindo a possibilidade de um estatuto de transferência diferente da neurótica e desviando a questão da aplicabilidade da psicanálise para sua utilidade na “experiência” com a psicose.
Em 1936, O estádio do espelho como formador da função do eu, releitura do narcisismo de Freud, reconhece “nas formas mentais que constituem as psicoses, a reconstrução de estádios anteriores do eu” e localiza a paranoia no “estádio do objeto que lhe é correlativo” (LACAN, 1938/2008, p. 66). Sob influência hegeliana, o conceito do estádio do espelho é desdobrado para aquele em que o desejo surge a partir do desejo do outro. A experiência analítica é considerada então um processo dialético, e o psicótico, um sujeito que renunciou à dialética da palavra, o que impede seu tratamento analítico:
Na loucura […] convém reconhecermos […] a liberdade negativa de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer, ou seja, aquilo que chamamos obstáculo à transferência, e […] a formação singular de um delírio que […] objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética (LACAN, 1953/1998, p. 281).
A linguística estrutural de Saussure e Jakobson é utilizada por Lacan no Seminário III para fazer sua leitura do Caso Schreber, estabelecendo o conceito de Nome-do-Pai (NP). Nesse seminário, a foraclusão é descrita como um rechaço fora do simbólico que implica o surgimento de algo no real, e a foraclusão do NP, como determinante da psicose. O fora do Édipo freudiano se torna a foraclusão do NP, responsável pela não constituição da significação fálica. Aqui a psicose é estrutural, não implica um desencadeamento. A estabilidade, então, é possível, determinada, segundo Lacan, por mecanismos imaginários; e também é possível a reestabilização em que a metáfora delirante supre a metáfora paterna ausente.
O desencadeamento psicótico é explicado pela exposição do sujeito a um acontecimento que requeira uma resposta dependente da significação fálica; o encontro com “Um-pai” não simbolizável, quando “o NP é (ser) chamado pelo sujeito no único lugar onde poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve” (LACAN, 1955-1956/1988, p. 584) Esse “Um-pai” deve-se situar “na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a‘” (LACAN, 1955-1956/1988, p. 584), abalando o mecanismo imaginário que estabilizava a estrutura por fornecer ao sujeito uma identificação.
Nesse seminário, Lacan subverte o termo “secretário do alienado” para descrever a posição do analista que dirige o tratamento sem ocupar lugar de mestria, acolhendo os significantes que o sujeito traz sem remetê-lo, pela interpretação, a uma nova significação. O analista busca identificar os mecanismos capazes de sustentar a identificação imaginária estabilizadora da estrutura. Na psicose desencadeada, essa posição não se invalida, pois pode trazer à tona significantes pertinentes para a reestabilização, capazes de dar contorno ao que não foi simbolizado, e retorna no real. Com produção delirante em curso, o analista objetiva a ressignificação da experiência delirante na transferência. Não se preconiza a remoção do delírio, modo singular de o sujeito lidar com o real não simbolizado.
Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan localiza o objeto a: “o campo da realidade, (e) este só se sustenta pela extração do objeto a” (LACAN, 1955-1956/1998, p. 559-560). Os Seminários X e XI elucidam que, na constituição do sujeito, há a alienação no universo significante seguida da separação do objeto a, ordenada pelo NP. “O psicótico leva o objeto a no bolso” traduz a não extração do objeto a quando o NP está foracluído. Se essa extração sustenta o campo da realidade, apresentam-se, na psicose, perturbações na constituição da realidade.
O conceito de gozo é originário do “para-além do princípio do prazer”, a pulsão de morte. O campo do gozo é aparelhado pela linguagem: os discursos “tratam” o gozo e engendram o laço social. Esse aparelhamento é condicionado à extração do objeto a, que representa, em um retorno ao Mal-estar na civilização, os objetos das pulsões aos quais a civilização exige que o homem renuncie para integrá-la. Se a extração do objeto a trata o gozo, o não aparelhamento do campo do gozo leva à descrição da vivência psicótica como uma invasão do gozo (não tratado).
Em Apresentação da tradução francesa das Memórias do Presidente Schreber, Lacan cita “[…] (n)a polaridade mais recente a ser promovida aqui, do sujeito do gozo ao sujeito que representa o significante para um significante sempre outro […]” (LACAN, 1966/2012, p. 2, tradução do autor). Esse trecho diferencia sujeito do significante, representado por um significante a outro significante, em que o significante opera como barreira ao gozo; e sujeito do gozo, um significante apenas, S1, subjugado pelo gozo, na posição de objeto do Outro.
Aqui, o tratamento pretende obter um influxo do simbólico sobre o real, a construção de uma barreira ao gozo e sua reintrodução no discurso. Para tal, o analista abstém-se de ocupar o lugar de Outro do gozo, que tem todas as respostas, e é, empresta ou localiza significantes capazes de funcionar como elemento simbólico na construção daquela barreira, possibilitando a passagem de sujeito do gozo a um sujeito limitado pelo significante. O laço analítico é estabilizador se o analista não colocar o sujeito na posição de objeto a ser cuidado e apontar que o próprio sujeito deve tomar para si a regulação do gozo.
O Seminário XX traz a evolução dos conceitos de real, simbólico e imaginário como registros, na escrita do nó borromeu. A escritura borromeana decorre do acento dado ao real no final da obra de Lacan, pois suporta um real de estrutura. No Seminário XXII, Lacan apresenta o nó borromeu de quatro elementos, acrescentando o quarto elo indispensável para sua estabilização:
Se vocês se lembram do modo sob o qual eu introduzi este quarto elemento em vista dos três elementos que são supostos, cada um, constituir qualquer coisa de pessoal, o quarto será isto que eu anuncio este ano como o sinthoma (LACAN, 1975-1976/2005, p. 51-52, tradução do autor).
O “nó de quatro parte de uma disjunção concebida como originária do simbólico, do imaginário e do real” (LACAN, 1974-1975/2012, p. 30, tradução do autor); assume a foraclusão como estrutural e a estabilidade do nó borromeu a três como uma impossibilidade, explicitada, na neurose, com as formações sintomáticas, e, na psicose, com sua irrupção. Inicialmente, “[…] o quarto (elo) é o que […] suporta o simbólico daquilo por que ele é efetivamente feito, a saber, o NP” (LACAN, 1974-1975/2012, p. 68-69, tradução do autor); é o que atravessa o sujeito com a marca da castração. Depois, o NP se pluraliza, pois, se a foraclusão é estrutural, o elemento que estabiliza o nó varia conforme a estrutura clínica. Essa tentativa de manter unidos os registros R, S e I é definida como “suplência”.
Na teoria dos nós, a psicose é explicada por formas de enodamento não borromeanas e por falhas no enodamento borromeano, com maneiras diversas de suplência, como a metáfora delirante, a formulação paranoica e o sinthoma. O Seminário XXIII apresenta James Joyce e seu uso da linguagem como paradigma da psicose, um exemplo de falha de enodamento borromeano em que o elo I fica solto. Esse evento topológico é traduzido pelo episódio autobiográfico de Retrato do artista quando jovem, em que Stephen Dedalus, alterego de Joyce, após levar uma surra, pergunta-se por que o evento não lhe causava mais raiva: “[…] tinha sentido que certa força o houvera despojado dessa súbita onda de raiva tão facilmente como um fruto é despojado de sua mole casca madura” (JOYCE, 1998, p. 87-88)
O estádio do espelho descreve a passagem do corpo fragmentado para a imagem do corpo unificado, com aquisição de consistência imaginária. O episódio descrito evoca uma dissolução imaginária, o deslizar do elo I solto do nó, deslizamento para fora da cena quando o sujeito é convocado a responder com o corpo em sua consistência imaginária. No Seminário XXIII:
Mas a forma, em Joyce, de ‘deixar cair’ a relação com o corpo próprio é completamente suspeita para um analista, porque a ideia de si como corpo tem um peso. Isso é o que precisamente se chama ego. Se o ego é dito narcisista, é bem porque, em certo nível, há algo que suporta o corpo como imagem. No caso de Joyce, o fato de que esta imagem não interessa na ocasião, não assinala que o ego em Joyce tem uma função toda particular? (LACAN, 1975-1976/2005, p. 150, tradução do autor).
Se Joyce apresenta uma falha no enodamento borromeano, por que não houve o desencadeamento de sua psicose? Lacan propõe que em Joyce há uma suplência: sua escrita, sua condição de artista, lhe restitui uma dimensão corporal, demonstrada na descrição da relação do artista com sua imagem, em Ulisses: “Assim como nós, ou mãe Dana, tecemos e destecemos nossos corpos — disse Stephen — dia após dia, suas moléculas se movendo de um lado para o outro, assim também o artista tece e destece sua imagem” (JOYCE, 2010, p. 434).
Em Joyce, a construção da imagem corporal não remete à do estádio do espelho, mas a uma tessitura: Joyce tece a obra literária que impede a dissolução imaginária do corpo. E se o ego é a ideia que se tem de si como um corpo, a escrita funciona como um ego, é seu sinthoma.
Na etimologia da palavra “symptôme” (sintoma), “ptôme” significa queda. Para Lacan, sintoma é aquilo que se espera que caia durante a análise, já “sinthome” (sinthoma) é o que não cai, está fixo em torno da falta primeira. Ambos são suplências, porém estabilizam o nó borromeu de formas distintas. O sintoma é uma metáfora, produz sentido, é uma resposta particular à “não relação sexual”. O sinthoma é suplência da falta estrutural da relação sexual, tem função de gozo, define-se “através de uma relação não mais aos efeitos de significação, […] mas no registro de uma escritura, que é o modo pelo qual cada um goza do inconsciente à medida que o inconsciente o determina” (LAURENT, 1992, p. 49). O sinthoma funciona como S1, exerce função de nomeação do sujeito, que, como Joyce, não é sujeito do significante, mas sujeito do gozo. Nessa acepção, em Joyce, a linguagem serve a algo mais que à produção de sentido, há gozo no significante.
O sinthoma de Joyce mantém o nó estável. Aqui, a direção do trabalho analítico seria favorecer a estabilização da estrutura pelo enlaçamento fixo dos registros a partir do quarto elemento; favorecer a identificação ao sinthoma, que permite ao sujeito a criação de um laço social inédito. O analista deve evitar produzir S1s, que engendrariam o discurso do mestre. O S1 deve surgir do sujeito, pois apenas esse S1 articulado ao gozo possibilita a emergência do sinthoma.
O psicótico pode ocupar duas posições: na posição de objeto de gozo do Outro, pode tomar o analista como Outro gozador, lugar que o analista deve-se recusar a ocupar; na posição de saber delirante, tende a essa produção, o deslizar do elo I, e o analista deve intervir apelando ao mecanismo imaginário que impede esse deslizamento. Esse “secretariado sinthomático” (BENETI, 1995) permite o deslocamento do psicótico dessas posições, para que o saber psicótico seja colocado a trabalho a fim de produzir seu sinthoma e possibilitar a extração do gozo.
A grande amplitude dessa teoria não pode alcançar toda a diversidade da experiência com a psicose, pois esta comporta o sujeito. O estudo dessa teoria permite ao clínico servir-se de cada etapa da evolução desses conceitos, consciente de que a experiência com a psicose exige não apenas conhecimento teórico, mas faz um chamado à invenção.
1 Sob a orientação de Graciela Bessa.
Referências
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