Império Das Imagens: Um Ponto De Vista

SÉRGIO CAMPOS

 

O mundo das imagens, grosso modo, se divide em dois domínios. O primeiro domínio é o da esfera do aparelho psíquico do parlêtre, das imagens produzidas pelo nosso inconsciente como as representações mentais: sonhos, devaneios e fantasias. O segundo domínio pode ser descrito como sendo o das representações visuais, os objetos materiais e os signos que representam o Outro, ou seja, o mundo exterior. É digno de nota que as imagens do Outro influenciam as imagens do parlêtre, e as imagens deste recriam as imagens do Outro, de sorte que um domínio incide e se infiltra sobre o outro, produzindo todo um intercâmbio e uma superposição de imagens que produzem efeitos subjetivos de todas as ordens.

Ao analisarmos a existência das imagens do Outro, podemos concluir que existem, de uma forma geral, três modelos de imagem e, por consequência, três maneiras de ver o Outro. O primeiro modelo, considerado artesanal, nomeia todas as imagem feitas à mão, dependendo, portanto, de um savoir-faire – da habilidade e do talento – de cada um, plasmar o visível, a imaginação visual e até mesmo o invisível. Nesse conjunto distinguimos dois tipos de imagem, segundo Freud: aquelas cujas técnicas artísticas agregam – per via di porre –, como os desenhos e as pinturas, e aquelas cujas técnicas retiram – per via di levare –, como esculturas em mármore e madeira. Freud sinalizou o funcionamento de uma análise per via di levare (FREUD, 1904/1990).

O segundo modelo se refere às imagens que dependem da luz – elemento físico de visibilidade – e de uma máquina de registro, implicando a presença de objetos no campo da realidade. Esse modelo pode ser denominado luminoso, visto que, para que ele ocorra, deve haver luminosidade. O modelo luminoso permite que as imagens óticas se projetem através de um raio de luz a partir de um objeto natural captado na realidade, de tal sorte que esse objeto é fixado por um elemento fotossensível químico, como nos casos da fotografia e do cinema. O modelo luminoso foi paradigma no século XX nas grandes descobertas e nas formidáveis invenções da ciência como meios de investigação do mundo natural, como o microscópio e o telescópio. Freud analisou que, a cada invenção, o homem recria seus próprios órgãos, ampliando os limites de seu funcionamento. No que concerne à pulsão escópica e às imagens do Outro, a câmara fotográfica retém as impressões visuais fugidias; por meio de óculos, corrige os defeitos das lentes dos próprios olhos; através do telescópio, vê à longa distância; e, por meio do microscópio, supera os limites de visibilidade da própria retina (FREUD, 1929/1990).

Por último, o terceiro modelo das imagens do Outro, que denominamos digital, apanágio do século XXI, se relaciona com as imagens sintéticas, infográficas, virtuais, inteiramente calculadas pela computação. O terceiro modelo da imagem do Outro se constitui a partir da transformação de uma matriz de números inteiramente calculada em pontos digitais elementares – pixel – que visualizamos em um écran que nos olha (SANTAELLA, 2001). Aliás, é no terceiro modelo que se configura o império das imagens como unidade política de domínio soberano e de autoridade do Outro, forma de governo com influência dominadora no mercado sob o ponto de vista econômico em um vasto território e uma ordem de ferro com poder irrestrito de informação com fins ao controle.

Miller, inspirado em Antonio Negri, sociólogo italiano, assinala que vivemos na era do “Outro que não existe”, em um regime que não age mais pela censura, tornando improvável a ideia de transgressão e de revolução. Deslocamos da sociedade disciplinar, que supõe uma clara distinção entre o in e o out, para a sociedade de controle, interiorizada, flexível, em rede, flutuante e êxtima. O imperialismo, hoje, não é mais de ninguém, está em todas as partes e em nenhuma, pois não há mais fronteiras entre o in e o out (MILLER, 2011). O império das imagens do Outro se propaga e se difunde em volume e profusão, corrompe nosso modo de vida e nosso aparato psíquico, se infiltra em nossos lares sem pedir permissão, nos induz ao consumo de objetos supérfluos, nos torna reféns e se alastra mediante as novas tecnologias, contaminando todos os gadgets, constituindo, assim, o que Lacan nomeou de alethosphera.

Se levarmos em consideração o tempo em articulação com as imagens do Outro, pode-se deduzir que o modelo artesanal tem, por natureza, o perene; o segundo, o luminoso, circunscreve o mundo do instantâneo, do lapso e da interrupção do fluxo do tempo e, por último, o modelo digital se configura como o universo do evanescente, do devir, do tempo puro, manipulável, reversível e reiniciável em qualquer momento (SANTAELLA, 2001).

Do ponto de vista do parlêtre, a imagem artesanal é feita para a contemplação do Outro, a imagem luminosa se presta à observação do Outro e, a digital, à interação com o Outro. Na imagem artesanal, havendo nela algo de sagrado, evoca uma nostalgia do divino. Portanto, a imagem artesanal convoca o parlêtre a um impossível contato imediato, sem mediações com o transcendente, ao mesmo tempo em que produz um afastamento que é próprio dos objetos únicos, envolvidos num círculo mágico da aura de autenticidade, como foi teorizado por Walter Benjamin. Já a imagem luminosa é profana, pois surge como um fragmento arrancado do corpo do Outro, oferecendo-se ao parlêtre como objeto de observação, um recorte do Outro em sua realidade e em sua natureza. Nesse segundo modelo, o objeto extraído do campo do Outro solicita ao parlêtre aquiescência e reconhecimento do Outro, produzindo memória e identificação. Por último, as imagens digitais do terceiro modelo produz a interatividade entre o Outro e o parlêtre, suprimindo as distâncias, engendrando uma imersão e uma navegação nas circunvoluções no interior da imagem (SANTAELLA, 2001,).

O terceiro modelo se propaga de maneira inquietante pelas novas paisagens da internet e se expressa de maneira imperativa como apanágio do progresso, no qual a informação é signo de poder. Se, por um lado, o primeiro modelo está situado na condição de “ver e não ser visto”, como no panóptico de Jeremy Benthan, no terceiro modelo o axioma do panóptico se desloca para o imperativo “ver, tudo ver, ver tudo de tudo”, que se expressa como uma vontade de gozo que se impõe como uma lei (FOUCAULT, 2007). Já nos anos 30, Walter Benjamin assinalava que “outrora, com Homero, a humanidade tinha sido objeto de contemplação dos deuses do Olympo, agora se ela torna objeto de contemplação de si mesma” (BENJAMIN, 1996, p. 33). O terceiro modelo, apanágio do império das imagens, criou o Outro evanescente, mas também onividente, fruto da bricolagem da ciência e da tecnologia, cujo olhar não mais transcende, tampouco contempla o mundo; contudo, supervisiona, controla, se infiltra e se imiscui na sociedade e em todos os domínios da vida. Entretanto, não mais vigia de fora, como o panóptico de Benthan, mas controla de dentro, abolindo a fronteira entre o in e o out.

Se no primeiro e no segundo modelo, por detrás da imagem, há uma sombra, a Coisa a ser representada que guarda distância com a própria imagem, visto que a imagem, como um véu, vela o real do gozo, pode-se dizer que, no terceiro modelo, a imagem digital está chapada sobre a Coisa (WAJCMAN, 2010). A tela plana do computador não nos deixa mais imaginar o que se encontra por detrás da imagem, de modo que não mais existe uma distância entre a imagem e a Coisa. Portanto, a imagem do Outro e a Coisa se superpõem, se tornam íntimas e se confundem, de tal sorte que a imagem fabrica uma ilusão do real. Nos tempos de hoje, as imagens são fábricas do real (WACJMAN, 2010). Portanto, no contemporâneo, segue-se a orientação de que não se deve mascarar o mundo, mas mostrá-lo como ele é de fato. Outrora, sob o domínio do modelo luminoso, o neorrealismo italiano, o fotojornalismo e os fotógrafos de guerra tentaram captar o real em suas lentes e mostrar o mundo como ele é.

No mundo de hoje, temos o homem-imagem, impregnado pelas imagens do Outro, agora não mais especular como o fotojornalismo, tampouco intersubjetivo, fruto de uma “imagem-rainha” espessa, que encobria a sombra do objeto, como cogitou Lacan no estágio do espelho. Entretanto, temos a imagem do homem construído pela tecnologia que tenta traduzir o próprio real, como as imagens médicas das ressonâncias magnéticas. Com efeito, a alta modernidade também é idólatra, particularmente, das imagens científicas e das imagens tecnológicas.

O terceiro modelo, no qual a imagem fabrica uma ilusão do real, se infiltrou não apenas na ciência, mas em diversos terrenos da cultura e da arte. Em 1977, o alemão Gunther von Hagens, conhecido como plastificador de corpos, criou uma técnica inovadora de preservação de cadáveres e a elevou ao estatuto de arte. Sua técnica mescla congelamento, acetona e polímeros. O resultado é uma verdadeira aula de anatomia que faz parte da exposição “Body Worlds” (mundo de corpos), que fica na Atlantis Gallery, em Londres. Ao expor cerca de 200 cadáveres sem pele, como o de uma mulher grávida dissecada com o feto exposto, Hagens despertou reações mistas de repulsa, indignação, surpresa e fascinação. A exposição esteve no Brasil com o nome “Ciclo da vida”, inclusive em Belo Horizonte, em 2009. O que se observa nas imagens digitais, em que a imagem e o real estão em continuidade, é o desaparecimento dos semblantes. Essas imagens mostram apenas o que o objeto é, elas não aludem, tampouco querem dizer algo. Portanto, existe mais semblante numa medalhinha da Virgem Maria do que nos corpos de Gunther von Hagens.

Com efeito, um modelo nunca se desloca em direção ao outro de maneira abrupta, mas vão se mesclando, se justapondo, se infiltrando, se transformando gradativamente um no outro, de sorte que, hoje, a imagem do Outro nunca se encontra com exclusividade dentro de um único modelo. Com efeito, mesmo que tenha um viés, ela se apresenta amarrada como num nó RSI. Assim, grosso modo, o modelo artesanal pode ser considerado como apanágio do imaginário, na medida em que ele reproduz o corpo próprio, o corpo do Outro e o falo; o modelo luminoso, em razão da extração instantânea do objeto, em virtude do recorte da realidade, pode ser aludido ao objeto a e ao registro do simbólico; já na esfera do real, poderíamos supor o modelo digital como uma espécie de fábrica do real.

Em novembro último, visitei uma bela exposição em Paris, de nome “Icônes du Petit Palais”, sobre a arte cristã bizantina. Não resta dúvida de que a exposição de ícones sagrados, através de pinturas e esculturas, estava alojada no RSI, porém com prevalência no modelo artesanal, já que sua função era, a partir dos semblantes, despertar a contemplação e a reflexão no parlêtre.

A exposição suscitava uma meditação sobre as religiões que eram a favor ou contra as imagens religiosas. É conhecido o interdito bíblico à teologia dos ícones, de tal sorte que a figuração e o sagrado não são noções sempre compatíveis. Se, por um lado, existem religiões que possuem uma afinidade com as imagens, como o cristianismo e o hinduísmo, por outro, as religiões islâmicas e judaicas proíbem qualquer tipo de imagem de Deus. É digno de nota o fato de encontrarmos duas posições antagônicas no seio das três religiões fundadas a partir do legado de Abraham.

O judaísmo interdita toda sorte de representação de Yahvé, como exprime um dos mandamentos no Torá: “Não farás para ti imagem de ídolos, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, tampouco nas águas debaixo da terra” (Exodus: 20, 4-5). O monoteísmo e a interdição das imagens funda uma teologia em que a crença deve acontecer sem a presença das imagens. O Deus de Israel é audível e não visível, na medida em que é na lei e na palavra que ele se inscreve para o seu povo. Em contrapartida, o islã proíbe, igualmente, todos os tipos de imagem de Deus. O Corão declara: “Alá! O impenetrável! Alá não se cria, nada se parece com ele”. Ademais, “Deus, o impensável, nada pode nem de longe refleti–lo” (Corão: 122). O profeta Maomé, venerado pelos mulçumanos, raramente aparece na arte islâmica. Grafias sobre o profeta Maomé figuram raramente, apenas nos manuscritos religiosos iranianos e otomanos, e ainda que surja sua imagem, ela nunca está à mostra, é frequentemente velada. O islamismo evita qualquer tipo de imagem de Deus ou de Maomé para que a caligrafia se torne a única encarnação da palavra divina. Portanto, a letra está para o islã assim como a voz está para a religião judaica.

Diferente do judaísmo e do islamismo, o cristianismo desenvolve progressivamente uma tradição na qual Deus é esboçado em imagens e surge, frequentemente, ilustrado no mundo das artes. Ademais, na religião cristã, todo ícone reenvia a um protótipo divino, não somente autêntico, mas revelado, no qual a imagem é a cópia fiel em semelhança com Deus e com as demais divindades. Possivelmente, as reticências das duas religiões em usar as imagens provavelmente advêm do paganismo, que utilizava imagens de totens para adoração. No século VI e VII os imperadores romanos passaram a representar Cristo, santos e eles próprios em imagens, quer sejam esculturas, quer sejam cunhadas em moedas.

No século VIII houve a crise iconoclasta, fruto de uma reviravolta política dos imperadores do império bizantino e durou cerca de um século, vitimando milhares de idólatras. Depois da crise iconoclasta, as imagens como representações do sagrado e do divino ressurgiram nos textos canônicos e se tornaram ícones de culto, de veneração e de respeito. Portanto, no cristianismo, com as exceções dos cismas de Lutero e de Calvino e nas religiões que foram marcadas pelas suas influências, a imagem tida como representação autêntica, legítima e revelada como ícone, seguiu forte no catolicismo. Com efeito, na religião católica, a imagem se apresenta como ferramenta essencial e indispensável ao culto, à adoração e à mediação com o transcendente.

O modelo artesanal, não obstante ter sido o primeiro que derivou em mais dois modelos, ainda continua a propagar efeitos subjetivos, dada a sua profundidade e a sua complexidade. Assim, é curioso ressaltar que o culto ao sagrado e ao divino é expresso apenas mediante o primeiro modelo, que é o paradigma artesanal. Aliás, não nos consta que o sagrado seja cultuado pela fotografia e pela internet. Portanto, pode-se concluir que, por detrás do modelo artesanal das imagens, existe um gozo. Assim, se a imagem sacra é atacada, surge o gozo da profanação e do sacrilégio e, em contrapartida, como reação, surge o gozo da revolta e do ódio, a exemplo de um ataque televisionado à imagem de Nossa Senhora Aparecida perpetrada por um pastor evangélico, ocorrido há alguns anos.

Miller assinala que, no final do século XX, considerávamos que os conceitos tais como blasfêmia, sacrilégio e profanação não eram mais que vestígios de um tempo passado. Ele constata que a era da ciência não fez desvanecer o sagrado, e mais, que o sagrado não é arcaico, mas contemporâneo. O sagrado não é o real, mas um efeito de discurso, uma ficção que mantém uma comunidade unida. Aliás, o sagrado é a pedra angular de sua ordem simbólica, ressalta Miller. O sagrado exige reverência e respeito, e a falta deles acarreta o caos e o gozo da profanação e do sacrilégio e, em contrapartida, desperta o gozo da ira e do ódio.

Então, no episódio do atentado à sede do periódico Charlie Hebdo, na cidade de Paris, em janeiro último, constatamos que estamos diante de um choque de ideologias no qual estão em jogo dois modelos da imagem. Se por um lado há uma cultura situada no terceiro modelo, que defende um modo de gozo no qual é proibido proibir e que é permitido tudo dizer, em nome de uma liberdade de expressão, de outro temos uma cultura que se situa no primeiro modelo, na qual dentro de seu núcleo religioso existe o interdito da representação de imagens tanto de Alá quanto do profeta Maomé.

Portanto, são dois tipos de gozo em oposição: o primeiro, resultado de um tudo dizer, tudo expressar em nome da liberdade, e um segundo, o gozo da cólera revelado em virtude da blasfêmia, da profanação e do sacrilégio em consequência do uso abusivo de um ícone que deveria permanecer velado por respeito. Em síntese, no contemporâneo encontramos dois modos de gozo justapostos, porém em oposição, como descreveu Jésus Santiago (2014) de maneira bastante esclarecedora em seu artigo: um modo de gozo feminino, não-todo, situado a partir da pluralização do nomes do pai, e outro universal, masculino, assentado sobre as insígnias do nome do pai.

O olhar no terceiro modelo da imagem, no império das imagens, se constitui como alvo da pulsão, que se expressa pela pulsão escópica, condicionando o gozo mediante a posição de “ver, tudo ver, ver tudo de tudo e ser visto por todos”, o que não implica qualquer tipo de resto. É, portanto, relevante afirmar que apenas na medida em que a pulsão escópica seja modulada, que ela seja parcial, que deixe sombras, restos, dobras, buracos, enigmas e espaços vazios, é que o olhar, como pulsão, pode despertar e instigar um desejo de saber. Assim, nos resta interrogar como a psicanálise poderá operar sobre o parlêtre no contemporâneo, como ela poderá sobreviver no futuro, em que a dimensão do Outro como imperativo do “fazer-se ver”, sem resto, é a condição prevalente de possibilidade para o terceiro modelo.

À guisa de conclusão, se o primeiro modelo de imagens se presta à contemplação, o segundo proporciona a extração da realidade do objeto olhar, no qual a fotografia é o melhor molde; por último, o terceiro padrão, o qual denominamos digital, acrisolai um novo paradigma, no qual não há prerrogativas de um registro sobre o outro, de tal sorte que o real, o simbólico e o imaginário estão dispostos em equivalência. Agora, o imaginário é pleno de direito, como os demais. Portanto, esse novo paradigma das imagens, apanágio da clínica contemporânea, ocasionou um novo imaginário e novas maneiras de amarrar o RSI. Eis o nosso desafio!

 

(1) O verbo acrisolar diz respeito ao uso do crisol, o cadinho evocado por Miquel Bassols em sua conferência de posse da presidência da AMP, objeto de macerar elementos cuja finalidade é a de criar um novo composto.

 


Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1996, p. 33.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, São Paulo: Graal, 2007.
Freud, S. (1989). Sobre psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 239-251). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1904).
______. (1929) O mal-estar na civilização. In: STRACHEY, J. (ed.).Tradução de Vera Ribeiro. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v.21, p.81-178 (Versão brasileira de 1980).
MILLER, J. A. Intuições milanesas, Opção lacaniana online, n. 5, ano II, Julho de 2011.http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf. Acesso em 5 de dezembro de 2014.
_______. Primeiro dos comentários sobre o atentado ao jornal Charlie Hebdo, publicado no site Opção lacaniana Online. ISSN 2177-2673 Março de 2015, ano VI. Acesso em 30 de março de 2015.
SANTAELLA, L. Imagem: cognição, semiótica e mídia, Sao Paulo: Iluminuras, 2001.
SANTIAGO, J. Revista eletrônica Sephora, Gangues: os efeitos do abalo do Nome-do-Pai no contexto da violência juvenil, n. 16, vol. VIII, maio-out de 2013. Acesso em 1º de dezembro de 2014.
WAJCMAN, G. L’œil absolu, Paris: éditions Denoel, 2010.
ZIADÉ, R. Icônes du Petit Palais, Les Collections de la ville de Paris, 2014.

 

Sérgio Campos

Membro da EBP/AMP. Doutor pela FM-UFMG. Preceptor da Residência de Psiquiatria do IRS/FHEMIG E-mail: sergiodecampos@uol.com.br.




Do Antissemitismo Hoje

AGNÈS AFLALO
O Antissemitismo Com A Shoah

À tradição francesa do intelectual engajado, em geral, e daquele que se posicionou contra o antissemitismo, em particular, não faltam nomes de prestígio como os de Victor Hugoi e Zolaii, para citar somente os primeiros. Mas isso fora antes da Shoah. Não faltaram intelectuais sérios que tentassem pensar a Shoah. Entretanto, ela permanece ainda impensável. Aspectos da Shoah não se deixam capturar por nenhuma escrita e não cessam, dessa maneira, de secretar seu próprio desconhecimento, seu próprio recalque.

Negacionismo e revisionismo não são resultados de uma minoria isolável, irresponsável e limitada no tempo. O triplo atentado contra os jornalistas do Charlie, os clientes do Hyper Casher e os policiais de Paris e de Montrouge, que precedeu em poucos dias a data de aniversário da descoberta do campo de Auschwitz, indica outra perspectiva: a rejeição inconsciente da Shoah mostra-se constante desde o seu primeiro dia até o momento atual. Tal rejeição apenas assumiu diferentes formas desde a descoberta oficial do genocídio em 1945 até a forma mais comum do antissemitismo que conhecemos hoje na França, na Europa, e alhures.

Sabemos que os países em guerra, ainda que informados acerca da existência dos campos durante a Segunda Guerra, não eram capazes de acreditar naquela realidade. Outro detalhe dá uma ideia da rejeição imediata da qual a Shoah foi alvo: durante a abertura do campo de Auschwitz, no momento de nomear aqueles que haviam sido deportados para aí serem exterminados, o nome dado às vítimas do suplício fora aquele referente à sua nacionalidade e não o nome que indicava seu pertencimento à religião judaica, nome esse que os levara à condenação à morte. Como reconhecer a singularidade da Solução final se ela é mal nomeada?

O nome comum não é suficiente para designar o acontecimento. Somente o nome próprio ocupa um lugar no real inominável. Churchill, que foi uma exceção no que diz respeito às intenções de Hitler, antecipara precocemente um crime sem nomeiii. O nome próprio Shoah não designa somente um crime de massa ou um genocídio. Designa uma criação inédita na história da humanidade: a produção industrial da morte perpetrada pelos homens. Essa aliança entre a técnica e a economia é impensável se não levarmos em conta as raízes inconscientes da pulsão de morte que habita cada ser falante, tomado no discurso dominante. Ora, esse discurso dominante, que é o discurso capitalista, é também o discurso do inconsciente.

Isso significa dizer que o Iluminismo é indissociável dessa tendência à crueldade mais ou menos recalcada ou sublimada. Desde Lacan lê-se Kant com Sade. O detalhe pode parecer insignificante, no entanto possui consequências importantes, como a concentração de milhões de pessoas reduzidas ao estado de mercadorias para que se pudesse delas extrair uma mais-valia exorbitante a fim de colmatar a ruptura que habita cada um. Ora, se a mais-valia se desloca de uma mercadoria a outra, é também inseparável do corpo mercantilizado. Dois conceitos permitem apreender essa lógica: o conceito da mais-valia de Marx e aquele de extimidade formulado por Lacaniv. Além disso, no discurso dominante, a mais-valia é padronizada enquanto que, no inconsciente, cada um sofre, à revelia de sua vontade, de um gozo singular, conhecido também como “mais-de-gozar”. Nessas condições, torna-se impossível reconciliar a oferta do mercado e a demanda inconsciente do sujeito. Qualquer colocação fora do jogo do desejo acentuará, sobretudo, o sentimento de fissura, causador de angústia e de ódio, que pode se deslocar até a cisão e desnudar o vazio no coração do ser com seu cortejo de desesperança e revolta.

O antissemitismo existente nos dias atuais não está apenas fundamentado na única ignorância que a escola da República poderia reparar. Está também fundamentado na recusa de se crer na Shoah. Há pouco, um jovem aluno advindo de bairros considerados “vulneráveis” respondia a seu professor de história que lhe ensinava sobre a Segunda Guerra Mundial: “chega de falarmos de judeus, não foram somente eles os mortos durante a guerra!”. Mais uma vez – e esse exemplo é apenas mais um entre muitos outros da mesma natureza – o nome das nacionalidades dos mortos da Segunda Guerra tende a recalcar o nome da Shoah e, assim, a aprofundar a vala comum do antissemitismo ordinário.

Setenta anos depois, restam poucos sobreviventes e testemunhas do Holocausto. É por isso, sem dúvida, que o antissemitismo ordinário ganhou terreno. Em janeiro de 2014, uma manifestação ocupava as ruas de Paris aos gritos de “fora judeus, morte aos judeus!”. Não escapava, então, a Robert Badinter, que se tratava de uma première desde a Ocupação. Quanto mais a série de assassinatos de judeus se multiplica e se banaliza na França, na Europa e no mundo, mais a concentração do ódio antissemita tende a fazer endossar aos judeus o traje do bode expiatório. Ora, no discurso do inconsciente, não há bode expiatório sem homem providencial.

O Homem Providencial E O Bode Expiatório

O princípio do homem providencial e do bode expiatório, bastante conhecido dos monoteísmos, pode ser reduzido à estrutura lógica do Universal e do particular, formalizada por Aristóteles, e a partir da qual Lacan expôs as bases inconscientes. Essa lógica demonstra que a exceção confirma a regra.

Os três monoteísmos – judeu, católico e muçulmano – possuem aspectos em comum e também diferenças. Detenhamo-nos aqui sobre dois pontos concernentes às suas diferenças: o clero e o proselitismo. A religião judaica não concede espaço a nenhum dos dois. Converter-se ao judaísmo é um percurso do combatente. Dentre os três monoteísmos, o judaísmo é o único que não tem a pretensão universal. Em compensação, os proselitismos cristão e muçulmano são bem conhecidos. A história das guerras religiosas de uma parte do nosso mundo é testemunha disso. E sabe-se que, na França, a estratégia da espada e do aspersóriov conheceu uma contenção importante no momento da Revolução, quando o rei perdeu a cabeça e, ao mesmo tempo, seu direito divino.

A organização dos doutores da Igreja constituindo o clero é, sem dúvida, o segredo da estabilidade do catolicismo há mais de 2.000 anos. Por isso, pode-se argumentar que o islã é mais aberto à instabilidade experimentada pelas diferentes correntes que se afrontam, pela falta de um clero que estabilizaria a ortodoxia dominante. Essa instabilidade se propaga simultaneamente à sua pretensão universal. Algumas correntes religiosas são ainda mais nefastas e decidem priorizar as injunções, ou seja, uma aplicação do Corão ao pé da letra e sem as interpretações dos doutores do clero que as humanizariam. Ou, ao contrário, privilegiam as interpretações do Corão elaboradas há muitas centenas de anos (Hadith) sem interrogá-las nem colocá-las em discussãovi. E essa é a razão pela qual a criação de um islã na França, se fosse criado, poderia aí remediar.

O judaísmo, por sua vez, por não possuir a qualidade do proselitismo, não se inscreve na mesma lógica do universal e do particular. O povo do Antigo Testamento pretende de fato ocupar o lugar do elemento particular, isto é, da exceção que confirma a regra, do universal. Desse ponto de vista, o povo eleito é indissociável de seu outro lado – povo pária e martirizado ao longo dos séculos.

A psicanálise ensina que o apelo ao pai conduz sempre ao pior. A história do século XX o demonstra de maneira suficiente. O ódio é um afeto ordinário e comum, mas divinizar o mal é uma tendência tão velha quanto a humanidade e tanto mais intensa quanto os ideais de democracia são impotentes para tratar o mal-estar econômico e social. A vida em sociedade permite sublimar e assegura assim a estabilidade do laço social. No entanto, durante uma situação excepcional de crise econômica de grande amplitude, o laço social tende a se desfazer, a sublimação enfraquece e a satisfação inebriante do ódio retoma o que expusemos acima.

No último século, a crise econômica que se abateu sobre a Europa e o novo mundo favoreceu a expansão do nazismo e do antissemitismo. A expansão econômica após a Segunda Guerra – conhecida como Les Trente Glorieuses, ou, em tradução literal, “Os trinta gloriosos”, fazendo menção aos trinta anos de desenvolvimento, de 1945 a 1975 – favoreceu a integração de imigrantes, de maneira geral, e de judeus, em particular. Entretanto, a crise econômica que se alastrou na Europa e alhures desde o primeiro choque do petróleo retardou a integração de emigrações tardias. Hoje os grupos criminosos do Estado Islâmico fazem ressoar um ódio levado tão mais adiante que ressuscita o homem providencial sob a categoria do Califa. Sua propaganda faz crer numa justiça divina distributiva e sua política do terror dá corpo ao bode expiatório que a ela não se submete. Os últimos atentados que acabam de ocorrer em Copenhague, na Dinamarca, dão uma ideia da determinação dessa ideologia totalitária propagada via internet por uma gangue de criminosos.

O laço que cada um estabelece com sua parte sombria e colérica faz sintoma. Isso quer dizer que não é possível se libertar sem decifrar o inconsciente do qual se é sujeito. Com efeito, a crença no homem providencial força a uma escolha imposta entre o ódio de si e aquele dirigido ao outro que faz o leito do comunitarismo, sempre religioso. A submissão devastadora por meio da qual alguém se deixa tratar como um objeto de ódio e a revolta contra essa depreciação para quem prefere o ódio do outro são dois impasses.

O ódio não é a única resposta possível. Há a resposta própria à ética de cada um. Há também aquela da psicanálise de orientação lacaniana. Ela pode abrir outra via para quem decide contornar um gozo sem nome. É também possível renunciar às sirenes do homem providencial e a seu corolário de bode expiatório para fazer parte de uma fraternidade de discurso. A intranquilidade é assegurada, mas não sem a alegria de viver.

(1) O assassinato de Alexandre II em 1881 desencadeia violentos massacres de judeus. Pouco depois, em 1882, Victor Hugo publica um manifesto em favor dos judeus perseguidos da Rússia nos jornais parisienses L’Évenement, Le Temps et Le Rappel.
(2) A carta aberta “J’accuse…!” de Zola, escrita durante o Caso Dreyfus, é publicada no jornal L’Aurore em janeiro de 1898.
(3) Em seu discurso à Nação, no dia 24 de agosto de 1941, Winston Churchill lança uma advertência aos nazistas: “Desde as invasões mongóis do século XII, jamais assistimos na Europa a práticas de assassinato metódico e sem piedade em escala semelhante. Estamos na presença de um crime sem nome”.
(4) Devemos a J.-A. Miller o fato da elevação do termo extimidade à categoria de conceito durante seu Curso de Orientação Lacaniana “Extimité”, 1985-86, inédito em francês.
(5) NT. Existe uma expressão em francês (expression familier) que diz « le sabre et le goupillon » e quer dizer justamente « l’armée et l’Église », ou seja, o exército e a Igreja. Aqui Aflalo parece referir-se a essa expressão.
(6) “Eu percebo que o discurso religioso, em todo mundo islâmico, fez com que o Islã perdesse sua humanidade”. Entrevista concedida por Abd el Fath el Sissi, então candidato à presidência do Egito, realizada em 6 de maio de 2014 pela CBC e ON TV, duas redes egípcias de televisão.

 


Tradução: Maria das Graças Sena
Revisão da tradução: Clarissa Vieira – TEXTECER

 


Agnès Aflalo
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne e da AMP. E-mail: agnes.aflalo@wanadoo.fr



A Homossexualidade Feminina No Plural

M.-H. BROUSSE

 

A homossexualidade feminina é uma solução para a dificuldade sexual dos seres de linguagem – que são os seres humanos – tão antiga quanto a homossexualidade masculina, mais discreta talvez, menos exposta ao público, mas também constante através das épocas históricas e das diferentes culturas. Talvez ela não ameace do mesmo modo as exigências da família e da ordem patriarcal. Além disso, como mostraram alguns estudos da história das mentalidades, as mulheres, em sua maioria, não foram, no curso dos séculos passados, interlocutoras tão ouvidas quanto os homens, tanto no que se refere a suas opiniões políticas quanto no que diz respeito a suas posições sobre o íntimo. Enfim, a homossexualidade feminina era também o objeto de uma fantasia masculina e, por isso, podia reforçar o desejo masculino: sonho de corpos femininos enlaçados que não demandariam nada aos homens, e por essa razão, os liberaria de um dever que viria pesar sobre o desejo.

A época atual, sem ter se livrado da pregnância de tudo isso, é outra. A psicanálise foi partícipe dessa mudança de várias maneiras. Em primeiro lugar, colocando seriamente em questão uma suposta naturalidade biológica da sexualidade nos seres humanos machos ou fêmeas. Foi preciso se render à evidência do que diziam os sujeitos nesse dispositivo singular que é o dispositivo analítico. E desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud estabelece que a criança é um perverso polimorfo, o que modifica radicalmente para sempre a definição da perversão, operada a partir de critérios tanto sociais quanto biológicos. Por outro lado, a constatação de que as relações homens/mulheres são feitas de rejeições recíprocas leva Freud a considerar que é muito mais fácil dar conta da homossexualidade do que da heterossexualidade. Enfim, a psicanálise constituiu em discurso os dados que, antes, permaneciam restritos à esfera do não-dito ou dos segredos íntimos.

Partiremos de um debate clínico importante na progressão do saber analítico, debate que repousa sobre a comparação entre dois casos freudianos, cada um formalizado em um paradigma segundo o método de pesquisa analítica.

Trata-se, por um lado, do caso Dora, paradigma freudiano e pós-freudiano da estrutura neurótica histérica e, de outro, do caso conhecido como o da jovem homossexual. De fato, trata-se de duas jovens mulheres mergulhadas no mesmo discurso social, no mesmo período histórico. Uma, Dora, ao longo de sua análise com Freud, desvela seu amor e sua fascinação por uma mulher mais velha, amiga da família e amante de seu pai. A outra, que não entra na lógica de um tratamento analítico e teve simplesmente algumas entrevistas com Freud, desorganizou, em nome de um amor por uma mulher mais velha e “mulher da vida”, as conveniências do seu meio e efetuou o que chamaríamos, hoje, de uma passagem ao ato suicida. A questão do suicídio, mesmo não havendo tentativa de suicídio no caso de Dora, está posta, no entanto, já que, em uma nota, Freud evoca a título de comentário a história inventada de um suicídio do pai: “Este é o ponto de ligação com a simulação de suicídio da própria Dora, que assim talvez expresse o anseio por um amor similar” (FREUD, 1905/1989, p. 38).

O caso de Dora, publicado primeiramente em 1905, comporta uma nota de Freud acrescentada em 1923. Nessa nota, ele completa seu texto de 1905, cujas numerosas passagens mencionavam que ele havia reconhecido, desde então, o forte laço amoroso de Dora pela Senhora Ki, através de uma correção radical:

“Quanto mais me vou afastando no tempo do término dessa análise, mais provável me parece que meu erro técnico tenha consistido na seguinte omissão: deixei de descobrir a tempo e de comunicar à doente que a moção amorosa homossexual (ginecofílica) pela Sra K. era a mais forte das correntes inconscientes de sua vida anímica. […] Antes de reconhecer a importância da corrente homossexual nos psiconeuróticos, fiquei muitas vezes atrapalhado ou completamente desnorteado no tratamento de certos casos.” (FREUD, 1905/1989, p. 113-114)

Logo, a homossexualidade sob a forma de “tendência” é claramente indicada por Freud como um elemento-chave do caso e da histeria em geral. A tendência inconsciente, à revelia do sujeito e não culminando num ato sexual, que caracteriza Dora, aparece em oposição à afirmação decidida, consciente e atuada que caracteriza a posição do sujeito que é “a jovem homossexual”. É sobre essa diferença e não sobre a presença ou a ausência da orientação homossexual que Freud coloca, em um dos casos, um diagnóstico de neurose e, no outro, um diagnóstico de perversão. A consequência disso é que ele decide não engajar a jovem homossexual na via de um trabalho analítico, quando, ao contrário, dispensado por Dora da maneira mais brutal, ele se encontra “completamente desnorteado” em pleno tratamento.

Ora, qual é a modelização efetuada da posição de Dora, que, mesmo dando lugar, como já vimos, à sua homossexualidade, não faz disso, no entanto, um elemento-chave da tática freudiana da transferência? O interesse homossexual de Dora pela Senhora K. decorre de sua própria questão sobre o que é a mulher, saber sobre o feminino que ela considera não ter e que ela atribui a essa Outra mulher, por ser ela o objeto do desejo tanto do Senhor K. quanto do seu próprio pai. Freud interpreta assim a cena em que, cortejada pelo Senhor K. – numa ótica de troca, que ela entende perfeitamente e que aliás Freud valida confirmando que concorda com ela –, ele lhe anuncia que “sua esposa não é nada para ele”, ela lhe dá uma bofetada estridente e acaba aí a sua complacência por ele. “Se você não a deseja, você não me interessa mais” (FREUD, 1905/1989, p.103). A ligação com os homens, com o Senhor K. ou com seu pai resulta, portanto, de uma identificação ao amor e ao desejo deles por uma mulher, que permite concluir que esta, contrariamente a ela mesma, é uma verdadeira mulher e detém a chave de um saber que ela não tem. Lacan qualifica essa posição dos homens na estrutura histérica: são os “testas de ferro” do sujeito histérico, testas de ferro de seu desejo pelo feminino. Ela deve passar por eles, pelo amor e pelo desejo deles por outra para ter acesso a uma feminilidade idealizada. O benefício é duplo: evitar ser ela mesma submetida às regras que organizam a posição feminina no discurso do Mestre e elevar o feminino à dignidade de um ideal possível de ser universalizado. Em suma, evitar ser, por ela mesma e para ela mesma, “a mulher de sua vida” e, portanto, inventar uma solução feminina que não valeria senão para ela mesma.

A jovem homossexual não está de forma alguma nessa posição. Diante de seu pai, ela pretende, antes de tudo, afirmar o que são verdadeiramente um amor e um desejo por uma mulher. Ela está, portanto, em posição de challenger, de desafio: somente uma mulher pode amar e desejar outra mulher como convém. Sua identificação não é com o masculino. Certamente, a Dama é escolhida não somente pelo seu saber sexual, mas igualmente por sua rejeição às convenções dominantes, por sua ousadia frente ao poder masculino e patriarcal. É sua posição de rejeição e desafio ao Pai que a caracteriza. Sua cruzada é A mulher que seu amor vem completar.

As pesquisas e as publicações recentes sobre a lógica da vida e as escolhas posteriores da jovem homossexual não validam necessariamente o diagnóstico de perversão colocado por Freud e nos convidam, de preferência, à prudência. Mas a neurose, com a divisão subjetiva que a caracteriza, permanece claramente, contudo, a ser descartada, como ele o fez.

Lacan retomou várias vezes o caso Dora. Ele o formalizou. Sobre a questão da homossexualidade feminina, ele mostra claramente como o preconceito freudiano interrompeu a dinâmica da análise (LACAN, 1951/1998). Na sequência do seu ensino, ele esclarece esse preconceito como um ponto limite do próprio Freud sobre o pai, que ele qualifica no Seminário, livro XVII de “sonho de Freud”. Estamos, então, em 1969-1970, e o desvanecimento do esplendor e do poder da função paterna, que organizou durante muito tempo todos os níveis dos laços sociais, concluiu-se. Mesmo o prestígio do Nome, da nominação, se fragmentou em múltiplos nomes. Uma mutação profunda operada pela Ciência e seus saberes sobre a tradição que organizava até então o discurso do Mestre, aconteceu. Ela substituiu o nome pelo número, o governo pela gestão e pela administração. A psicanálise constatou os efeitos dessa mutação nos modos de satisfação e, correlativamente, nos sintomas dos sujeitos. O ensino de Lacan leva, portanto, a partir dos anos 1960-1970, a clínica e a teoria da psicanálise na direção de um para-além do Pai.

Jacques-Alain Miller mostra os novos fundamentos dessa orientação lacaniana. Por um lado, o Um não é mais aquele da exceção paterna a partir da qual se podia deduzir um universal que definia a posição de todos. Os uns são cada um e cada uma, sozinhos. O sistema simbólico tem que se submeter a isso, e o estilo de vida de cada um é, para cada um, sua própria norma. O universal reconhecido é atribuído ao único saber científico que se erige em norma no discurso do Mestre, em normas estatísticas, e não mais norma resultando da exceção. Por outro lado, o modo de gozo encontra seu fundamento não mais no laço pai-mãe, mas na descoberta de que não existe relação sexual que possa se escrever entre seres que não têm senão a linguagem e a palavra para se ligar, ao contrário da relação que a ciência escreve entre as células. Resulta disso que feminino e masculino não esgotam em nada as posições de desejo. Freud já havia esbarrado nas definições tentadas a partir do passivo e do ativo, inoperantes na vida sexual e amorosa.

Nessas novas coordenadas, o que acontece hoje com a homossexualidade feminina? Nossa hipótese é a seguinte: a posição histérica não requer mais passar pelo pai e pelos homens para ter acesso ao feminino. Não há mais necessidade do “testa de ferro”. Nada mais falta às mulheres, diz Lacan no Seminário, livro V. Ele vai mais longe ainda no Seminário, livro XX, mostrando a dissimetria entre o masculino e o feminino, em que o sistema paterno-centrado só podia conceber como complementares e/ou rivais. As mulheres não são um conjunto complementar dos homens, regido por uma mesma lógica conjuntista. Lacan considera, portanto, o feminino como suplementarii. Todos homens, macho e fêmea, pai e mãe, irmão e irmã, amante homem e amante mulher, no sentido de todos os seres humanos submetidos à universalização, isto é, seres que habitam a linguagem, mas não todos do lado feminino. Um exemplo surpreendente desse feminino não simétrico tomado por Lacan (1972-1973/1985) é São João da Cruz, cujo sexo não é colocado em dúvida, já que a Igreja Católica se assegura sempre disso antes da ordenação. Finalmente, a identificação masculina é requerida para ser uma mulher, o que não quer dizer que ela baste para fazer uma quanto ao gozo. A posição histérica estava, portanto, bem adiantada.

Nessas condições, seria lógico ver as Doras de hoje passarem de uma posição homossexual inconsciente, portanto recalcada, e de uma ausência de atuação desse amor homossexual constatado por Freud, a uma posição consciente e a um acting out da atração pelo feminino na outra mulher. Um acting out, o que isso quer dizer? Uma formação do inconsciente, sob o modelo do sonho, do chiste, ou como Lacan propõe, no Seminário, livro X: A angústia, uma encenação da questão do sujeito, ao mesmo tempo que sua interpretação. Em suma, uma interpretação da posição do sujeito através de sua questão sobre a escolha de seu modo de satisfação, nesse caso: o que é A mulher? Enigma que polariza a relação da histérica com o inconsciente.

A clínica vem confirmar ou invalidar essa hipótese? Numerosas análises de sujeitos femininos numa posição histérica vêm confirmá-la.

Tomarei quatro casos de sujeitos histéricos, dentre muitos outros. Esses sujeitos são da mesma geração, entre vinte e cinco e trinta e cinco anos. As quatro trabalham em profissões nas quais, de maneira diversa, seu desejo está engajado. Elas são autônomas financeiramente, fato tão importante quanto evidente para elas. As quatro começaram sua vida sexual com homens, tanto em suas primeiras emoções sensuais na infância quanto em suas primeiras experiências sexuais, mesmo tendo laços de amizade extremamente fortes com amigas. Mesmo que uma delas não tenha nunca vivido com o seu parceiro, as outras três levaram um vida de casal com seu companheiro, vida de casal assumida diante das respectivas famílias e reconhecida por elas. Uma delas teve um filho com o seu parceiro. Nenhuma delas se casou, no entanto, durante essa união, num acordo com o parceiro, seja por ideais “compartilhados”, seja adiando o casamento. A um dado momento, sem que seja possível extrair daí algum elemento comum aos quatro casos, ou seja, em circunstâncias e por razões muito diferentes, elas romperam esse laço. A posterior escolha delas foi por uma mulher, e essa escolha ou foi definitiva ou foi reiterada várias vezes. Elas viveram, portanto, desde então, com uma mulher sem fazer da homossexualidade uma identificação. Não somente elas “se apaixonaram”, mas também a relação física não constituiu um problema. Todas assumiram, com maior ou menor dificuldade, essa escolha junto a suas famílias e, mais além, em relação ao seu meio social. Duas das quatro têm um desejo de filho que elas não concebem fora do laço com sua companheira e que colocam em questão suas respectivas posições no casal formado: o retorno da rivalidade assim que se introduz o objeto, nesse caso, o filho. As dificuldades encontradas não as trouxeram de volta para os parceiros homens, mesmo que algumas continuassem a ter relações de sedução ou mesmo relações sexuais passageiras com homens. Suas escolhas amorosas remetem cada uma a traços que pertencem a uma Feminilidade idealizada: uma feminilidade que elas não têm, segundo afirmam, e que as fascina, como se fosse um enigma, uma feminilidade na qual não se reconhecem e não desejam para si mesmas. Pode-se recorrer à afirmação de Lacan no Seminário, livro XX, segundo a qual as mulheres homossexuais gostam do Outro sexo para perseguir um gozo outro, distinto do gozo de um objeto que faz falhar a relação desejada com esse outro, tornando-as, portanto, “hétero” orientadas. Sem passar mais pelo amor e pelo desejo de um homem, elas foram diretamente na direção desse Outro sexo que as fascina, que elas amam. O laço com essa mulher suposta outra que não elas mesmas, suposta outra a lhes revelar sua própria feminilidade, conduz o encantamento amoroso a um limite. Pode ser o retorno do mesmo (LACAN, 1972-1973/1985) quando o surgimento do objeto reacende a rivalidade. Pode ser a estranheza daquilo que elas consideram como a loucura do fora de limite de sua parceira. Pode ser o retorno à mãe que mergulha novamente o sujeito numa posição de criança, equilibrada por uma posição donjuanesca em relação a outras mulheres a conquistar. Pode ser a descoberta do impasse da posição masculina, no estilo arroseur arroséiii. Mas, em razão do amor pelo pai, não há nunca o acesso ao não-todo fálico. Simplesmente mulheres que se autorizam a ser homens como os outros, à procura de um gozo delas, inacessível. Nessas condições, o desenvolvimento contemporâneo da homossexualidade feminina é uma simplificação que decorre do fato de que, sexualmente, hoje o sujeito se autoriza somente por si mesmo, como já dizia Lacan em seu Seminário, livro XXI.

E a Jovem Homossexual, o que aconteceu com o seu paradigma? A hipótese é mais difícil de ser colocada. Que ela não provoca mais escândalo, não há nenhuma dúvida. Mas essa não era a sua única visada. As mulheres orientadas desde a infância, de modo assertivo, para a homossexualidade, para as quais a relação sexual com os homens é sem atrativo ou mesmo impossível, são, no que diz respeito à minha experiência de analista, menos numerosas, pelo menos a procurar por uma análise. É importante notar que o diagnóstico de perversão, tal como ele é concebido por Freud, não é garantido.

A partir da clínica, um ponto nos parece importante. A questão do sujeito definindo-se como “homossexual” não incide sobre o “enigma da sua feminilidade corporal”. Esses sujeitos se definem como mulheres, sem se questionar e sem reivindicação em relação aos homens em geral ou, em particular, a respeito daqueles que poderiam participar de sua vida amorosa. Elas não olham para os homens e os homens não lhes interessam. O desejo está ausente, o amor, nem sempre. Isso quer dizer que não há divisão subjetiva sob diferentes modalidades? Não, mas essa divisão não diz respeito à sexualidade feminina. Uma clínica está para ser construída, estendendo-se sem dúvida da neurose à psicose, clínica que Lacan evocava a respeito do misticismo a ser diferenciado em suas formas neurótica, psicótica ou perversa. A hipótese que vamos propor, bem modesta, é que esse tipo de escolha homossexual, em alguns sujeitos, está ordenada pela separação do objeto de qualquer valor de troca fálica e, portanto, trata-se de sair da cena dos discursos. Ideal de fusão ou de desaparecimento. No primeiro plano, não vêm os significantes, a linguagem, mas eventualmente a letra, fora do discurso, não fora da escrita, o que vai de encontro à observação pela qual nós começamos e segundo a qual a homossexualidade feminina foi coberta pelo silêncio durante muito tempo.

Parece, portanto, necessário diferenciar, numa clínica psicanalítica, as funções clínicas diferentes da homossexualidade, pois está claro que ela não corresponde a uma estrutura única.

De um lado, uma homossexualidade, que é um novo sintoma histérico, fundamentada numa idealização de A mulher como Outro, para ela mesma e em geral. Essa solução diz respeito ao objeto colocado no feminino, não o sujeito, que permanece preso numa posição masculina, deixando a parte mais importante para a fantasia. Essa homossexualidade, universalizando o feminino como figura do Outro, responde ao princípio do todo em uma época em que a exceção paterna está falhando. Ela coloca no lugar deixado vazio pelo Pai e seus avatares, A/Mulher como o escreve Lacan no Seminário, livro XX: Mais, ainda (colocando uma barra sobre o A), diretamente e sem mais máscara ou chicane. O homem tornou-se um desvio inútil. Nessa perspectiva, a homossexualidade responde como sintoma à questão da falta no Outro.

Por outro lado, uma homossexualidade feminina, é a escolha de gozo decidida, que permite ao sujeito se apreender ele mesmo como mulher. Essa solução não depende tanto da escolha do objeto quanto da identificação de si próprio como verdadeira mulher e implica em continuidade numa identificação com a parceira escolhida como objeto semelhante. A idealização pode acontecer, mas não é necessária. Essa homossexualidade não repousa sobre um eixo de identificação vertical, mas horizontal e metonímico: a mesma, se amar podendo se escrever, se “mêmer”iv numa pessoa semelhante. Dependendo da dimensão dessa identificação, imaginária ou simbólica, a estrutura psíquica do sujeito é diferente. Psicose, quando esse mesmo é imaginário e constitui então um verdadeiro duplo do sujeito que lhe dá a solidez que falta quando não está presente a identificação simbólica ou real. Neurose, quando essa identificação imaginária recobre uma identificação simbólica recalcada. Perversão fetichista, quando ela se opera a partir da fixação de um traço. Em todos os casos, a homossexualidade é uma resposta pelo modo de gozo à falta a ser do sujeito.

Resta uma terceira via de investigação, ainda pouco aprofundada clinicamente. Qual seria a homossexualidade feminina que se situaria na esteira operada pela definição do feminino que encontramos no Seminário Mais, ainda, de Lacan? Existe uma possibilidade de considerar uma homossexualidade que se situaria do lado do que Lacan chama – apoiando-se sobre uma formalização lógica – de “não-todo”, em oposição ao “para-todo”, esse princípio de funcionamento do universal que é uma ficção, que depende da estrutura da linguagem e do discurso que permite, no caso, o funcionamento político.

De qual “não-todo” a homossexualidade feminina seria, por sua vez, o revelador? Nós propomos: “não todo sexo”. Seria uma solução que limitaria o sentido sexual não da forma como o faz a psicanálise a partir do “não existe relação sexual”, mas levantando a bandeira do amor: uma espécie de sublimação pela alma. No deserto da ausência de relação sexual que não vem mais velar o pai e as exigências da ordem familiar, essa solução seria uma tentativa de fazer existir, pela escrita no corpo, o acontecimento de um gozo localizado fora dos órgãos sexuais. Esses, de fato, estão sempre submetidos, no campo do real, à reprodução, que não exige que os seres falantes se encontrem na linguagem, no campo do simbólico, à fantasia e à pulsão, portanto, ao autoerotismo. A menos que se tome como A Mulher e que se faça retorno ao “para-todo” na impossível posição da exceção, essa solução pelo retorno a um corpo não regido pelas exigências do sexo, que se decline como sentido ou de uma maneira biológica, tem uma característica: ela não pode pretender ao universal. E, consequentemente, parece pouco compatível com uma escolha exclusiva e definitiva: uma homossexualidade “não-toda”, não no sentido de incompleta, mas de não totalitária, que não pode ser, portanto, um fator de identificação nem um modo de vida.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão da tradução: Ana Lydia Santiago

 

(1) “Por trás da sequência hipervalente de pensamentos que se ocupavam com as relações entre o pai de Dora e a Sra. K. ocultava-se, de fato, um impulso de ciúme cujo objeto era essa mulher – ou seja, um impulso que só se poderia fundamentar numa inclinação para o mesmo sexo. Há muito se sabe e já se tem assinalado que, na puberdade, com frequência, tanto os meninos quanto as meninas, mesmo nos casos normais, mostram claros indícios da existência de uma inclinação para pessoas do mesmo sexo.” (FREUD, 1905/1989, p. 62)
(2) “Vocês notarão que eu disse suplementar. Se estivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo.” (Lacan, 1972-1973/1985, p.99)
(3) NT. Arroseur Arrosé é o título de um filme dos irmãos Lumière (1895), que se popularizou como uma expressão que significa “ter seus atos que retornam contra si mesmo” e que equivaleria à expressão em português “o feitiço se volta contra o feiticeiro” ou mesmo estilo “bumerangue”. No filme, um jardineiro rega seu jardim. Um garoto coloca o pé sobre a mangueira. O homem olha o bico para ver se está entupido. O espertinho retira o pé e o jardineiro recebe o jato na cara. Ele corre atrás dele, lhe dá uma palmada e o molha também.
(4) NT. Aqui a autora joga com a homofonia das palavras “s’aimer (se amar) et “même” (mesmo), criando um neologismo, o verbo “se mêmer”, ou seja “amar o mesmo”.

 


Referências Bibliográficas
FREUD, S. (1905) Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de janeiro: Imago, 1980. (Edição standard das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 7)
LACAN. J. (1951) “Intervenção sobre a transferência”. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 214-225.
______. (1957-1958/1999) O Seminário. Livro V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
______. O Seminário. Livro X: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
______. (1969-1970/1992) O Seminário. Livro XVII:o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
______. (1972-1973/1985) O Seminário. Livro XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
______. (1973-1974) O Seminário. Livro XXI: les non-dupes errent. Inédito

 


M.-H. Brousse
Psicanalista, AME da ECF, EOL, NLS e AMP. E-mail: brousserichard@wanadoo.fr



Almanaque On-Line Entrevista

RÔMULO FERREIRA DA SILVA

 

 

Como Estão Os Preparativos Para O VII Enapol? O Que Podemos Esperar Desse Encontro?

Rômulo Ferreira da Silva: Primeiro eu gostaria de agradecer o convite para fazer a abertura das atividades do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais e da EBP – Minas Gerais e a oportunidade de falar ao Almanaque on-line sobre o 7º Enapol. Esse Encontro tende a privilegiar os trabalhos oriundos dos Institutos do Campo Freudiano. O Congresso da EBP, que ocorre a cada dois anos, em alternância com o Enapol, privilegia os trabalhos dos membros da EBP. É importante que os trabalhos desenvolvidos nos institutos possam aparecer na comunidade analítica da AMP.

A Comissão Científica pretende ler cada trabalho enviado, fazer observações e pedir retificações, ou seja, estabelecer um intercâmbio com os autores. Quanto mais tempo tivermos para que se estabeleça esse intercâmbio, melhor.

Além das mesas simultâneas, nós vamos ter as Conversações. Serão quinze Conversações. Esse trabalho está sendo coordenado por Ana Lydia Santiago, que faz parte da Comissão Científica do Enapol. Para cada tema da Conversação há um representante de cada Escola: EBP, NEL e EOL. Cada um desses representantes coordena um grupo de trabalho, que desenvolverá o estudo sobre o tema nos próximos seis meses que temos pela frente.

Os textos serão colocados no site para que todos possam participar da Conversação, tendo já lido o trabalho na íntegra.

Sobre a programação das plenárias, posso adiantar que teremos três mesas de AE: duas com os AEs mais antigos e outra com os AEs que ainda não fizeram testemunhos para um público maior da comunidade analítica da FAPOL.

Teremos também duas mesas plenárias para as quais serão elaboradas perguntas que articulem o tema do Enapol e a clínica.

Os Eventos Da Orientação Lacaniana Também Se Articulam Com A Cidade E Suas Manifestações Culturais. O Que São Paulo Irá Oferecer Aos Participantes Desse Encontro?

Rômulo Ferreira da Silva: Na articulação com as artes, temos já alguns convites confirmados.

1 – Regina Silveira, artista plástica de São Paulo. O trabalho de Regina é internacionalmente conhecido e nos oferece um panorama de como o artista se antecipa ao psicanalista, como nos disse Freud. Regina apresenta imagens que não têm compromisso com o sentido pré-estabelecido e que irrompem no real.

2 – Maria Adelaide Amaral, dramaturga, nos fornece um trabalho de textos, peças de teatro, seriados e novelas acumulado ao longo de todos esses anos de carreira. As imagens que capturam, mas que não apresentam, necessariamente, uma articulação com a ordem simbólica vigente.

3 – Gil Jardim, maestro, professor da USP, vai trabalhar o império das imagens sonoras. Além do percurso histórico da música, com a introdução de elementos fora do padrão instituído oficialmente pelas escolas de música, Gil nos apresentará um pouco de sua produção que repercute no nosso tema.

Estamos também seguindo um pouco o que aconteceu no final do ano passado aqui em Belo Horizonte, tentando colocar outras manifestações de artistas contemporâneos que possam, nos intervalos e nos eventos festivos, conversar com a Psicanálise.

Estamos organizando um coquetel também – a parte da festa é muito importante! O coquetel ocorrerá no Clube Hebraica, próximo ao local do evento. A festa será após o encerramento, um happy hour no domingo.

Como temos feriado na segunda-feira, 7 de Setembro, eu oriento que vocês fiquem um dia a mais, porque estamos fazendo uma bela programação de tudo o que está ocorrendo em São Paulo. A cidade está vazia nessa época, então fica bem interessante ficar um dia a mais.

A EBP Está Comemorando 20 Anos. O Que Mudou Do Imaginário De 1995, Presente Naquele Encontro De Fundação, Para O De Hoje?

Rômulo Ferreira da Silva: “O Império das Imagens” é o nosso tema. Ele remete, num primeiro momento, à fundação da nossa Escola. A nossa Escola foi fundada há 20 anos, e o tema do primeiro Encontro Brasileiro, que ocorreu no Rio de Janeiro, foi “A Imagem Rainha”. Nada mais interessante do que retomar essa história. Nós tínhamos no Brasil, à época, vários grupos lacanianos. Foi feito um trabalho, creio que durante uns cinco anos, pelo menos, para que houvesse uma grande conversa entre esses grupos, a partir do qual iniciou-se a troca de experiências epistêmicas e institucionais.

Esse movimento “Iniciativa Escola”, que, a partir de São Paulo, teve Jorge Forbes como seu grande incentivador, chegou ao seu ápice na fundação da Escola Brasileira de Psicanálise. Do corpo despedaçado, do corpo lacaniano despedaçado no Brasil, nós pudemos fazer uma “Imagem Rainha”.

Esse instante de ver foi vivido por nós, que lá estávamos, como um júbilo. Além do baile de máscaras em comemoração ao acontecimento, tivemos a presença da ex-Miss Brasil e ex-Miss Universo Marta Vasconcelos. Então, a “imagem rainha” em pessoa, na fundação da Escola. Dessa maneira é que, pegando o início da Escola como esse momento de júbilo de constituição dessa “Imagem Rainha”, depois de 20 anos, nós podemos tratar do Império das Imagens, que é uma outra coisa.

O Imaginário, Tal Como Nessa Mudança De Perspectiva Marcada Pelos Temas Desses Dois Encontros, Pode Ser Recortado Em Diferentes Momentos Na Obra De Lacan. Que Recorte Será Privilegiado Na Orientação Epistêmica Do VII Enapol?

Rômulo Ferreira da Silva: Escolhi abordar o tema do Enapol baseado no meu percurso, de como passei da Psiquiatria para a Psicanálise, levando em conta que foi meu trabalho com a psicose que me fez, de fato, me dirigir à Psicanálise.

Penso que Lacan, desde o início de seu ensino, foi muito visual, sempre utilizando-se de desenhos, grafos e fórmulas. No texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, com aquilo com que eu me deparava, como fórmulas e grafos, me sentia, muitas vezes, mais perdido do que como depois de começar a ler o texto. As figuras me desorientavam. Mas foi nessas idas e vindas que pude avançar um pouco na questão da psicose.

Esse percurso, me parece, dá uma ideia do que é o caminho do Imaginário em Lacan.

Lacan começou seu trabalho propriamente psicanalítico com o Estágio do Espelho. Escrito cinco anos após sua defesa de tese sobre o caso Aimée, a coisa começou a se complicar porque tem um recurso à biologia para tentar dar conta da constituição do eu baseado no legado freudiano.

No Estágio do Espelho pode-se observar o que Lacan propõe como aquilo que se dirige a um outro, para obter, desse outro, a imagem de si mesmo. É no Estágio do Espelho que temos o imaginário promovendo a Gestalt do sujeito.

Um passo além é a introdução do esquema L. Ele é apresentado como um Z, que introduz o grande Outro.

Lacan diz que esse esquema L é para a neurose ou psicose, tanto faz. O sujeito está estirado nos quatro cantos. Se estiramos o esquema Z sem a tensão colocada nos vértices dos dois triângulos que se desenham, temos uma linha reta. Como um elástico, esse Z, agora figurado em linha reta, pode perder seus pontos de tensão das extremidades e se configurar como um único ponto, fazendo coincidir S, a, a’ e A. É um destino possível da psicose.

A partir da linha tracejada que vai de A ao S, se estabelece a configuração da neurose à diferença da psicose, pois o atravessamento do simbólico no eixo imaginário dá uma espécie de garantia da tensão que mantém o sujeito neurótico estirado nos quatro cantos. O tesouro dos significantes atravessa a relação imaginária, divide o sujeito e redefine o a’, a imagem que se faz a partir da relação especular, pura e simplesmente.

Nessa operação que se faz aqui, então eu guardaria o esquema L sem o atravessamento do grande Outro na relação imaginária para pensar a psicose. E na neurose seria importante dar esse passo, que é o Outro atravessando a relação imaginária, barrando o sujeito que está do outro lado.

Para ir um pouco mais rápido, passo ao esquema R, no qual Lacan estabelece, de fato, o triângulo imaginário numa relação de importância inferior ao triângulo simbólico estabelecido pelo Complexo de Édipo.

No esquema I, esquema de Schreber, desaparecem os dois triângulos, e o real toma todo o espaço, antes para a neurose, restrito uma faixa que mais tarde será configurada como uma faixa de Moebius. Não é à toa que, depois do seminário VI, Lacan se dirige à Ética. É um momento de impasse, porque até então o paradigma era a neurose, e daí Lacan passa a colocar a psicose como paradigma. Dando um grande salto no ensino de Lacan, novamente quando ele toma um caso de psicose, não mais Schreber, mas Joyce, no Seminário XXIII, e apresenta, para cada psicose, um nó específico. Para Schreber, o nó de trevo numa continuidade entre os três registros.

Até então, Lacan trabalhou os três registros amarrados borromeanamente pelo quarto nó, o sinthoma, como sendo o nó para as neuroses. Para Joyce ele desenha um nó não borromeano, também amarrado pelo sinthoma. Da independência dos três registros para as neuroses, Lacan subverte essa proposta, avançando, desde esse Seminário, à página 118, para um novo imaginário. Nos dois seminários seguintes, XXIV e XXV, Lacan propõe um imaginário disjunto do simbólico em relação ao real. Nessa disjunção aparece um imaginário sem compromisso com o sentido, e, portanto, mais adequado ao real.

Pela inadequação do simbólico ao imaginário, o que nos resta é imaginar o real. Há uma barreira a essa operação que Lacan nomeia como nossa inibição em imaginar o real. O final da análise seria a via de pensarmos a ultrapassagem dessa inibição e a possibilidade de dar uma imagem ao real, disjunta da ideia de fazer disso um possível sentido?

Para complicar nossa discussão, faço referência aos dois termos que Lacan utiliza ao longo de toda a sua obra: imaginer e imager. Imaginer, imaginar, aparece carregado de sentido; imager, que traduzo por “imajar”, nos inspira a pensar que imagens podem bordear o real sem a pretensão de dar-lhe sentido.

Dessa forma, hoje, a clínica com os autistas pode nos ensinar algo mais sobre o final de uma análise, assim como a psicose estimulou Lacan a se dirigir para uma proposta de que a análise tem um fim e para a criação do dispositivo do Passe.




As imagens na Clínica e nas instituições

CRISTIANA PITTELLA E MARGARETH COUTO

 

 

A investigação do tema das imagens proposto pela Seção Clínica do IPSM-MG “As imagens na clínica e nas instituições: ver, fazer, mostrar”, em consonância com a do VII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (Enapol) “O Império das Imagens”, nos traz uma série de questões que atravessam cotidianamente nossa clínica com crianças tal como afirma seu argumento: “as imagens, em certo sentido, se sobrepuseram às palavras e assumiram o poder de ordenar, comandar e organizar nossas ações” (SOUTO, 2014).

Qual a função das imagens para o ser falante? Como essas imagens afetam seu modo de satisfação, suas identificações e suas escolhas de objeto?

Quais as consequências para a forma de apresentação dos sintomas? De que maneira podemos tratar pela palavra aquilo que se apresenta sob o domínio das imagens? Essas são indagações propostas a cada um dos núcleos e que permite à Psicanálise se inserir nesse campo de debate a partir de sua especificidade: a relação entre a imagem e o real.

I – O Domínio Das Imagens Na Cultura

Vivemos uma verdadeira proliferação e profusão de imagens. O consumo das imagens – via diferentes tecnologias, das mais antigas, como a televisão, até as mais modernas, como a internet e seus diferentes dispositivos de redes sociais para captação e publicação de imagens – reforça a noção de estar junto, enfatiza o ideal comunitário assim como uma fascinação pela vida do outro, um imperativo de fama e celebridade. Cria-se a ilusão de que não estamos sozinhos ou de que compartilhamos do mesmo mundo. Esse turbilhão de imagens formando um espetáculo onde tudo deve ser filmado, mostrado e visto, constitui um verdadeiro império das imagens.

Hector Gallo, no terceiro Boletim do Enapol, lembra-nos que a palavra império, tomada do latim imperium, denota ordem, mandamento, soberania. Evoca, portanto, as noções de poder, comando e domínio. Para ele, afirmar que assistimos, no século XXI, a um império das imagens, supõe considerar que estamos submetidos a tudo aquilo que se localiza do lado da representação, da aparência, da virtualidade, daquilo que se pode ver, e do semblante.

Até mesmo o saber científico que foi constituído sob a base de ir além do dado perceptivo rendeu-se ao poder da imagem. Cada vez mais os diagnósticos médicos baseiam-se na evidência de imagens. A hipótese diagnóstica, fundada na história sobre o sintoma, contada pelo sujeito, tornou-se obsoleta.

Quando Guy Debord escreveu A sociedade do espetáculo (1967), analisava o discurso midiático, principalmente o da televisão, de criar o poder do espetáculo. Para ele, o espetáculo concentra todo olhar e toda consciência, afirmando toda vida humana como simples aparência. O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo. O mundo real transforma-se em imagens e o espetáculo é uma tendência a fazer ver o mundo que não pode ser tocado diretamente.

O momento de teorização de Debord supõe uma cisão entre o mundo real e o mundo das imagens, e seu trabalho denuncia o exagero da mídia que ultrapassa sua função de comunicar chegando aos excessos, criando uma espetacularização da realidade.

Para ele, a lei fundamental desses tempos espetaculares seria “Se uma coisa existe, já não é preciso falar dela” (Debord, 1997, p. 170): basta ver! Enfim, a imagem substitui a palavra, e o princípio do fetichismo da mercadoria se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens. No pensamento de Debord, o espetáculo das imagens impediria o acesso ao real.

Entretanto, para Gérard Wajcman, autor do livro L’oeil absolut (2010), na contemporaneidade assistimos a uma mutação sem precedentes na história humana com a introdução de um novo regime do olhar. Para ele, o mundo tornou-se um imenso campo do olhar, onde tudo se mostra. Trata-se de uma ideologia surgida nas últimas décadas do século XX, sustentada pelas ciências e aliada aos avanços tecnológicos cujo imperativo é: “todo o real deve ser visto”. Isso supõe a visibilidade do real de modo que nenhuma opacidade possa resistir ao Olho absoluto. Essa ideologia que exalta o princípio de transparência e a suposição de que o real seria inteiramente transparente se estendeu em todos os domínios da sociedade. A consequência dessa máxima é que tudo que não pode ser visto não existe: “máxima do Instagram: publico, logo, existo”. Trata-se não mais de uma espetacularização do mundo, tese desenvolvida por Guy Debord em 1967, mas de uma big brotherisação, uma exigência de visibilidade. O mestre pretende hoje ter o poder de ver tudo. Somos olhados o tempo todo, tornando-nos vítimas ou atores, objetos e agentes desse olhar. Para ele, as câmeras de videovigilância são as armas desta época.

Se a criança era um ser antecipado pelas palavras, aquele de quem os futuros pais falavam de seu desejo ou temiam a vinda de um filho, a criança era imaginada. Hoje a criança é vista; antes de vir ao mundo se encontra imersa em um mar de olhares das máquinas tecnológicas: um feto é primeiro um ser virtual, uma imagem apresentada e vista nas redes sociais. “O olhar posto na imagem do feto cria a criança”. As imagens médicas inventam um novo nascimento, nos diz Wajcman, e a consequência, ele ressalta, é a crença de que seríamos solúveis no visível, sem restos.

Quais os efeitos da presença desse Olho que pretende ver tudo – na vida, no modo de satisfação e na produção do sintomas contemporâneos? Como o gozo de modalidade escópica incide na subjetividade da criança e do adolescente nos dias de hoje?

Poderemos também investigar como algumas mães angustiadas, ajudadas pelas tecnologias e pelo mercado, encarnam hoje esse olho – vigiam seus filhos, espionam e o devoram com os olhos. Na tentativa de desangustiarem-se, objetificam as crianças.

Na entrevista concedida à Marie-Hélène Brousse, Wajcman discute a esquize, proposta por Lacan no Seminário, livro XI, entre o olho e olhar. Afirma que, na atualidade, haveria uma tentativa de eliminar essa cisão estrutural e que talvez se trate, em nossa época, mais de uma sujeição do olhar ao domínio do olho que tenta tornar-se mestre, vigilante, mas que, porém, nada olha. Enfim, encontramos uma multiplicação das próteses do olho e uma deterioração do olhar.

Para Wajcman, a ascensão do objeto olhar ao zênite social, ou seja, à posição de comando, implica mais um olho sem sujeito, um olho considerado quase em seu estatuto Real, um Olho Absoluto. Trata-se da redução da dimensão do olhar (da castração), enquanto uma pulsão escópica, a uma questão da visão, que é uma preocupação tecnológica.

Wajcman pergunta-se o que faz a psicanálise em um mundo onde prevalece a exibição generalizada dos sujeitos, onde se está não somente invadido pelo olhar do mestre, mas também pela exibição generalizada dos sujeitos. Ele reivindica o direito de esconder e propõe uma nova circunscrição à opacidade, pois vivemos em uma época em que nada mais fica oculto ou em silêncio. Lembra-nos também de que há uma estruturação subjetiva que resiste e que parece irredutível: a divisão do sujeito entre imagem e aquilo que escapa a isso, entre o que pode ser enquadrado e o que não pode se enquadrar. A grande questão na atualidade é como esse sujeito se encontra nesse discurso, nessa ideologia que pretende o contrário, que pretende abolir a sua divisão como sujeito e que exige que tudo deva ser visto.

Assim, se essa proliferação da imagem serve à tentativa de eliminar a cisão estrutural do sujeito, fazendo crer que, por meio das imagens, seria possível um domínio do real, cabe à investigação clínica localizar como cada um poderá resistir e/ou fazer uso da oferta das imagens como uma solução.

II – As Imagens Na Psicanálise

O Estágio Do Espelho: Velar O Real

O animal tem um saber instintual inscrito no real do corpo. A partir do encontro com a imagem de outro animal – seja visual, olfativa, auditiva –, ele saberá o que fazer: se deve atacá-lo, defender-se, copular etc. Esse saber indica um funcionamento cuja estrutura – como a de um nó entre o imaginário e o real – lhe garante um comportamento adequado. É o caso da pomba, que tem a ovulação desencadeada quando vê um congênere ou sua própria imagem refletida em um espelho; entretanto, quando isolada, não ovula. Com os pavões também, as fêmeas escolhem para copular os machos que ostentam as maiores e mais fartas caudas!

E para o ser falante, qual a importância da imagem?

Lacan se interessa pela etologia justamente para pensar o poder real de uma imagem para o ser falante, ou seja, aquele que não possui instinto.

Sabemos que o simbólico preexiste ao sujeito – seu nome e a constelação de sua vinda ao mundo –, mas ele terá que construir seu nó: sua realidade e seu corpo. Sua experiência inicial é, portanto, de um caos pulsional, de uma fragmentação.

Com a formalização do estádio do espelho, Lacan (1949) verifica que a imagem tem um poder de realização, ou seja, em condições específicas, a imagem produz efeitos reais.

O estádio do espelho constitui-se como um processo de identificação, ou seja, a transformação no sujeito quando ele assume uma imagem e a reconhece. Trata-se de uma imagem exterior – refletida no espelho ou encontrada em um outro semelhante –, que vela e dá unidade ao corpo fragmentado. O narcisismo em Freud é justamente um ato psíquico que se constitui pela projeção de uma superfície corporal, trata-se da experiência fundamental da formação de um eu. Do que se trata esse ato psíquico, qual a condição específica para que a imagem realize esse poder de unificar o corpo? Como se dá esse laço entre a imagem e o real?

Lacan nomeia esse processo de espetáculo cativante. É um momento de constituição do eu e também um momento lógico da estruturação da subjetividade a partir do Outro. O ser falante, dada a prematuração do humano, depende do Outro como nenhum outro animal. Desse modo, a função da imagem compensa o inacabamento anatômico e a verdadeira prematuração específica do nascimento no homem. Porém, a unificação do corpo fragmentado pela imagem só se dá através da identificação à palavra veiculada pelo Outro materno, que indica e confirma uma imagem para a criança: Você é assim! O espelho é, portanto, o Outro!

Nesse sentido, não é indiferente a relação que o sujeito estabelece com o Outro, com a linguagem. O sentimento de vida, de ter um corpo, de ser alguém, o modo como experimentamos o mundo e o sexo… é a linguagem que permite articular. O real e o imaginário não vêm enodado para ele, o ser falante vai assim constituir seu nó com o Outro. Os registros do imaginário e do real vão se enlaçar pelo espelho, constituindo-se simultaneamente o eu, o corpo e o sujeito.

O estágio do espelho, assim, instaura uma discordância fundamental entre a imagem do eu antecipada como totalidade no espelho e a prematuração biológica da criança, ou ainda o caos pulsional. Isso coloca o eu numa dependência do outro, criando uma situação de desamparo e de discórdia com esse outro.

Como afirma Lacan:
o estádio do espelho revela um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência à antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (Lacan, 1949/1998, p. 100)
A criança, portanto, inicialmente não experimenta seu corpo como uma unidade; ela só terá uma antecipação da unidade quando reconhece sua imagem no espelho, produzindo-se uma identificação imaginária que constitui o eu, e essa operação implica um primeiro enodamento do imaginário e real. O espelho é, assim, um primeiro aparelho do gozo; o corpo experimentado como caótico passa a ser recoberto por uma imagem unificada.

Enfim, ao assumir uma imagem, supera-se a discordância gerada pela imaturidade neurológica que se torna velada pelo imaginário. A imagem cumpre a função de tela para aquilo que não se pode ver. O sujeito faz uso da natureza narcísica da imagem para tratar o que experimenta de real, a experiência de despedaçamento.

Imagens Rainhas: Condensar O Gozo

Para Miller (1995), haveria imagens que dominam no imaginário, imagens que condensam o gozo organizando o caos pulsional. Ele nomeou essas imagens de “imagens rainhas”, indicando três: o próprio corpo, o corpo do Outro e o falo.

A imagem do corpo, constituída no estágio do espelho, é o que confere ao eu a sua primeira forma. Portanto, a primeira subjetivação é da forma do corpo.

O corpo do Outro, segunda imagem rainha, é aquele sobre o qual lemos a castração, castração óptica. Essa forma presta-se a uma formalização significante, pois é suporte de uma presença e de uma ausência.

O falo, terceira imagem rainha, não é o órgão masculino, mas sua forma erigida e transformada em significante. É do falo que derivam os objetos chamados fetiche.

O conceito de imagem rainha ou a realeza da imagem revela a função da imagem de captura significante do gozo, indicando a incidência do simbólico sobre o imaginário. São imagens que buscam fixar o gozo e que estão sob o Império do Olhar, ou seja, diz respeito ao poder da imagem de localizar o gozo.

Poderíamos nos perguntar então se a deslocalização do gozo, presente nas crianças psicóticas, poderia ser explicada pela ausência da imagem rainha concernente ao corpo próprio e ao falo.

Para Miller (1995), Lacan propõe uma nova teoria da imagem na medida em que o campo da percepção é interrogado por ele a partir do desejo e do gozo. Até o surgimento do objeto a, o campo da percepção foi abordado a partir do recalque. Haveria uma espécie de cegueira sobre o gozo. Com o surgimento do objeto olhar como objeto a, Lacan restabelece a pulsão no campo escópico. Não mais reduz o imaginário, o escópico, ao especular, o que significa não mais pensar a partir do espelho.

Assim, indica que se por um lado, a imagem tem a função de localizar o gozo, por outro, a natureza narcisista da imagem se mostra insuficiente para dar conta das experiências com o gozo.

Imagem E Objeto A: Quando As Experiências Com O Gozo Perturbam A Imagem

Lacan complexifica o estádio do espelho com o esquema ótico ao introduzir o Outro – o simbólico – pelo espelho plano, espaço que opera enlaçando o imaginário e o real, possibilitando essa identificação.
Simbólico

Eu I ISSO
Imaginário I Real

Não basta, portanto, que exista o objeto espelho para que haja o estádio do espelho; a imagem pode estar refletida, mas a criança não se identifica a ela, pois o espelho não está funcionando como a ordem simbólica. Verificamos isso, por exemplo, em alguns fenômenos, como quando a criança olha através do espelho não se reconhecendo na imagem. Muitos são os casos em que esse enodamento entre real e imaginário não se faz tal como na clínica do autismo.

Para que haja o entrelaçamento entre imaginário e real, é preciso duas condições ligadas ao simbólico:
– que o sujeito (o olho) esteja em determinada posição o espelho plano;
– que Outro esteja bem situado, a 90 graus.

Estar bem situado indica que o Ideal do Eu está operando como garantidor da ordem simbólica, e o sujeito estar posicionado em determinado lugar indica sua alienação ao Ideal do Eu. A criança não consegue fazer essa operação sozinha, é necessária uma ordem exterior ao sujeito, o olhar do Outro (Ideal do Eu) que confirme à criança que essa imagem que ela vê lhe corresponde, que esse é ele, o lugar desde o qual a criança se olha (juízo de existência freudiano).

Quando há inclinação do espelho ou quando o sujeito não se encontra em determinada posição, produzem-se muitas variações e distorções da imagem especular. Há muitas gradações no enlaçamento entre o imaginário e o real em que sintomas clínicos – como a depressão, anorexia, bulimia, angústia, agressividade e automutilação– revelam um desenlace ou um enlace frouxo dos registros.

O laço entre o Outro (simbólico), o imaginário e o real se faz através das zonas erógenas (boca, ânus, falo, olhar, voz), portanto, pelas experiências de gozo relacionadas ao corpo que Lacan nomeou de objeto (a) e não à imagem. Os objetos (a), quando estão compondo a unidade do corpo com a imagem, adquirem um valor fálico, significante; mas quando não pertencem à imagem eles provocam angústia ou horror, adquirindo valor de real.

Quando eles não estão incluídos na imagem que lhes dá um valor de beleza – ou de singularidade, interesse de raridade ou um valor qualquer – são puro real, e então funcionam mais em relação com o caos do organismo. Será importante investigarmos esses aparecimentos dos objetos (a) quando eles provocam um desenlace do nó e como o sujeito consegue reenlaçá-lo. A cisão entre o objeto e a imagem articula-se no Seminário, livro X: a angústia. Lacan apresenta o objeto a como aquilo que escapa ao campo especularizável. Quando algo da ordem do objeto irrompe no campo especular, surge a inquietante estranheza e a angústia antagônica à estrutura do eu.

Lacan considera a pulsão escópica como paradigma do objeto a e, a partir do Seminário, livro XI, resignifica o estágio do espelho ao falar da falta constitutiva no espelho, ou seja, a falta do próprio corpo. A imagem em si mesmo comporta um vazio que é invisível.

Em seu último ensino, Lacan retoma o valor do imaginário. Ele aparece como suporte da consistência do corpo. A imagem do corpo tem, portanto, a função de manter juntas as peças avulsas (ESPINEL, 2009).

A clínica do autismo também nos ensina muito sobre esse desenlace entre o imaginário e o real ao ponto extremo de a criança ficar parada para que nada se mexa (em seu extremo, o catatonismo) – para que o Outro não se mexa. Encontramos também as construções de corpo singulares que visam a tratar o gozo que retorna nas bordas no autismo, no corpo na esquizofrenia e no Outro na paranoia. A criança não encontra assim, no Outro, um olhar de onde pode olhar-se e reconhecer-se no espelho – I(A)o –, não produzindo o enlaçamento do nó de Borromeo; daí alguns sujeitos constituírem um duplo para construir e dar unidade ao seu corpo.

As crianças psicóticas estariam privadas da imagem. Na esquizofrenia e no autismo está em jogo a questão de como amarrar um corpo sem o recurso do espelho do Outro. Sem o recurso da imagem, o corpo torna-se peça solta e disjunta (BARROSO, 2014).

Que saídas os sujeitos encontram para fazer um corpo sem recorrer à imagem unificada? Que outros modos se utilizam das imagens para amarrar o corpo?

Na neurose, no enlaçamento entre o real e o imaginário, sempre algo cai desacomodado, havendo uma falha na construção do nó. As coisas funcionam mais ou menos bem… se constitui o eu ideal a partir do Ideal do Eu, e o sujeito pode ver-se amável no espelho e mesmo sentir uma satisfação nessa experiência – “júbilo” –, armando seu narcisismo: I(A) ￿ i(a).

Podemos pensar algumas situações clínicas nas quais esse olhar é demasiado exigente, demasiado idealizante, em que não há diferença entre o Ideal do eu e o Supereu: I(A) = SE  a. Não é um olhar que aniquila o sujeito, mas um olhar que, quando o olha, o faz saber o que se espera dele; são sujeitos que estão sempre procurando alguma falha. Há uma transmissão desse olhar, um Ideal do Eu, mas essa exigência dá uma modalidade distinta de laço desse sujeito com sua imagem e com o Outro.

Há também o olhar que aniquila, injuria e desautoriza, e quando o sujeito se olha no espelho tende a se deprimir; há enodamento entre real e imaginário, mas não se dá pela via do eu ideal e seu extremo é a melancolia (SORIA, 2013).

Podemos investigar os diversos fenômenos clínicos da constituição dessa imagem corporal, tais como o transitivismo, a função do duplo, as novas relações virtuais entre outros e as perturbações no campo do imaginário. Poderemos também investigar as situações em que esse laço entre a imagem e o real se afrouxa ou rompe, se desfazendo essa unidade da imagem corporal e acarretando situações diversas, desde o sentimento de estranheza até quadros de catástrofes subjetivas. Como as imagens incidem hoje na adolescência? É um momento em que muitas vezes há perturbações na imagem. Vamos também interrogar as perturbações do imaginário na educação e como o significante é um suporte da imagem.

 

 


Referências Bibliográficas
BARROSO, S. “A preferência pela imagem no falasser”. In: As psicoses na infância. O corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
BROUSSE, M-H. Entrevista a Gérard Wajcman sobre El ojo absoluto. In: Edición 6. Junio, 2011.
______. “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do espelho 1” In: Opção lacaniana online nova série, Ano 5, Número 15, novembro 2014. Disponível em www.opcaolacaniana.com.br/…/numero_15/Corpos_lacanianos.pdf‎. Acesso em x/x/xxxx
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DRUMOND C. Seminário AME – EBP – Trauma e corpo – automutilação, consistência e amarração (inédito) Belo Horizonte, Novembro 2014.
ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE. Imagem Rainha. As formas do imaginário nas estruturas clínicas e na prática piscanalitica. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
ESPINEL, M. “Imagem”. In: Scilicet. Semblantes e sinthoma. Escola Brasileira de Psicanálise, 2009. p. 152-154
LACAN, J. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
______. O Seminário. Livro X: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Ano
______. O Seminário. Livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. [1964.Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 1985.
MILLER, J-A. “A imagem rainha”. In: Opção lacaniana. N. 14. São Paulo, novembro, 1995. p. 12-22
NITZCANER, D. “Imaginário”. In: Scilicet. Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 196-198
PAULOZKY, D. “Imagem”. In: Scilicet. A ordem simbólica no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2011. p. 198-201
SORIA, N. Los nudos de analyse Buenos Aires: Editora Del Bucle. 2013.
SOUTO, S. Argumento da Seção Clínica do IPSMMG PARA AS INVESTIGAÇÕES dos Núcleos do IPSSMMG (inédito), 2o semestre 2014.

Cristiana Pittella E Margareth Couto
Cristiana Pitella de Mattos Psicanalista. Membro da EBP-AMP. Psychoanalyst. Member of the EBP-AMP E-mail: cristianapittella@yahoo.com.br Margaret Pires do Couto Psicanalista. Aderente da EBP-MG.Professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.Psychoanalyst.Adherent of EBP-MG.Professor of Psychology course of theCentro Universitário Newton Paiva. E-mail:mpcouto@uol.com.br



Invenção na esquizofrenia – Patrícia Ribeiro e Alessandra Rocha

PATRÍCIA RIBEIRO E ALESSANDRA ROCHA

 

A partir do tema que orientou os trabalhos do Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças em 2014, “O Trauma e o real na clínica: o que as crianças inventam”, trouxemos à discussão o caso de uma criança psicótica para destacar a importância do que um sujeito pode inventar frente ao encontro com o Outro.

Dado o inexorável efeito traumático que marca a irrupção do significante sobre o corpo de todo falasseri, resta-lhe como saída, aponta Miller, tornar-se inventor. Em seu texto “A invenção psicótica”, ele esclarece que esse termo invenção, embora se aproxime da ideia de criação, comporta uma sutileza a mais, pois o ato de inventar, à diferença do criar, não se faz ex-nihilo, mas a partir do que cada sujeito pode – ou não – dispor.

Se, na neurose, esses impasses advindos da desnaturalização do corpo pela ação do significante são tratados com o apoio dos discursos, na esquizofrenia essa solução esbarra em uma impossibilidade. Por não encontrar amparo no simbólico, ter um corpo, para o sujeito esquizofrênico, é especialmente complexo, o que o obriga a “inventar um discurso, (…) para poder usar seu corpo e seus órgãos” (MILLER, 2003, p. 11).

No entanto, de que discurso se trataria se, na esquizofrenia, encontramos “o único sujeito que não se defende do real pelo simbólico?” (MILLER, 1996, p. 190). Se para ele o simbólico é real, qual seria o estatuto dessas invenções?

O Nascimento Do Corpo Para A Psicanálise

Em Freud, o conceito de narcisismo foi forjado para destacar a importância da libidinização da imagem do corpo na constituição do eu. Lacan vai destacar, em sua tese sobre o corpo, que, para o falasser, não basta o investimento libidinal da imagem. Para que ele passe da condição de portador de um corpo fragmentado, tomado por um emaranhado de pulsões, à posse de um corpo unificado e libidinalmente organizado em suas zonas erógenas, há que ocorrer um enlaçamento entre os registros simbólico e imaginário. Tal é a condição para que se possa haver um revestimento ao real da carne. Essa operação depende, fundamentalmente, da ação do Outro que autentifica essa imagem libidinizada permitindo que o sujeito nela se reconheça: trata-se aí do processo de identificação no qual ocorre “uma transformação no sujeito quando ele assume uma imagem e a reconhece” (BARROSO, 2014, p. 153). A criança se fixa a essa imagem que ela é sob o olhar do Outro, ponto no qual se vê amável.

Nesse sentido, a alienação à imagem é tributária à alienação à cadeia simbólica, ou seja, o falasser só pode se reconhecer no espelho se contar com o apoio de um ponto simbólico situado fora da imagem. O que está em jogo é esse lastro simbólico, o qual Freud designou como Ideal do Eu – I(A) – e que opera a partir da identificação do sujeito a um significante ou ao traço unário, S1, amparo simbólico do corpo como consistência imaginária. Nos casos de autismo e de esquizofrenia, entretanto, esse S1 não se articula a um segundo significante (S2) para consolidar essa imagem corporal. Esses sujeitos nos ensinam sobre o fracasso dessa operação de velar o real do corpo a partir da subjetivação da imagem. Para eles, não houve o encontro no Outro de um olhar em que pudessem se ver e se reconhecer. Particularmente na esquizofrenia, esse Outro, tal como ele se apresenta, não barrado, isto é, não separado do gozo; é o Outro da linguagem ou o Outro do corpo.

O Menino Máquina

Apresentaremos sucintamente os elementos do caso que orientou a discussão teórica que se segue. Trata-se de uma criança às voltas com um corpo cuja desinserção no discurso a coloca a mercê de um gozo desregulado em um corpo fragmentado, obrigando-a a se valer de uma curiosa invenção como forma de unificá-lo. A hipótese diagnóstica inicial apontava para um caso de autismo devido à presença de manifestações ligadas diretamente ao corpo – o autobalanceio, as estereotipias – mas, especialmente, por uma relação peculiar a alguns tipos de máquina, que poderiam ter, para esse sujeito, o valor de objetos autísticos. Ele tem um interesse acentuado por máquinas de lavar roupas e por seu modo de funcionar.

Éric Laurent (2014) esclarece que não existem, no corpo do sujeito autista, os furos que permitem a construção dos trajetos pulsionais para descarga do gozo. Por essa razão, um dos modos pelo qual ele tenta dar conta desse excesso de gozo no corpo se faz por meio da invenção de objetos muito particulares, a partir dos quais ele se acopla como se criasse, assim, um órgão suplementar a seu corpo para localizar o gozo. Esse autor confere a esses objetos autísticos a função de produzir bordas de gozo.

O avanço do tratamento, entretanto, indicou algo distinto disso. O modo como a criança se valia desses objetos parecia apontar para a forma de funcionamento de seu corpo, de seus circuitos pulsionais dispersos, fragmentados, perturbado por uma desregulação libidinal por não poder contar com o significante produtor de uma perda de gozo, o falo, que viria domesticá-lo e localizá-lo no corpo.

Um exemplo clássico dessa perturbação foi dado por Freud (1911) em sua análise do relato do presidente Schreber, na qual ele destaca que, quando sua libido invade a imagem do corpo próprio, irrompe seu gozo narcísico. É, portanto, essa imagem invadida por uma carga de libido não castrada que o faz perceber sua imagem como feminina, isto é, como um corpo dotado de um gozo que não se reduz ao gozo fálico.

Outro elemento crucial refere-se ao fato de que a mãe da criança vivia perambulando nas ruas e bebia muito na época em que ele nasceu. Ela recorda que só se deu conta de que estava grávida quando o filho estava prestes a nascer. Retomo aqui o que Lacan observou a respeito da criança objetificada pelo Outro materno e seus efeitos no malogro da constituição do corpo:

“Aqui se inscreve a possibilidade da fantasia do corpo despedaçado com que alguns de vocês se depararam entre os esquizofrênicos. […] o que a mãe do esquizofrênico articula sobre o que seu filho era para ela no momento em que estava no seu ventre – nada além de um corpo, inversamente cômodo ou incomodo, ou seja, a subjetivação do a como puro real.” (LACAN [1962-63], 2005, p. 113)

O uso abusivo da bebida e a errância pelas ruas, deixando a criança sozinha em casa, só irá cessar, relata ainda a mãe do menino, frente à ameaça de perder a sua casa, recebida em um programa social de moradias.

A princípio, considerou-se que esse sujeito se apoiava nas máquinas aos moldes de uma prótese, como um recurso frente à total ausência de um corpo, o que pode ser uma solução no autismo. Entretanto, o surgimento, no decorrer do tratamento, de máquinas distintas, ligadas às diferentes funções corporais – nas quais circulam líquidos, oxigênio ou mesmo o calor que aquece corpos mortos –, conduziu a pensar em uma construção delirante destinada a se fazer um corpo, ainda que disperso, não unificado, tal como ocorre na esquizofrenia.

Essa hipótese se confirma quando, certa vez, ao se deparar com uma cena de mães com suas crianças, o menino diz: “Não existem máquinas de lavar pequena, média e grande? Então, também existem crianças pequenas, médias e grandes. As pequenas não andam ainda e dormem no colo da mãe”. E acrescenta: “eu durmo no colo da minha mãe”.

Ao ouvi-lo fazer essa série metonímica envolvendo crianças e máquinas de lavar, me pergunto se não é dessa natureza a parceria que foi possível para essa mãe fazer com seu filho. Trata-se, certamente, não de uma criança-falo, que se inscreve no desejo de uma mulher, mas podemos pensar em uma “criança-máquina”, no sentido de uma mãe que dispensa cuidados a seu filho, digamos, maquinalmente: cuidar do filho lhe permite preservar a sua casa.

“As Crianças Do Um Sozinho”

Em seu recente livro, Suzana Barroso recupera a expressão “as crianças do Um sozinho”, cunhada pela psicanalista Estela Solano para se referir às crianças autistas e esquizofrênicas cujos corpos não se constituíram devido à ausência da articulação do par S1 e S2 ou à falta de poder contar com o apoio de um discurso estabelecido em consequência da foraclusão do Nome do Pai. Nessa clínica, estamos diante de sujeitos cujos sintomas demonstram essa desconexão do Outro.

A esquizofrenia, ensina Lacan, se inscreve como paradigmática do “fora do discurso da psicose” (LACAN, 1972- 2003, p. 492) no que concerne a impossibilidade de saber fazer com o mais fundamental órgão do corpo, a linguagem. Na ausência desse saber, cabe ao sujeito inventá-lo a partir dos elementos de sua lalangue, conceito lacaniano para se referir a “a massa sonora que antecede a captura do falasser pela estrutura da linguagem” (BARROSO, 2014, p. 257).

As crianças psicóticas – tanto quanto as neuróticas – podem produzir sozinhas suas invenções ou, podemos também dizer, suas construções sintomáticas para introduzir uma subtração no lugar do Outro, fazendo-o inexistir, como é peculiar, sobretudo, na esquizofrenia. O analista, contudo, pode ajudá-las nessas construções, acolhendo esses modos singulares de tratamento do gozo no corpo daqueles que dispensam a estrutura do Outro para tal fim.

Operar clinicamente a partir de lalangue pode abrir espaço para o surgimento de um modo de transferência que possibilite “algum aparelhamento do gozo pela linguagem” (BARROSO, 2014, p. 329), propiciando a construção de um corpo e de um laço social.

O Outro Como Máquina

Se o enigma precocemente encontrado pela criança, cuja resolução determina sua estrutura, pode ser nomeado enigma do desejo da mãe, conforme o regime edipiano, no século XXI, com Lacan ele adquire seu verdadeiro nome: enigma do gozo. A resposta tradicional e resolutiva dada a esse enigma pelo Nome do Pai dá lugar, hoje, a uma pluralidade de discursos que revelam a facticidade e a inconsistência fundamental do Outro. Assim, todo discurso se apresenta como uma resposta a essa inconsistência, uma resposta sempre no fundo e em si mesma, delirante. Todo discurso toma o valor de um semblante compensatório. Mais além da dimensão de discurso é a língua em si mesma, que leva em conta a operação de marcação do gozo no corpo. Passamos então, da dimensão universalizante da linguagem, à dimensão de uma lalangue singular para cada um, não mais como discurso, mas como escrita, como sintoma a ser lido, conforme Miller evidenciou no ultimíssimo ensino de Lacan (HOLVOET, 2013, p. 11).

Assim, verificamos que, de acordo com a época, o Outro adquire figuras diferentes. A linguagem, que Lacan nomeou grande Outro, é uma grande máquina à qual estamos todos presos. Em seu texto “Questões sobre os autismos” (LAURENT,2013, p. 175), Éric Laurent retoma essa formulação particularizando o uso dessa máquina significante na neurose e na psicose:

“O sujeito só se prende à máquina da linguagem com a condição de se prender a uma máquina, a um objeto. E cada um de nós está preso a esta grande, e complexa, máquina da linguagem – o grande Outro. Os neuróticos se esquecem que estão presos à ela. A dramática edipiana lhes serve de maquinário para esquecer a prisão à esta máquina, pura repetição. Na psicose, os delírios, as localizações da linguagem, o centro da linguagem são as várias formas de deslocar a questão desta prisão” (LAURENT, 2013, p. 178).

Laurent assinala, ainda nesse mesmo texto, que o corpo robotizado ou maquinizado do autista não seria da mesma ordem do corpo fragmentado do sujeito esquizofrênico. O caso discutido permite colocar essa diferença em destaque, oferecendo uma precisão importante que esclarece esta dúvida: as máquinas não lhe servem como objetos autísticos produtores de bordas de gozo. Elas indicam, antes, o modo fragmentado de funcionamento do corpo, localizando-o no campo da esquizofrenia. O que desregula o circuito libidinal em seu corpo é a foraclusão do Nome do Pai.

A Construção De Um Corpo A Partir Da Lalangue

Sabemos que, para aqueles que consentiram com a lei da castração, o gozo se encontra localizado em um objeto perdido, o objeto a, resultado da inscrição do significante fálico. Mas, para o sujeito esquizofrênico, esse objeto se encontra disperso em seu corpo. O esquizofrênico, segundo Miller (2003), enigmatiza a presença no corpo, torna enigmático o ser no corpo. Esse autor parte da premissa de que existe uma antinomia entre órgão e função: “Temos órgãos e cabe-nos, aos poucos, descobrirmos para quê eles servem” (MILLER, 2003, p. 7). O “para que serve” do órgão está presente desde o início, por excelência, quando se trata dos órgãos sexuais. Esta é a questão do menino: como se servir de seu “pipi” já que, cedo, descobre que a função de micção não esgota tudo o que se pode fazer com ele. Assim, a criança descobre a função prazer, mais além daquela ditada pela fisiologia. Essa outra função do órgão sexual masculino, suas manifestações de gozo que ocorrem à revelia daquele que o porta, fez Lacan afirmar que o falo se apresenta como um órgão fora do corpo justamente por escapar ao seu controle.

No caso dessa criança, parece que seu interesse pelos circuitos funcionais das máquinas se inscreve como algo da ordem do “para que serve” dos órgãos. Dito de outro modo, ela parece localizar, no funcionamento das máquinas de lavar, o que não consegue localizar no corpo. Órgão e função, para esse menino, permanecem disjuntos.

Assim busca construir, com sua lalangue, um corpo. Esse corpo, que não para de se movimentar, de se agitar, é um corpo que goza nele. Seus braços e tronco balançam sem parar, repentinamente as palavras lhe escapam. No entanto, ao ouvir o significante “máquinas de lavar”, seu corpo se acalma, o faz falar, dessa vez endereçando-se ao outro. Esse parece ser o primeiro significante S1 que o representa, assim como parece representar a mãe que, segundo a analista, cuida de seu filho maquinalmente. Mãe e filho parecem ser, portanto, duas máquinas, dois corpos-máquina que se conectam um ao outro.

Podemos dizer que essa é uma primeira identificação que lhe permitiu “inventar um discurso” e, assim, se ligar a esse Outro: tanto à mãe-máquina como a seu corpo-máquina. Ele se interessa pelos circuitos funcionais das máquinas de lavar pois parece que, tal como ele, em certos momentos, elas se agitam, se movimentam sem parar, além de fazerem barulho. Seu corpo é uma máquina que funciona através de circuitos fragmentados.

Palavras Que Fazem Corpo

Parece-nos óbvio o fato de que todo ser humano tenha um corpo. Mas Lacan faz uma distinção importante entre o organismo humano e o corpo do ser falante ou falasser. Ele nos diz que o corpo é um efeito da linguagem que vem do Outro chamado materno. Em outras palavras, é esse Outro materno que dá corpo ao organismo da criança, porque o corpo é o lugar do Outro. Um Outro que nos inscreve na humanidade através de seu desejo não anônimo, como Lacan também o indica em “Nota sobre a criança” (LACAN, 2003). Em seu seminário Mais, ainda (LACAN, 1985), sustenta que o corpo é a sede do gozo e propõe tomar o falasser como aquele que, falando, goza. Podemos expressá-lo com a fórmula: “As palavras fazem corpo” (SALMAN, 2013, p. 8). De fato, as palavras enlaçam o corpo e constituem o inconsciente de um modo distinto do inconsciente pensado por Freud, pois, para Lacan, elas carregam o peso do real. Ter um corpo é precisamente onde o esquizofrênico fracassa. Em seu lugar, restam os órgãos disjuntos. Freud, em sua abordagem da esquizofrenia, nomeou “linguagem de órgão” a linguagem singular que remete ao gozo autoerótico dos órgãos disjuntos. Lacan, por sua vez, a designará, mais tarde, como lalangue: língua da qual goza o ser falante.

Esse menino-máquina, agitado, agressivo, cujo corpo não cessa de se movimentar, inventa seus pequenos pontos de basta, suas pequenas identificações, suas palavras, com as quais vai construir um corpo. Nos mostra como consegue, a partir delas – e do encontro com um analista – avançar em suas construções na tentativa de lidar com esse real que habita seu corpo, que o invade e o agita. É através de sua lalangue, ligada ao circuito funcional das máquinas, que ele se liga a seu corpo e inventa um semblante possível para amarrar algo de seu gozo.

 

(1) O termo falasser foi introduzido por Lacan para designar a indissociabilidade entre o sujeito e seu corpo ou entre o sujeito e o gozo.

 


Referências Bibliográficas:
BARROSO, S. As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. (1911-1925). Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. 12).
HOLVOET, D. “En introduction”, In: Mental nº30, p. 11-13.
LACAN, J. “O Aturdito”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 448-497.
______. “Nota sobre a criança”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 369-370.
______. O Seminário. Livro X: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
______. O Seminário. Livro XX: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LAURENT, É. A batalha do autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, ps. 49-59.
______. “Questions sur les autismes”, In: Mental nº30, 2013, ps. 175-206.
MILLER, J.-A. “A invenção psicótica”, In: Opção lacaniana. Revista Brasileira e Internacional de Psicanálise, nº. 36, maio – 2003, ps. 6-16.
SALMAN, S. “El cuerpo en la experiência de la análisis”. In: COLOFON 33, Cuerpos que hablan. FIBOL, maio, 2013, p. 8.



Imaginário e psicose – Frederico Feu de Carvalho

FREDERICO FEU DE CARVALHO

 

 

O programa de trabalho anunciado para o VII Enapoli aponta um redirecionamento da investigação no Campo Freudiano, enfocando, desta vez, o registro do imaginário e sua inflação no século XXI. É o que podemos depreender das proposições que J-A Miller (2014) desenvolveu em sua conferência de apresentação do tema do X Congresso da AMP, “O inconsciente e o corpo falante”, pronunciada em Paris, em abril de 2014. Além da ênfase dada ao registro do imaginário, esse redirecionamento também privilegia o corpo falante (parlêtre), o corpo enquanto goza-de-si, estabelecendo diferenças importantes tanto em relação ao corpo metafórico da histeria quanto em relação ao corpo tomado na vertente especular e narcísica do gozo da imagem.

Para apresentar a temática do VII Enapol – O império das imagens, que vai orientar nossa pesquisa no Núcleo de Psicose do IPSM-MG este ano, pretendo comentar, de forma abreviada, dois textos de referência: “A imagem rainha”, de J-A. Miller (1997), e “O estádio do espelho como formador da função do eu”, de J. Lacan (1949/1998). Abordar o imaginário no século XXI pressupõe fazer o percurso que pode ser sintetizado pela introdução feita por Miller em sua conferência de 2014:

Freud inventou a psicanálise, se assim podemos dizer, sob a égide da rainha Vitória, paradigma da repressão da sexualidade, ao passo que o século XXI conhece a difusão maciça do que é chamado de pornô, ou seja, o coito exibido, tornado espetáculo, show acessível a cada um pela internet por meio de um simples clique com o mouse. De Vitória ao pornô, não apenas passamos da interdição à permissão, mas à incitação, à intrusão, à provocação, ao forçamento. O que é o pornô senão uma fantasia filmada com uma variedade própria para satisfazer os apetites perversos em sua diversidade?

(…) A escopia corporal funciona na pornografia como uma provocação a um gozo destinado a se fartar sob o modo do mais-gozar, modo transgressivo em relação à regulação homeostática e precária em sua realização silenciosa e solitária. (…) O que diz, o que representa a onipresença do pornô no começo deste século? Nada se não: a relação sexual não existe. (MILLER, 2014)

No curso destes últimos 20 anos, passamos, portanto, do gozo privativo da fantasia para a ostentação e exibição de imagens de incitação do gozo, com repercussões evidentes sobre a sua regulação. Nesse sentido, podemos levantar a hipótese de que, entre a imagem rainha[2] e o império das imagens, passamos de uma serventia das imagens para a economia psíquica para uma maior servidão, caracterizada pela inflação das imagens pornô e por sua intrusão, tornando mais difícil a regulação pulsional.

A Imagem Rainha

Podemos tomar como ponto de partida para o comentário do texto de Miller a questão por ele proposta: haveria, no registro do imaginário, “imagens rainhas”, algo equivalente aos significantes mestres no registro do simbólico?

Na perspectiva freudiana, há um claro privilégio do simbólico. Na interpretação dos sonhos, por exemplo, Freud parte do relato do sonho e não das imagens do sonho, embora o sonho seja uma experiência predominantemente sensitiva e visual. Essa perspectiva está em contraste com a abordagem junguiana, que propunha um valor próprio da imagem inscrita no inconsciente.

Como Lacan esclarece em sua releitura estruturalista de Freud, as imagens do sonho funcionam como significantes. Elas não valem por si mesmas, mas pelo seu valor metafórico ou metonímico, sendo preciso percorrer a cadeia significante da livre associação para que se proceda à sua interpretação. Sendo predominantemente uma “realização do desejo”, o sonho depende de uma encenação, tal como uma fantasia. Mas o essencial, o ponto de partida do trabalho do sonho, assim como das fantasias, é um pensamento de desejo. É esse pensamento que é visado no curso do trabalho interpretativo a partir do duplo procedimento que vai da ampliação do sentido do sonho manifesto, sua expansão imaginária, à redução simbólica referida ao pensamento latente do sonho.

O campo do imaginário é caracterizado por sua vastidão. Podemos dizer que a proliferação está para o imaginário assim como a redução está para o simbólico, de forma que o simbólico seria uma espécie de detenção, de ponto de basta, em relação a essa proliferação do imaginário.

Retornando então à questão, podemos falar de imagens rainhas na perspectiva psicanalítica, de uma redução do mundo das imagens em que estamos mergulhados a algumas imagens cruciais? Tomando como referência o texto de Miller, podemos distinguir três imagens rainhas:

1- a primeira imagem rainha se refere ao corpo próprio, ou seja, “a ideia de si mesmo como corpo”, segundo a definição de Lacan. Trata-se, portanto, da imagem do corpo como matriz do Eu, à qual Lacan dá a notação i(a). Seu operador paradigmático é o espelho, e seu efeito imaginário é o duplo. Sua característica é dar ao sujeito uma visão de seu corpo como uma totalidade, no sentido de uma Gestalt (uma forma que se completa), e seu efeito no sujeito é de júbilo.

2- a segunda imagem rainha é a imagem da falta, a castração, cujo suporte é dado pela visão do corpo da mãe e pela ideia de que falta ali alguma coisa. Sua notação lacaniana é o (-fi). Temos, nesse sentido, alternância entre ausência-presença, o que, de certa forma, já nos remete ao simbólico. Aqui não há júbilo, mas horror. Por isso, o seu operador essencial é o véu, aquilo que recobre essa falta, em sua função de velar o nada, por assim dizer, a mesma função que podemos atribuir, por exemplo, ao vestuário. O campo perceptivo é orientado pelo que não se quer ver tanto quanto por aquilo que se deseja ver. Seu efeito no campo imaginário, portanto, é uma escamoteação e a supressão de uma imagem real, se pudermos nos referir assim a essa imagem, que é, na realidade, a falta de uma imagem, o furo da castração materna, e que surpreende o sujeito no lugar onde ele esperava encontrar a imagem do falo.

3- a terceira imagem rainha pode ser diretamente deduzida do véu, se acrescentarmos a este sua característica de poder ser também um ornamento (uma roupa serve tanto para cobrir e esconder quanto para embelezar). Trata-se do falo simbólico, enquanto “forma erigida e transformada em significante, conservando todas as suas articulações imaginárias” (MILLER, 1997, p. 579). Miller esclarece que “foi inclusive a propósito do falo que Lacan arriscou a expressão significante imaginário” (MILLER, 1997, p. 579). Sua imagem paradigmática é o fetiche. Refere-se, portanto, a uma imagem colocada em lugar da falta para obturá-la e que assume um valor fálico, ou seja, um valor de substituição e de tamponamento do furo. O recobrimento da falta aponta, nesse sentido, para a função de denegação que caracteriza o inconsciente. Algo é substituído. Mais precisamente: algo é recuperado. Se o encontro do sujeito com a primeira imagem produz um júbilo, se o encontro com a segunda imagem produz o horror, em relação ao fetiche podemos falar de uma recuperação de uma parcela do gozo perdido. É o que Lacan chamou do gozo fálico. É como passar por debaixo do véu para ir depositar alguma coisa no lugar da falta. Assim, o que provoca horror aparece sob a vestimenta do fetiche, do belo ou da fantasia, ou seja, como uma imagem à qual podemos agregar um mais-de-gozar. Seu operador lógico não é o espelho nem o véu, mas o quadro, ou melhor, o enquadre, a janela na qual se projeta a cena da fantasia que serve de cenário à imagem fetiche. Contrariamente ao espelho, que reflete uma imagem, uma janela pressupõe o furo onde se projeta a tela da fantasia. A variedade do que pode vir a assumir valor fálico para um sujeito é enorme: um carro para um homem ou um vestido para uma mulher, por exemplo, se nos referimos ao campo dos objetos de consumo que vêm agregar esse valor fálico à imagem de si; mas, também, um traço, uma forma ou mesmo um gesto que desperte o desejo em relação a um parceiro sexual, se nos referimos aos signos do objeto perdido que julgamos reencontrar no campo do Outro.

As imagens rainhas são, portanto, imagens que têm valor de significantes, na medida em que podem ser metaforizadas e metonimizadas. Mas elas “não representam o sujeito”, como faz o significante – que representa o sujeito para outro significante – e, sim, “se coordenam ao seu gozo” (MILLER,1997, p. 580). A imagem rainha é aquela que “realiza uma captura significante do gozo”, diz Miller (1997, p.580). É quando imaginário e gozo se enlaçam.

O Estádio Do Espelho

Proponho trabalhar a assunção para o ser falante da sua primeira imagem rainha, a imagem de si como um corpo, tomando como referência o texto de Lacan “O estádio do espelho como formador da função Eu”. Para tanto, vou me referir a outra citação da conferência de J-A Miller, “O inconsciente e o corpo falante”:

O imaginário é o corpo. E [essa equivalência] não é isolada; seu ensino, em seu conjunto, testemunha a favor dessa equivalência. Em primeiro lugar, o corpo nele se introduz, inicialmente, como imagem, imagem no espelho. Disso decorre o fato de Lacan dar ao eu [moi] um estatuto que se distingue singularmente daquele que Freud lhe reconhecia em sua segunda tópica. Em segundo lugar, é ainda com um jogo de imagem que Lacan ilustra a articulação prevalecente entre o Ideal do eu e o eu ideal, cujos termos ele toma emprestado de Freud, mas para formalizá-los de maneira inédita. Em terceiro, essa afinidade entre o corpo e o imaginário é também reafirmada em seu ensino dos nós. A construção borromeana enfatiza que é pelo viés de sua imagem que o corpo participa, primeiro, da economia do gozo. Em quarto lugar, mais além, o corpo condiciona tudo o que o registro imaginário aloja de representações: significado, sentido e significação, a própria imagem do mundo. É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da unidade do corpo. Aqui estão muitas razões para escolher que o próximo Congresso faça variar o tema do corpo na dimensão do imaginário. (MILLER, 2014)

Sabemos que o imaginário é uma das categorias lacanianas, ao lado do simbólico e do real, com os quais ele se enlaça, mas podendo também deles se desprender. Podemos dizer que a teoria lacaniana está sustentada por esta tríade, que ela perdura no ensino de Lacan, apesar de continuamente modificada, apesar de Lacan ter dado ênfase diferente a uma ou outra dessas categorias no decorrer de seu ensino. Como categoria lacaniana, o imaginário deve ser distinguido da faculdade de imaginação. Basta, para isso, lembrar que, de modo geral, a imaginação está referida à realidade por sua contraposição a ela, enquanto o imaginário lacaniano é o que sustenta o próprio campo da realidade para um sujeito. Por outro lado, o imaginário lacaniano se caracteriza por ser um modo de tratar, de se defender, de tornar suportável o real, se definimos o real como o impossível, aquilo que não tem imagem ou representação. Essa característica do imaginário é importante para nos orientarmos na clínica da psicose, na qual temos uma maior dificuldade com relação ao simbólico e à interpretação.

Para abordarmos o registro do imaginário em Lacan, convém, portanto, levar em consideração a articulação entre o Eu e a imagem do corpo, como vimos na citação de Miller. Essa articulação necessita de um terceiro termo, um termo medium: o espelho.

Podemos partir de uma distinção que é imediatamente perceptível: a distinção entre o corpo tomado como uma imagem e o corpo orgânico, o corpo concebido no funcionamento dos órgãos e perturbado em sua homeostase, seja pela urgência das necessidades que torna o sujeito dependente do Outro, seja pela incidência das pulsões que buscam se satisfazer aleatoriamente, sem uma relação direta com a homeostase ou a necessidade, e muitas vezes à revelia do sujeito. Tomado como uma imagem, o paradigma do corpo é a sua superfície, a sua forma projetada no espelho. Nessa projeção, o corpo perde a densidade que o caracteriza. Ele se esvazia, pode-se dizer assim, ao se destacar do organismo. A imagem especular do corpo está, portanto, destacada tanto da carne que preenche o corpo quanto das pulsões em sua busca de satisfação.

O que primeiro interessou a Lacan em sua teorização sobre o “estádio do espelho” (antes mesmo que ele se tornasse um psicanalista) foi a função da imagem, a sua operação real. Lacan se interessou particularmente pela etologia, que estuda o comportamento animal, e a teoria da forma, a Gestalt theory (que tem Köhler como um de seus expoentes), para mostrar como a imagem do corpo assume uma função no desenvolvimento orgânico, particularmente no campo da reprodução sexual. É o que mostra o exemplo da pomba, explorado por Lacan: a maturação da gônada sexual de uma pomba depende do fato de ela perceber, em seu campo visual, a imagem de outra pomba. Da mesma forma, há inúmeros exemplos nos estudos da etologia que mostram como no reino animal o comportamento sexual depende da exibição de uma imagem a partir de determinadas condições.

Soa paradoxal pensar que aquilo que interessa a Lacan é o estatuto real da imagem ou os seus efeitos no real, quando, de um modo geral, associamos a imagem especular a seus efeitos ilusórios sobre o sujeito (BROUSSE, 2014). Nesse sentido, interessa a Lacan o elo entre a visão do corpo como um perceptum, um dado exterior, na medida em que a imagem do corpo se torna objeto do olhar, e os seus efeitos no corpo, seja em relação ao comportamento ou à evolução sexual, seja no campo da subjetividade humana, como uma espécie de organizador da experiência subjetiva.

Portanto, a oposição inicial entre o corpo orgânico e a imagem do corpo projetada em um espelho revela-se, ao final, como um modo de interseção. Mais exatamente: a projeção da imagem do corpo nada mais é do que o envoltório libidinal e narcísico a partir do qual eu posso nomear aquele corpo como o “meu corpo”, esse acontecimento primordial da nomeação a partir do qual o meu corpo poderá ser abarcado pelo simbólico e, assim, tornar-se objeto de uma regulação que afeta o seu funcionamento orgânico e pulsional. Por outro lado, essa imagem captura o interesse libidinal do sujeito de forma que ele possa gozar narcisicamente de ser essa imagem refletida no olhar do Outro. Essa simetria e o gozo aí depositado formam a matriz que condiciona a visão do mundo como um reflexo do Eu, à sua imagem e semelhança.

Como se transpõem essas descobertas da etologia para o sujeito humano? Quais as consequências, para o sujeito humano, dessa projeção e do reconhecimento, em um momento datado do seu desenvolvimento, entre 6 e 18 meses, da imagem especular? É o que mostra esse texto lacaniano de 1949, “O estádio do espelho como formador da função do eu”.

1- Esse reconhecimento implica uma identificação com a própria imagem, aspecto que vai além do que é possível no caso do animal (à exceção talvez dos chimpanzés), que apenas reconhece o semelhante; é o que justifica o uso do termo “imago” por Lacan.

2- Esse reconhecimento também implica a “matriz simbólica em que o [eu] se precipita em uma forma primordial antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (LACAN, 1949/1998, p. 97). Ela assume, portanto, um valor significante a partir do qual o sujeito se apreende (‘aquele sou eu’) como um eu-ideal, antes mesmo de assumir as suas determinações sociais.

3- Tal identificação, por sua vez, implica uma duplicação (a-a´, de acordo com a notação de Lacan) a partir da qual essa imagem se reflete no espelho. Podemos então falar de uma relação ambígua e problemática entre o sujeito e sua imagem, na medida em que ele ao mesmo tempo se reconhece e se aliena nessa imagem refletida, exterior a ele mesmo; sendo assim, pode-se dizer que o sujeito é e, ao mesmo tempo, não é essa imagem.

4- Essa forma totalizada (Gestalt) na qual o sujeito se apreende é uma antecipação em relação ao estado atual da experiência de seu corpo orgânico (a imaturidade anatômica do sistema piramidal; a prematuração específica do nascimento no homem), ou seja, de sua experiência motora de fragmentação corporal, uma vez que esse corpo é comandado pelos circuitos parciais da pulsão que emanam de suas zonas erógenas. Tal antecipação não deixa de ter correspondência com o que Freud chamou de “nova ação psíquica”, necessária para a passagem do autoerotismo ao narcisismo, cujo desdobramento será central em sua teorização sobre as psicoses. A imagem especular se sobrepõe ao corpo fragmentado; o narcisismo seria, assim, o efeito no sujeito do contorno libidinal de seu corpo no espelho na medida em que ele se aliena nessa imagem.

5- É o que em parte explicaria o júbilo, a expressão de satisfação que acompanha esse reconhecimento da imagem especular e que permanece depositada em nossa experiência cotidiana, na medida em que “amamos” essa imagem. Mas, para além desse júbilo da imagem pelo fato de que a apreensão da totalidade do corpo permite ao sujeito ultrapassar a sua experiência de fragmentação, pode-se ligar esse júbilo à fascinação e aos efeitos de captura que essa imagem tem para o sujeito. Refiro-me à distinção entre o gozo do corpo e o gozo da imagem. De certa maneira, o gozo é sempre gozo do corpo, exige sempre um corpo, mesmo na sublimação. Mas, no estádio do espelho, trata-se de captura do gozo pela imagem, ou seja, de um efeito no corpo da captura da imagem especular.

Em termos freudianos, essa assunção da imagem equivale, portanto, ao narcisismo, na medida em que designa um investimento libidinal no Eu. Dito de outro modo, é importante levar em conta a mudança de estatuto do gozo implicada na passagem do gozo autoerótico, mais referido às zonas erógenas, para o gozo da imagem, mais referido ao Eu. Em relação ao gozo do corpo, podemos pensar no corpo enquanto goza-de-si, independentemente, mesmo que o sujeito seja sempre responsável por esse gozo. Mas é importante ressaltar que esse corpo que goza de si, conforme a imagem do circuito pulsional de uma boca que beija a si mesma, foi primeiramente objeto de gozo do Outro, uma espécie de brinquedo sexual dos pais que manipulam e libidinizam o corpo da criança. De forma que, na captura fascinada da imagem, é como se a criança pudesse enfim dizer: “então, é disso que eles gozam”.

A vertente transicional da formação do eu (quando a criança se toma por um “ele”), tanto quanto a vertente paranoica do narcisismo, está subjugada a essa captura na medida em que o objeto e o Eu são formas reversíveis, ou seja, o Eu (como matriz-corporal) pode ser tomado como um objeto e vice-versa. Para concluir sobre esse ponto: o objeto olhar, que designa uma zona erógena, é o que faz mediação entre o corpo orgânico (erógeno) e a imagem do corpo (especular). Na sequência, se esse olhar não for extraído do campo da realidade (no sentido do Eu não ser sempre o objeto de um olhar), o sujeito fica aprisionado a essa captura e temos os efeitos no real disso, como vemos na paranoia, na qual o sujeito se sente sempre visto. Diferentemente da paranoia, a extração do olhar funciona na histeria como uma forma de compensar a falha de representação no Outro, levando ao extremo a significantização da imagem.

6- Tudo isso revela o “drama” dessa ambiguidade da apreensão especular da imagem de si, na medida em que, por meio dela, o sujeito se vê também ameaçado por sua degradação, seu desinvestimento ou seu despedaçamento. É o que observamos em várias formas clínicas e nos fenômenos de estranhamento, quando o sujeito não reconhece o seu duplo. Lacan se refere a essa ameaça como uma “regressão mortífera ao estágio do espelho”.

7- Podemos ainda associar a esse “drama” à tensão agressiva que resulta primordialmente da relação do sujeito ao semelhante (como observa Freud, o outro é, antes de tudo, objeto de meu ódio, justamente por ser meu semelhante), uma vez que essa “matriz imaginária” determina a percepção do outro como uma extensão e um reflexo de si, logo, como um rival.

8- Da mesma forma, essa matriz imaginária é o que comanda, grosso modo, a apreensão da realidade e o conhecimento do mundo (que só o advento da ciência permite ultrapassar, na medida em que esta sobrepõe, ao imaginário, relações simbólicas). Sendo assim, a formação do eu seria coextensiva à “função de desconhecimento” implicada em nossa percepção da realidade; é a função da negação (Verneinung) que caracteriza nossa relação com o campo da realidade. Em outros termos, o campo da realidade só se mantém para um sujeito devido à estabilidade do eixo imaginário, estabilidade esta que depende tanto da extração do objeto (no caso que estamos examinando, do olhar) quanto de sua inserção no discurso estabelecido.

9- Na esteira do mesmo drama, pode-se evocar ainda a “inércia própria das formações do [eu]” que caracteriza as neuroses de um modo geral. Foi o que levou Lacan a opor o eixo imaginário ao eixo simbólico (ver, por exemplo, o esquema “L” tal como trabalhado por Lacan no Seminário, livro III: as psicoses). Essa inércia seria um efeito do gozo que preenche a relação especular a-a`. No eixo simbólico A-$, Lacan localiza as formações do inconsciente, recobertas pelo recalque, e as determinações simbólicas do sujeito. Mais adiante, essa oposição será pensada como um enodamento, mas, em 1957-8, o campo da realidade ainda é abordado na interface do simbólico com o imaginário. Por isso, a estabilidade do imaginário depende tanto de coordenadas simbólicas quanto da extração do objeto olhar.

10- Também é importante destacar os fenômenos de estranheza que caracterizam a vacilação da imagem especular para um sujeito. A angústia não deixa de ter relação com a incidência da castração sobre o eixo a-a´. Mas, paradoxalmente, é a castração o que de fato mantém o campo da realidade estabilizado para um sujeito. Em outros termos, a estrutura neurótica implica que o sujeito não esteja completamente identificado com sua imagem especular, que ele se divida quanto a essa identificação. Nesse sentido, a angústia na neurose se caracteriza pelo fato de que o objeto a vem no lugar de uma falta. Lacan dizia que a experiência da angústia ocorre quando a falta vem a faltar, e o objeto do desejo aparece no campo da realidade. Em muitos casos graves de histeria, como vimos, o superinvestimento na imagem se relaciona diretamente à falta de um significante que represente o sujeito ($) no campo do Outro (A). É como se a imagem especular assumisse então um valor significante e rígido para o sujeito, de forma que o sujeito se faz representar no campo do Outro pela imagem de seu corpo próprio para fazer frente a essa falta de representação do sujeito dividido. O sujeito é, assim, ameaçado o tempo todo pela angústia de sua afânise. De toda forma, isso pressupõe uma divisão subjetiva.

11- A psicose, por sua vez, se caracteriza pela instabilidade do imaginário devido a uma falta de sustentação simbólica. Essa sustentação simbólica implica um passo a mais em relação à captura da imagem do corpo no espelho. Na verdade, implica em sua destituição. É isso que está em jogo na trama edipiana, que é outro drama do sujeito, mas cujo desenlace pressupõe uma terceira localização do gozo, o gozo fálico, que é um gozo que se desprende do corpo. Por estar condensado em um órgão-fora-do-corpo, o falo pode ser tanto objeto de uma perda, por tê-lo, como objeto de uma reivindicação, por não tê-lo. Por se tratar de um significante, o falo é tanto o resultado de uma metáfora, a metáfora paterna, como é susceptível de deslocamentos ao infinito. É a esse gozo que se articula o desejo. A significação fálica é o que responde à falta materna e, portanto, ao enigma do desejo da mãe, possibilitando à criança se deslocar da posição de objeto que responde a esse desejo – como vimos na posição da criança que antecede a sua identificação especular – para se identificar às insígnias do ideal do eu que, como uma matriz simbólica, possibilitam a inserção do sujeito no campo do Outro.

Portanto, o que caracteriza a trama edipiana é a “visão da castração”, que vem de encontro à totalidade da imagem do corpo, na medida em que essa imagem se sustenta por sua carga libidinal. Em outros termos, a partir da trama edipiana, haverá tanto investimento libidinal no eu quanto nos objetos.

A psicose pode ser assim compreendida como uma dificuldade em relação a essa disposição, a essa distribuição libidinal. A loucura pode ser definida como uma forma de adesão ao imaginário que faz obstáculo à castração simbólica. Nesse sentido, a perda da realidade na psicose, da qual fala Freud, corresponderia ao desastre do imaginário que caracteriza o desencadeamento psicótico. O fato de “termos um corpo”, de termos que nos conectar com o corpo em vez de “sermos um corpo”, é velado pela consistência do imaginário que caracteriza as neuroses, mas é desvelado na experiência psicótica, em especial na esquizofrenia. Por isso, no tratamento psicanalítico das psicoses devemos estar atentos à maneira como o sujeito reconstrói imaginariamente o campo da realidade, seja fazendo uso do delírio, seja por meio de objetos ou artefatos de arte, seja por meio de outras invenções através das quais ele poderá se reconectar com seu corpo, com o Outro ou com a linguagem.

 

(1) VII Enapol. O império das imagens. Programado para ocorrer em São Paulo, nos dias 4, 5 e 6 de setembro de 2015.
(2) A imagem rainha foi o título do V Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que celebrou a fundação da Escola Brasileira de Psicanálise, em abril de 1995.

 


Referências Bibliográficas
BROUSSE, M-H. “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o estádio do espelho”. In: Opção lacaniana online, ano 5, nº 15, novembro de 2014. Disponível em http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero15/index.html – Acesso em 21 de julho de 2015.
LACAN, J. (1949) “O estádio do espelho como formador da função do eu”, In: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar ed., 1998, p. 96-103.
______. O Seminário. Livro III: as psicoses. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1988.
MILLER, J-A. “A imagem rainha”, In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: J. Zahar ed., 1997, p. 575 – 595.
______. “O inconsciente e o corpo falante”, conferência de apresentação do tema do X Congresso da AMP, 2014. Disponível em: www.wapol.org. Acesso em 21 de julho de 2015.

Frederico Feu De Carvalho
Psicanalista praticante; membro da EBP/AMP; psicólogo da PBH; Mestre em Filosofia e Doutor em Estudos Linguísticos pela UFMG. E-mail: fredericofeu@uol.com.br



A Imagem E O Imaginário: Quando O Sujeito É Excluído Do Imaginário Materno E Permanece Sem A Ajuda De Nenhuma Imagem Estabelecida

SUZANA FALEIRO BARROSO

Introdução

Para trabalhar o tema da imagem e do imaginário, escolhi um fragmento clínico do caso de Bruno, um menino autista que demonstra não ter podido se servir de nenhuma imagem estabelecida para construir seu corpo, tampouco obter sua inscrição no desejo do Outro. A construção do caso permitiu correlacionar esse problema ao encontro traumático da mãe com uma imagem do ultrassom do bebê, que contrariava todas as suas expectativas. A mãe de Bruno relata dois momentos impactantes nos quais seu filho foi falado e nomeado pelo discurso médico. O primeiro, por ocasião do exame de ultrassom do bebê, quando o médico lhe disse que era um menino, pois “sempre soube que era uma menina” e se preparou para ter uma menina. A imagem do ultrassom não correspondia, definitivamente, à imagem tecida pela fantasia materna. O segundo momento impactante foi quando recebeu o diagnóstico de autismo do filho. “Quando o médico me disse que era síndrome de Asperger não fiquei tão atordoada como quando o médico falou que era menino”.

O que foi para essa mãe o encontro com a imagem do ultrassom do bebê? Decepcionada com o exame, ela não aceitou o resultado, demandou novo exame e não queria abrir mão de sua inexplicável certeza. Vemos aqui uma discordância total entre a imagem apresentada à mãe e o seu imaginário, isto é, sua fantasia sobre o bebê, precisamente sobre o sexo do bebê. Segundo o psicanalista Roberto Assis, durante nossa conversa no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina, é importante pensar o estatuto dessa imagem pelos efeitos que ela produziu junto ao sujeito. Ele nos envia ao texto de Marie-Hélène Brousse (2014), “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho”, publicado na Opção lacaniana on-line, o qual discute o “poder real de uma imagem real”. Apesar de ser apenas uma imagem, ela não deixa de ter consequências reais, como no caso relatado, em que a imagem do ultrassom exerce um poder real traumático sobre a subjetividade materna.

A Criança e o Imaginário Materno

No texto de 1914, “Introdução ao narcisismo”, Freud comentava as relações entre pais e filhos, explicando o amor e o investimento libidinal dos pais nas crianças, segundo a política dos ideais, o que se repercute na relação do eu com sua imagem. “O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (FREUD, 1014/1976, p. 108). A transformação em jogo do lado dos pais implica a substituição de uma satisfação autoerótica pelos ideais civilizatórios, que visa a amalgamar os ideais com as pulsões. A atitude dos pais afetuosos para com os filhos é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. Assim, eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele, o que pode explicar a negação da sexualidade nas crianças. Em nome da criança, os pais renovam as reivindicações por privilégios aos quais foram forçados a renunciar.

A criança terá mais divertimento que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação — ‘Sua majestade o bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos (FREUD, 1914/1976, p. 108).

Desse modo, supõe-se que a criança concretizará os sonhos dourados aos quais os pais jamais tiveram acesso. Ao menino caberá o destino de herói, e à menina, o de princesa. Podemos perguntar: qual a lógica dessa situação na qual a criança reinaria como ideal do eu do casal parental? Trata-se do regime de gozo paterno, segundo o qual é a política do ideal do eu que governa os laços de família com base na estrutura edipiana enquanto matriz organizadora do destino das pulsões tanto para o sujeito masculino quanto para o sujeito feminino.

Para Freud, “além do seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social, constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação” (FREUD, 1914/1976, p. 119). Em contraponto com a formulação freudiana descrita antes, pode-se pensar outra, mais lacaniana, a saber, “sua majestade o mais-de-gozar”, isto é, a criança capturada no gozo próprio e no de seus pais, porém como objeto e não como ideal, a exemplo de Bruno.

Com a expressão “sua majestade o bebê”, Freud (1914) propõe uma fórmula para situar a criança, seu lugar e seu valor na estrutura familiar quando ela é aí inserida. A imagem da “criança-majestade”, como toda imagem, mostra e esconde muitas coisas. Como toda imagem, ela também presentifica uma perda do ponto de vista do mundo real, pois a imagem jamais traduz completamente o que ela representa. O que escapa à captura da imagem é o resto que causa sua busca, que constitui seu valor libidinal e seu estatuto de recurso precioso para o sujeito para a construção do corpo e do laço social.

Há duas possibilidades de inscrição da criança no desejo materno conforme a particularidade da relação da mãe com uma das imagens estruturantes do campo da fantasia, a saber, a imagem fálica. A criança pode ter função de metáfora do amor da mãe pelo pai da criança. Enquanto esse objeto metafórico, ela é correlacionada ao dom fálico prometido pelo pai, sendo, portanto, apreendida na equação simbólica bebê = falo. Por outro lado, a criança pode ter a função de metonímia da demanda de falo que a mãe não tem e, enquanto objeto metonímico, ela é correlacionada às decepções vividas na relação da menina à sua própria mãe na etapa pré-edipiana propriamente dita.

A operação de falicização da criança, isto é, a conexão da criança real ao valor fálico que ela pode ter para a mãe, não é completa e deixa sempre um resto. De uma parte, a criança é semblant de um ideal e, de outra parte, ela permanece como objeto real. A falicização inscreve a criança num triângulo imaginário — mãe-criança-falo —, cujas relações têm sua coerência dada pela amarração proveniente do quarto elemento, o pai.

Trata-se de uma relação que se organiza em torno de uma falta, a falta fálica materna. Na tríade imaginária mãe-criança-falo encontramos, no mínimo, duas questões: a relação da mãe com o falo e a da criança com o falo. A relação da mulher com o falo está na base da função da maternidade, isto é, do Desejo da Mãe, e nos permite compreender as razões que levam uma mulher a acolher uma criança. Para uma mulher, de Freud a Lacan, o desejo de uma criança se apoia na reivindicação fálica feminina. Disso decorre que o ponto de partida da função do falo para o sujeito é o Desejo da Mãe. É pela via do desejo de falo da mãe que ela estabelece uma relação com a criança, e que esta, por sua vez, é confrontada com o significante falo na sua polaridade imaginária e simbólica. No início temos a relação da tríade mãe-criança-falo articulada pelo falo imaginário. A entrada do quarto elemento, o pai, introduz o estatuto simbólico do falo, condição de possibilidade do acesso do sujeito à posição sexuada.

Do fato que a mãe tenha certa relação com o falo, decorre que é nessa relação que a criança tem que se fazer valer. Trata-se então de como a criança experimenta o falo como o centro do Desejo da Mãe e de como vem a descobrir que o que é amado pela mãe é uma imagem fálica para além dela, criança. Encontramos aqui uma correlação entre a criança e o falo, em termos de conjunção e disjunção: criança ￿ falo. No caso de Bruno, verificamos um fracasso dessa correlação, com grande impasse na operação de falicização da criança.

No plano imaginário da dialética fálica, as relações entre mãe e criança são marcadas pela sedução como também pela agressividade, rivalidade e até angústia. O falo enquanto imaginário é tomado no jogo de presença e ausência. É um elemento móvel que circula entre mãe e criança, que pode ser tanto o falo da mãe quanto o da criança. Trata-se do jogo de engano quanto à falta do falo na mãe. Há, no entanto, uma consequência estruturante dessas relações, qual seja, o falo imaginário orienta a identificação formadora do eu, aquela que se monta no estágio do espelho e que será abordada a seguir.

A Constituição do Corpo no Espelho do Outro

O artigo de Freud “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1976) descreve os fundamentos da subjetividade infantil por meio do acesso a uma identificação com uma imagem organizadora do eu e da vida libidinal. Trata-se da imagem do corpo que confere ao eu a sua primeira forma e lhe permite situar-se do ponto de vista da alteridade, distinguindo o que é do eu e o que não é. Essa imagem promove a unificação da dispersão pulsional do autoerotismo obtida pelo eu, com consequente domínio do corpo e do outro, por meio de uma identificação estruturante.

A teoria do narcisismo levou Lacan a propor o dispositivo do espelho como operador dessa primeira identificação alcançada pelo acesso a uma imagem. O conjunto do dispositivo especular descrito por Lacan contém, primeiramente, o espelho côncavo e, em seguida, o espelho plano, que correspondem respectivamente às imagens reais e às imagens virtuais e implicam uma topologia da subjetividade designada como topologia de superfície. A formação da imagem real e da imagem virtual opera, respectivamente, na base da formação da imagem do próprio corpo e da imagem do corpo do Outro. A imagem do próprio corpo é a imagem especular, a matriz do eu, que implica a ideia de si mesmo como corpo. A imagem do corpo do Outro é aquela cuja especificidade é apresentar ao sujeito uma falta, a castração, através do encontro do sujeito com o que não é especularizável, um buraco na imagem; encontro que se refere, essencialmente, à diferença de sexos.

De início, Lacan destacou como o recurso à imagem se contrapõe a um fator de ordem biológica, isto é, a condição de prematuração na qual nasce o ser falante. O funcionamento neurofisiológico ainda não permite ao eu integrar as funções motoras, aceder a um domínio real do corpo e promover a satisfação de suas necessidades no infans. É essa prematuração que explica a preferência pela imagem, uma vez que somente ela, com seus efeitos de ilusão, atenua o desamparo primordial do ser falante. Na verdade, a imagem do quadro “Sua majestade o bebê” esconde todo o desamparo infantil decorrente da prematuração real.

A alienação à imagem é solidária da alienação à cadeia significante. A imagem da criança é assujeitada ao ponto de vista do Outro, o que se encontra representado no esquema ótico pelo espelho plano. A mensagem do Outro constitui uma espécie de molde da imagem do eu. A criança tenta igualar seu eu a essa imagem para se sentir amável. A criança só se vê no espelho através desse ponto simbólico situado fora da imagem, suporte de uma identificação simbólica ao ideal do eu. O poder da imagem reside em sua eficácia simbólica, na relação com os significantes que conformam, no corpo, a unidade imaginária que chamamos eu.

A criança se fixa na imagem que ela é sob o olhar do Outro, ponto de onde ela pode se ver amável. Isso quer dizer que a imagem do eu ideal somente se legitima e se estabelece mediante o reconhecimento de um terceiro, o Outro, lugar de onde a criança espera que seu ser seja colocado sob uma perspectiva norteadora do ideal do eu. É pela intervenção do espelho do Outro, ao nível do espelho plano, que a imagem real ganha o estatuto de imagem virtual, i’(a), correspondente ao narcisismo secundário. Um nó então se faz entre o real do corpo do qual o sujeito não pode ter ideia, o imaginário da forma que aparece no espelho e o sentido simbólico que o Outro lhe dá. Ter um corpo supõe que esse nó se faça (NOMINÉ, 1999).

Do estádio do espelho decorre uma noção de corpo equivalente ao imaginário. A primeira dentre as teses lacanianas sobre o corpo demonstra a solidariedade entre o corpo e o imaginário, a saber, não se tem um corpo sem a imagem do corpo. O acesso à imagem na infância é fundante da forma do corpo, de uma identificação, do laço ao outro e de um modo de gozo. A imagem é um elemento não anatômico, não incluído entre os órgãos do corpo, um elemento extracorpo, mas que, no entanto, é a condição para a constituição desse corpo. O estádio do espelho tem um duplo valor, a saber, histórico e libidinal. Do ponto de vista histórico, marca uma virada decisiva no desenvolvimento mental da criança, além de representar uma relação libidinal essencial com a imagem do corpo. E é por isso que podemos dizer que a imagem do corpo é uma das imagens rainhas no tanto que ela viabiliza a localização da libido numa imagem, portanto, fora do corpo real.

A questão principal que as psicoses, particularmente a esquizofrenia e o autismo, colocam à tese do corpo imaginário é a de como se ter um corpo sem o recurso do espelho plano do Outro. Sem a imagem, portanto, sem o semblant, o corpo tende à dispersão característica do real. O psicótico sofre a constante ameaça de que seu corpo não se mantinha junto enquanto uma unidade. Ele se depara com a iminência permanente do corpo restar como peça solta, disjunta do todo. Isso foi descrito por Lacan, na década de 50, como uma vicissitude particular do estádio do espelho e, duas décadas depois, como sendo a própria desamarração borromeana.

O Espelho Real Do Autista E O Regime Do Um Sozinho: O Sujeito Sem O Recurso De Uma Imagem Estabelecida

Se a imagem do corpo é o que constitui o modelo do mundo para o sujeito, como fica o mundo do autista? Como o sujeito poderá se orientar e se deslocar no espaço sem a imagem? No autismo, diz Éric Laurent, o sujeito permanece “sem a ajuda de nenhuma imagem estabelecida” (2014, p. 97). A não formação dessa imagem, i(a), que implica as fronteiras do corpo, pode ser explicada também “como um problema de fronteiras: essas crianças teriam uma falha no balizamento das fronteiras entre seu corpo e o corpo do Outro” (SOLER, 1999, p. 227). O problema na constituição da imagem para o autista é que o resto que sobra da tradução do corpo em imagem e que dá à imagem seu valor libidinal não opera no autismo. O não investimento libidinal na imagem causa o desinteresse do sujeito por sua imagem no espelho.

As condições necessárias à formação da imagem especular implicam uma superfície que possa refletir a imagem, ou seja, uma superfície que suporte a projeção e a representação. A função do conjunto dos dispositivos do espelho introduz a dimensão de um lugar outro, espaço virtual em oposição ao espaço real, espelho plano em oposição ao espelho côncavo, ou antinomia entre i(a) e i’(a). A estrutura do espelho requer a duplicidade abolida pelo autista devido a sua submissão ao império do Um sozinho, cuja lógica é, portanto, avessa à estrutura especular. Uma superfície unilateral, sem duplicidade, não se especulariza. A superfície de uma só face é correlata ao funcionamento do signo fora da lógica oposicional do significante, isto é, apenas enquanto significação absoluta, mecânica ou imperativa.

Para oferecer à criança as condições favoráveis à duplicidade especular, torna-se preciso constituir uma espacialidade que indique outro lugar, ou seja, alojamento da alteridade. Introduzir a dimensão da outra coisa no regime do Um sozinho. A introdução da duplicidade leva à demarcação de um espaço especular. “No ser vivente, o enlaçamento do simbólico a outro plano, redobramento do espaço na imagem — sob o modo de uma inversão — é o que gera o nó do especular” (VITA, 2008, p. 24, tradução nossa). Esse nó não se amarrou no caso do menino Bruno. Por estar tomado no registro do Um sozinho, sem o recurso de uma imagem estabelecida, Bruno vai recorrer à tela e ao mundo virtual. Ele demonstra grande interesse pela pesquisa de imagens na internet, fazendo do computador seu objeto autístico privilegiado. De modo bastante singular, ele visita repetidas vezes cemitérios, cenários de enterro e de nascimento e passa a falar de seus parentes que já morreram, indicando com suas pesquisas sobre os mortos e os vivos numa tentativa de amarrar os elementos dispersos do corpo e conectá-lo ao campo do Outro.

No decorrer das sessões de Bruno, para quem disponibilizamos o computador desde que descobrimos o valor desse objeto para o menino, ele escolhe ser um doublé, particularmente das cenas do filme “Meninas super-poderosas”, que passam a funcionar como seu duplo real. O objeto autístico, o duplo real e o engajamento da voz como doublé fazem parte da construção do corpo para esse autista. Sem um operador simbólico da falta capaz de permitir a interrogação e a significantização do desejo do Outro, sem a marca do traço unário que faz consistir a imagem do corpo, sem um discurso estabelecido, Bruno se faz doublé e rompe seu mutismo, podendo começar a falar de si para o Outro.

 


Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1914/1976) “Sobre o narcisismo: uma introdução” vol. XIV, p. 85-119; In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3a ed. Rio de Janeiro, Imago.
LACAN, J. (1956-57/1985) O Seminário. Livro IV: a relação de objeto (1956-57). Versão Betty Milan. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
LAURENT, É. A batalha do autismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
NOMINÉ, B. (1999) “A questão do sintoma e a problemática do corpo no autismo” In: Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize, Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, p. 233-243.
VITA, D. L. (2008) Interrogar el autismo, hacer espacio del lenguaje. Buenos Aires, Ediciones del Cifrado.

Suzana Faleiro Barroso
Psicóloga, psicanalista praticante em Belo Horizonte, membro da EBP (Escola Brasileira de Psicanálise) e da AMP (Associação Mundial de Psicanálise. Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Prof. da Faculdade de Psicologia da PUC-Minas.



Síndrome De Asperger E Psicose Infantil

PAULA PIMENTA

O caso de Ciroi, menino de cinco anos que nos foi apresentado pela equipe de saúde mental de um serviço público da cidade de Belo Horizonte, trouxe uma pergunta diagnóstica que levou a este trabalho. Ao encaminhá-lo ao referido serviço, a neurologia elaborou a hipótese diagnóstica de síndrome de Asperger. Em sua posição diante do Outro, demonstrada no dispositivo da Apresentação de Pacientes, Ciro nos fez considerar o diagnóstico de psicose e não de síndrome de Asperger. Mas qual a diferença entre eles?

A Síndrome De Asperger E O Campo Do Autismo

Foi em 1944 que o pediatra austríaco Hans Asperger descreveu uma condição que denominou psicopatia autística[2]. Essa publicação, editada ao final da Segunda Guerra Mundial por um autor germânico, ficou restrita à língua alemã até 1971, quando foi discutida, em inglês, por Van Krevelen[3], que a comparou com a descrição feita um ano antes, em 1943, por Leo Kanner, do autismo precoce infantil. Mas foi somente em 1981 que o estudo de Asperger se estendeu à comunidade científica, através da psiquiatra britânica Lorna Wing, que se tornou a grande divulgadora de suas ideias ao escrever seu trabalho Asperger’s syndrome: a clinical account.[4]

Acredita-se que Asperger desconhecia o trabalho de Kanner e que se utilizou do adjetivo “autista” de maneira diferente de seu colega austro-americano. Ele nomeava de psicopatia autística uma síndrome infantil que apresentava desvios importantes nas áreas de interação social e comunicação e nos jogos simbólicos, tal como ocorre no autismo de Kanner. Essas crianças, no entanto, apresentavam, de acordo com suas palavras, inteligência normal, boa criatividade e capacidade imaginativa. A fala também não se encontrava ausente, apesar da possibilidade de sua fluência se estabelecer mais tardiamente, por volta dos três ou quatro anos de idade. Não era incomum o aprendizado da leitura se dar espontaneamente, induzindo sua inscrição no rol dos superdotados.

A síndrome de Asperger apresenta dificuldades motoras, com nítido desajeitamento no andar, o que não é característico do autismo de Kanner (SCHWARTZMAN, 1991). A comunicação verbal daqueles pacientes demonstra-se por um extenso vocabulário, com uso de palavras incomuns para a idade da criança e construção de frases rebuscadas, configurando o que caracterizaria uma fala pedante. O bom desempenho da comunicação verbal é, no entanto, apenas aparente, pois as palavras e frases são utilizadas de maneira repetitiva e estereotipada, acompanhadas de alterações no ritmo, na entonação, na altura e no timbre da fala. A compreensão da linguagem também se encontra atingida, havendo um entendimento literal do que lhes é dito. Em paralelo, apresentam mímica facial reduzida e gestos pobres. Há a presença de contato visual, mas não de comunicação visual; não consideram ou mesmo percebem as expressões faciais de seus interlocutores. Há uma delimitação de um campo peculiar de interesse, o qual se atém, entretanto, a assuntos muito específicos e não usuais em sua faixa etária, como línguas mortas, tabelas numéricas, máquinas, meteorologia, calendários, entre outros. Vê-se uma superestima da inteligência dessas crianças por seu vocabulário rebuscado e interesses proeminentes.

Asperger enfatizava a inteligência preservada dessas crianças, sua excelente memória, e lhes concebia um bom prognóstico. Ao tomar conhecimento dos trabalhos de Kanner sobre o autismo infantil, insistiu que os casos que descrevera diferiam muito daqueles. A despeito da opinião de seu fundador, a maioria dos autores considera a síndrome de Asperger uma forma atenuada do autismo infantil, similar em suas manifestações, porém com sinais e sintomas mais sutis (SCHWARTZMAN, 1994).

Foi em função dessa similaridade que o DSM-Vv decidiu inserir a categoria da síndrome de Asperger no conjunto maior do autismo infantil. Essa inclusão se ampara no continuum patológico proposto por Lorna Wing (1993) — por ela chamado espectro das desordens autísticas e hoje consolidado como espectro autístico —, em que a síndrome de Asperger seria o extremo mais desenvolvido do autismo infantil de Kanner.

Dentro dessa concepção de um espectro, que abrange um polo com o laço social um pouco mais estabelecido, e outro com um laço social frouxo ou ausente, cabe a tentativa de correlação entre a síndrome de Asperger e os autistas de alto-funcionamento, também denominados autistas-sábios ou autistas-eruditos (autistes savants).

Alguns clínicos insistem em diagnosticar diferencialmente a síndrome de Asperger do autismo, inclusive do autismo de alto-funcionamento, objetando que, além do Q.I. preservado e da ausência de todos os critérios diagnósticos de autismo — que seriam também observados no autismo de alto-funcionamento —, na síndrome de Asperger não se sobressairiam o atraso de linguagem e as anormalidades na comunicação. Já outros autores justificam a falta de empatia e de sentimento por outras pessoas, os estilos desviantes de comunicação, os interesses intelectuais incomuns e constritivos e os apegos idiossincráticos a objetos, apresentados pelos pacientes Asperger como sendo “uma variação mais benigna do autismo” (RUTTER, 1993, p. 75).

Síndrome De Asperger E Autismo De Alto-Funcionamento Para O Campo Freudiano

A discussão sobre a apropriação das nomenclaturas diagnósticas não passou ao largo da psicanálise de orientação lacaniana. Éric Laurent e Jean-Claude Maleval foram dois autores que se interessaram pela diferenciação entre elas, cada um a seu modo.

No que diz respeito à transferência no autismo, Laurent (2012) se mostra um tanto criterioso para afirmá-la, pois o autista, aparentemente, não se dirige ao Outro. E a transferência é um laço com o Outro. Indica que é preciso que o analista, no tratamento, trabalhe orientado pelas condições que possibilitem um laço com o autista, que seriam aquelas relativas aos dispositivos de tratamento da instância da letra[6].

Para Maleval (2009a), um canal para o estabelecimento da transferência seria dado pelo duplo. Uma de suas elaborações é a função do Outro de síntese. Este se configura sob duas modalidades: fechada e aberta. Fechada ao laço social, mas como recurso orientador para o autista, ou aberta ao mundo e à interação. Um enquadramento do gozo só se faz possível pela aquisição de algum dos dois modos.

Na proposta de Maleval (2009b), o Outro de síntese fechado é característico dos autistas eruditos (autistes savant), e o Outro de síntese aberto caracteriza a defesa dos autistas de alto nível[7] (haut niveau), que Laurent (2012) faz coincidir com os portadores da síndrome de Asperger. Por possuírem a mesma função de fazer vincular o autista ao mundo, as duas modalidades do Outro de síntese possibilitam que uma passagem entre elas possa ocorrer de maneira gradual. No entanto, é bastante incomum alcançar o modo aberto do Outro de síntese. Essa transição pode ser constatada pelas narrativas dos autistas de alto funcionamento, quando descrevem suas ilhas de competência da infância ou seus gostos por brincadeiras com a linguagem, que caracterizam o Outro de síntese fechado, prévio ao Outro de síntese aberto elaborado por eles posteriormente.

O Outro de síntese fechado se compõe de “um saber fechado e congelado, que lhe permite se orientar em um mundo rotineiro, limitado e sem surpresa” (MALEVAL, 2009b, p. 194), ordenando um mundo solitário e bastante circunscrito. A ele se relacionam os recursos à língua privada, idiossincrásica e com neologismos, apartada do Outro e envolvida pelo gozo do sujeito. Por outro lado, o Outro de síntese aberto é evolutivo, adquirindo determinada capacidade dinâmica que permite ao sujeito, “ainda que não sem esforços” (MALEVAL, 2009b, p. 194), se adaptar a novas situações e demonstrar uma criatividade. É o que ocorre com Temple Grandin, ao cunhar uma expressão criativa para designar-se como um “antropólogo em Marte” (SACKS, 1997). Por sua capacidade de relação, o Outro de síntese aberto se serve da língua do Outro, ainda que reduzida aos signos talhados do gozo, o que Maleval identificou como sendo uma língua funcional, afastada dos afetos.

Se, tradicionalmente, o centro de uma análise promove a interpretação da relação do sujeito com o objeto de seu gozo, considera-se que, com as crianças autistas, é necessária uma “contra-análise”. Nesses casos, o gozo não deve ser interpretado, mas, na proposta de Maleval, domesticado. Essa é a função do Outro de síntese: localizar o gozo do sujeito.

O Caso Ciro: Síndrome De Asperger Ou Psicose?

Ciro é uma criança “estranha” em seu modo de apresentação, mas que se utiliza da fala. Até mesmo consegue ler, com um uso bem singular dessa habilidade, adquirida aos quatro anos.

Ser estranho no trato com as coisas do mundo, mas conseguir interagir de algum modo pelo uso da linguagem e por interesses delimitados pode ter sido o que levou a neurologia a considerar o diagnóstico de síndrome de Asperger para essa criança. Viu-se que diagnosticar como Asperger, nos dias de hoje, é pensar em um autismo com inteligência preservada, uso da linguagem e capacidade de se relacionar com o mundo, mesmo que de maneira atípica e estranha.

Porém, a psicanálise se utiliza de outro critério para realizar o diagnóstico: a posição do sujeito diante do Outro e sua relação com o saber e com o gozo.

Diferentemente de um autista, Ciro faz um laço com o Outro, se interessando por seus objetos (sua casa, suas fotos do celular, sua netinha[8], sua bolsa…)[9]. Mesmo os autistas com síndrome de Asperger demonstram certo corte nesse laço com o Outro, apesar de terem recursos mais elaborados promovidos pelo Outro de síntese aberto, de acordo com a teorização de Maleval.

O retorno do gozo, em Ciro, vem no corpo, promovendo a agitação corporal que o caracteriza e que nos remete à descrição que Ziraldo dá de seu Menino Maluquinho, que tinha “vento nos pés”, não mais se encontrando no lugar de onde se expressara segundos atrás.

Tanto para o autismo quanto para a psicose na criança, o trabalho do sujeito com os objetos pulsionais será privilegiado. O olhar, a voz, os alimentos, os excrementos têm um estatuto próprio e nos indicam o modo como a criança é afetada por eles. No caso de Ciro, vê-se como a criança se mostra sensível à voz do Outro e como parece ser, por essa via, sua tentativa de se orientar no mundo.

Considerações Finais

Este breve trabalho, escrito para a discussão clínica do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças, adverte que alguns casos de psicose infantil podem estar sendo classificados “cientificamente” como síndrome de Asperger. Uma vez que a categoria de psicose na criança foi banida das classificações psiquiátricas atuais, ela acaba por se ver incorporada, desavisadamente, por alguma outra que lhe seja assemelhada.

A psicanálise, atualmente, tende a não confundi-las, mas não deixa de indicar suas semelhanças e as sutilezas que as diferenciam.x O que importa, entretanto, para o psicanalista, é a construção do caso com base na posição do sujeito, nas soluções que ele encontra para lidar com o mundo e seus objetos e em seu trabalho de apropriação de um corpo que lhe é, sempre, estranho.

(1) Nome fictício.
(2) ASPERGER, H. Psicopatias Autísticas na Infância. Arch. Psychiatr. Nervnk., 1944. 117:76-136. (título traduzido do alemão, para melhor entendimento).
(3) VAN KREVELEN, D.A. Early Infantile Autism and autistic psychopathy. J. Autism Childhood Schizophrenia, 1971. 1(1):82-86.
(4) WING, L. Asperger’s syndrome: a clinical account. Psychol. Med. 1981. 11:115-129.
(5) O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), da Associação Americana de Psiquiatria, é um dos tratados diagnósticos mais utilizados pela psiquiatria no mundo, ao lado do CID (Classificação Internacional das Doenças), estabelecido pela Organização Mundial de Saúde.
(6) Como exemplo tem-se a escrita, o cálculo, o desenho, dentre outros.
(7) Ou de “alto funcionamento”, na expressão mais corrente em português.
(8) Ciro perguntava com frequência à entrevistadora sobre seus objetos, inclusive sobre “sua netinha” (sic), que ele supunha que ela tinha.
(9) Esses foram elementos presentes na Apresentação de Pacientes realizada com a criança, a qual, no entanto, não será detalhada aqui.
(10) Sobre esse assunto, o leitor pode consultar o texto de PIMENTA, P. & DRUMMOND, C. “Pode o autismo ser diferenciado da esquizofrenia?”, publicado no Almanaque Online no 5, de jul/dez 2009.

 


Referências Bibliográficas:
LAURENT, É. (2012). “O que nos ensinam os autistas”. In: A. Murta, A. Calmon & M. Rosa (Orgs.). Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte: Scriptum Livros; Escola Brasileira de Psicanálise, p. 17-44.
MALEVAL, J.-C. (2009a). “Les objets autistiques complexes sont-ils nocifs?” In: J.-C. Maleval (dir.). L’autiste, son double et ses objets. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, p. 161-189. (Clinique Psychanalytique et Psychopathologie).
MALEVAL, J.-C. (2009b). L’autiste et sa voix. Paris: Seuil.
PIMENTA, P. (2003). Autismo: déficit cognitivo ou posição do sujeito? Um estudo psicanalítico sobre o tratamento do autismo. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Disponível digitalmente em: http://ebp.org.br/wp-content/uploads/2012/08/Paula_Pimenta_Autismo_deficit_cognitivo_ou_posicao_do_sujeito1.pdf
RUTTER, M. (1993). “Autismo Infantil”. In: GAUDERER, E. C. Autismo e outros atrasos do desenvolvimento. Uma atualização para os que atuam na área: do especialista aos pais. Brasília: CORDE, p. 60-82.
SACKS, O. (1997). “Um antropólogo em Marte”. In: Um antropólogo em Marte. Sete histórias paradoxais. 3.ed. Trad.: Bernardo Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, p. 253-301.
SCHWARTZMAN, J. S. (1991). Síndrome de Asperger. Temas sobre Desenvolvimento, 2:19-21.
SCHWARTZMAN, J. S. (1994). Autismo infantil. Brasília: CORDE.
WING, L. (1993). “O contínuo das características autistas”. In: GAUDERER, E. C. Autismo e outros atrasos do desenvolvimento. Uma atualização para os que atuam na área: do especialista aos pais. Brasília: CORDE, p. 90-98.

Paula Pimenta
Psicóloga. Psicanalista membro da EBP/AMP. Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.



Da Medicalização E Da Judicialização: Um Comentário

MÁRCIA MEZÊNCIO

 

As conversações do IPSM-MG constituem um espaço de investigação e fazem série. Em 15 de agosto de 2012 a 10ª Conversação da Seção Clínica também discutiu o caso de uma criança. Naquela ocasião estava em questão a medicalização da infância introduzida através do diagnóstico de TDAH. Ao comentar o caso e as implicações políticas do diagnóstico, Sérgio Laia alertou para sua associação com a propensão ao roubo, à infração – segundo pesquisas acadêmicas que ele cita –, da qual decorreria a justificação do uso da medicação (LAIA, 2013, p.167-168). Assim, a medicalização contemporânea seria uma nova apresentação da biopolítica.

Nesse sentido, o tema insiste e continua sendo objeto da investigação psicanalítica e das preocupações de profissionais e cidadãos. Registro a realização, pelo CFP – Conselho Federal de Psicologia, no final de semana imediatamente anterior ao da realização dessa 14ª Conversação, em BH, do 2º Seminário Interno do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade. O fórum congrega diversas instituições e movimentos sociais que se mobilizam para combater mais essa forma de controle, a patologização das condutas e das diferenças. É importante ressaltar o papel da educação nesse projeto higienista, como sugere o próprio nome dado ao fórum. Lembro a discussão recente, em nosso campo, do relatório do INSERM – Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale –, em que o comportamento de crianças era avaliado e relacionado à prevenção da delinquência. Reporto, de minha experiência, a solicitação da Vara Infracional, junto aos conselhos tutelares, de listas de crianças atendidas por questões relativas à indisciplina, com vistas a ações preventivas quanto a futuras infrações.

No caso da criança de cinco anos, objeto da 14ª Conversação da Seção Clínica, sob o título “Autismo na rede: a criança, os diagnósticos e seu tratamento”, outro diagnóstico, ou a demanda de um, e seu tratamento pela vertente da medicalização associada à judicialização da infância aqui assumem contornos absurdos. Vemos em curto-circuito os campos da educação, da saúde e da justiça, convocados a operar o controle do corpo dessa criança cuja agitação é interpretada como “ato infracional”, “risco”, “conduta não admitida no ambiente escolar”. A escola declara que o aluno (cito o relatório)i:

“(…) pratica condutas que se amoldam ao delito tipificado no Código Penal como lesão corporal leve (art. 129, CP), quais sejam: chuta, bate, belisca, empurra e estapeia os profissionais e alunos dessa instituição de ensino. Condutas, portanto, consideradas ato infracional (art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) e, não admitidas no ambiente escolar.”

Ressalvo que não discutirei se a conduta se enquadra na tipificação do Código Penal, pois considero descabida tal proposição. Cabe-me comentar, pontual e brevemente, e esclarecer a Declaração da escola em que a criança estava matriculada. Declaração que é de fato uma solicitação, um encaminhamento à saúde, para que esta responda sobre o risco que essa criança pode representar para a instituição, seus profissionais e seus alunos. É também uma decisão de excluir, segregar o aluno, que “ficará suspenso enquanto não for apresentado laudo/relatório médico conclusivo” (grifo no original). Que conclusão é demandada?

“Evitando possíveis transtornos judiciais, a diretora da Escola requer a apresentação de laudos/relatórios dos profissionais de saúde que acompanham o aluno (…), informando: (i) qual tratamento ele está sendo submetido; (ii) a periodicidade do acompanhamento médico; (iii) quais remédios ele está sendo medicado; (iv) os efeitos colaterais dos medicamentos; (v) o efetivo risco que ele acarreta as demais alunos e profissionais em decorrência de seu comportamento agressivo.”

Os termos dessa declaração surpreendem. Alegações, supostamente fundamentadas, escondem e revelam. “Garantir-se” em normas e regulamentos para “transferir” a responsabilidade que cabe à escola aos profissionais da saúde ou à família, seja pelo recurso ao discurso legal, seja ao senso comum sobre as atribuições que cabem à escola ou à família.

“Ressalta-se que há um grande temor de que ele coloque em risco a integridade corporal dos alunos da escola, motivos pelo qual deve haver um efetivo acompanhamento médico em relação ao comportamento e atitude agressivos do aluno. (…)

A função da Escola é prestar serviços de educação, transmitir conhecimento aos alunos que se encontram matriculados nesta Instituição. Contudo, as condutas do aluno (…) estão se tornando obstáculo para que os professores consigam cumprir com seu conteúdo programático e com as aulas preparadas. A imposição de limites (dizer não), educar o filho sobre o que é certo e errado, ensinar-lhe valores é função da família.”

No que se refere à legislação, podemos considerá-la um mal necessário no atual estágio e programa civilizatório, em que prevalece a lógica do contrato em detrimento da lei. Assim, todos os campos da existência são regulados por algum estatuto específico, o universal da lei se fragmenta segundo as particularidades, as comunidades, as políticas compensatórias etc.

O ECAii – Estatuto da Criança e do Adolescente – trata dos direitos e deveres de crianças e adolescentes, bem como da responsabilidade compartilhada entre a família, sociedade, comunidade e Estado quanto à garantia desses direitos (art.4). A criança – pessoa de até doze anos incompletos – e o adolescente – aquela entre doze e dezoito – são considerados prioridade absoluta nos termos na Constituição Federal e do ECA e têm direito à proteção integral em função de sua condição peculiar de desenvolvimento.

Crianças e adolescentes são inimputáveis (art.104). Assim, ainda que agentes de atos que possam ser considerados análogos aos delitos tipificados no Código Penal, e, portanto, atos infracionais, segundo o art. 103 do ECA, citado no relatório da escola, serão diferentemente tratados nos termos desse diploma legal. O adolescente será responsabilizado e a ele poderão ser impostas as medidas socioeducativas (art.112). À criança, objeto de proteção, serão atribuídas medidas protetivas (art.101). O espírito da lei, no que se refere à criança, é garantir seu direito e proteção, condições para que acesse “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico e mental, moral, espiritual e social” (art.3).

Na declaração encaminhada pela escola, entre outras imprecisões, medidas protetivas são consideradas equivalentes a medidas socioeducativas. A escola se refere corretamente ao artigo 101, mas alega, incorretamente, que tais medidas seriam as socioeducativas. Ao respaldar no ECA sua indisponibilidade para proteger essa criança, responsabilidade que lhe é atribuída pela mesma legislação a que recorre, a escola incorre no desrespeito a ela, impondo à criança um tratamento discriminatório. A se fazer valer o que prescreve o Estatuto, caberia processar e responsabilizar a instituição pelo seu descumprimento.

Essa confusão é bastante frequente na rotina das escolas e em sua interface com outras instituições, seja de proteção, acolhimento, saúde ou de medidas socioeducativas. Também são frequentes a renúncia ao exercício da autoridade escolar e o recurso reiterado a intervenções policiais e judiciais para a solução de conflitos no ambiente escolar ou de atos indisciplinares. É ainda recorrente uma “responsabilização” do ECA pela perda de autoridade dos professores e educadores.

Para concluir, gostaria de ressaltar a importância de nos ocuparmos dessa questão sobre a judicialização generalizada. Estamos assistindo – alguns participando e outros, como eu, engajados profissionalmente na interface com o campo do direito, em particular, do direito do adolescente – a uma discussão em pauta na disputa eleitoral, que ora se trava no país, que é a questão da redução da maioridade penal. Há certa ironia se compararmos a declaração de voto de Marcelo Freixo, Deputado Estadual pelo RJ, com a declaração dessa escola. Ele se disse representado, na disputa do segundo turno, por quem quer os jovens no banco da escola e não no banco dos réus. O que fazer quando a escola quer o contrário?

Que a nossa responsabilidade de analistas e cidadãos nos mantenha dispostos a “ainda um esforço” se queremos dar lugar ao sujeito, se queremos que ele encontre seu lugar no Outro.

 

(1) Esta e as citações a seguir foram retiradas da Declaração apresentada pela Escola em 16 de abril de 2014.
(2) Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

 


Referências Bibliográficas
LAIA, Sérgio. “Comentário teórico: o diagnóstico no DSM-V E O TDAH”. In: SANTIAGO, Ana Lydia e MEZENCIO, Márcia. (orgs.) A psicanálise do hiperativo e do desatento… com Lacan. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2013. p. 167-173.

Márcia Mezêncio
Psicanalista, Membro da EBP/AMP, Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos-UFMG). Supervisora do Serviço de Medidas Socioeducativas da Prefeitura de Belo Horizonte. E-mail: marciasouzamezencio@gmail.com.