Síndrome De Asperger E Psicose Infantil

PAULA PIMENTA

O caso de Ciroi, menino de cinco anos que nos foi apresentado pela equipe de saúde mental de um serviço público da cidade de Belo Horizonte, trouxe uma pergunta diagnóstica que levou a este trabalho. Ao encaminhá-lo ao referido serviço, a neurologia elaborou a hipótese diagnóstica de síndrome de Asperger. Em sua posição diante do Outro, demonstrada no dispositivo da Apresentação de Pacientes, Ciro nos fez considerar o diagnóstico de psicose e não de síndrome de Asperger. Mas qual a diferença entre eles?

A Síndrome De Asperger E O Campo Do Autismo

Foi em 1944 que o pediatra austríaco Hans Asperger descreveu uma condição que denominou psicopatia autística[2]. Essa publicação, editada ao final da Segunda Guerra Mundial por um autor germânico, ficou restrita à língua alemã até 1971, quando foi discutida, em inglês, por Van Krevelen[3], que a comparou com a descrição feita um ano antes, em 1943, por Leo Kanner, do autismo precoce infantil. Mas foi somente em 1981 que o estudo de Asperger se estendeu à comunidade científica, através da psiquiatra britânica Lorna Wing, que se tornou a grande divulgadora de suas ideias ao escrever seu trabalho Asperger’s syndrome: a clinical account.[4]

Acredita-se que Asperger desconhecia o trabalho de Kanner e que se utilizou do adjetivo “autista” de maneira diferente de seu colega austro-americano. Ele nomeava de psicopatia autística uma síndrome infantil que apresentava desvios importantes nas áreas de interação social e comunicação e nos jogos simbólicos, tal como ocorre no autismo de Kanner. Essas crianças, no entanto, apresentavam, de acordo com suas palavras, inteligência normal, boa criatividade e capacidade imaginativa. A fala também não se encontrava ausente, apesar da possibilidade de sua fluência se estabelecer mais tardiamente, por volta dos três ou quatro anos de idade. Não era incomum o aprendizado da leitura se dar espontaneamente, induzindo sua inscrição no rol dos superdotados.

A síndrome de Asperger apresenta dificuldades motoras, com nítido desajeitamento no andar, o que não é característico do autismo de Kanner (SCHWARTZMAN, 1991). A comunicação verbal daqueles pacientes demonstra-se por um extenso vocabulário, com uso de palavras incomuns para a idade da criança e construção de frases rebuscadas, configurando o que caracterizaria uma fala pedante. O bom desempenho da comunicação verbal é, no entanto, apenas aparente, pois as palavras e frases são utilizadas de maneira repetitiva e estereotipada, acompanhadas de alterações no ritmo, na entonação, na altura e no timbre da fala. A compreensão da linguagem também se encontra atingida, havendo um entendimento literal do que lhes é dito. Em paralelo, apresentam mímica facial reduzida e gestos pobres. Há a presença de contato visual, mas não de comunicação visual; não consideram ou mesmo percebem as expressões faciais de seus interlocutores. Há uma delimitação de um campo peculiar de interesse, o qual se atém, entretanto, a assuntos muito específicos e não usuais em sua faixa etária, como línguas mortas, tabelas numéricas, máquinas, meteorologia, calendários, entre outros. Vê-se uma superestima da inteligência dessas crianças por seu vocabulário rebuscado e interesses proeminentes.

Asperger enfatizava a inteligência preservada dessas crianças, sua excelente memória, e lhes concebia um bom prognóstico. Ao tomar conhecimento dos trabalhos de Kanner sobre o autismo infantil, insistiu que os casos que descrevera diferiam muito daqueles. A despeito da opinião de seu fundador, a maioria dos autores considera a síndrome de Asperger uma forma atenuada do autismo infantil, similar em suas manifestações, porém com sinais e sintomas mais sutis (SCHWARTZMAN, 1994).

Foi em função dessa similaridade que o DSM-Vv decidiu inserir a categoria da síndrome de Asperger no conjunto maior do autismo infantil. Essa inclusão se ampara no continuum patológico proposto por Lorna Wing (1993) — por ela chamado espectro das desordens autísticas e hoje consolidado como espectro autístico —, em que a síndrome de Asperger seria o extremo mais desenvolvido do autismo infantil de Kanner.

Dentro dessa concepção de um espectro, que abrange um polo com o laço social um pouco mais estabelecido, e outro com um laço social frouxo ou ausente, cabe a tentativa de correlação entre a síndrome de Asperger e os autistas de alto-funcionamento, também denominados autistas-sábios ou autistas-eruditos (autistes savants).

Alguns clínicos insistem em diagnosticar diferencialmente a síndrome de Asperger do autismo, inclusive do autismo de alto-funcionamento, objetando que, além do Q.I. preservado e da ausência de todos os critérios diagnósticos de autismo — que seriam também observados no autismo de alto-funcionamento —, na síndrome de Asperger não se sobressairiam o atraso de linguagem e as anormalidades na comunicação. Já outros autores justificam a falta de empatia e de sentimento por outras pessoas, os estilos desviantes de comunicação, os interesses intelectuais incomuns e constritivos e os apegos idiossincráticos a objetos, apresentados pelos pacientes Asperger como sendo “uma variação mais benigna do autismo” (RUTTER, 1993, p. 75).

Síndrome De Asperger E Autismo De Alto-Funcionamento Para O Campo Freudiano

A discussão sobre a apropriação das nomenclaturas diagnósticas não passou ao largo da psicanálise de orientação lacaniana. Éric Laurent e Jean-Claude Maleval foram dois autores que se interessaram pela diferenciação entre elas, cada um a seu modo.

No que diz respeito à transferência no autismo, Laurent (2012) se mostra um tanto criterioso para afirmá-la, pois o autista, aparentemente, não se dirige ao Outro. E a transferência é um laço com o Outro. Indica que é preciso que o analista, no tratamento, trabalhe orientado pelas condições que possibilitem um laço com o autista, que seriam aquelas relativas aos dispositivos de tratamento da instância da letra[6].

Para Maleval (2009a), um canal para o estabelecimento da transferência seria dado pelo duplo. Uma de suas elaborações é a função do Outro de síntese. Este se configura sob duas modalidades: fechada e aberta. Fechada ao laço social, mas como recurso orientador para o autista, ou aberta ao mundo e à interação. Um enquadramento do gozo só se faz possível pela aquisição de algum dos dois modos.

Na proposta de Maleval (2009b), o Outro de síntese fechado é característico dos autistas eruditos (autistes savant), e o Outro de síntese aberto caracteriza a defesa dos autistas de alto nível[7] (haut niveau), que Laurent (2012) faz coincidir com os portadores da síndrome de Asperger. Por possuírem a mesma função de fazer vincular o autista ao mundo, as duas modalidades do Outro de síntese possibilitam que uma passagem entre elas possa ocorrer de maneira gradual. No entanto, é bastante incomum alcançar o modo aberto do Outro de síntese. Essa transição pode ser constatada pelas narrativas dos autistas de alto funcionamento, quando descrevem suas ilhas de competência da infância ou seus gostos por brincadeiras com a linguagem, que caracterizam o Outro de síntese fechado, prévio ao Outro de síntese aberto elaborado por eles posteriormente.

O Outro de síntese fechado se compõe de “um saber fechado e congelado, que lhe permite se orientar em um mundo rotineiro, limitado e sem surpresa” (MALEVAL, 2009b, p. 194), ordenando um mundo solitário e bastante circunscrito. A ele se relacionam os recursos à língua privada, idiossincrásica e com neologismos, apartada do Outro e envolvida pelo gozo do sujeito. Por outro lado, o Outro de síntese aberto é evolutivo, adquirindo determinada capacidade dinâmica que permite ao sujeito, “ainda que não sem esforços” (MALEVAL, 2009b, p. 194), se adaptar a novas situações e demonstrar uma criatividade. É o que ocorre com Temple Grandin, ao cunhar uma expressão criativa para designar-se como um “antropólogo em Marte” (SACKS, 1997). Por sua capacidade de relação, o Outro de síntese aberto se serve da língua do Outro, ainda que reduzida aos signos talhados do gozo, o que Maleval identificou como sendo uma língua funcional, afastada dos afetos.

Se, tradicionalmente, o centro de uma análise promove a interpretação da relação do sujeito com o objeto de seu gozo, considera-se que, com as crianças autistas, é necessária uma “contra-análise”. Nesses casos, o gozo não deve ser interpretado, mas, na proposta de Maleval, domesticado. Essa é a função do Outro de síntese: localizar o gozo do sujeito.

O Caso Ciro: Síndrome De Asperger Ou Psicose?

Ciro é uma criança “estranha” em seu modo de apresentação, mas que se utiliza da fala. Até mesmo consegue ler, com um uso bem singular dessa habilidade, adquirida aos quatro anos.

Ser estranho no trato com as coisas do mundo, mas conseguir interagir de algum modo pelo uso da linguagem e por interesses delimitados pode ter sido o que levou a neurologia a considerar o diagnóstico de síndrome de Asperger para essa criança. Viu-se que diagnosticar como Asperger, nos dias de hoje, é pensar em um autismo com inteligência preservada, uso da linguagem e capacidade de se relacionar com o mundo, mesmo que de maneira atípica e estranha.

Porém, a psicanálise se utiliza de outro critério para realizar o diagnóstico: a posição do sujeito diante do Outro e sua relação com o saber e com o gozo.

Diferentemente de um autista, Ciro faz um laço com o Outro, se interessando por seus objetos (sua casa, suas fotos do celular, sua netinha[8], sua bolsa…)[9]. Mesmo os autistas com síndrome de Asperger demonstram certo corte nesse laço com o Outro, apesar de terem recursos mais elaborados promovidos pelo Outro de síntese aberto, de acordo com a teorização de Maleval.

O retorno do gozo, em Ciro, vem no corpo, promovendo a agitação corporal que o caracteriza e que nos remete à descrição que Ziraldo dá de seu Menino Maluquinho, que tinha “vento nos pés”, não mais se encontrando no lugar de onde se expressara segundos atrás.

Tanto para o autismo quanto para a psicose na criança, o trabalho do sujeito com os objetos pulsionais será privilegiado. O olhar, a voz, os alimentos, os excrementos têm um estatuto próprio e nos indicam o modo como a criança é afetada por eles. No caso de Ciro, vê-se como a criança se mostra sensível à voz do Outro e como parece ser, por essa via, sua tentativa de se orientar no mundo.

Considerações Finais

Este breve trabalho, escrito para a discussão clínica do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças, adverte que alguns casos de psicose infantil podem estar sendo classificados “cientificamente” como síndrome de Asperger. Uma vez que a categoria de psicose na criança foi banida das classificações psiquiátricas atuais, ela acaba por se ver incorporada, desavisadamente, por alguma outra que lhe seja assemelhada.

A psicanálise, atualmente, tende a não confundi-las, mas não deixa de indicar suas semelhanças e as sutilezas que as diferenciam.x O que importa, entretanto, para o psicanalista, é a construção do caso com base na posição do sujeito, nas soluções que ele encontra para lidar com o mundo e seus objetos e em seu trabalho de apropriação de um corpo que lhe é, sempre, estranho.

(1) Nome fictício.
(2) ASPERGER, H. Psicopatias Autísticas na Infância. Arch. Psychiatr. Nervnk., 1944. 117:76-136. (título traduzido do alemão, para melhor entendimento).
(3) VAN KREVELEN, D.A. Early Infantile Autism and autistic psychopathy. J. Autism Childhood Schizophrenia, 1971. 1(1):82-86.
(4) WING, L. Asperger’s syndrome: a clinical account. Psychol. Med. 1981. 11:115-129.
(5) O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), da Associação Americana de Psiquiatria, é um dos tratados diagnósticos mais utilizados pela psiquiatria no mundo, ao lado do CID (Classificação Internacional das Doenças), estabelecido pela Organização Mundial de Saúde.
(6) Como exemplo tem-se a escrita, o cálculo, o desenho, dentre outros.
(7) Ou de “alto funcionamento”, na expressão mais corrente em português.
(8) Ciro perguntava com frequência à entrevistadora sobre seus objetos, inclusive sobre “sua netinha” (sic), que ele supunha que ela tinha.
(9) Esses foram elementos presentes na Apresentação de Pacientes realizada com a criança, a qual, no entanto, não será detalhada aqui.
(10) Sobre esse assunto, o leitor pode consultar o texto de PIMENTA, P. & DRUMMOND, C. “Pode o autismo ser diferenciado da esquizofrenia?”, publicado no Almanaque Online no 5, de jul/dez 2009.

 


Referências Bibliográficas:
LAURENT, É. (2012). “O que nos ensinam os autistas”. In: A. Murta, A. Calmon & M. Rosa (Orgs.). Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte: Scriptum Livros; Escola Brasileira de Psicanálise, p. 17-44.
MALEVAL, J.-C. (2009a). “Les objets autistiques complexes sont-ils nocifs?” In: J.-C. Maleval (dir.). L’autiste, son double et ses objets. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, p. 161-189. (Clinique Psychanalytique et Psychopathologie).
MALEVAL, J.-C. (2009b). L’autiste et sa voix. Paris: Seuil.
PIMENTA, P. (2003). Autismo: déficit cognitivo ou posição do sujeito? Um estudo psicanalítico sobre o tratamento do autismo. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Disponível digitalmente em: http://ebp.org.br/wp-content/uploads/2012/08/Paula_Pimenta_Autismo_deficit_cognitivo_ou_posicao_do_sujeito1.pdf
RUTTER, M. (1993). “Autismo Infantil”. In: GAUDERER, E. C. Autismo e outros atrasos do desenvolvimento. Uma atualização para os que atuam na área: do especialista aos pais. Brasília: CORDE, p. 60-82.
SACKS, O. (1997). “Um antropólogo em Marte”. In: Um antropólogo em Marte. Sete histórias paradoxais. 3.ed. Trad.: Bernardo Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, p. 253-301.
SCHWARTZMAN, J. S. (1991). Síndrome de Asperger. Temas sobre Desenvolvimento, 2:19-21.
SCHWARTZMAN, J. S. (1994). Autismo infantil. Brasília: CORDE.
WING, L. (1993). “O contínuo das características autistas”. In: GAUDERER, E. C. Autismo e outros atrasos do desenvolvimento. Uma atualização para os que atuam na área: do especialista aos pais. Brasília: CORDE, p. 90-98.

Paula Pimenta
Psicóloga. Psicanalista membro da EBP/AMP. Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.



Da Medicalização E Da Judicialização: Um Comentário

MÁRCIA MEZÊNCIO

 

As conversações do IPSM-MG constituem um espaço de investigação e fazem série. Em 15 de agosto de 2012 a 10ª Conversação da Seção Clínica também discutiu o caso de uma criança. Naquela ocasião estava em questão a medicalização da infância introduzida através do diagnóstico de TDAH. Ao comentar o caso e as implicações políticas do diagnóstico, Sérgio Laia alertou para sua associação com a propensão ao roubo, à infração – segundo pesquisas acadêmicas que ele cita –, da qual decorreria a justificação do uso da medicação (LAIA, 2013, p.167-168). Assim, a medicalização contemporânea seria uma nova apresentação da biopolítica.

Nesse sentido, o tema insiste e continua sendo objeto da investigação psicanalítica e das preocupações de profissionais e cidadãos. Registro a realização, pelo CFP – Conselho Federal de Psicologia, no final de semana imediatamente anterior ao da realização dessa 14ª Conversação, em BH, do 2º Seminário Interno do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade. O fórum congrega diversas instituições e movimentos sociais que se mobilizam para combater mais essa forma de controle, a patologização das condutas e das diferenças. É importante ressaltar o papel da educação nesse projeto higienista, como sugere o próprio nome dado ao fórum. Lembro a discussão recente, em nosso campo, do relatório do INSERM – Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale –, em que o comportamento de crianças era avaliado e relacionado à prevenção da delinquência. Reporto, de minha experiência, a solicitação da Vara Infracional, junto aos conselhos tutelares, de listas de crianças atendidas por questões relativas à indisciplina, com vistas a ações preventivas quanto a futuras infrações.

No caso da criança de cinco anos, objeto da 14ª Conversação da Seção Clínica, sob o título “Autismo na rede: a criança, os diagnósticos e seu tratamento”, outro diagnóstico, ou a demanda de um, e seu tratamento pela vertente da medicalização associada à judicialização da infância aqui assumem contornos absurdos. Vemos em curto-circuito os campos da educação, da saúde e da justiça, convocados a operar o controle do corpo dessa criança cuja agitação é interpretada como “ato infracional”, “risco”, “conduta não admitida no ambiente escolar”. A escola declara que o aluno (cito o relatório)i:

“(…) pratica condutas que se amoldam ao delito tipificado no Código Penal como lesão corporal leve (art. 129, CP), quais sejam: chuta, bate, belisca, empurra e estapeia os profissionais e alunos dessa instituição de ensino. Condutas, portanto, consideradas ato infracional (art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) e, não admitidas no ambiente escolar.”

Ressalvo que não discutirei se a conduta se enquadra na tipificação do Código Penal, pois considero descabida tal proposição. Cabe-me comentar, pontual e brevemente, e esclarecer a Declaração da escola em que a criança estava matriculada. Declaração que é de fato uma solicitação, um encaminhamento à saúde, para que esta responda sobre o risco que essa criança pode representar para a instituição, seus profissionais e seus alunos. É também uma decisão de excluir, segregar o aluno, que “ficará suspenso enquanto não for apresentado laudo/relatório médico conclusivo” (grifo no original). Que conclusão é demandada?

“Evitando possíveis transtornos judiciais, a diretora da Escola requer a apresentação de laudos/relatórios dos profissionais de saúde que acompanham o aluno (…), informando: (i) qual tratamento ele está sendo submetido; (ii) a periodicidade do acompanhamento médico; (iii) quais remédios ele está sendo medicado; (iv) os efeitos colaterais dos medicamentos; (v) o efetivo risco que ele acarreta as demais alunos e profissionais em decorrência de seu comportamento agressivo.”

Os termos dessa declaração surpreendem. Alegações, supostamente fundamentadas, escondem e revelam. “Garantir-se” em normas e regulamentos para “transferir” a responsabilidade que cabe à escola aos profissionais da saúde ou à família, seja pelo recurso ao discurso legal, seja ao senso comum sobre as atribuições que cabem à escola ou à família.

“Ressalta-se que há um grande temor de que ele coloque em risco a integridade corporal dos alunos da escola, motivos pelo qual deve haver um efetivo acompanhamento médico em relação ao comportamento e atitude agressivos do aluno. (…)

A função da Escola é prestar serviços de educação, transmitir conhecimento aos alunos que se encontram matriculados nesta Instituição. Contudo, as condutas do aluno (…) estão se tornando obstáculo para que os professores consigam cumprir com seu conteúdo programático e com as aulas preparadas. A imposição de limites (dizer não), educar o filho sobre o que é certo e errado, ensinar-lhe valores é função da família.”

No que se refere à legislação, podemos considerá-la um mal necessário no atual estágio e programa civilizatório, em que prevalece a lógica do contrato em detrimento da lei. Assim, todos os campos da existência são regulados por algum estatuto específico, o universal da lei se fragmenta segundo as particularidades, as comunidades, as políticas compensatórias etc.

O ECAii – Estatuto da Criança e do Adolescente – trata dos direitos e deveres de crianças e adolescentes, bem como da responsabilidade compartilhada entre a família, sociedade, comunidade e Estado quanto à garantia desses direitos (art.4). A criança – pessoa de até doze anos incompletos – e o adolescente – aquela entre doze e dezoito – são considerados prioridade absoluta nos termos na Constituição Federal e do ECA e têm direito à proteção integral em função de sua condição peculiar de desenvolvimento.

Crianças e adolescentes são inimputáveis (art.104). Assim, ainda que agentes de atos que possam ser considerados análogos aos delitos tipificados no Código Penal, e, portanto, atos infracionais, segundo o art. 103 do ECA, citado no relatório da escola, serão diferentemente tratados nos termos desse diploma legal. O adolescente será responsabilizado e a ele poderão ser impostas as medidas socioeducativas (art.112). À criança, objeto de proteção, serão atribuídas medidas protetivas (art.101). O espírito da lei, no que se refere à criança, é garantir seu direito e proteção, condições para que acesse “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico e mental, moral, espiritual e social” (art.3).

Na declaração encaminhada pela escola, entre outras imprecisões, medidas protetivas são consideradas equivalentes a medidas socioeducativas. A escola se refere corretamente ao artigo 101, mas alega, incorretamente, que tais medidas seriam as socioeducativas. Ao respaldar no ECA sua indisponibilidade para proteger essa criança, responsabilidade que lhe é atribuída pela mesma legislação a que recorre, a escola incorre no desrespeito a ela, impondo à criança um tratamento discriminatório. A se fazer valer o que prescreve o Estatuto, caberia processar e responsabilizar a instituição pelo seu descumprimento.

Essa confusão é bastante frequente na rotina das escolas e em sua interface com outras instituições, seja de proteção, acolhimento, saúde ou de medidas socioeducativas. Também são frequentes a renúncia ao exercício da autoridade escolar e o recurso reiterado a intervenções policiais e judiciais para a solução de conflitos no ambiente escolar ou de atos indisciplinares. É ainda recorrente uma “responsabilização” do ECA pela perda de autoridade dos professores e educadores.

Para concluir, gostaria de ressaltar a importância de nos ocuparmos dessa questão sobre a judicialização generalizada. Estamos assistindo – alguns participando e outros, como eu, engajados profissionalmente na interface com o campo do direito, em particular, do direito do adolescente – a uma discussão em pauta na disputa eleitoral, que ora se trava no país, que é a questão da redução da maioridade penal. Há certa ironia se compararmos a declaração de voto de Marcelo Freixo, Deputado Estadual pelo RJ, com a declaração dessa escola. Ele se disse representado, na disputa do segundo turno, por quem quer os jovens no banco da escola e não no banco dos réus. O que fazer quando a escola quer o contrário?

Que a nossa responsabilidade de analistas e cidadãos nos mantenha dispostos a “ainda um esforço” se queremos dar lugar ao sujeito, se queremos que ele encontre seu lugar no Outro.

 

(1) Esta e as citações a seguir foram retiradas da Declaração apresentada pela Escola em 16 de abril de 2014.
(2) Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

 


Referências Bibliográficas
LAIA, Sérgio. “Comentário teórico: o diagnóstico no DSM-V E O TDAH”. In: SANTIAGO, Ana Lydia e MEZENCIO, Márcia. (orgs.) A psicanálise do hiperativo e do desatento… com Lacan. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2013. p. 167-173.

Márcia Mezêncio
Psicanalista, Membro da EBP/AMP, Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos-UFMG). Supervisora do Serviço de Medidas Socioeducativas da Prefeitura de Belo Horizonte. E-mail: marciasouzamezencio@gmail.com.



Sobre Alucinações E Falas Impostas

VICTOR THIAGO AGUIAR

 

Historicamente, tanto a psiquiatria quanto a psicanálise interessaram-se pela psicose. Cada uma dessas disciplinas, a seu modo, sistematizou um conjunto de saberes visando a compreender o fenômeno da alucinação. Este trabalho pretende fazer uma breve apresentação das principais concepções acerca desse fenômeno no intuito de articulá-lo com a noção de falas impostas, evocada por Lacan no Seminário, livro XXIII, no contexto de sua investigação acerca da obra do escritor irlandês James Joyce.

No campo da psiquiatria, uma das mais célebres definições para o conceito de alucinação indica que se trata de uma percepção sem objeto. Cunhada pelo psiquiatra Esquirol, discípulo de Pinel, essa definição aprofundou o campo da clínica psiquiátrica ao fixar um campo semântico, até então amplo e difuso. Esquirol afirmou o caráter central ou psíquico desse transtorno, produzindo um corte em relação às teorias prévias que associavam os fenômenos alucinatórios a transtornos dos órgãos sensoriais. Para tal, recorreu a exemplos de surdos e cegos que alucinavam. A consequência dessa compreensão implicou a necessidade teórica de supor uma instância capaz de constituir-se como locus do transtorno. Foi assim que surgiu a ideia de um centro integrador das sensações, cuja alteração explicaria a emergência do fenômeno alucinatório.

Algum tempo depois, Baillarger, discípulo de Esquirol, foi responsável por isolar aquilo que chamou de alucinações psíquicas, ou seja, fenômenos alucinatórios desprovidos de sensibilidade e que, como ele mesmo destacou, “parecem relacionar-se quase exclusivamente com a audição” (GOROSTIZA, 1995, p. 128), distinguindo-as das alucinações psicossensoriais, que indicavam uma dominância do sensorium visual. Recolheu dos próprios alienados e de testemunhos dos místicos algumas descrições minuciosas, tais como “vozes interiores”, “vozes sem som que conversam de alma a alma por inspiração”, “vozes interiores, secretas, que não fazem ruído” e “vozes que a carne e o sangue não compreendem”, dentre outras. Percebe-se, assim, uma progressiva inclusão da linguagem no campo das alucinações.

Jules Séglas, considerado o clínico mais fino que a escola francesa produziu, desenvolveu seus estudos no contexto histórico que ficou conhecido como “a idade de ouro do localizacionismo cerebral”. A chave de compreensão das alucinações aqui podia ser explicada por meio do raciocínio de que, se uma lesão em uma região do córtex produzia um déficit funcional (afasia), então, uma excitação patológica e desordenada dos centros sensoriais produziria as alucinações. As formulações mais tardias de Séglas, contudo, representaram um progressivo abandono desse viés localizacionista, com a consequente incorporação de hipóteses psicológicas e o reconhecimento do lugar preponderante em relação à linguagem. Ilustra isso o que chamou de alucinação motriz verbal, definido como um fenômeno automático, carente de atributos sensoriais e que não tem outro caráter senão o de parecer ao doente como estranho ao eu. Asseverou ainda que o que caracterizaria esses fenômenos não é o fato de manifestar-se como mais ou menos parecidos com uma percepção exterior, e sim o de constituir-se como fenômenos de automatismo verbal, como um pensamento verbal separado do eu, um fato de alienação de linguagem (GOROSTIZA, 1995, p. 137).

Por sua vez, para Gatian de Clérambault, a alucinação, em sua forma clássica de alucinação verbal, se distinguia radicalmente dos fenômenos que foram isolados na sua renomada síndrome de automatismo mental. A essa síndrome estão associadas ocorrências tais como antecipação de pensamentos, enunciação de atos, impulsões verbais e tendências a fenômenos psicomotores, ao passo que às alucinações auditivas estão associadas vozes objetivadas, individualizadas e temáticas. A despeito da dificuldade de se definir o conceito de automatismo mental, pode-se afirmar que se trata de uma síndrome clínica caracterizada por três traços. O primeiro deles, caráter não sensorial, é evidenciado pela presença de pensamentos com forma indiferenciada e abstrata, sem forma sensorial definida. O segundo, teor essencialmente neutro, alude ao fato de que não há uma tonalidade afetiva, assim como não há hostilidade. O que se pode perceber, às vezes, é um estado levemente eufórico, sendo esse o único estado afetivo congruente com o automatismo mental. E, por fim, o terceiro traço refere-se ao caráter atemático ou anideico, isto é, não conforme a uma sequência de ideias presente, por exemplo, nos jogos silábicos. Esses três traços definem o que se pode considerar a qualidade específica desses fenômenos: sua origem mecânica e sua etiologia orgânica (GOROSTIZA, 1995, p. 68). Em um determinado momento de suas elaborações, Clérambault estabeleceu que os fenômenos de automatismo mental seriam primários ou iniciais, comparativamente às alucinações objetivadas e verbais e aos delírios que seriam fenômenos secundários ou tardios. Os mecanismos mais delicados do intelecto seriam afetados em primeiro lugar e, só depois, isso se daria com as faculdades sensoriais específicas. Todavia, é importante destacar que as relações entre automatismo, alucinações e delírios não se modulam da mesma maneira nos diferentes momentos da obra de Clérambault. O próprio psiquiatra admite certa dificuldade para encontrar uma designação adequada para a síndrome. A multiplicidade de nomeações que foram forjadas ao longo do tempo, tais como pequeno automatismo, síndrome de passividade, síndrome de interferência e síndrome de parasitismo, dentre outros, ilustra esse aspecto.

Em seu texto intitulado “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan questiona todas as posições existentes até aquele momento acerca do fenômeno alucinatório. Considerando-as todas tributárias do sintagma de que se trata de uma percepção sem objeto, o psicanalista denuncia o ponto crucial de sustentação dessas concepções, a saber, a existência de um sujeito da percepção primariamente unificante. Nesse sentido, é útil relembrar a definição de dois termos de origem latina: percipiens e perceptum. O percipiens refere-se ao sujeito do ato da percepção, ao passo que o perceptum alude à consequência desse ato, isto é, a uma percepção plena de realidade. De acordo com a perspectiva psicopatológica clássica, em uma percepção normal, um determinado objeto da realidade é apresentado aos sentidos, e o sujeito da percepção – o percipiens – dá ativamente unidade ao que foi percebido – o perceptum. O que ocorre em relação à percepção alucinatória é que não há objeto na realidade para ser percebido, mas, não obstante, um perceptum – nesse caso, alucinatório – é produzido. Assim, se o perceptum depende da atividade do percipiens, deve-se pedir razões sobre essa anomalia a esse sujeito da percepção. Lacan subverte essa concepção e reconhece uma causalidade no dito perceptum, concebido agora em termos de fato de linguagem. Já não se trata de um sujeito ativo da percepção, mas sim de um sujeito que padece os efeitos de divisão do significante e que, mais ainda, é um efeito do mesmo. Opera-se aí uma inversão da atividade atribuída ao percipiens unificante para a passividade de um sujeito que padece os efeitos do significante, o que implica em uma primazia do perceptum alucinatório sobre o sujeito (GOROSTIZA, 1995, p. 121). Lacan argumenta que o sujeito é dividido pela alucinação verbal e que o fenômeno alucinatório revela a céu aberto a estrutura mesma do significante que causa a divisão do sujeito (GOROSTIZA, 1995, p. 131).

Em sua tese de doutoramento, Lacan havia declarado o parentesco da interpretação com as alucinações. No Seminário, livro III, atribui o aspecto de significação pessoal tanto para as alucinações quanto para as interpretações. Ou seja, tanto em um quanto em outro desses fenômenos o sujeito tem a certeza de que o que está em jogo ali lhe concerne. Isso constitui o que ele chama de fenômenos elementares. Retomando o texto “De uma questão preliminar…”, pode-se dizer que ali a alucinação verbal constitui o paradigma do sintoma psicótico (GOROSTIZA, 1995, p.115). Quando Lacan examina e classifica as diferentes formas das alucinações verbais relatadas por Schreber, distingue nelas os fenômenos de código e os fenômenos de mensagem, constatando que as diferenças em jogo aí se prendem à estrutura da fala (LACAN, 1957-1958, p. 543). Aos fenômenos de código pertencem as vozes que se servem da língua fundamental do sujeito, que Schreber descreve como “um alemão um tanto arcaico, mas ainda rigoroso, que se caracteriza principalmente por uma grande riqueza de eufemismos” (LACAN, 1957-1958, p. 544). Situam-se ali as locuções neológicas, criações que submetem a linguagem a variações de formas (novas palavras compostas, mas numa composição conforme as regras da língua do paciente) e de emprego. As alucinações instruem o sujeito sobre as formas e empregos que constituem o neocódigo. Trata-se de algo bastante próximo das mensagens que os linguistas chamam de autônimas, na medida em que é o próprio significante (e não o que ele significa) o objeto da comunicação. Lacan declara:

“estamos na presença desses fenômenos erroneamente chamados de intuitivos, pelo fato de o efeito de significação antecipar-se, neles, ao desenvolvimento desta. Trata-se, na verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza (segundo grau: significação de significação) adquire um peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria significação” (LACAN, 1957-1958, p. 544).

Por sua vez, os fenômenos de mensagem referem-se às mensagens interrompidas. A voz alucinada limita sua mensagem a um começo de frase do tipo “Agora eu vou me…” ou “Você deve de fato…” ao qual o sujeito, nesse caso, Schreber, retruca com o suplemento “render-me ao fato de que sou um idiota”, por exemplo. O complemento de sentido a que Schreber não se furta a produzir dá testemunho de sua valentia quando se considera o aspecto ofensivo e provocativo da emissão alucinada. Lacan observa que a frase se interrompe no ponto preciso que indica a posição do sujeito a partir da própria mensagem. Pode-se concluir, então, que tanto os fenômenos de código como os de mensagem impressionam pela predominância da função do significante.

Em seu curso Piezas sueltas, Miller nos aponta que Lacan, em uma apresentação de pacientes, encontra um sujeito que “sofre de falas impostas, de ecos de palavra, esses ecos dos quais Joyce soube fazer uma arte” (MILLER, 2013, p. 74). O sujeito em questão, tratado como Gérard Primeau, define assim o que ele mesmo chamou de fala imposta:

“fala imposta é uma emergência, que se impõe ao meu intelecto e que não tem significado, se considerado o senso comum. São sentenças que emergem, que não são refletidas, que ainda não foram pensadas, mas são uma emergência, expressando o inconsciente. (…) Emergem como se eu fosse talvez manipulado […]. Eu não sou manipulado, mas não posso me explicar. Tenho muito problema ao explanar coisas. Tenho problemas para dominar a questão, esta emergência. Não sei como surge, como se impõe no meu cérebro. Tudo surge de uma só vez: “Você matou o passarinho azul”. É um sistema anárquico. Sentenças que não tem sentido racional na linguagem comum e que se impõem no meu cérebro, no meu intelecto. Há também uma espécie de contrapeso. Com o médico chamado Dr. D., tenho uma sentença imposta, que diz: o Dr. D. é simpático, e, então, tenho uma sentença que contrabalança, que é fruto da minha reflexão; há uma disjunção entre a sentença imposta e a minha sentença, que é um pensamento reflexivo. Eu digo: mas eu sou insano. Digo: o Dr. D. é simpático (sentença imposta), mas eu sou insano (sentença reflexiva)” (LACAN, 2000, p. 5).

Em outro momento da mesma apresentação, o paciente fornece mais um exemplo: “’Eles querem governar meu intelecto’ é uma emergência. ’Mas a realeza está derrotada’ é uma reflexão’” (LACAN, 2000, p. 12). Imediatamente depois disso, Lacan lhe pergunta: “O que quer dizer que é sua, que você a elaborou?” Ao que Primeau responde: “Sim, enquanto a emergência se impôs sobre mim. Acontece em mim assim: são como direcionadores intelectuais que vêm a mim, que nascem brutalmente e se impõem ao meu intelecto” (LACAN, 2000, p. 12).

Considerando o que foi abordado até este momento, algumas questões já podem ser colocadas, tais como: as falas impostas do mencionado paciente poderiam ser consideradas alucinações? É legítimo supor que se trata de vozes? O próprio paciente entrevistado por Lacan afirma que “há muitas espécies de vozes” e acrescenta que as chama de vozes porque as ouve internamente.

Numa primeira abordagem dessa problemática, parece não haver dúvida de que tanto alucinações quanto falas impostas referem-se a fenômenos de linguagem. Além disso, parece claro que em ambas o sujeito sofre a incidência de algo que lhe é imposto do exterior, algo do qual ele sabe que participa, embora não possa reconhecer como própria a sua produção. Retomando o caso do paciente mencionado anteriormente, o próprio Lacan, no Seminário XXIII, explicita: “É difícil não evocar, a propósito do caso de Joyce, meu próprio paciente, considerando como isso tinha começado nele. No que concerne à fala, não se pode dizer que alguma coisa não era, para Joyce, imposta” (LACAN, 1975-1976, p. 93).

Sendo assim, é na trilha de Joyce que Lacan desenvolve sua investigação acerca do fenômeno das falas impostas. Não deixa de ser interessante constatar que nela Lacan não faz uso do termo alucinação. A despeito disso e admitindo a ideia de que o que está em jogo ali alude à relação de um sujeito com a linguagem, é possível localizarmos alguns pontos de convergência entre esses dois fenômenos. Dentro desse contexto, talvez seja razoável compreender a nomeação evocada pelo próprio paciente entrevistado por Lacan, a saber, “O Gérard Primeau é o do mundo comumente chamado de real, enquanto que, no mundo imaginário, sou Geai Rare Prime Au” (LACAN, 2000, p. 7), como sugestiva daquelas produções encontradas nos fenômenos de código mencionados por Lacan. Outros neologismos, tais como écraseté, que é, ao mesmo tempo, écrasé (esmagado) e éclaté (esplendoroso), e choixre, para expressar a noção de “cair” e de choix (escolha), também poderiam estar circunscritos aí.

O que se pretende articular neste trabalho, a partir de agora, é quais seriam os pontos de divergência entre alucinações e falas impostas. Em sua tese de doutorado intitulada Os escritos fora de si, Sérgio Laia nos ajuda a identificar algumas especificidades existentes na posição do sujeito diante desses dois fenômenos de linguagem. Cabe fazer a ressalva de que a referida tese estabelece uma comparação entre a obra de Joyce e as produções delirantes dos sujeitos psicóticos. Tomarei a liberdade de transpor também para as alucinações nessa investigação aquilo que fora articulado como delírio na citada tese. Nesse sentido, nas alucinações, o sujeito revela-se numa posição de passividade diante da linguagem, vivenciando a incidência do gozo sobre o seu próprio ser de uma maneira intrusiva. O inconsciente a céu aberto da psicose evidencia que a linguagem joga com o sujeito. Seria ainda mais preciso afirmar que o sujeito é quem é jogado pela linguagem, isto é, “tragado pelas próprias palavras, engolido pelo uso por demais restrito” (LAIA, 2000, p. 214) que faz da língua. Por outro lado, no tocante às falas impostas, o sujeito encontra-se numa posição mais ativa diante da linguagem. Vale lembrar que Joyce chega a produzir uma obra a partir da incidência do gozo sobre o seu ser. Também Gérard Primeau nos sugere algo dessa ordem quando enuncia frases como “Tentei pela ação poética encontrar um ritmo balanceado, uma música” (LACAN, 2000, p. 9) ou “Estava também interessado na contração de palavras” (LACAN, 2000, p. 10). O que se tem nesses casos, portanto, não é tanto o caráter intrusivo da linguagem, mas sim a possibilidade de que o sujeito seja capaz de jogar com ela, de manipulá-la. É a obra de Joyce que joga com as palavras, ou seja, há um uso complexo da língua por parte do sujeito (LAIA, 2000, p. 215). Essa complexidade fica evidente quando se considera que Joyce vai fazendo um progressivo uso de lalíngua. Nas palavras de Laia:

“Joyce encarna, com sua obra, o sintoma desabonado do inconsciente, o sintoma que se apresenta mais na dimensão de um gozo inanalisável do que como mensagem a ser decifrada, o sintoma onde um hospedeiro da palavra pode concernir o seu ser para além da falta-a-ser que caracteriza sua posição subjetiva” (LAIA, 2000, p. 226).

Se, na loucura, o psicótico tem de se haver com um confronto com o não simbolizável, valendo-se de uma proliferação do imaginário e de um trabalho delirantemente interpretativo, Joyce, com seu trabalho de escritura, se endereça ao ilegível, àquilo que se furta até das interpretações delirantes. Ele “se interessa muito mais pelas palavras do que pela narratividade, muito mais pelo ritmo do que pelo sentido, muito mais pela ordenação das palavras em uma sentença do que pela adequação gramatical dessa ordenação” (LAIA, 2000, p. 200). É o que Lacan evidencia ao afirmar: Joyce tem uma relação com joy, o gozo… esse gozo é a única coisa que, de seu texto, nós podemos pegar (LAIA, 2000, p. 201).

 


Referências Bibliográficas:
GOROSTIZA, L. “Sobre la alucinación”, In: TENDLARZ, S. E. Análisis de las alucinaciones. Buenos Aires: Paidós, 1995.
LACAN, J. (1957-1958) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
______. “Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques Lacan”, In: Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 26/27, 2000, p. 5.
______. (1955-1956) O Seminário. Livro III : as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
______. (1975-1976) O Seminário. Livro XXIII: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAIA, S. (2000) Os escritos fora de si: Joyce, Lacan e a loucura. Belo Horizonte: UFMG.
MILLER, J. A. (2013) Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013.

Victor Thiago Aguiar
Graduado em Psicologia pela UFMG. Psicólogo da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Concluiu o Curso de Psicanálise no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 2014. E-mail: victorthiagoaguiar@yahoo.com.br



O Escrito Que Não Pode Ser Lido

FAYGA PAIM

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.

Manuel de Barros

O presente trabalho tem por objetivo discutir a função do escrito ou, mais especificamente, se perguntar se existiria algo que não se pode ler em uma análise, algo que realmente seja ilegível. Percorrendo alguns textos de Lacan e de Miller, tentamos bordejar essa questão.

No seminário mais, ainda, especificamente no texto “A função do escrito”, Lacan se pergunta: “Como retornar, senão por um discurso especial, a uma realidade pré-discursiva?” (LACAN, 1973, p. 37) Seria possível um discurso que desse conta dessa realidade, desse paraíso pré-verbal, daquilo que não pode ser articulado ao discurso, daquilo que estaria anterior à linguagem ou, como nomeou Lacan, do Real? Ou, ainda, poderíamos nos perguntar sobre a existência de um discurso capaz de abarcar esse inassimilável?

E ele mesmo, Lacan, nos lembra que aí está o sonho. Que esse seria “o sonho fundador de toda ideia de conhecimento” (LACAN, 1973, p. 37), ou seja, entender, compreender, organizar o que se passa no Real.

No fundamento da mitologia cristã se encontra uma passagem em que anjos portadores de espadas fulgurantes são postos à porta do paraíso perdido, impedindo o retorno. “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas a árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer” (Bíblia de Jerusalém). Essa marcada ruptura entre um antes e um depois deixa claro que algo é inalcançável. Passagem de cunho ilustrativo, da origem dos tempos, que seria apenas para marcar o que Lacan considera como mítico. Não existiria o antes e o depois do discurso, portanto não está constituída nenhuma realidade pré-discursiva. Claramente ele nos diz que “Cada realidade se funda e se define por um discurso” (LACAN, 1973, p. 37).

Não há a mínima realidade pré-discursiva, pela simples razão de o que faz coletividade, e de que chamei os homens, as mulheres e as crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-discursiva. Os homens, as mulheres e as crianças não são mais do que significantes. (LACAN, 1973, p. 38)

A partir disso, poderíamos pensar nas limitações do discurso analítico, já que a teoria psicanalítica se funda no discurso? Se ela se funda no discurso, como seria possível acessar algo que não se inscreve nele, algo que escapa a todo discurso?

Para Lacan, é aí que se coloca uma questão: Como lidar com isso, que faz furo no saber? Lidar com o que se encontra fora do discurso? Trata-se de saber o que, num discurso, se produz por efeito de “escrita” (LACAN, 1973, p. 39). Algo que está posto, mas não é decifrável. Que história é essa? Qual é o uso retorcido? E o que justifica a separação entre a escritura e a leitura? Miller observa que, entre um significante e um significado, existe uma interpretação, uma passagem obrigatória (MILLLER, 1996, p. 96).

Lacan inaugura uma ruptura com o pensamento saussureano e instaura uma fissura, um espaço, uma passagem, uma décalagei (distância) entre o significante e o significado.

O linguista Ferdinand de Saussurre cunha uma noção de significante da qual Lacan se apropria. Porém, para Saussurre, o significante e o significado estão unidos arbitrariamente, ou seja, em função do acaso. O significante carregaria uma parcela do signo linguístico (o som), enquanto o significado estaria mais ligado ao sentido, ao conceito, a uma ideia. Portanto, significante e significado estariam unidos. Mas Lacan subverte esse conceito saussureano e diz que a linguagem é essencialmente constituída de significantes e não de signos, e que o significado não tem necessariamente uma relação fixa com o significante. Que o significado desliza pela cadeia significante. Talvez o mais importante que Lacan queira nos dizer seja que a relação entre significante e significado não é fixa, mas variável. Lacan usa como exemplo o texto joyceano em que o significante aparece como recheio de significado.

É pelo fato dos significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem – leiam Finnegans Wake – que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático, mas que é mesmo o que há de mais próximo daquilo que nós analistas, graças ao discurso analítico, temos de ler – o Lapso. É a título de lapso que aquilo significa alguma coisa, quer dizer, que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes. Mas é precisamente por isso que aquilo se lê mal, ou que se lê de través, ou que não se lê. (LACAN, 1973, p. 42)

Portanto, o escrito seria algo que se inscreveria sob novo estatuto? Assim, Lacan atribui ao Escrito um estatuto distinto da relação entre significado e significante. O Escrito não se inscreveria sob a égide do significado nem do significante. Mas algo que se relacionaria mais com a barra que os separa. Mas não será um estatuto extremo, já que ele “descobre antes de mais nada a escritura na própria palavra” (MILLER, 1996, p. 96).

E ele, Lacan, se pergunta: como lidar com isso, que é de quebrar a cara? [bem, eu estou quebrando a minha.] Ou seja, dizer da função do escrito ou daquilo que não se pode ler em uma análise, o ilegível. Nesse momento do seu ensino, poderíamos dizer que Lacan afirma a não preponderância do simbólico sobre o real. O simbólico claudica, falha. Não devemos pensar, como nos adverte Miller (MILLLER, 1995, p. 330), que o sentido escapa por que somos bobos. “O sentido foge como a verdade se esconde. O sentido escapa como líquido de um tonel” (Miller, 1995, p. 330). Como as Danaides, as personagens mitológicas que foram condenadas a encher tonéis sem fundo pelo resto da vida, estamos atrás de algo que dê um sentido a tudo, atrás de uma verdade inalcançável. Assim, completa Miller, a fuga do sentido é um real da linguagem (MILLER, 1995, p. 330). Aí onde o simbólico falha advém o Real em lampejos, em cintilâncias.

É muito difícil o acesso à definição, proposta por mim, da fuga do sentido como um real. Porque a representação que fazemos do real é justamente a de uma resistência, alguma coisa impossível de mudar, à qual associamos a noção de permanência. Em relação ao significante, que tem circuitos e se desloca, somos formados para representar o real como o que retorna ao mesmo lugar, e, portanto, com uma imagem de imobilidade. O sentido, visto que ele escapa, opõe-se às representações que temos do real. Para acessar o que evoco, precisamos nos dar conta de que o permanente, a fuga do sentido, é uma propriedade de estrutura do sentido, o que constitui um real da linguagem.[…]Assim, estamos sempre na contingência, o que parece o próprio oposto do que é real. (MILLER, 1994-95, p. 330)

Então, poderíamos pensar que o escrito constitui um real da linguagem. Mas não um real fixo, como aquilo que retorna ao mesmo lugar, mas algo que se movimenta. A fuga do sentido, portanto, é o movimento que se relaciona com o sentido e não com o real movimento do sentido. Movimento de não completude, de não encaixe, de dissonância. Algo que está sempre a escapar, sempre em desvio, sempre infinito, que nunca atinge seu alvo e não se completa. É sempre um encontro com o real, ao qual imediatamente é dado um sentido, e deixa de ser real.

Nunca chegamos a capturar o sentido, e, quando o capturamos por um enunciado, ele abre sempre uma nova pergunta: Mas então o que isso quer dizer? O sentido é um objeto perdido, como o objeto perdido da linguagem. Não chegamos a recuperá-lo, ele é um objeto tal que não podemos pôr-lhe as mãos em cima, o objeto-sentido. (MILLER,1995,p. 329)

A fim de encerrar o sentido, os homens se põem a dois na tentativa de negar a inexistência da relação sexual. Contudo, existe aí a mulher, que não é toda, e, nela, alguma coisa que escapa ao discurso (LACAN, 1973, p. 38), o que atesta e agita essa impossibilidade, esse incômodo: “Tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que um certo efeito de discurso que se chama escrita” (LACAN, 1972-73, p. 40).

Assim, a escrita proporciona que se perceba a não existência da relação sexual, o que não para de não se escrever.

[…] o discurso analítico, abordou esta questão seriamente e colocou que a condição da escrita é que ela se sustente por um discurso, que tudo escapa, e que, a relação sexual vocês não poderão jamais escrevê-la – escrevê-la com um verdadeiro escrito, enquanto aquele que, da linguagem, se condiciona por um discurso. (LACAN, 1972-73, p. 41)

Só nos resta concluir, fazendo eco da voz de Lacan, que, no seu último texto dos Escritos, já em 1976, apresenta a seguinte frase: “Quando […] o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente” (LACAN, 1976, p. 567). Quando o inconsciente não pode ser lido, é aí que está o inconsciente? Esse seria o inconsciente real? Podemos observar uma torção no pensamento Lacaniano que, ainda no Seminário VI, afirmava que “o desejo inconsciente é a sua interpretação” (LACAN, 1959). Segundo Miller, seremos levados a crer que existe uma “disjunção entre o inconsciente e a interpretação” (MILLER, 2006, p. 4). Portanto, o inconsciente não seria apenas o conteúdo interpretável, mas também algo que escapa a toda tentativa de um entendimento. E isso figura claramente a importância do escrito que não pode ser lido em uma análise.

(1) Termo usado por Ram Mandil, em sua tese de doutorado, para dizer dessa distância entre o significante e o significado.

 


Referências Bibliográficas
LACAN, J. (1972) “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, In: Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003, p. 567.
______. (1973) O Seminário. Livro XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
MANDIL, R. (2003) Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Ed., 2003. (131-145)
MILLER, J. (1994-95) Silet. Os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
______. (1996) “O Escrito na Palavra”, sexta lição de Orientação Lacaniana, ensino proferido no quadro do departamento de Psicanálise de Paris VIII, editado por Catherine Bonningue. Traduzido por Angelina Harari. (94-102)
______. (2006-07) O Inconsciente real, Opção Lacaniana on line, Disponível em http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n4/pdf/artigos/JAMIncons.pdf. Acesso em: 1 out. 2014.

Fayga Paim
Fayga Paim Simões – Psicanalista, aluna do curso de psicanálise do IPSM-MG, módulo III. E-mail: faygapaim@gmail.com



Editorial Almanaque nº14

MÁRCIA MEZÊNCIO

Apresento-lhes a edição n.14 de Almanaque on-line. Nessa edição, buscamos, mais uma vez, apresentar aos nossos leitores o trabalho que se desenvolve no IPSM-MG, em seus espaços de ensino e investigação. Nossos temas, alinhados ao da comunidade de trabalho da Orientação Lacaniana, acentuam a sintonia com o momento civilizatório em que vivemos e praticamos.

Começamos esta edição traçando as referências teóricas para a localização do psicanalista na clínica atual e em sua presença na cidade. Assim, em Trilhamento, acompanharemos, passo a passo, em um percurso nos textos de Freud e Lacan, o caminho que vai da agressividade à pulsão de morte, através da leitura que Éric Guillot nos apresenta dos fundamentos e mecanismos da agressividade e da pulsão de morte, conceitos que, segundo o autor, estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas e que podem nos ajudar a esclarecer o fenômeno da violência contemporânea.

O tema da passagem ao ato também é discutido por Frederico Feu, em Incursões, a partir da leitura do Seminário, livro 10, de J. Lacan. Tomando o eixo desse seminário que é a elaboração do conceito de objeto a, ele busca retrabalhar a diferença estrutural entre neurose e psicose e abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses.

O real que se apresenta na prática dos psicanalistas foi o tema trabalhado pela Seção Clínica durante o primeiro semestre de 2014. Da investigação dos núcleos, publicamos o comentário de Márcia Mezêncio, no Núcleo de Psicanálise e Direito, em torno da formulação de Lacan sobre o utilitarismo da pena e suas consequências sobre a função da punição, e ainda duas produções do Núcleo de Psicanálise com Crianças. Cristiana Pittela de Mattos traz-nos a proposta de investigação sobre o real que se apresenta na clínica com crianças, na tentativa de definir “como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna” — que poderemos acompanhar no trabalho de Andrea Eulálio, Margaret Couto, Maria das Graças Sena; “como a angústia é um sinal do real do trauma; também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.”

O autismo é outro tema da atualidade que está presente nesta edição com um artigo de nossa colega argentina Silvia Tendlarz, em que discute o momento atual dos diagnósticos. Destacamos sua afirmação de que há transferência na direção da cura da criança autista e de que se devem determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura. A invenção, sustenta, é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Encontramos, aí, a orientação da pesquisa neste semestre, que nos inspirou a Entrevista com os membros da Comissão Científica do XX EBCF: pedimos a eles para localizar, em sua prática, o surgimento desse real e indicar-nos as possibilidades e invenções que este convoca.

Em Encontros, Guilherme Cunha Ribeiro propõe uma parceria entre Medicina e Psicanálise, como forma de encontrar opções epistêmicas para sustentar o trabalho do médico, alternativas à clínica da avaliação e do protocolo, prevalente na prática da medicina contemporânea. Registro de atividade conjunta dos núcleos Psicanálise e Medicina e Psicanálise e Toxicomania.

Finalmente, em De uma nova geração, encontramos o vigor e o rigor do trabalho de transmissão sustentado pela Seção de Ensino. O trabalho de Thiago Borges propõe um retorno a um texto fundamental de Jacques-Alain Miller e a um tema também fundamental na clínica contemporânea: a psicose não desencadeada, chamada, entre nós, de psicose ordinária.

Não deixem de ler!




Almanaque V. 8 – Nº 14 1º semestre de 2014

Apresento-lhes a edição n.14 de Almanaque on-line. Nessa edição, buscamos, mais uma vez, apresentar aos nossos leitores o trabalho que se desenvolve no IPSM-MG, em seus espaços de ensino e investigação. Nossos temas, alinhados ao da comunidade de trabalho da Orientação Lacaniana, acentuam a sintonia com o momento civilizatório em que vivemos e praticamos. Leia o editorial…

TRILHAMENTO

Da agressividade à pulsão de morte – Éric Guillot

Crianças autistas – Silvia Tendlarz

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista – Comissão científica do XX EBCF

INCURSÕES

Incidências do trauma: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? – Cristiana Pittela de Matos

Trauma e devastação: a relação mãe-filha – Andrea, Margaret, Maria das Graças Sena

O utilitarismo da pena e o real da pulsão – Márcia Mezêncio

Passagem ao ato como resposta do real – Frederico Feu

ENCONTROS

Medicina e Psicanálise: uma parceria – Guilherme Ribeiro

DE UMA NOVA GERAÇÃO

Reflexões sobre a psicose ordinária – Thiago Ferreira de Borges




Da Agressividade À Pulsão De Morte

ÉRIC GUILLOT

Agressividade e pulsão de morte estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas ou assassinas que são frequentes em nossa atualidade. Violência verbal, intimidação, extorsão, violação, exploração sexual, assassinatos, atentados suicidas, as manifestações agressivas não têm todas a mesma significação. Umas se abrem no registro da “intenção agressiva”[2] e ficam presas na comunicação. Outras testemunham uma “tendência agressiva” mais fundamental que se desdobra em outro registro totalmente diferente, aquele da passagem ao ato, eventualmente destruidor e assassino, colocando em jogo o que Freud designou com o termo pulsão de morte.

Como nos orientar nessa clínica da agressividade e da pulsão de morte? Para dar conta dela, nós teremos de evocar a dimensão sociológica e política desses fenômenos. Existe sempre, com efeito, uma dimensão de contingência na agressividade. Lacan o indica desde 1948, sublinhando que nosso mundo contemporâneo, marcado pela globalização, contribui para seu desencadeamento (LACAN, 1950/1998).

Quais são os fundamentos e os mecanismos da agressividade e da pulsão de morte? Sobre esse ponto, as opiniões de Freud e Lacan divergem. Freud considera que a agressividade é uma “disposição instintiva primitiva”. Ele faz dela um fenômeno vital devido à biologia, tal como a pulsão de morte, que ele liga à agressividade. À diferença de Freud, Lacan considera que a agressividade e a pulsão de morte não se devem ao instinto como animal. Para ele, agressividade e pulsão de morte devem ser pensadas em sua articulação à linguagem. É a linguagem que faz do homem um animal desnaturado capaz de crueldade.

A extração da agressividade e da pulsão de morte do campo da biologia e sua inscrição no campo da linguagem permitirão a Lacan dissociar progressivamente a agressividade da pulsão de morte.

Quanto à agressividade, Lacan mostra, de início, que se trata de um fenômeno que se desenvolve estritamente no registro imaginário. A agressividade é correlativa de um modo de identificação próprio à estrutura do humano. Trata-se de um fenômeno decorrente da teoria do narcisismo. Quanto à pulsão de morte, que Lacan tinha ligado à agressividade, nos primeiros momentos de seu ensino, ele sublinha, em seguida, a articulação estrita com o simbólico; depois, a partir dos anos 60, ele mostra que ela deve ser pensada em seu laço com o gozo, quer dizer, em sua relação com o real. O termo gozo torna-se, então, o nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.

I – Freud, Da Agressividade À Pulsão De Morte

Uma Tendência À Agressão

Lacan considera que Freud fica parcialmente prisioneiro da ideologia darwiniana que dominava sua época.[3] Nessa ideologia — mas não é ainda a nossa? — existe uma preeminência acordada à agressividade que se refere ao fato de que seja concebida como um princípio de conservação da espécie[4] (LACAN, 1948/1998). A abordagem freudiana da agressividade, em termos de instinto e de função vital, testemunha a influência de uma tal ideologia. A primeira teoria freudiana das pulsões[5] (opondo pulsões sexuais e pulsões de autoconservação) também carrega essa marca (FREUD, 1915a/1974).

Depois de 1920, com a descoberta do mais além do princípio de prazer e os remanejamentos de sua teoria pulsional (em oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte), Freud introduz uma nova perspectiva concernente à agressividade. Certamente, Freud vê sempre naquela “uma disposição instintiva original e autossubsistente”, e ele é sempre tentado a situar aí os fundamentos de uma referência à biologia, mas, nesse momento, a agressividade lhe aparece, sobretudo, em sua dimensão deletéria, e ele a relaciona à pulsão de morte (FREUD, 1930/1974). É em “O mal-estar na civilização” que ele o testemunha mais claramente. Tomando o que chama de “tendência à agressão”, ele nos dá uma definição e uma descrição do homem que integra a pulsão de morte. Poderia ser Sade, assinala Lacan (1959-1960/1991). Todo o pessimismo de Freud eclode nesse texto:

[…] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo (FREUD, 1930/1974, p.133).

Homo homini lupus, ele acrescenta, para concluir: o homem é um lobo para o homem.

A forma desse adágio que Freud toma emprestado de Plauto[6] é, para Lacan (1950/1998), enganadora sobre seu sentido.[7] Ele, com efeito, considera que a agressividade não corresponde a um instinto, que não é uma função vital, como no animal. Em 1929, não se trata mais, para Freud, de situar a agressividade em sua articulação às pulsões de conservação do eu, mas antes de mostrar que existe uma “inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destruição, e também para a crueldade” (FREUD, 1930/1974, p.142). Essa tendência à agressão na qual ele reconhece a marca da pulsão de morte constitui, a seus olhos, uma ameaça para a sociedade civilizada (FREUD, 1930/1974). Desse julgamento muito pessimista de Freud nós podemos extrair todo o peso do desastre que foi a primeira guerra mundial e as premissas daquela que se anunciava.

Da Pulsão De Morte À “Pulsão Do Supereu”

A prova dessa influência obscura da pulsão de morte, Freud a refere igualmente a certas manifestações clínicas nas quais o sujeito se emprega a repetir situações que são para ele um desprazer e que vão contra o seu bem e mesmo contra os interesses do vivo. Trata-se, por exemplo, da repetição dos sonhos traumáticos ou ainda das neuroses de destino, das reações terapêuticas negativas, mas também dos sintomas ou da clínica do masoquismo. A repetição dessas manifestações clínicas que se apresentam como uma forma de autoagressão, das quais, no entanto, o sujeito parece tirar uma satisfação paradoxal, testemunha, para ele, a operação de um movimento que se dirige à morte e que afetaria o vivo como tal. Ele vê nessa repetição a expressão de um fenômeno vital enraizado na biologia,[8] caracterizado pela tendência a restabelecer um estado anterior, como um retorno do animado ao inanimado (FREUD, 1930/1974, p.141).

Assinalemos que, se Lacan admite também o fato da repetição como sendo o princípio da pulsão de morte, ele não faz dela um fenômeno vital enraizado na biologia. Ele situa, ao contrário, a repetição em relação à linguagem e ao inconsciente. Está aí um ponto importante que J.-A. Miller (2004) sublinha em seu curso Biologia lacaniana.

Mas vejamos o que leva o sujeito a repetir a situação que vai contra o seu bem. Certamente, Freud considera que essa tendência mórbida se enraíza em um movimento vital, mas que não é suficiente dizê-lo assim. É preciso poder explicar por que todo o mundo não tem a mesma relação com a pulsão de morte. O que leva certos sujeitos a se oporem à sua cura e mesmo a se autodestruírem, a se autoagredirem?

A primeira ideia de Freud tinha sido interpretar como uma forma de autopunição ligada a uma culpabilidade edipiana. Mas, a partir de 1923, em “O Eu e o Isso”, ele começa a duvidar da eficácia dessa interpretação. O que o levou a levantar outra hipótese: aquela do supereu. Essa instância, no interior do sujeito, que o leva a se autodestruir é o supereu. Não o supereu “herdeiro do complexo de Édipo”, resultado da interiorização dos interditos parentais e ligado à figura pacificadora do pai do Édipo; mas um supereu muito mais feroz, de uma severidade extrema, que manifestará contra o Eu “a mesma agressividade rude” que o Eu “teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos” (FREUD, 1930/1974, p.146). Freud o formula em 1929, em “O mal-estar na civilização”.

Para explicar as manifestações de autoagressão, Freud faz valer um retorno da agressividade sobre a própria pessoa por um supereu sádico, que maltrata, atormenta e angustia o eu. O supereu que tiraniza o sujeito, por suas exigências desmesuradas, aparece, assim, como um dos nomes dessa pulsão de morte, cuja hipótese se impôs então a Freud a partir dos anos 20. Freud constata, além disso, que nada apazigua o supereu. Longe de ser acalmado, como se poderia imaginar, pela renúncia pulsional, ele se encontra tanto mais excitado, crescendo sempre mais sua superioridade. Freud (1930/1974, p.149) sublinha que “quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento”.

Por quê? Freud explica assim:

Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não basta, pois o desejo [quer dizer, a “tendência à agressão”] persiste e não pode ser escondido do superego [supereu]. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. […] Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor (FREUD,1930/1974, p.151).

A culpabilidade que resulta da tensão entre o eu e o supereu é às vezes tal, assinala Freud, que acontece de alguns sujeitos cometerem crimes com o único objetivo de serem punidos, fazendo, assim, aliviar sua culpabilidade inconsciente. É um paradoxo que Freud (1915c/1974) sublinha em um artigo intitulado “Criminosos pelo sentimento de culpa”, que Lacan retomará, por sua vez, em 1950, em Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. Ele destaca uma categoria de crimes nos quais, paradoxalmente, é o sentimento de culpabilidade que preexiste à falta. Nessa clínica do supereu destacada por Freud, é a instância do supereu que leva ao crime e à transgressão para satisfazer o que aparece finalmente como uma forma de gozo do supereu (COTTET, 2009).

Com efeito, o que aparece nesse texto de Freud — e que Lacan destacará — é a dimensão pulsional do supereu.[9] Ele tem uma avidez que nada satisfaz. Mais se lhe dá, mais ele reclama. Mais o supereu se impõe, exige, interdita, e mais ele se mostra ávido de renúncia, como se ele se nutrisse dessa renúncia mesma (FREUD, [1929]1930/1974). Ele empurra ao sacrifício e se nutre desse gozo obscuro, masoquista, que o sujeito pode experimentar no sacrifício. Assim, assistimos a uma forma de sexualização do imperativo moral que o supereu promove. E, sem dúvida, é nessa dimensão pulsional do supereu que nós encontramos, como sublinha J.-A. Miller, a “definição mais brilhante” da pulsão de morte (MILLER, 2004, p.22)

II – Lacan: Da Agressividade Ao Gozo

“A Aporia Freudiana”

Lacan considera que Freud ficou prisioneiro da ideologia de seu tempo, quando se esforçou em definir a experiência do homem no registro da biologia (MILLER, 1991). No entanto, sublinha Lacan, toda sua obra demonstra que não se pode dar uma fórmula biológica para isso. É uma contradição em sua obra, é uma “aporia” (LACAN, 1948/1998, p.104). A maneira que Freud teve de teorizar a pulsão de morte, a partir do postulado de uma “agressividade constitucional do ser humano contra outrem”, testemunha essa dificuldade, e Lacan considera que isso deixou a porta aberta a numerosas confusões.

Agressividade E Pulsão De Morte: A Teoria Do Narcisismo

a) Um modo de identificação próprio da estrutura do humano

Rompendo com essa perspectiva biologizante, Lacan vai se esforçar para repensar a questão dos fundamentos da agressividade a partir da teoria da identificação. Ele desenvolve essa questão em 1948, no artigo “A agressividade em psicanálise”.

Sua tese é a seguinte: “a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico” (LACAN, 1948/1998, p.112). Ele acrescenta: o modo de identificação narcísica “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo”.

Para Lacan, agressividade e identificação narcísica são intimamente ligadas. Não se pode dar conta da agressividade sem uma teoria da identificação em psicanálise. Tal é o seu ponto de partida. Nós estamos então longe da ideia de uma agressividade instintual. Ele situa, ao contrário, a origem da agressividade na gênese do eu. A agressividade está intrinsecamente ligada à estrutura narcísica do eu (LACAN, 1948/1998). Ela é sua “tendência correlativa”. Certas manifestações patológicas, como aquelas que encontramos nas psicoses paranoicas, em que dominam as reações agressivas ou as imputações de nocividade feitas ao outro (LACAN, 1948/1998), somente se tornam lesivas se as relacionarmos à “organização original das formas do eu e do objeto” (LACAN, 1948/1998, p.113).

b) A estrutura paranoica do eu

Qual é a origem do eu? Lembremos brevemente que o eu resulta de um processo de identificação imaginária. Lacan elabora essa teoria no artigo sobre o estádio do espelho (LACAN, 1949/1998). A criança acede a uma representação unitária de si mesma ao se identificar, seja à sua imagem no espelho que ela assume como sendo a sua, seja à de uma outra criança, com a condição de que a diferença de idade não exceda dois meses e meio (LACAN, 1948/1998). O que chamamos de eu não é nada mais que o resultado desse processo de identificação imaginária a um outro. Assim, em seu fundamento, o eu é um outro.

Que o sujeito deva passar pelo outro para ter acesso a uma imagem de si mesmo não é sem consequências. Vai resultar disso, sublinha Lacan, uma “ambivalência estrutural”, “uma tensão conflitiva interna ao sujeito” (LACAN, 1948/1998, p.116), e, desde então, a relação do sujeito a seu semelhante vai se desdobrar em um duplo registro, aquele do erotismo e aquele da agressividade. Existe um componente erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica, de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe um componente agressivo porque, se “eu é o outro”, então esse outro pode tomar meu lugar. E é em termos de “você ou eu” que se desdobra então a relação. A única saída vem a ser a destruição do outro. Lacan o formula assim:

Há nisso uma espécie de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso pensamento, para compreender a natureza da agressividade no homem e sua relação com o formalismo de seu eu e de seus objetos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu (LACAN, 1948/1998, p.116).

Os fenômenos de transitivismo observáveis nas crianças pequenas, mas a respeito dos quais Lacan diz que não se eliminam jamais do mundo do homem (LACAN, 1946/1998), testemunham esses fenômenos de captação pela imago da forma humana.

Lacan se refere aqui às observações de Charlotte Bühler.

É nessa captação pela imago da forma humana, […] que domina, entre os seis meses e os dois anos e meio, toda a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante. Durante todo esse período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora (LACAN, 1948/1998, p.116).

E precisa em “Formulações sobre a causalidade psíquica”: “Assim, a criança pode participar, num transe completo, do tombo do seu colega, ou igualmente lhe imputar, sem que se trate de uma mentira, ter recebido dele o golpe que lhe aplicou” (LACAN, 1946/1998, p.182). Assim, o que destacam extraordinariamente os fenômenos de transitivismo é a função de desconhecimento do eu. Lacan tirará as consequências disso, tanto para a concepção que faz da direção do tratamento, como para o que nos ensinam sobre a clínica da paranoia. Com efeito, como ele sublinha, a criança que imputa a seu colega receber o golpe que ele recebe não mente. No momento de captação em que se identifica ao outro, ela desconhece o que vem dela e o que vem do outro. Ela desconhece radicalmente a sua participação naquilo de que se queixa. É o que leva Lacan a introduzir o termo “conhecimento paranoico” (LACAN, 1946/1998, p.181; 1948/1998, p.114; 1949/1998, p.99), para designar essa forma de desconhecimento que está no fundamento da estrutura do eu.

Para Lacan, o eu tem uma estrutura paranoica. O estádio do espelho de Lacan é a “paranoia original do homem”, assinala J.-A.Miller (1991, p.13). É para ilustrar essa “paranoia original” ligada à constituição mesma do eu que, nesse mesmo texto, Lacan (1946/1998) vai buscar, em seguida, um exemplo, o de Alceste, no Misantropo, de Molière. É impressionante ver a esse respeito como Lacan coloca em série as reações transitivistas da criança pequena com Alceste, que ilustra, para ele, a figura do paranoico. Diz Lacan: “Alceste é louco […] justamente pelo fato de que, em sua bela alma, ele não reconhece que ele mesmo concorre para a desordem contra a qual se insurge” (LACAN, 1946/1998, p.174). Ele “não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de seu ser atual” (LACAN, 1946/1998, p.172). Em outros termos, ele atribui ao outro uma desordem interior que é a sua, diz Lacan, e a única maneira para sair disso será desferir seu golpe contra o que lhe aparece como a desordem. Mas, ao fazê-lo, é a si mesmo que ele atinge. Lacan o formula:

Assim, seu ser está encerrado num círculo, a menos que ele o rompa por alguma violência, na qual, desferindo seu golpe contra o que lhe parece ser a desordem, atinge a si mesmo através do contragolpe social.Tal é a forma geral da loucura… (LACAN, 1946/1998, p.173).

Alceste somente encontra, com efeito, sua saída em um verdadeiro suicídio social: verdadeira “agressão suicida do narcisismo”, diz Lacan (1946/1998, p.176), para sublinhar isto: que, ao tentar atingir o outro, é finalmente a si mesmo que ele atinge/bate.

Quanto a esta fórmula: ao atingir o outro, “é a ti mesmo que atinges” (LACAN, 1950/1998, p.149), que resume o conceito de “agressão suicida do narcisismo”,[10] que Lacan introduz a propósito do Misantropo, se pode dizer — como sublinha S. Cottet (2009, p.9) — que domina todos os primeiros escritos de Lacan sobre o imaginário e a criminalidade.

Vamos encontrá-la novamente na observação clínica que ele dá em seguida. Trata-se de um estudo publicado por Guiraud (1928), em um volume intitulado Os assassinatos imotivados. Guiraud descreve as etapas que precederam a sobrevinda da passagem ao ato homicida de um paciente. Depois de todo um período caracterizado por um “sentimento penoso de estranheza interior”, nota Guiraud, o paciente, desgostoso da vida e dos homens, se volta para Deus, depois para o comunismo, projetando sobre a sociedade seu pessimismo interior, até que, em uma passagem ao ato violenta, ele tenta, matando o tirano, matar a doença que o invadia.[11] Assim, sublinha Lacan, seguindo Guiraud, “não é outra coisa senão o kakon [o mal] de seu próprio ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (LACAN, 1946/1998, p.176).

c) A “libido negativa” e a pulsão de morte

O que demonstra o conceito de agressão suicida do narcisismo, através dos exemplos que Lacan dá, é o laço estreito que ele estabelece entre a agressividade e a pulsão de morte. Pode-se mesmo dizer que, nessa época de seu ensino, a pulsão de morte se encontra reduzida à agressividade. E se Lacan pode reduzir uma à outra é porque ele considera, sublinha J.-A. Miller (2004), que elas provêm de uma mesma libido narcísica que inclui, ao mesmo tempo, os valores de vida e de morte. Por que atribuir à libido narcísica esse duplo valor de vida e morte? Isso se deve à origem mesma dessa libido. Para Lacan, o que está na origem é o fato de que o pequeno homem, no seu nascimento, em razão de sua prematuridade, está confrontado a uma insuficiência vital. Essa insuficiência nativa constitui o motor da libido narcísica (LACAN, 1948/1998). Ela é a fonte de energia do eu.

É então porque existe esse dilaceramento original, essa “deiscência vital”, que a criança é levada a se identificar à imagem no espelho, para tentar mascarar, recobrir, essa hiância original. Essa hiância é então o que a conduz a buscar em torno de si, de início, uma imagem, em um parceiro que vai completá-la. Nisso, essa deiscência vital é “constitutiva do homem” (LACAN, 1948/1998, p.118). A libido narcísica, que tem sua fonte numa falta, traz em si sua marca, ela é positiva, uma vez que ela lança o desenvolvimento para frente. Lacan vê nela uma libido situada do lado da vida, uma libido vital. Mas, ao mesmo tempo, ela é negativa, porque a agressividade que a acompanha encontra sua fonte na “aflição orgânica original” da qual ela provém. Lacan introduz essa curiosa expressão “libido negativa”, para designar essa outra face da libido (LACAN, 1948/1998, p.118). Aí, é uma libido que está do lado da morte. Ela opera na agressão suicida do narcisismo. Ela é a expressão do que ele chamará mais tarde de a “lâmina mortal” do narcisismo (LACAN, 1958/1998, p.577).

Assinalemos aqui, como sublinha J.-A. Miller (2004), que essa teorização de Lacan torna finalmente caduca a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Assiste-se à sua reunificação a partir do narcisismo, ao qual ele atribui agora os valores de vida e de morte.

O Significante E A Morte

Em 1953, em seu “Discurso de Roma”, “Função e campo da palavra e da linguagem”, Lacan opera um profundo remanejamento de sua concepção. Apoiando-se sobre o estruturalismo, que deve a Lévi-Strauss, ele é levado a fazer do significante e da categoria do simbólico a nova polaridade de seu ensino. Uma das primeiras incidências dessa contribuição vai consistir em desfazer a junção que ele havia feito antes entre agressividade e pulsão de morte, para ligar a pulsão de morte ao simbólico (MILLER, 2004) — a agressividade ficando intimamente ligada ao registro imaginário da relação narcísica.

Por que reatar desde então a dimensão da morte ao simbólico? É que Lacan tomou a medida de que a tendência à morte não está ligada somente a uma falha vital, ela está também ligada à lógica do significante. É porque existe a linguagem que, diferentemente do animal, a dimensão da morte está presente em nossa vida. É pela operação do significante que a morte entra na vida.[12] Certamente, a morte não é representável, mas como sublinha Freud (1915b/1974, p.332), nós podemos antecipá-la. E é mesmo essa possibilidade que nós temos de antecipá-la, que levou à concepção da divisão do corpo e da alma (MILLER, 2004).

Qual é então a natureza do laço que existe entre a morte e o significante? Lacan expõe suas razões em 1953, em seu “Discurso de Roma”. A primeira consiste em dizer que o que caracteriza “o símbolo [é que ele] se manifesta inicialmente como assassinato da coisa” (LACAN, 1953/1998, p.320). O significante, o símbolo, anula a coisa. Ele está no lugar da coisa. No memento mesmo em que a designa, ele a apaga naquilo que faria sua autenticidade. A segunda razão, invocada por Lacan para dar conta do laço com a morte, consiste em dizer que o significante nos localiza além da morte. O significante assegura uma sobrevida além da vida biológica. Se o homem aspira a se destruir, é porque, na morte, ele consegue se eternizar (LACAN, 1953/1998). É a partir do momento em que o sujeito está morto, que ele se torna um signo eterno para os outros (LACAN, 1957-1958/1999). A esse respeito, o que caracteriza o humano é o direito à sepultura. É a possibilidade de persistir como significante além da morte biológica.

Enfim, a terceira razão é que a morte está no fundamento da constituição da subjetividade. “A intermediação da morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história” (LACAN, 1953/1998, p.320). É porque se sabe destinado à morte, que o sujeito humano se distingue do animal e que sua existência pode tomar sentido (FREUD, 1915b/1974, p.339). Isso é testemunhado pelo horror no qual se pode mergulhar o sujeito quando preso à certeza delirante de que é imortal.

Essa nova perspectiva desenvolvida por Lacan, salientando a dimensão significante da morte e fazendo dela uma característica do simbólico, apresenta, no entanto, uma contrapartida. Ele não leva em conta a dimensão de “satisfação paradoxal”, além do princípio de prazer, que está no coração da pulsão de morte freudiana. O que está excluído nessa concepção da pulsão de morte pelo simbólico é o gozo, sublinha J.-A. Miller (2004). Desde então, onde Lacan irá situar essa satisfação paradoxal?

O Gozo: Um Dos Nomes Da Pulsão De Morte Freudiana

a) “A pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte”

É em 1964, no Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” e no escrito “Posição do inconsciente”, que Lacan dará uma resposta a essa questão. Nos dois textos, ele introduz uma tese que, transformando radicalmente a teoria freudiana das pulsões, vai permitir-lhe levar em conta a dimensão real da pulsão de morte freudiana.

Até então, sublinha J.-A. Miller (2005), Lacan tinha tentado pensar a questão da libido freudiana a partir do imaginário, mas era ao preço de fazer da pulsão de morte um fenômeno imaginário assim como a agressividade. Em seguida, quando tinha recorrido ao registro do simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que tinha sido realçada. Agora, como o Seminário 11, ele opera um novo giro. Recorrendo ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é a dimensão de gozo que comporta a pulsão de morte freudiana — a que Freud se refere como uma “satisfação paradoxal” — que vai ser enfatizada.

Em que essa nova perspectiva transforma radicalmente a teoria freudiana das pulsões? É que ela torna caduca (mais uma vez[13]) a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Desde então, como sublinha J.-A. Miller (2004), as pulsões de vida e as pulsões de morte aparecem como dois aspectos de uma só e mesma pulsão.

Lacan o formula explicitamente: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte” (LACAN, 1946/1998, p.188). E acrescenta: “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (LACAN, 1946/1998, p.195).[14] A pulsão sexual que era situada, até então, do lado da vida, inclui também a dimensão da morte.

Como dar conta do fato de que a morte está também presente nas pulsões sexuais? Lacan faz valer o conceito de repetição e o de pulsão tal como os reformula no Seminário 11. A repetição não está somente no coração da pulsão de morte, ela está também no coração de todo funcionamento pulsional. No princípio da pulsão, existe, com efeito, uma tentativa repetida para reencontrar o objeto que deu satisfação uma primeira vez. Mas esse objeto, que Lacan chama de objeto a, permanece inatingível (LACAN, 1946/1998, p.169). A pulsão o contorna sem jamais atingi-lo, daí a repetição.

Tomemos o exemplo[15] da pulsão oral. Aqui, o objeto a na pulsão oral é o que resta da demanda uma vez que se demandou tudo. Existem os alimentos que se podem obter e, uma vez que tenham sido experimentados, fica um resto que não se satisfaz jamais. Daí o fato de que isso não se aquiete nunca, isso impulsiona, insiste, se repete. O mesmo acontece com a analidade, dá-se de início tudo o que se tem e depois se continua, e resta sempre uma presença dessa exigência de dar, mesmo quando não se tem mais nada para dar. O resto é o objeto a.

E, no fundo, essa exigência repetitiva de satisfação que está no coração do funcionamento pulsional testemunha, segundo Freud e Lacan, uma ultrapassagem do princípio de prazer. Essa repetição — da qual vemos que não é um fenômeno vital articulado ao biológico, mas antes um fenômeno linguageiro articulado ao inconsciente — longe de visar à satisfação de uma necessidade como outras, “aparece ao contrário como uma exigência desarmônica” (MILLER, 2004, p.21),[16] inadaptada em relação às exigências da vida, em relação ao bem-estar do corpo. Ela é “um fator de desadaptação”; ela é contrária à vida. E é então nesse sentido que Lacan pode dizer que “a pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte.”

É o que Freud demonstra, assinala J.-A. Miller (2004), quando sublinha como um órgão pode deixar de obedecer ao saber do corpo. Por exemplo? “O olho pode e deveria servir ao corpo para se orientar no mundo, para ver”, mas eis que ele se coloca “a servir ao que Freud chama a Schaulust, o prazer de ver”. Vê-se como se introduz aqui “um prazer que ultrapassa a finalidade vital e mesmo que conduz a anulá-la”. O olho que deveria estar a serviço da vida individual, torna-se o suporte de um “gozar”, que pode se impor como uma exigência repetitiva, inadaptada às necessidades da vida (MILLER, 2004, p.46). Em suma, essa repetição a que Freud se referiu como sendo a marca da pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões. Ela não é o apanágio de uma pulsão específica que seria a pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões parciais. Toda pulsão é uma ultrapassagem repetitiva do princípio do prazer para tentar atingir — em vão — um gozo perdido para sempre, ao preço, por vezes, de deixar sua vida, como se manifesta, por exemplo, na toxicomania.

Desse ponto de vista, pode-se dizer que o abandono, por Lacan, da dicotomia freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte em proveito do conceito de “gozo”, nome lacaniano da pulsão de morte freudiana, é o que lhe permitiu conceber a parte mórbida de toda pulsão.

Vê-se, por aí, igualmente, que Lacan não abandonou nunca a pulsão de morte freudiana. Ao contrário, fez dela a pedra de sustentação do circuito pulsional. E quando fez do gozo o problema maior com o qual cada um, seja neurótico ou psicótico, tem que se confrontar, pode-se dizer que inscreve a questão da pulsão de morte no coração mesmo de sua teoria e de sua concepção do tratamento. Porque, a partir de então, a pulsão de morte deverá ser tomada na relação particular, sempre singular, que o sujeito mantém com o gozo, com o objeto a que causa seu desejo.

b) Da imagem i(a) ao objeto a: os crimes de gozo

Dizer que toda “pulsão parcial é por natureza pulsão de morte” não quer dizer, certamente, que toda pulsão vai até a morte. Lacan o precisa bem em “Posição do inconsciente”. “Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte” (LACAN, 1964/1998, p.863), dito de outro modo, em toda pulsão existe essa possibilidade de uma transformação do prazer em gozo, a partir do que Lacan chama uma ultrapassagem do princípio do prazer.

Prazer ———-> Gozo/Objeto a

O que caracteriza o prazer é seu caráter razoável, apaziguador, sem tensão. O que faz com que ele possa encontrar seus próprios limites e parar diante da barreira do mal, da dor, do feio. O princípio do prazer é “um princípio de sobrevivência”, assinala J.-A. Miller (2005).

O gozo, ao contrário, se opõe ao princípio do prazer. Ele detém uma potência em si que atravessa essa barreira, ele se apresenta como “uma exigência absoluta” que a torna irresistível. Ele vai no sentido da morte, da destruição. Ele implica em si mesmo “a aceitação da morte”, diz Lacan (1959-1960/1991, p.231).

Habitualmente, o sujeito para antes que a pulsão chegue até a morte. Ele recua, horrorizado, quando o objeto real da pulsão — objeto de gozo, começa a aparecer-lhe em sua crueza. Habitualmente, nós não temos nunca, com efeito, acesso ao objeto real da pulsão. Esse objeto — o objeto a — é inatingível. A pulsão o contorna sem atingi-lo jamais. Esse objeto permanece mascarado, recoberto pelo brilho fálico que lhe dão a fantasia e o desejo.xvii

Um poema de Baudelaire, que J.-C. Maleval (2008, p.150) cita, nos permite apreender o que pode ser esse objeto real da pulsão, quando não é mais recoberto pela imagem aureolada por seu brilho fálico, por i(a).

Quando ela me sorveu dos ossos a medula,E tão languidamente a buscou minha gula,Viu o beijo de amor que nela final pus,Flanco viscoso de odre a transbordar de pus!(BAUDELAIRE, 2001, p.138).[18]

Aqui, o objeto real da pulsão se desvela como uma coisa imunda. Bruscamente, a fantasia, que aureolava o objeto amado, falta. Em um outro poema de Flores do mal, intitulado “Uma carniça”, Baudelaire (2001, p.41) nos dá uma descrição comparável desse momento de báscula.

Barreira, Interdito, Castração

“Não-relação sexual”

Prazer ———> / / —–> Gozo

Sujeito dividido —–> / / —–> Objeto a (objeto real da pulsão)

Inacessível

Imagem falicizada i(a)

Fantasia – Desejo

Na neurose, normalmente, a barreira da fantasia e do desejo funciona para manter o sujeito à distância do objeto real da pulsão. E quando acontece a falha da fantasia — quando uma “desfalicização” do objeto se produz — o sujeito se desvia do objeto. O nojo se instala. Mesmo na perversão, a barreira da fantasia, em sua articulação com a castração, funciona.

A relação ao objeto real da pulsão — a relação ao gozo — não inclui a dimensão da castração. Não está coordenado ao falo articulado ao vazio central da castração, de modo que nenhuma impotência[19] coordena o sujeito ao objeto do qual goza.

Desde então, na relação do sujeito ao objeto, a dimensão do gozo pode se apresentar de maneira a mais crua, em um “sem limite”. Pode então acontecer, como sublinha J.-C. Maleval (2008), que se assista a uma apreensão direta do objeto pulsional. O sujeito busca, então, tirar diretamente os objetos parciais do corpo do parceiro (MALEVAL, 2008).[20] Categoria de crimes que podemos qualificar de “crimes de gozo” ou de “crimes puramente pulsionais”, como o formula Lacan (1932/1987 p.306), nos quais a pulsão de morte se abre/desdobra em todo seu horror.

Em suma, ao fim desse percurso, a pulsão de morte freudiana aparece cindida em duas, entre significante e gozo. Quando Lacan recorre ao simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte.

Ao contrário, a agressividade não aparece mais como um conceito central para dar conta da pulsão de morte; ela aparece como uma consequência lógica da gênese do eu.

Enfim, a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte tende a desaparecer em proveito de uma concepção monista da pulsão que permita a Lacan sair das dificuldades ligadas ao dualismo freudiano.

III – Do Mal-Estar Na Civilização Ao Tratamento Do Gozo

Para concluir, evocaremos brevemente a questão do tratamento da agressividade e da pulsão de morte. É um problema que atravessa todo o ensino de Freud e Lacan.

Desde 1950, Lacan tinha sublinhado como a promoção do eu e o retorno sobre o narcisismo, que se observam no nosso mundo moderno, levavam à violência (LACAN, 1950/1998).[21] É, com efeito, que o prestígio dado ao narcisismo, colocando os seres em um isolamento de alma, fecha os sujeitos sempre mais em um modo de ligação social que passa pela identificação imaginária ao semelhante. A consequência desse modo de identificação alienante é a agressividade.

Observemos que, em 1929, em “Mal-estar na civilização”, Freud já assinalava o perigo que representava o modo de “laço social [quando] é criado principalmente pela identificação de membros de uma sociedade uns aos outros”. Ele via nos Estados Unidos o modelo desse tipo de laço social do qual o efeito só poderia ser “a pobreza psicológica dos grupos” (FREUD, [1929]1930/1974, p.138).

Existe então uma face contingente na agressividade. A sua expressão irá variar segundo a maneira pela qual as estruturas simbólicas do grupo serão capazes de pacificá-la, integrá-la, mascará-la, recobri-la. Daí as variações que se observam segundo as épocas e as culturas.[22]

A Função Pacificadora Do Ideal Do Eu

Para Freud, a função da civilização é, com efeito, permitir que a dimensão do amor domine a do ódio. Freud desenvolve esse ponto de vista em “Mal-estar na civilização”. Ele se interessa pelas barreiras, pelas interdições que a sociedade ergue para lutar contra essa “inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros” (FREUD, [1929]1930/1974, p.134).

Lacan retoma, por sua vez, essa mesma questão. A tese que ele desenvolve em seu artigo de 1948 consiste em dizer que o que permite ao sujeito transcender “a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva” é a identificação edipiana (LACAN, 1948/1998, p.117). Ele considera que no Édipo se realiza uma identificação que não é mais a identificação ao semelhante com sua consequência agressiva, mas uma identificação ao grande Outro em posição de ideal do eu para o sujeito. Lacan reconhece nessa identificação dita “simbólica” uma função pacificadora e normatizante[23] à qual atribui eficácia ao pai, cuja função é unir o desejo à lei. Essa identificação simbólica ao Outro em posição de ideal do eu é o que permite estruturar o imaginário.

A Face Mortífera Da Cultura

A função do ideal do eu tem, no entanto, seus limites para tratar o problema da agressividade e da pulsão de morte. Não somente porque existe em nosso mundo contemporâneo um declínio dos ideais e uma fragilização das referências simbólicas, mas também porque a função do ideal tem uma parte ligada com o gozo do supereu.

Existem, com efeito, duas faces na cultura. Uma que tem uma função pacificadora — aquela que Freud acentuou com o pai do Édipo que une o desejo à lei. Aí, é a função pacificadora do ideal do eu. E outra que é aquela da pulsão de morte, que Freud descobre com o supereu. Um supereu que certamente toma a seu cargo os interditos enunciados pela cultura, mas que, mais secretamente, impulsiona a gozar. O interdito ele mesmo alimenta o gozo. De sorte que o que se chama de cultura pode também ter uma face deletéria. A cultura da avaliação é um exemplo disso.

Bem-Dizer Nossa Relação Ao Gozo
Desde então, como tratar o gozo? O que é que pode vir a limitar o gozo, se parece, com efeito, que existe uma queda dos ideais e que o ideal, a moral retomada a seu cargo pelo supereu, corre o risco, sempre, de se degradar em gozo.

A resposta de Lacan a uma questão atravessa todo o seu ensino.[24] Isolarei, no entanto, um ponto que me parece crucial, aquele que consiste em dizer que o tratamento da pulsão de morte, o tratamento do gozo, passa pela ética. A ética da psicanálise para Lacan é “uma ética do bem-dizer”. Ele a formula assim em 1974: “isto é, do dever de bem-dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura” (LACAN, 1974/2001, p.524).

“Bem-dizer ou se referenciar ao inconsciente” quer dizer “aprender a ler nosso inconsciente”, quer dizer aprender a “bem-dizer nossa relação ao gozo inconsciente” ou à pulsão de morte. Como? Tentando chegar o mais próximo de nossa relação ao objeto, esse objeto a causa do desejo e que reencontramos no coração da fantasia.

Não é então um “tratamento de massa” da pulsão de morte o que a psicanálise propõe, como aquele que prescreve a religião sob a forma do preceito: “amarás ao próximo como a ti mesmo” e que Freud ([1929]1930/1974, p.168) e também Lacan (1959-1960/1991) julgam inoperante e “chocante”.[25] Não, o que a psicanálise propõe é um tratamento “um-a-um”.

Consiste em levar em conta o fato de que esse gozo mau está em cada um, “ele faz parte de seu próprio ser”, diz Freud (1925/1976, p.165),[26] ou como formula Lacan (1946/1998, p.195), que “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”.

“Nosso ser inclui […] a parte de que somos orgulhosos, […] que constitui a honra da humanidade”, assinala J.-A. Miller, “mas também a parte horrível” (MILLER, 2009, p.2-3). Essa parte horrível não é somente aquela que Freud descreveu quando nos diz que “o homem é um lobo para o homem”, é também aquela que se abre no gozo obscuro do sacrifício.[27] Importa aproximar-se disso em um tratamento para tentar saber alguma coisa sobre isso.

 

(1) “De l’agressivité à la pulsion de mort”, publicado em Mental, Paris, n.24, p.143-163, abr. 2010.
(2) Lacan (1948/1998, p.106,112) introduziu no texto “A agressividade em psicanálise” essa distinção entre “intenção agressiva” e “tendência agressiva”.
(3) A obra de Darwin, A origem das espécies, data de 1859, e A filiação do homem, de 1871.
(4) O prestígio da ideia da luta pela vida é atestado pelo sucesso da teoria darwiniana ou, pelo menos, pelo sucesso das derivações que essa teoria conheceu, desde o fim do século XIX, com o que chamamos o “darwinismo social” — termo inventado, em 1880, para designar a doutrina sociológica de Herbert Spencer, segundo a qual a eliminação dos menos aptos é a consequência necessária, nas comunidades humanas, da grande lei da seleção natural. Sabe-se que Darwin se opôs a essas concepções. Ver sobre esse ponto: TORT, P. “Le darwinisme, entre innovation et dérives”, Dossier pour la Science, n.63, p.21, avr./juin 2009.
(5) Freud considera que os “verdadeiros protótipos da relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta do eu para sua conservação e sua afirmação” (FREUD, 1915a/1974).
(6) Plaute, Asinaria (La comédie des ânes), II, 4, 88.
(7) “A ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais”, sublinha Lacan. “Mas essa própria crueldade implica a humanidade.” Ela é específica do homem. É porque, mais que nos referir a esse adágio de Plauto, Lacan nos convida a ler a fábula forjada por Balthazar Gracian, em seu Criticon. Este último sublinha a que ponto, “ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira [a ferocidade do homem], os próprios carniceiros recuam horrorizados” (“Le précipice de la vie”, Le Criticon, Tomo 1, Éditions Allia).
(8) “Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto de preservar a substância viva […]” (FREUD, 1930/1974, p.141).
(9) É o que traz Miller em Biologia lacaniana, ao falar de “pulsão do supereu”. “Mesmo se a fórmula não aparece assim em Freud, a pulsão de morte, tal qual emerge de seu texto, é a pulsão do supereu” (MILLER, 2004).
(10) O conceito de “agressão suicida do narcisismo” vem substituir a ideia de uma causalidade do crime em termos de autopunição que Lacan tenha desenvolvido alguns anos antes no caso Aimée. Lacan sublinha, na p.176: “Quanto à mola do desfecho, ele é dado pelo mecanismo que, bem mais do que à autopunição, eu referiria à agressão suicida do narcisismo” (LACAN, 1950/1998, p.176).
(11) Ver p.88: “Condensou a noção de sua doença com a do mal social, ou melhor, simbolizou a primeira pela segunda. […] Por um ato de violência, Paul tentou suprimir o kakon para usar a expressão de V. Monakow e de Morgue. Matar o tirano consistia para ele em matar a doença” (GUIRAUD, 1928/1994, p.88).
(12) “Isso porque o significante como tal, barrando por intenção primeira o sujeito, nele faz penetrar o sentido da morte. (A letra mata, mas só ficamos sabendo disso pela própria letra)” (LACAN, 1964/1998, p.862-863).
(13) Porque é já o que Lacan tinha tentado fazer com a libido narcísica, à qual ele atribuía um duplo valor de vida e morte.
(14) Lacan se refere aqui à relação essencial que une o sexo à morte. Somente essa questão essencial mereceria todo um desenvolvimento. Notemos unicamente que, desde que Lacan acentua a relação que une esses dois termos, no Seminário 11 (p.188, 194, 195) e em “Posição do inconsciente” (p.861-863), é em referência à biologia que ele se situa. Para os biologistas, a relação entre o sexo e a morte se explica pelo fato de que é a partir da reprodução sexuada que a morte aparece. Freud (1920/1976, p.65) retoma por sua conta essa teoria de Weismann em Além do princípio de prazer. Lacan também se refere a isso e, na sequência do Seminário 11, mostra como essa articulação do sexo e da morte está no coração das operações de alienação e separação que presidem o advento do sujeito.
(15) A formulação seguinte é de Éric Laurent em seu curso intitulado “A transferência”, Universidade Paris VIII, Departamento de Psicanálise, Seção clínica, 22/04/1992, inédito.
(16) Lacan (1969-1970/1992, p.43) o formula explicitamente. A repetição “é propriamente aquilo que se dirige contra a vida”. J.-A. Miller (2005, p.172) desenvolve igualmente essa questão: “Assim, a repetição, não é somente falhar o real, como Lacan articulou no Seminário 11, mas também ‘busca de gozo’. A repetição não é a expressão do princípio do prazer, mas, por si mesma, ‘vai contra a vida’. Esse é o deslocamento que, da repetição como expressão do princípio do prazer, faz da repetição a própria articulação da pulsão de morte.”
(17) Lacan (1972-1973/1985) sublinha que, na relação sexual, nós não temos jamais um acesso direto ao corpo do outro. O sujeito neurótico ou perverso somente copula com o falo que lhe barra o gozo do corpo do Outro. Não existe relação sexual, somente o amor permite nutrir a esperança de reencontrar o Outro.
(18) Esse poema, “As metamorfoses do vampiro”, faz parte dos Épaves, peças condenadas que foram censuradas durante o processo de As flores do mal, em 1857.
(19) A impotência, como sintoma neurótico, testemunha, com efeito, a implicação do complexo de castração.
(20) Maleval dá o exemplo de um paciente necrófilo que tinha suscitado numerosos estudos psiquiátricos no século XIX. O sujeito tinha desenterrado os cadáveres nos cemitérios e, presa de uma fúria destrutiva incontrolável, ocupava-se de picá-los, cortá-los em pedaços. “Seu extremo gozo era obtido, não pelo coito com o cadáver, mas pela sua partição…”, em uma tentativa para atingir, mais além da imagem corporal, nas vísceras da vítima, o objeto de gozo suposto encontrar-se ali (MALEVAL, 2008, p.159).
(21) “[…] numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” (LACAN, 1950/1998, p.146).
(22) Essa dimensão contingente da agressividade já havia sido sublinhada por Lacan, desde 1948, em um texto que levava ainda uma forte marca sociológica. Lacan (1948/1998, p.122-123) sublinhava a “preeminência da agressividade em nossa civilização”, em que é considerada como “de um uso social indispensável”, como um ingrediente necessário a todo espírito empreendedor.
(23) “Mas o que nos interessa aqui é a função, que chamaremos apaziguadora, do ideal do eu, a conexão de sua normatividade libidinal com uma normatividade cultural, ligada desde o alvorecer da história à imago do pai” (LACAN, 1948/1998, p.119).
(24) Lacan o aborda notadamente em 1960, em “Subversão do sujeito e dialética do inconsciente” (1960/1998, p.836).
(25) Ver também o comentário de Miller, “L’apologue de Saint Martin et de son manteau’”, Mental, Paris, n.7, p.7.
(26) “[…] a maioria dos sonhos — sonhos inocentes, sonhos sem afeto e sonhos de ansiedade — são revelados, quando as deformações da censura foram desfeitas como a satisfação de impulsos imorais — egoístas, sádicos, pervertidos ou perversos” (p.164).
(27) Do qual o ponto extremo nos é dado pelos atentados suicidas. Lacan (1959-1960/1991, p.324) o sublinha: “Só os mártires são sem piedade e sem temor. Creiam-me, no dia do triunfo dos mártires, haverá o incêndio universal.”

 


Tradução: Márcia Mezêncio
Referências
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Éric Guillot
Éric Guillot – Psicanalista em Rouen, França. E-mail: erguillot@numericable.fr



Crianças Autistas

SILVIA TENDLARZ

 

 

O século XXI é testemunha de um aumento crescente do diagnóstico de autismo na infância. Chegou-se a falar de uma verdadeira epidemia. Esse diagnóstico em expansão corresponde sempre às pessoas envolvidas nele? Uma pergunta torna-se urgente: não se trata só de diagnósticos, mas qual é a proposta de tratamento viável para crianças autistas.

O autismo tem a particularidade de surgir em crianças pequenas. Também existem adolescentes e adultos autistas que — embora, na maior parte das vezes, varie a forma de apresentação que tinham na infância, sobretudo pela ampliação do uso da linguagem — mantêm certas características que não se modificam, sem pressagiar com isso um destino trágico, que devemos aceitar com resignação.

Antes de tudo, é necessário distinguir o autismo do conceito de “gozo autista”. O autismo não é uma enfermidade da ruptura do laço como expressão de nosso mundo moderno, ainda que prevaleça o “todos autistas” em nossa linguagem corrente. O gozo é sempre autoerótico, autista, nesse sentido, mais além do tipo de laço que prevalece em nossa contemporaneidade. A expressão “autismo generalizado” nomeia o gozo, supõe o laço com o outro, mas sem que essa generalização implique um diagnóstico. Jacques-Alain Miller indica que o autismo, no sentido amplo, é uma categoria transclínica: é o estado nativo do sujeito a quem se acrescenta o laço social.

A partir de um breve percurso sobre a história desse quadro, poderemos examinar a abordagem psicanalítica tanto conceitual como clínica.

Diagnósticos

O autismo infantil tem sua história. Leo Kanner introduziu, em 1943, o conceito de “autismo infantil precoce”. Poucos meses depois, em 1944, e em outro contexto, Hans Asperger introduziu as premissas do que será chamado “síndrome de Asperger”. O primeiro ficará como uma interface entre a psiquiatria e a psicanálise. O segundo segue um caminho educativo, já que Asperger propõe desde o início uma “pedagogia curativa”.

O conceito mesmo de autismo é particular. Ele é o grande sobrevivente do colapso diagnóstico que propõe o DSM-IV. Tanto o “Autismo infantil precoce” de Kanner como a “Síndrome de Asperger” fazem parte dos “transtornos generalizados do desenvolvimento” (TGD), que acentuam a perturbação evolutiva.

Segundo a descrição de Kanner, as crianças autistas apresentam transtornos em sua relação com o outro (rechaço do olhar, ausência de condutas espontâneas como apontar objetos de interesse, falta de reciprocidade social ou emocional), na comunicação (atraso ou ausência na linguagem oral, uso estereotipado ou incapacidade de estabelecer conversações) e no comportamento (falta de flexibilidade, rituais, ausência do jogo simbólico). Aloneness e sameness, solidão e fixidez, são características essenciais do quadro clínico. O adjetivo “precoce” indica que pode se manifestar desde o nascimento, nos primeiros meses ou antes dos três anos. Esse início precoce determina sua modalidade de apresentação.

O que distingue o autismo infantil de Kanner da síndrome de Asperger é o fato de que falta a esse último o atraso da linguagem, e, ainda, de que seja diagnosticado ou se inicie após os três anos. Asperger situa entre os elementos de seu diagnóstico traços que perduram durante toda a vida, sem evolução notável.

Nos Manuais Diagnósticos, os dois quadros são diferenciados da esquizofrenia infantil pela ausência de alucinações, ainda que, na realidade, como assinala Lacan, as crianças autistas também tenham alucinações, que devem ser examinadas em suas particularidades.

O DSM V elimina essa distinção e introduz uma nova categoria clínica com a qual será examinada toda a infância: “transtornos do espectro autista” (TEA), com sua graduação: leve, moderado e severo (LAURENT, 2011). Os critérios utilizados para esse diagnóstico são: déficits sociais e de comunicação, assim como interesses fixos e comportamentos repetitivos. Dessa maneira, o autismo torna-se, hoje, um diagnóstico ampliado, que inclui uma tipologia variada.

Nesse contexto, a pergunta sobre se as crianças com diagnósticos de autismo infantil precoce podem evoluir para a síndrome de Asperger, na idade adulta, eventualmente, desaparecerá nesse contexto, já que ambos formam parte do TEA. Não obstante, a sutileza clínica dessa questão permanece, na medida em que se pode observar uma mudança da infância para a idade adulta, que demonstra que nem todas as crianças autistas permanecem necessariamente toda sua vida com sua apresentação inicial, nem persistem os chamados “transtornos cognitivos” com os quais foram avaliados na infância. Como disse Ian Hacking (2001), se os nomes das classes interagem com as pessoas que eles afetam, entretanto, tornam-se insuficientes para alojar os sujeitos com suas diferenças. Assim, para além do destino dos diagnósticos, permanece aquilo que torna a cada um único e refratário a diluir-se na “norma”.

As teorias cognitivas introduziram a noção de “espectro autista” que engloba tanto a criança como os adultos; um estudo de Lorna Wing e Judy Gould, do ano de 1979, está na base desse conceito. Esse estudo postula que toda criança que apresenta uma deficiência social severa também tem os sintomas principais do autismo. Ou seja, as crianças que estão afetadas por dificuldades na reciprocidade social, na comunicação e apresentam restrições em suas condutas necessitam dos mesmos tratamentos cognitivos que os autistas. Dessa forma, todas elas ficam incluídas no espectro autista, aumentando, assim, enormemente, a incidência do autismo (LAURENT, 2011).

Esse aumento está vinculado ao diagnóstico de “Transtorno generalizado do desenvolvimento inespecífico” – TGD, que, ao carecer de critérios definidos, incluía mais casos de espectro autista que de autismo propriamente dito. Esse é um dos pontos de discussão dentro do projeto do DSM V. Por outro lado, na medida em que não existe uma medicação específica para o autismo, prescrevem-se, para as crianças ditas autistas, medicamentos para ansiedade, depressão ou hiperatividade. O postulado de organicidade e a perturbação da função executiva da teoria cognitivista, na qual se baseiam o TDAH e o TGD, junto ao critério puramente descritivo, fazem com que se confundam ambos os quadros.

Dessa forma, não nos parece ilegítimo perguntar sobre o aumento da incidência do autismo na infância. É necessário, para fazê-lo, construir uma outra perspectiva. Na realidade, o déficit nunca foi um bom critério diagnóstico, já que ele conduz quase inevitavelmente à prescrição medicamentosa e às terapias comportamentais. De forma que as crianças tornam-se “todas educáveis e medicáveis” em nome da cura do sintoma, sem levar em conta a causa e o tratamento singular que ele convoca. Em nome de uma suposta “normalidade”, busca-se incluir as crianças em programas que as tornem iguais às outras. Desconhece-se, assim, que não há uma norma que valha para todos por igual, já que não existe um critério de saúde universal. Todos diferentes, todos “normalmente” fora da norma no ponto em que se encontra a singularidade. Cada criança autista tem seu modo próprio de “funcionar” dentro de sua estrutura. Numa perspectiva exterior à psicanálise, o neurologista Oliver Sacks, em seu texto Um antropólogo em Marte, afirma que não há dois indivíduos autistas iguais: “seu estilo individual ou expressão são diferentes em cada caso” (SACKS, 2003). O que nos leva a reafirmar que não há dois sujeitos iguais, autistas ou não.

Epidemia De Autismo

O diagnóstico de autismo na infância multiplicou-se nos últimos tempos. Esse incremento tem repercussões tanto nos tratamentos como nas políticas de saúde pública. Mas, realmente, há um aumento de crianças autistas, ou esse fenômeno é induzido pelas leituras classificatórias em uso no nosso mundo atual?

Ante a emergência do aumento de crianças autistas, um rumor inquietou a opinião pública. Em 1998, The Lancet publicou um estudo do Dr. Wakefield do Royal Free Hospital, do norte de Londres, no qual colocava a hipótese da relação entre a vacina contra rubéola e o autismo. Os meios de comunicação contribuíram para retransmitir a notícia e, assim, criar um grande escândalo, e o rumor expandiu-se pela internet.

Como resposta a esse rumor, François Ansermet (2008) expressou, também por internet, que uma investigação, realizada em 2004, revela que uma equipe de advogados pagou ao Dr. Wakefield para publicar essa nota, e, imediatamente depois, surgiram processos contra os produtores da vacina. The Lancet publicou, em março de 2004, uma pequena nota editorial em que se retratava, mas o rumor continuou circulando.[2] O que esse rumor demonstra é que pensar o autismo como um déficit ligado à carga genética, que é constitucional, ou, inclusive, como efeito secundário de uma vacina, geralmente, alivia os pais, já que lhes retira dos penosos sentimentos que experimentam.

A busca de uma genética defeituosa chegou a tal ponto, que, ante a dificuldade de encontrar um “gene autista”, os cientistas começaram a falar de “mutações genéticas espontâneas” ligadas ao meio ambiente. A decodificação do genoma humano introduziu a crença de que, finalmente, será possível estabelecer uma sequência genética que permita isolar o autismo. Em junho de 2010, o Consórcio do Projeto Genoma publicou um artigo na revista Nature sobre a descoberta de repetições e perdas de fragmentos de DNA em 20% dos casos de autismo examinados. Trata-se de “variantes raras”, mutações únicas, com um gene diferente em cada criança. O que se destaca é que se trata de mutações congênitas, que nada têm a ver com a herança e que são todas diferentes. Não sendo possível estabelecer a causa dessas mudanças genéticas, o “meio ambiente” permanece como uma hipótese. A abordagem genética, assim colocada, aponta a reeducação como única solução viável. Ainda veremos se esse “meio ambiente” incluirá ou não a relação do sujeito com o significante.

O descrédito quanto à psicanálise é correlativo ao recurso crescente a tratamentos cognitivo-comportamentais para a abordagem de crianças autistas, que tendem a difundir a crença de que os psicanalistas culpabilizam os pais pela enfermidade de seus filhos. O próprio Ian Hacking, em A construção social de quê?, retoma essa perspectiva e considera que, na verdade, a ciência cognitiva é a única que, na atualidade, pode explicar o autismo através da “teoria da mente”, dados os déficits linguísticos e outros. Mas o que é uma “teoria” — baseada na suposta capacidade de atribuir estados mentais a si mesmo e ao outro — senão uma versão imaginária do Outro?

Portanto, o autismo não é uma fatalidade, diz Jaqueline Berger, jornalista, autora do livro Sortir de l’autisme, e mãe de crianças autistas. A má reputação da psicanálise corresponde ao fato de que os resultados obtidos não são avaliáveis de acordo com os critérios quantitativos e estatísticos cognitivo-comportamentalistas utilizados nas publicações científicas.

Do Lado Da Psicanálise
Jean-Claude Maleval (2011) destaca a diversidade de casos envolvidos no diagnóstico de autismo, que vão desde os casos que necessitam de uma atenção institucional por toda vida aos de autistas de alto nível. Algumas crianças apresentam “ilhas de competência” que, às vezes, as tornam eruditas em domínios muito especializados, inclusive com habilidades excepcionais. O. Sacks (2003) examina as características que as tornam “prodígios”, também chamados “autistas sábios”, cujas proezas técnicas, diz Laurent (2011), têm deslocado o interesse que antes recaía sobre o delírio.

No entanto, não se pode apreender o autismo pela soma dos sintomas, já que não se trata de uma enfermidade, mas de um “funcionamento subjetivo singular”. Enquanto um tipo clínico particular, por detrás de sua “carapaça”, não se esconde nenhuma criança “normal”. A concepção deficitária do autismo inclui essas crianças inevitavelmente em tratamentos exclusivamente educativos e ignora a possibilidade de participação do sujeito num funcionamento que não fixa um destino.

Maleval (2011) concebe o autismo como uma estrutura que se caracteriza por um rechaço da alienação significante e de um retorno do gozo sobre uma borda. Essa expressão, tomada de Éric Laurent, dá conta de como o objeto se encontra pregado ao corpo, de tal modo que constrói uma “carapaça autista” em sua particular dinâmica libidinal. O transtorno simbólico gera uma enunciação morta, defasada, apagada ou técnica. Não se trata de um déficit cognitivo, mas de uma relação particular com o significante. Esse rechaço impede que o gozo se conecte com a palavra, e, em vez disso, ele retorna sobre uma borda, com um objeto ao qual o autista encontra-se ligado: constrói-se, assim, uma carapaça, dentro da dinâmica libidinal. A borda autista é uma formação protetora frente a um Outro ameaçador e dispõe de três componentes essenciais: a imagem do duplo, as ilhotas de competência e o objeto autista.

A hipótese central de Maleval é a do rechaço do autista ao gozo associado ao objeto voz, que determina as perturbações da linguagem: não se trata aqui tanto da sonoridade, mas da enunciação de seu dizer. “Nada angustia mais ao autista”, diz Maleval (2011) “que ceder seu gozo vocal alienando-se ao significante”. Protege-se, então, da presença angustiante da voz através da falação ou do mutismo, evitando a interlocução com o Outro. E, mesmo quando falam com fluidez, como no caso dos autistas de alto nível, protegem-se do gozo vocal através da falta de enunciação. Daí deriva a solidão do autista em relação a tomar uma posição de enunciação; assim como também sua fixidez no esforço de manter uma ordem estática frente ao seu mundo caótico.

Maleval (2011) destaca dois tipos de saída possíveis, que vão da criação de um duplo na infância, à de um Outro de síntese na idade adulta, através da memorização de signos e, finalmente, do uso de objetos autistas muito complexos. Assim, da solidão e do mutismo do autismo precoce, em um segundo tempo, é possível encontrar o trabalho sobre o retorno do gozo sobre a borda na síndrome de Asperger da idade adulta.

Esses desenvolvimentos são linhas de investigação para refletir sobre seu funcionamento dentro do dispositivo analítico.

Éric Laurent (2011) indica que a inclusão do sujeito no autismo implica o funcionamento de um significante sozinho no real, sem deslocamento, “peça solta”, que busca encontrar uma ordem fixa e realizar um simbólico sem equívocos possíveis, verdadeira “cifra do autismo”. O não sentir empatia, na realidade, não é necessariamente um déficit, mas o que os leva a funcionar sem os obstáculos imaginários próprios da vida cotidiana. Por outro lado, acrescenta que “há que se renunciar a pensar a criança-máquina” — alusão ao caso Joey de Bettelheim — e falar da “criança-órgão”, pois se trata de uma montagem do corpo com um objeto de fora do corpo que inclui, às vezes, um “objeto autista” colado a seu corpo.

Quanto às particularidades do tratamento, Éric Laurent (2011) assinala que o encapsulamento autista é uma bolha de proteção fechada de um sujeito sem corpo. O problema que se coloca, então, não é tanto como se constitui uma borda, como na esquizofrenia, mas como se desloca essa neoborda, que, em si mesma, está muito bem constituída.

Ao chegar à consulta, a criança autista tende a rejeitar todo contato com o outro, na medida em que este é experimentado como intrusivo frente a essa borda encapsulada, quase colada na superfície de seu corpo. O deslocamento dessa carapaça se produz através de intercâmbios articulados com um outro percebido como menos ameaçador. Busca-se construir um espaço que não seja nem do sujeito nem do outro, um espaço que permita uma aproximação, que remova a criança de sua indiferença e da repetição exata de sua relação com o outro, articulando, assim, um “espaço de jogo” — ainda que reste precisar qual é o estatuto desse jogo. Essas trocas no real, não puramente imaginárias, nas quais intervém a metonímia de objetos, permitem a construção de um espaço de deslocamento da borda e a emergência de significantes que passam a tomar parte de sua língua privada.

Em algumas ocasiões, inclui-se o “objeto autista”, com o qual a criança se desloca e entra também no circuito dos objetos. Esse objeto é parte da invenção pessoal, por isso a orientação psicanalítica que aponta para a operação de “separação”, sem inscrevê-la, não indicando, de modo algum, que se retire esse objeto da criança.

Na medida em que os tratamentos apontam para as singularidades, é possível prestar atenção às manifestações do significante sozinho no real, escutar o sujeito sem objetivá-lo e aprender sua língua, de acordo com a expressão de Jean Rabanel (2011). O fora do laço do autista, seu rechaço ao outro, que é percebido como intrusivo, torna ainda mais importante possibilitar as invenções através das quais o analista se torna o partenaire da criança autista, de modo tal que sua palavra possa ser escutada.

Éric Laurent (2011) indica que, para aplicar a psicanálise ao autismo, é necessário permitir ao sujeito separar-se de seu estado de refúgio homeostático no corpo encapsulado e passar a um modo de subjetividade da ordem de um “autismo a dois”. Há que se tornar o novo partenaire do sujeito, fora de toda reciprocidade imaginária e sem a função de interlocução simbólica.

A invenção é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Dessa forma, pode-se afirmar que há transferência na direção da cura da criança autista, todavia, devem-se determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura.

Quanto às entrevistas com os pais, não se trata de desampará-los, culpabilizando-os, mas de contribuir para encaminhá-los a tratamentos possíveis. A simples entrevista, ao lado das questões ali colocadas, pode produzir um sentimento de estar em falta, mesmo sem uma teoria que aponte os pais como causa do autismo. Esse é um elemento essencial para levar em conta na consulta da criança, de tal modo a não deixar os pais sem recursos, o que pode levá-los a uma suposta solução rápida via reeducação.

Para Concluir
A psicanálise é uma alternativa legítima de tratamento para o autista, tanto no seu trabalho individual junto a um dispositivo de trabalho criado em seu entorno, como na prática institucional “entre muitos”. E seus tratamentos nos deixam como ensinamento que o sujeito nunca pode reduzir-se a ser um objeto de diagnóstico e que, ao nos aproximarmos da criança, como um analista pode fazer, as portas abrem-se para um universo singular que nenhum manual diagnóstico poderia antecipar.

Para uma criança autista, como para qualquer outra criança com um diagnóstico diferente, não há outra “normalidade” que o modo de funcionamento que lhe seja próprio.

Dirigir-se à criança autista como sujeito, não como objeto educável, introduz possibilidades de encontros inesperados, com soluções que lhe permite reinserir-se no Outro de um modo original, sem ser encerrada na incapacidade ou em protocolos preestabelecidos. É um tratamento de um a um, mas com outros.

Tradução: Ludmilla Féres Faria
(1) Uma versão reduzida deste trabalho foi publicada em La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.103-108, 2011.
(2) The Lancet, London, v.363, n.9411, p.823-824, mars 2004.

 


Referências
ANSERMET, F.; SIEGRIST, C.-A. “Vaccin rougeole et autisme, aucune evidence scientifique”, Tribune de Genève, Genève, n.6, p.33, mai 2008.
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV.
BERGER, J. Sortir de l’autisme. Paris: Éditions Buchet/Chastel, 2007. (Coll. Essais et documents).
HACKING, I. Entre science et realité: la construction sociale de quoi? Paris: La Decouverte, 2001.
LAURENT, É. “Spectres de l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.53-63, 2011.
MALEVAL, J.-C. “Langue verbeuse, langue factuelle et phrases spontanées chez l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.77-92, 2011.
RABANEL, J.-R. “Une Clinique de l’objet a em institution”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.64-76, 2011.
SACKS, O. Un anthropologue sur mars. Paris: Seuil, 2003.

Silvia Tendlarz
Psicanalista, membro da EOL – Escuela de la Orientación Lacaniana e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: stendlarz@fibertel.com.ar



Almanaque On-Line Entrevista

COMISSÃO CIENTÍFICA DO XX EBCF

Esta edição n.14 do Almanaque on-line aborda o tema do XX EBCF, “Trauma nos corpos, violência nas cidades”, pelo viés da proposta de trabalho da Seção Clínica do Instituto para o ano de 2014, formulada como questão: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? Segundo Simone Souto, em argumento divulgado na Agenda EBP-MG e IPSM-MG do segundo semestre de 2014,

[…] em um primeiro momento, nossa investigação se dedicou a encontrar os meios através dos quais, em nossa prática, um real pode ser localizado. A partir daí, nos deparamos com uma nova questão: que respostas dar a um real que não se deixa tratar pelo sentido? Essa pergunta nos leva, agora, a abordar a invenção, ou seja, o que cada um inventa como resposta a partir do real. A invenção diz respeito, certamente, ao sujeito e ao que lhe é único, mas, também, não deixa de concernir o praticante e mesmo as instituições: o que temos feito para dar lugar às invenções do sujeito frente ao real? O que podemos recolher, da nossa experiência clínica e institucional, como um “saber fazer com o real”?

A partir desse argumento, solicitamos aos membros da Comissão Científica do XX EBCF que nos enviassem uma colaboração, um flash, um breve depoimento sobre o real que encontram em sua prática clínica, pesquisa teórica ou uma indicação de como esse real pode ser abordado – uma obra literária, um filme ou obra de arte – bem como sobre as invenções possíveis diante desse real.

Recebemos os depoimentos abaixo, pelos quais muito agradecemos aos seus autores.

CARLOS AUGUSTO NICÉAS: “Eu sou um deprimido”. Assim João se nomeou quando chegou dizendo-se um fracassado em tentar fugir da “desgraça” que aconteceu em sua vida amorosa. E trouxe a marca do seu traumatismo nas pontuações e nas palavras escolhidas para falar do seu sofrimento. Ele já atravessara quase um ano sob efeitos de antidepressivos receitados por um colega seu, melhor amigo desde a faculdade, e logo me confessou: “Eu me entupi de remédio, eu só queria evitar o pior”. João é ortopedista e, com termos próprios de seu saber particular, me diz por que decidiu vir falar a um analista: “Eu cansei meu amigo repetindo o que me aconteceu, foi bom contar com seu ombro para não morrer, mas não fez ‘calo’, a fratura continua exposta”. E prossegue: “Toda minha vida eu cuidei de traumatizados, agora eu preciso cuidar do que se quebrou dentro de mim”. Um abandono, o da mulher, ele o põe no lugar de causa do seu “traumatismo”, acontecimento que, em sua contingência, o encontrou “totalmente despreparado”. Na mesma entrevista, refere-se ao efeito do acontecimento assim:

Ela me pegou de surpresa, comunicou brutalmente que estava apaixonada por um colega de escritório, arquiteto como ela, com quem estava me traindo há um ano e com quem iria morar a partir daquela semana. Tudo isso numa enxurrada só, o casamento acabou assim, ela saiu assim da minha vida, e eu fiquei vários dias sem entender o que se passou, andando pela cidade como um “zumbi”, completamente siderado. Depois começaram os sintomas: depressão, insônia, dores no corpo todo. O que me mantém de pé é o antidepressivo, que eu já estou reduzindo desde que decidi vir me tratar aqui.

Assim, João, ortopedista de “acidentados do trabalho”, em um hospital público, decidiu “ver o que está quebrado e que ainda dói dentro de mim”, porque precisa estar “curado, para o caso de a vida me dar outras rasteiras”. A psicanálise não lhe é uma “matéria” muito conhecida, diz ele, mas do nome de Freud ele diz se lembrar:

Como eu sou um médico que se interessou por osso, essas coisas da alma fogem da minha cultura, mas minha primeira namorada era psicóloga, e, um dia, ela leu para mim um texto de Freud em que o psicanalista era comparado a um cirurgião da alma. Foi dela que me lembrei quando o amigo psiquiatra que me receitou o antidepressivo me sugeriu vir falar com um analista, procurar você, porque ele não estava vendo muita mudança em mim.

Nesse momento em que vir falar a um analista parecia já abrir um lugar diferente para João, um lugar não somente para “desabafar” com um amigo ou se “entupir” com medicamentos, acreditando assim e até agora lutar contra o real antes que ele se presentificasse, eu suspendi essa primeira entrevista e, antes de oferecer-lhe uma segunda, mantive aberta a porta da psicanálise, sublinhando simplesmente da escuta das palavras de sua lembrança: “Dela, mas também de Freud…”

Vir falar a um analista pode trazer já embutida, na demanda de psicoterapia, um esboço de mudança subjetiva. João, em uma de suas sessões preliminares imediatas à primeira, me diz: “No começo, eu me perguntava por que a vida me fez isso, mas, agora, eu desconfio de que não era também para ficar assim, tanto tempo vagando como um zumbi”. É, João me pareceu ter chegado começando a desfazer uma identificação ao significante “vítima”, ao qual ele se colou para se proteger do efeito traumático do abandono que sofreu do Outro. Não querendo somente responsabilizar o Outro para justificar seu sofrimento, eu já o escutava nesses primeiros tempos da transferência esboçando uma implicação de sujeito, mesmo que isso lhe fosse ainda opaco e enigmático.

MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática?: questão que orienta o trabalho da Sessão Clínica do IPSM-MG, rumo ao XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. As discussões no Núcleo de Psicanálise e Direito têm nos aproximado do eixo temático “Psicologia das massas, análise do eu… e a deriva das pulsões”.

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud afirma que a identificação é a forma mais antiga de laço libidinal. A identificação com o ideal permite a coesão da massa, ainda que ela, em momentos específicos, possa irromper em explosões de violência.

Na prática com os adolescentes e jovens, nas instituições educativas e socioeducativas, vemos como eles, mesmo que circulando lado a lado no mesmo espaço, não se agrupam, segundo a lógica freudiana da referência ao ideal do eu. Ao contrário, muitas vezes, permanecem na satisfação com os objetos, e são frequentes as manifestações de violência e agressividade entre eles e contra os responsáveis pelo trabalho nas instituições, impossibilitando ou dificultando o laço com o Outro proposto.

É possível considerar que a mudança no programa de satisfação de nossa civilização — da renúncia em prol de um ideal, para o imperativo de satisfação — teve como consequência um “mal-estar nas identificações” ou mesmo uma “patologia nas identificações”, que chega até nós por meio das irrupções de transgressão e violência. As contribuições da psicanálise de orientação lacaniana sobre as nomeações têm nos permitido aproximar e intervir em algumas dessas manifestações.

Nos casos que nos chegam, é comum a presença de designações ou apelidos relacionados à violência e transgressão. São modos de nomear distintos da operação do Nome-do-Pai, cujo poder metafórico pode substituir a satisfação direta, promovendo o laço com o Outro. Em nossa época, essa nomeação se encontra em declínio. Assim, encontramos, cada vez mais, designações em conexão direta com o gozo, que acabam por promovê-lo e incitá-lo, em uma manifestação da vertente superegoica do imperativo de gozo.

“Esse é B.O.”, “Ele é Jack”, “Sou 4:20”[1] são exemplos de designações que formam um curto-circuito, no qual os adolescentes são vistos e se mostram identificados ao resto da sociedade, sem possibilidade de vacilação, como em uma ordem de ferro. Nas instituições, a cada manifestação de hostilidade da parte dos adolescentes, nova tentativa de coerção e interdição, produzindo mais agressividade e violência.

A presença da psicanálise e sua oferta da palavra têm permitido uma vacilação nas designações que segregam e promovem o gozo, abrindo um espaço para acolher outras possibilidades de surgimento do sujeito. Dessa forma, é possível demonstrar como a psicanálise pode funcionar como uma ajuda contra as passagens ao ato e atuações, como nos indicou Lacan.

MARCELA ANTELO: Detalhar o real

Sacrilégio do “Noli tangere”, o close up é magnífica prova da penetração da civilização “na fábrica do real”. A literatura nos entregou os divinos detalhes, ensinou Miller lendo Nabokov. O artificio começou com a configuração exata do coque de Madame Bovary. “Detalhar quer dizer fracionar em pedaços” [2]. Para o cineasta Jean Epstein assim como para Miller é assunto de ética.

Um destino possível do detalhe é sua divinização, devemos livrar-nos dela, disse Jacques-Alain Miller em 1989, fazê-lo poderia constituir a dignidade da psicanálise.

O divino nos oferece o quê? Será que ter uma parte ao alcance nos faz supor um todo onde não existe? A ascensão do objeto ao zênite implica sua divinização. Qualquer objeto que se situe na vertical do observador será divinizado. Perturbar a divinização dos pedaços.

O zênite possui seu oposto, Nadir, que goza de muito menos imprensa. Pedaços no oposto do zênite. Perturbar a divinização pode servir-se da leitura do detalhe, já não da sua observação.

Epstein, no seu artigo “Magnificação”[3] afirma que um close-up extraído da cadeia, fora do contexto, é monstruoso e constitui a alma do cinema. Diviniza um sorriso, abrindo na tela como uma fruta madura ou indica o abismo da boca vazia de Old Boy. Inquietantemente estranho o close dá a ver o que vida diurna e suas grandes magnitudes dissimula. Estaria ele animado pelo desejo feminino de tocar o corpo sagrado que lembrava Ram Mandil nos Papers 1? Arrancar um pedaço do divino e fazê-lo cair.

Saber que o mais inquietante e perturbador reside no mais próximo e familiar é justamente uma das sabedorias que adquiriu cidadania no amanhecer do século. O fragmento, a parte, o minúsculo, a peça avulsa, pode constituir-se como um princípio epistêmico de aproximação ao homem contemporâneo se a orientação vai do Zenith ao Nadir.

A experiência princeps do close-up chama-se fotogenia, algo inarticulável, no limite do simbólico, um plus acrescentado ao objeto pelo ato cinematográfico, pela sua ação específica. Identificado por muitos como a alma do cinema, o close up não é dócil ao conceito nem deixa datar sua cronologia. O close up visa a um mais além de realidade, dar um zoom que ultrapasse o estreito representacional. Eisenstein, compatriota de Holbein, propunha em 1926 um cinema soco que cortasse até a caveira.

Paradoxalmente, em russo e em francês a palavra usada para close-up denota grande escala (gros plan); enquanto que em inglês, espanhol e português é a proximidade que está em jogo. Mary Ann Doane[4] sabe extrair todas as consequências desse paradoxo.

Fernand Léger, pintor fascinado pelo cinema ensina a objetividade que resulta do corte, o fim do todo, na cacofonia do seu Ballet mécanique, justaposição de pedaços. Léger disse:

Eu próprio usei o close-up, que é a única e real invenção do cinema. O fragmento do objeto também foi útil para mim; isolando-o o personalizamos. Todo este trabalho me conduziu a olhar o fenômeno da objetividade como novo e altamente contemporâneo em si próprio[5].

O cinema concorre com este aspecto da vida. A mão é um objeto múltiplo e transformável. Antes de vê-lo no filme não sabia o que era uma mão! O próprio objeto é capaz de devir um absoluto, uma coisa trágica e em movimento[6].

Uma série de fotografias[7] atrozes, de detalhes que não conduzem ao todo, de pedaços arrancados do corpo humanamente estendido, pode aproximar demasiadamente, close too close, do real dos campos de concentração colocando em cena o gozo de um Outro abismal. Freud falou da lente de aumento da análise e dos infusórios microscópicos da ciência.

 

(1) B.O: abreviação de Boletim de Ocorrência, notificação policial de uma contravenção ou crime. Jack: referência ao que praticou estupro; retirado da história de Jack, o estripador. 4:20: referência ao uso de drogas por meio da grafia americana para o dia 20 de abril, considerado o dia internacional da maconha.
(2) Miller, Jacques-Alain. Los divinos detalles. Ensino proferido no quadro do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, lição de 1/3/89.
(3) Epstein, Jean “Magnification and Other Writings.” Trans. Stuart Liebman. October 3 (1977): 9–25.
(4) Doane, Mary Ann. “The Close-Up: Scale and Detail in the Cinema” em D i f f e r e n c e s : A Journal of Feminist Cultural Studies, Brown University, 2003.
(5) Léger, Fernand [1927] citado em Fernand Léger – The Later Years –, catalogue edited by Nicolas Serota, published by the Trustees of the Whitechapel Art gallery, London, Prestel Verlag, 1988, pp. 21-22.
(6) Léger, Fernand L’ésthetique de la Machine – l’Ordre Géometrique et le Vrai -, Propos d’Artistes, 1925.
(7) “Atrocities,” May 7, 1945, LIFE. Fotógrafo: George Rodger; Quinze anos depois se publicam as fotografias de Margaret Bourke-White, December 26, 1960, special double-issue, “25 Years of LIFE.”



Incidências Do Trauma: O Que De Real Encontramos Em Nossa Clínica Com Crianças?

CRISTIANA PITTELA DE MATOS

Introdução: Um Real

Nosso século XXI, marcado pela dissolução dos semblantes, consequência do binarismo ciência-capitalismo, levou Jacques Alain-Miller, em Un réel pour le XXIe siècle, a afirmar o quanto o real insiste em se manifestar de um modo caótico e aleatório, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia. Em seu curso O ultimíssimo Lacan, Miller definirá o real enfaticamente como “um novo tremor!” (MILLER, 2013 p.208).

Somos surpreendidos e vivemos, uns mais, outros menos, inquietos e sobressaltados: a dimensão de contingência e a desordem do real prevalecem.

“O verdadeiro real”, nos disse Lacan, “implica uma ausência de lei. O real não tem ordem: … é desprovido de sentido” (LACAN, 1975. p.131, 133).

Vários são os discursos que tentam apagar, domesticar, calcular, controlar, educar e até mesmo prevenir o real, com protocolos, medidas de vigilância e segurança; mas o real insiste, retorna, escapa às tentativas de enquadramento. A psicanálise, por sua vez, possibilita um outro modo de apreensão do real e a chance de operarmos com ele.

Miller convida-nos, enquanto psicanalistas, a investigarmos, no sujeito do século XXI, “a dimensão da defesa contra o real sem lei e o fora do sentido” concernindo um real tal como o inconsciente de cada um permite apreender. Propõe-nos, assim, que a defesa possa ser perturbada (MILLER, 1998), e mesmo desmontada (MILLER, 2013), para que se atinja a singularidade e a diferença de cada sujeito — pedaço de real que não muda, incurável — e que um novo enlaçamento a partir desse ponto possa se produzir.

Podemos nos perguntar: como perturbar (deranger) a defesa?, questão que Miller (2013) também nos apresenta, no “Prefácio” do livro de Hélène Bonaud: L’inconscient de l’enfant. Verificamos, em muitos casos, em nossa clínica com crianças, que intervimos antes mesmo que a defesa tenha se cristalizado; assim, o encontro com um analista possibilita ao sujeito a construção de um sintoma como resposta ao trauma, à perturbação do real.

Nossa pesquisa, neste ano de 2014, se inicia a partir do trauma, conceito proposto tanto pela Seção Clínica do IPSM-MG — Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? — quanto pela Nova Rede CEREDA — O traumatismo e o Real na Clínica: o que as crianças inventam?.

Podemos, então, nos perguntar: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? Como o real se apresenta para cada criança?; ou, ainda, como cada criança — cada sujeito — concerne um real? É afetado por um real? Responde a um real?

Nossa investigação e work in progress contam com o argumento às 43a Jornadas da École de La Cause Freudienne — Les traumatismes dans la cure analytique: bonnes et mauvaises rencontres avec le réel — em que Christiane Alberti e Marie Helene Brousse relembram o conhecido exemplo da Interpretação dos sonhos:

Um pai perdera um filho. Perda cruel, traumatismo no sentido corrente. Cansado, ele confiou a um senhor a tarefa de velar o corpo do filho amado e foi dormir em um quarto contíguo, deixando a porta entreaberta. Um barulho o desperta: o fogo começa a queimar o corpo amado. É a realidade. Como responde o inconsciente? – elas perguntam. Com um pesadelo, o filho aproxima-se e murmura: “Pai, não vês que estou queimando?”.

Onde está o trauma? – elas respondem: a impossível voz do morto; aí está o que verdadeiramente acorda o pai […]. Feridas que não se apagam de “perdas imajadas no ponto o mais cruel do objeto” […] o laço do trauma aos objetos deixa o sujeito sem bússola, em um mundo que perdeu o sentido. (ALBERTI; BROUSSE, 2013)

Nossa clínica toma, portanto, sua orientação desse real como impossível, ponto que faz traumatismo; vamos trabalhá-lo, neste primeiro semestre, tentando definir como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna; como a angústia é um sinal do real do trauma; investigaremos também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.

Nossa pesquisa visa também ao tratamento, às saídas e às invenções de cada criança frente a esse ponto opaco, e como o analista pode, com suas intervenções, tocá-lo para que propicie um novo arranjo, novas respostas e invenções.

Em suma, vamos tentar apreender o que de real encontramos em nossa clínica com crianças, a partir do inconsciente, passando pela barreira do recalque e da defesa que cada um constrói contra a ferida que o real constituiu quando se chega ao mundo, ou quando se está diante de acontecimentos traumáticos (GUÉGUEN, 2014).

O Trauma E O Troumatismo

O trauma é, desde sua origem grega — trôma — a experiência de uma ferida (LAURENT, 2013) que causa efração. Um choque súbito e violento que não permite a antecipação e produz um dano: a irrupção de um horror, o excesso de sensação e emoção, o silêncio de uma palavra jamais articulável. Algo impossível e insuportável acontece e desarranja o bom funcionamento do mundo, acarretando uma paralisação.

O trauma é assim um modelo paradigmático de um encontro que excede as palavras, as possibilidades discursivas, desvelando um real perturbador. Por mais que se fale dele, algo resta, uma marca indelével, sobre a qual se retorna colocando em jogo um impossível de simbolização.

Essa intensidade e a paradoxal exterioridade do trauma foram abordadas por Freud, segundo Laurent em “O trauma ao avesso” (2002), desde o “Projeto”, por suas metáforas energéticas, como o afluxo de excitação externa e, sobretudo, as excitações de origem interna, pulsional. Freud, em um primeiro momento, o concebe a partir de um acontecimento factual — uma sedução sexual — mas, em seguida, instaura a noção de fantasia inconsciente e realidade psíquica, pois ele encontra, no cerne de sua clínica, o trauma como um fato estrutural. Jacques-Alain Miller (2011) também aborda essa intensidade em seu curso “O Ser e o Um”, como a energeia, um buraco que bordeia a iteração do Um, tendo o efeito estranho de atração, de fascinação deletéria: um buraco negro.

Diante da generalização do termo trauma no campo da infância — agressão, estupro, sedução, violência, atos perversos, separação, morte, doença, acidentes, abuso, maus-tratos, exploração, crueldade, negligência, abandono, insulto, pesadelos — faz-se necessário situarmos esse conceito em nosso campo, pois, onde acreditamos ver o traumatismo — nos acontecimentos — ele sempre esconde um traumatismo real, aquele que é singular ao sujeito.

Frente a essa experiência que excede e esmaga o sujeito, como se perguntar sobre isso que o ultrapassa, sobre o que não chega a se representar? Sobretudo, ensina-nos Lacan, é nessa topologia que se encontra o sujeito: “o sujeito está aí, no lugar desta coisa obscura que chamamos como trauma, como prazer esquisito” (LACAN, 1966, p.4).

Esse é o ponto que nos interessa enquanto psicanalistas.

Um acontecimento só tem valor traumático para o sujeito por ser para ele um encontro contingente, singular. Ao possibilitarmos a implicação do sujeito em seu sofrimento, isso lhe restitui sua parte de responsabilidade, podendo abrir-lhe a via do desejo e a possibilidade de ele se reconciliar com seu gozo mais íntimo, alojando o trauma em um bom lugar. Nesse sentido, ali onde o sujeito foi solapado, ele pode advir e fazer algo com isso, à vitimização damos lugar ao sujeito e a um modo de satisfação. Como nos diz Sonia Chiriaco (2012), em Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse, a psicanálise se distingue imediatamente da vitimiologia, que faz do acontecimento o principal, e o sujeito, secundário, ou até mesmo ausente.

Lacan (1975) nomeou esse encontro como troumatisme, que implica a irrupção de um trop — um excesso, um gozo — e um furo, o fora do sentido. O que é traumático é esse choque material do significante com o corpo, que instaura, no parlêtre, a marca de um gozo inassimilável e uma perda irremediável.

Se o Outro da linguagem preexiste ao nascimento do sujeito, a criança nasce no mar da linguagem, ela, no entanto, é, primeiramente, objeto — causa de desejo ou dejeto do gozo dos pais — não tendo ao seu alcance o instrumento significante: a linguagem é, para ela, real, um real sem lei. Para essa incidência contingente do real da língua, de sua matéria sonora (moterialisme), Lacan inventará a expressão: lalíngua (LACAN, 1975, p.10). É com esse real de lalíngua que a criança se depara, encontro com o impossível, e que Lacan nomeou de inexistência da relação sexual. Um real, impossível de suportar, está, portanto, na raiz do trauma e concerne à singularidade de cada um: “…le Kern do ser, é este instante, é o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p.76).

Esse acontecimento fixa o gozo do Um e funda uma existência, anterior à sua entrada na linguagem — Outro — e em suas leis que dão ao sujeito condições para interpretar algo desse gozo. O inconsciente se estrutura para cifrar esse gozo insensato que escapa à significantização, experimentado nessa satisfação.

Esse real inassimilável, fora do sentido, é o gozo do corpo que se relaciona com o autoerotismo fundamental e tem relação com o ponto de inserção do significante no corpo, do significante trabalhando para a satisfação: “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, nos diz Lacan (1975/76, p.18). Nesse sentido, o traumatismo, para a psicanálise, tal como Lacan leu em Freud e nos ensina a tratá-lo, é uma marca irreparável no humano que escapa a toda programação e prevenção, revelando uma fixação pulsional. O encontro da língua com o corpo, nos dirá Miller, “mantém um desequilíbrio permanente, mantém no corpo e na psique um excesso de excitação que não se deixa reabsorver” (MILLER, 2003, p.378), retornando, re-iterando, nos sintomas, nos atos, na inibição, na angústia, nas ideias obsessivas, nos pesadelos.

E o que é complicado é que o real do encontro do significante no corpo torna o sujeito cúmplice da pulsão, é aí onde se situa nossa responsabilidade quanto ao gozo (ROCH, 2013).

O troumatismo inaugura o campo da fantasia que serve de tela ao real do trauma — uma defesa contra o real — e também do sinthoma como uma resposta ao trauma, enlaçando o não há da relação sexual — o real do furo no saber — com o há, isso que vai se repetir ao longo de nossa vida, a marca de um gozo, uma satisfação não toda e impossível de negativizar. Ou seja, a partir da contingência e do fora de sentido, há, no sinthoma, a tessitura de um nó singular do gozo do corpo com o significante determinando nossa vida, um savoir y faire com o real sem lei. A psicanálise, nos diz Miller (2014), existe para tentar que um trumain (l’être humain e trou) possa saber como comportar-se com o sinthome.

Em O avesso do trauma, Laurent (2002) propõe que abordemos o trauma em dois sentidos:

1º – Em um primeiro sentido, o traumatismo é um buraco real no interior do simbólico, ou seja, a partir do sistema simbólico, o sujeito encontra a presença de um real. A língua mortifica o gozo, mas há um resto impossível de ser simbolizado. É um ponto de real exterior no interior do simbólico.

2º – O segundo sentido que Laurent enfatiza do traumatismo é o simbólico no real, ou seja, um buraco do simbólico no real; trata-se, como vimos, da língua como real, o mal-entendido fundamental, o fora do sentido do vivente: lalíngua. Nesse sentido, a língua é causa. Segundo Laurent, depois de um trauma, é preciso causar um sujeito para que ele re-invente um Outro, em face da experiência no traumatismo da inexistência do Outro. Uma invenção causada pelo traumatismo.

Essas duas orientações são importantes em uma análise, pois uma análise se desenrola através do sentido que permite a subjetivação do trauma e consequente responsabilização do próprio sofrimento, assim como também toca o fora do sentido do gozo mais singular e opaco, levando Laurent a situar o trauma como um processo.

Vamos investigar esses dois sentidos, pois eles implicam lugares diferentes do analista, assim como sua escuta:

– No primeiro sentido, o analista, com sua escuta e interpretação, possibilita a restauração da trama de sentido, fazendo passar o real do gozo ao significante, uma escuta tomada na “ontologia do discurso do paciente” (MILLER, 2011), ou seja, refere-se à falta-a-ser e ao desejo.

Laurent (2002) ressalta ser uma vertente curativa, pois inscreve o trauma na particularidade inconsciente de um sujeito.

– No segundo sentido do trauma, o analista ocupa o lugar insensato — do objeto — e é traumático como a linguagem. A escuta visa à iteração, aos traços que marcam um modo de gozo e orienta em direção à existência, ao buraco, ao fora do sentido (BRIOLE, 2014). O analista, pelo equívoco e pelo corte, combate não só a demanda de sentido, mas pode tocar esse ponto real de causa e, assim, ajudar um sujeito a reencontrar a palavra, pois, diante da inexistência do Outro, é preciso inventar um modo de se arranjar com o próprio gozo.

Essas duas vertentes, podemos dizer, não são cronológicas, mas lógicas, e, em momentos específicos, podem estar presentes em uma análise: será preciso, então, que o analista meça, para cada sujeito, até onde ele pode apresentar os dois polos de sua ação (LAURENT, 2002).

Daí a importância — para a ação de um analista — de sua formação: do que ele faz com seu troumatismo.

 


Referências
ALBERTI, C.; BROUSSE, M.-H. “Argumento”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
BRIOLE, G. “Amarrações”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
CHIRIACO, Sonia. Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse. Paris: Navarin/Le Champ Freudien, 2012.
GUÉGUEN, G. “5 minutes à la radio”. Disponível em: www.congresamp2014.com. Consultado em: março/2014.
LACAN, J. (1975/1976) O seminário, livro 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1975) Conferência em Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (23), 1998. São Paulo: Edições Eolia.
LACAN, J. (1966) “Communication et discussions au symposium international du Johns Hopkings Center a Baltimore”. Disponível em: www.psicanaliseefilosofia.com.br. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “Trauma Blitz, Moment de concluire”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “O avesso do trauma”. In: Papéis de Psicanálise n .1, Belo Horizonte: IPSM-MG, abril/2004. p.21-28.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. O ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalitica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. O Ser e o Um. Seminário de orientação lacaniana, inédito.
MILLER, J.-A. “L’inconscient et le sinthome”. In: La Cause Freudienne n. 71, 2009.
ROCH, M.-H. “La Psychanalyse est traumatique”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.

 


Cristiana Pittela De Matos
Cristiana Pittella de Mattos, psicanalista, membro da EBP/AMP. E-mail: cristianapittella@yahoo.com.br