Trauma E Devastação: A Relação Mãe-Filha

ANDREA, MARGARET, MARIA DAS GRAÇAS SENA

 

Partimos da pergunta se a devastação poderia ser considerada traumática e, por meio, tanto da investigação clínica, como dos textos de Freud e Lacan, formulamos uma hipótese de trabalho para ser aqui discutida em nosso Núcleo de Pesquisa, qual seja: é o encontro com a falta de significante que definiria A Mulher ou, em outros termos, a descoberta de que A Mulher não existe, cujo matema é também o S(A/), que seria traumático para todo sujeito, especialmente para o sujeito feminino? A devastação decorre da inexistência desse significante d’A mulher e pode tomar a forma de um gozo sem limites.

O termo devastação, em francês, ravage, conserva duas direções de sentido. Ou está associado à ideia de ruína, destruição, ou a de um corpo arrebatado na vertente de um êxtase, de uma felicidade suprema, que é lançado fora do tempo e do espaço. No dicionário, seu sentido remete a uma destruição sem limites, a algo avassalador. Devastar é arruinar, tornar deserto; mas também pode indicar arrebatamento, deslumbramento, encantamento, para os quais o termo francês mais usado é ravissement.

O Que É Devastação No Sentido Da Psicanálise?

Graciela Bessa, em seu livro Feminino: um conjunto aberto ao infinito (2012), afirma que encontramos, na teoria lacaniana, três momentos em que a devastação aparece ligada à sexualidade feminina. Em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992) ela surge ligada ao desejo da mãe e, independentemente de ser menino ou menina, o desejo da mãe sempre causa estragos (podendo a criança estar submetida ao pior desse desejo). Em “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retorna ao tema da devastação, como veremos a seguir, e em O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007), ao fazer referência à devastação, no campo amoroso, Lacan afirma que um homem pode ser pior que uma aflição, pode ser uma devastação para uma mulher.i

Num sentido análogo à devastação mãe-filha, Freud (1931-1933/1976) já havia identificado essa mesma questão, mais no final de sua obra, nomeando-a sob outros termos: catástrofe, estrago.

Vejamos como essa teorização sobre a devastação elucida o tema do trauma.

A citação extraída do Seminário 17 é a que, inicialmente, nos colocou a trabalho:

O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a bocarra. O desejo da mãe é isso (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

E Lacan prossegue afirmando que, no entanto, há algo de tranquilizador nessa história. “Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha” (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

Esta citação torna-se mais clara se recorrermos a Lacan quando ele aborda o complexo de Édipo, a partir da fórmula da metáfora paterna, em que fica evidente a presença da mãe na questão da feminilidade da mulher.

A partir da combinatória presença/ausência da mãe é que se instala um x no campo da criança, independentemente de ser menino ou menina, surgindo uma pergunta sobre o que satisfaz essa mãe para além dela. Lacan afirma sobre o que mais importa aos destinos da criança, que “não é um mais ou um menos de real que tenha ou não tenha sido dado ao sujeito, mas é aquilo pelo qual o sujeito almejou e identificou o desejo do Outro que é o desejo da mãe” (LACAN, 1958/1998, p.283).

Se pensarmos que essa fórmula refere-se à constituição de um sujeito como desejante, algo deve suceder para que esse desejo, obsceno e voraz, impossível de se suportar como tal, se articule ao significante. Essa operação só é possível se operar aí o significante do Nome-do-Pai.

Assim, teremos duas vertentes do desejo da mãe: aquele que é articulado à castração materna e que gera angústia (che vuoi?) e aquele que, graças à metáfora, substitui esse enigma opaco pelo Nome-do-Pai, gerando um efeito de significação.

É assim, então, que podemos falar do falo como significante do gozo (fálico), já que ambos (falo e gozo) se encontram coordenados pelo Nome-do-Pai. Miller (1994), em “Clinica del superyo”, localiza o Nome-do-Pai com uma função coordenada ao desejo, e ao supereu como função coordenada ao gozo. Não se trata aqui do supereu freudiano, herdeiro do complexo de Édipo, mas do supereu lacaniano, aquele que ordena gozar. Supereu materno, cuja lei insensata está muito mais ligada ao desejo da mãe que ao pai, ou seja, “antes que o desejo seja metaforizado e apreendido pelo Nome-do-Pai”.

Acreditamos que é aqui, precisamente, o ponto em que podemos localizar a devastação: não como um conceito, e sim como efeito da incidência traumatizante desse gozo puro, sem medida, não limitado pelo falo. Gozo que está sempre presente e que o sintoma não consegue metaforizar.

A Devastação Na Menina

No texto “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retoma o termo devastação para afirmar que a menina parece esperar algo da mãe que não se situa inteiramente sob o signo da castração, ou seja, que não se situa sob o significante do falo. Segundo Lacan:

Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai — o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (LACAN, 1972/2003, p.465).

O texto “O aturdito” (1972/2003) é contemporâneo às elaborações de Lacan sobre as fórmulas da sexuação e sobre o gozo feminino. Ali, onde se poderia encontrar a referência de um homem devastador para uma mulher, o que se descobre é a referência ao Édipo freudiano. Ao mesmo tempo em que Freud considera que “a mulher, no Édipo, se move como peixe n’água”, isto é, em seu ambiente natural, Lacan afirma que isso “contrasta dolorosamente” com a referência de que, para “a maioria das mulheres, a relação com a mãe é devastadora”. É da relação com a mãe como mulher que a filha espera encontrar algo com mais “substância”, que vai para além do falo, ou seja, a sexualidade feminina implica necessariamente diferenciar uma mãe da mulher.

Vimos, anteriormente, que ter de enfrentar o enigma do desejo e o mistério do gozo da mãe gera muita angústia na criança, sobretudo ao se confrontar com a especificidade da anatomia feminina. Embora não haja propriamente falta no corpo da mulher, a particularidade de sua anatomia faz com que, no inconsciente da menina e do menino, a anatomia feminina inscreva-se no registro de uma falta. Não é tanto a questão anatômica, mas como ela está subjetivada como falta da mãe, no tocante ao desejo e ao gozo.

Aprendemos com a psicanálise que, quando falamos menino-menina, não queremos dizer, necessariamente, que estamos nos referindo às posições masculina e feminina, pois, na realidade, essas posições estão ligadas ao significante, não tendo nada a ver com a identidade sexual anatômica.

Se, para Freud, a anatomia é o destino, para Lacan a anatomia é um efeito do discurso. Mesmo tendo claro que a anatomia não é o destino, isso não deixa de ter consequências sobre o sujeito. Vejamos como um e outro responderam a essas questões.

Freud considerou que, nos meninos, embora o pênis seja apenas um suporte imaginário para o falo, ele é bastante consistente para o homem ter esse representante de seu sexo no inconsciente, e, desse modo, poder subjetivar seu sexo com “eu tenho”. Isso é o que possibilita ao menino desligar-se, mesmo que não completamente, desse gozo materno.

E como pensar então na modalidade dessa relação ao desejo da mãe quando o sujeito em questão é uma menina?

Pelas mesmas razões anatômicas, porém, inversamente, isto é, de “não ter” o pênis, possibilitando que a saída histérica seja a mais frequente na mulher. “Ter ou não ter” foi o modo como Freud tentou responder ao enigma da sexualidade feminina. Porém, Lacan, ao inventar as fórmulas da sexuação, avança sobre o ponto deixado em aberto por Freud, esclarecendo sobre as raízes lógicas do desmedido que uma mulher espera da sua mãe.

Em seu O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973/1985), Lacan apresenta suas fórmulas da sexuação e explicita a diferença sexual a partir da lógica, fazendo do falo uma função e mostrando como homens e mulheres cumprem ou não a função fálica. “Quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro” (LACAN, 1972-1973/1985, p.85). Os sujeitos que se posicionam do lado dos homens estão confrontados com uma exceção, que, por sua vez, possibilita um conjunto fechado. Isso quer dizer que todos aqueles que ali se encontram estão inscritos na lógica fálica.

Do lado das mulheres, isso não é possível. Elas não estão confrontadas a uma exceção e sim a uma inexistência, e, consequentemente, do lado feminino, não se pode construir o conjunto de todas as mulheres. A ausência de exceção constitui a mulher fora do universal, em que cada uma é uma. Portanto, o feminino é elucidado pelo viés de um gozo que tem relação com o ilimitado, isto é, o gozo do corpo não se encontra limitado pelo falo. A devastação pode, a partir dessa leitura de Lacan com respeito ao gozo feminino, ser lida como uma dificuldade estrutural própria à inexistência do todo-feminino, ligado ao S(A/).

Segundo Recalde (2012), partimos da histeria para entendermos o caminho que a menina percorre ao “tornar-se mulher”. Segundo a autora, a histérica conta com dois caminhos: ou bem aparece como a que “tem”, ou bem ostenta o que lhe falta e, por isso, “é”. Já a pergunta sobre a feminilidade encontra, com Lacan, uma saída pela via significante que lhe permite abordar o não-todo.

Quando se tem a referência ao falo, podemos localizar aí a saída histérica que, como qualquer homem, está submetida sob a égide do falo (lado esquerdo das fórmulas da sexuação). Mas também poderá se desdobrar, já que tem por um lado relação com o falo, mas por outro lado, está ligada a esse gozo que escapa ao Nome-do-Pai.

Desdobramento que lhe permite, assim: articular-se, por um lado, ao falo, mas também se conectar a essa dimensão mais além do falo, onde poderíamos localizar o lado feminino.

Na clínica, deparamo-nos com os diferentes modos de o sujeito feminino se posicionar em relação à falta: algumas se sacrificam ostentado a falta, outras se localizam como excepcionais, outras se comportam como se tivessem o falo, enfim, diferentes modalidades de situar-se frente a esse gozo mais além do falo, cujo efeito pode ser devastador

Portanto, o termo devastação, empregado por Lacan para designar a relação entre mãe e filha, refere-se também ao que está para além da reivindicação fálica dirigida à mãe, ou seja, ao encontro da menina com o Outro materno, enquanto Outro do gozo. A impossibilidade de dar um contorno ao excesso é a devastação.

Devastação, Trauma E Lalíngua

Marie-Hélène Brousse (2004) afirma que, nos casos clínicos de devastação que lhe servem como referência, a função paterna demonstra não operar nenhum apaziguamento, portanto, o pai se manifesta a serviço do capricho materno e não como agente de sua privação. O traço que caracteriza o pai é sempre a impotência.

A hipótese de Marie-Hélène Brousse (2004) é a de especificar o tipo de emergência singular da linguagem no sujeito, ou seja, o modo como a mãe inscreveu a criança num universo simbólico e discursivo, em que cada história de vida é um desdobramento. Para Brousse, a devastação se situa no campo da relação entre o sujeito e a mãe, o Outro da linguagem e a relação com a fala.

Uma das marcas dessa “aventura primordial do que se passou em torno do desejo infantil” é a marca deixada pelo fato de a mãe ser a detentora dos poderes da palavra. O primeiro dito da vida da criança é o da mãe, e não o da criança.

A mãe que decreta, legifera e sentencia sobre tudo o que tem a ver com a existência da criança e é assim que as palavras da mãe adquirem um sentido de profundas consequências para o seu destino, […]. Na memória reencontramos a voz, às vezes devastadora e persecutória das palavras, dos imperativos e dos comentários inesquecíveis desse Outro materno primordial que se apresentara investido de uma obscura autoridade (ZALCBERG, 2007, p.33).

Essa emergência da linguagem pode se dar, segundo Marie-Hélène Brousse, sob a forma do insulto, sob a forma de recusa e, ainda, sob a forma do imperativo do silêncio. O ponto comum dessas emergências é a conexão dessas experiências de fala com o sexual como traumático, isto é, a experiência pulsional do sujeito, ainda que tenham destinos estruturais diferentes e constituírem sintomas bem distintos.

Segundo Brousse:

Em todas essas ocorrências, a fala do Outro materno está associada à descoberta de uma experiência de gozo. Mas — segunda característica — essa emergência que tem como pano de fundo um gozo sexual traumático, ou seja, de inscrição do corpo por um significante se realiza no momento em que surge a diferença dos sexos, no seio da função fálica, sob a forma de um enigma. Enfim, essa emergência consagra a crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe escapando à falta da castração e que apresenta ao sujeito uma alternativa mortal: ou o dejeto ou a reintegração pela genitora do seu produto (BROUSSE, 2004, p.211).

Foi dito anteriormente que o desejo da mãe não é totalmente recoberto pela significação fálica, através do Nome-do-Pai. Existe sempre um resto que escapa ao falo. A devastação pode então aparecer no ponto do gozo enigmático percebido na mãe pela menina, gozo esse desconhecido, feminino e não limitado pelo falo.

Desde Freud, é possível situar a mulher segundo duas vertentes: a primeira, que aponta a mulher como um ser portador da falta fálica, de um menos de gozar, derivado do complexo de castração, e a segunda vertente, que aponta para um excesso traduzido pelo desejo insaciável da mulher de possuir um pênis. Lacan, ao dizer que a mediação fálica não drena todo gozo de uma mulher, coloca-o na via do suplemento, do não-todo subordinado à logica do todo, do completo. O suplemento aponta para “um a mais”, sem que o todo esteja aí implicado.

Desse modo, a teoria sobre a devastação e a sexualidade feminina da qual ela decorre nos ensina que a sexualidade é traumática porque o discurso sempre falta para falar sobre o gozo. É a entrada na linguagem que é traumática porque o sujeito se depara com a falta de significante no Outro para dizer seu ser de gozo. O S(A/) é o próprio matema do trauma.

De acordo com Lacadée (2010), Lacan criou o neologismo “troumatisme” que serve para designar o verdadeiro valor do trauma psíquico, seja o encontro de um buraco na linguagem, de uma falta de saber no Outro sobre o gozo sexual do sujeito. O “troumatisme” é um outro nome do axioma lacaniano: “não há relação sexual”. O real faz uma ruptura no tecido simbólico da significação e uma ruptura imaginária, um lugar vazio de sentido. O traumatismo produz a desarticulação da cadeia significante, dos significantes S1 e S2.

A partir daí se podem conceber a força e a imensidão do que uma mulher espera da sua mãe. Trata-se de algo que a mãe não lhe pode dar, nem a existência enquanto mulher, nem o ser de mulher, tampouco a “substância feminina”. A mãe não lhe pode dar não porque ela não queira, mas porque se trata de algo da ordem do impossível, no sentido daquilo que não cessa de não se inscrever para a mulher. Considerando-se que a relação de devastação é uma suplência à relação sexual que não existe, sendo, assim, o sujeito é desapossado do seu lugar,

[…] esse lugar que não existe mas pode ser declinado como fala, e o sujeito é então reduzido ao “silêncio”; com corpo, e o sujeito não passa de um “corpo em excesso”, ou de uma carne desfalicizada que é um “buraco negro”; como errância, fenômeno de despersonalização, de autodesaparição (BROUSSE, 2004, p.215).

A devastação se faz presente em sua articulação com o desejo da mãe enquanto mulher e ao modo como o sujeito criança pode encarnar o objeto do gozo materno.

(1) Essa vertente da devastação não será explorada neste trabalho.

 


Referências
BESSA, G. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
BROUSSE, M.-H. “Uma dificuldade da análise das mulheres: a devastação com a mãe”, Latusa, Rio de Janeiro, n.9, p. 203-218, 2004.
FREUD, S. (1931). “Sexualidade feminina”. In: O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.257-279. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIX).
FREUD, S. (1933). “Feminilidade”. In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.139-165. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XXII).
LACADÉE, P. “L’enfant est le père de l’homme ou Le malentendu du traumatisme”. In: Le malentendu de l’enfant. Paris: Ed. Michèle, 2010. p.63-77.
LACAN, J. (1972). “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.448-497.
LACAN, J. (1957-1958). O Seminário 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Miller, J-A. “Clinica del superyo”. In: Reocorrido de Lacan. Buenos Aires: Manantial, 1994. p.143.
NAJLES, A. R. “Voz: com que objeto se fala?” In: Scilicet. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008. p.349-351.
RECALDE, M. “Madre, niña, estrago, uma salida possible”. In: GLAZE, A.; ACEVEDO, L. (Orgs.). No locas del-todo. Buenos Aires: Grama, 2012. p.83-89.
ZALCBERG, M. Amor paixão feminina. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

Andrea, Margaret, Maria Das Graças Sena
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br Maria das Graças Sena – Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise. e-mail: dadesena@yahoo.com



O Utilitarismo Da Pena E O Real Da Pulsão

MÁRCIA MEZÊNCIO

Concluímos hoje nosso percurso pelo texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, orientado pela questão de investigação proposta pela Seção Clínica: o que de real encontramos em nossa prática na interface da Psicanálise com o Direito? Esse real encontrou, ao longo do semestre, algumas nomeações — crime, violência, guerra — manifestações que respondem, por outro lado, ao irredutível da pulsão que seria, finalmente, o real em jogo. O Direito, um produto da cultura, seria ele também uma resposta ao que não tem governo, nem nunca terá… Antecipando uma questão que trabalharemos no próximo semestre, como o Direito pode servir à invenção do sujeito para tratar seu embaraço com o real?

Iniciaremos, talvez, o percurso anunciado para o futuro, levantando algumas questões sobre o utilitarismo da pena. Cabe-me apresentar um comentário sobre a crítica de Lacan ao utilitarismo articulada às questões da função da punição e sua relação ao real da pulsão.

Um trecho que abre a seção IV desse texto de Lacan condensa o argumento que ele desenvolve ao longo do artigo. Eis o trecho:

Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E além do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação científica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penalogia (LACAN, 1950/1998, p.139).

Articulando essas considerações à minha prática no Liberdade Assistida, tomarei, mais uma vez, a afirmação que pode ser lida reiteradas vezes nos Termos de Audiência encaminhados pelo Juízo aos programas de execução de medidas, e que ressoa, a meu ver, com essa advertência de Lacan relativa ao utilitarismo e também à má consciência social: “a medida socioeducativa tem o caráter de pena, mas não a finalidade de retribuição, seu objetivo é de ressocialização”. Essa medida que é, pois, uma sanção e só se aplica em resposta ao ato delituoso cometido pelo adolescente considera a “condição peculiar de desenvolvimento” do adolescente e trata a ruptura do laço social ocasionada pelo ato infracional através da “socioeducação” e da “inclusão social” e não da retribuição.

Parece-me, então, que a afirmação acima resume uma série de ordenamentos, normativas e seus fundamentos políticos e filosóficos, senão ideológicos, e aqui poderá ser um ponto de partida para uma leitura exploratória de alguns artigos sobre a evolução do Direito Penal e sobre o utilitarismo da pena a que Lacan se refere no trecho acima. Fica a advertência de que não farei uma discussão sistemática sobre o tema, mas o destaque de alguns pontos que podem ser relevantes para nossa discussão.

Podemos tomar igualmente o diploma legal que normatiza a execução das medidas, conhecido como Lei do SINASE. Em seu artigo primeiro, a definição dos objetivos da medida socioeducativa identifica o cumprimento da medida à promoção social, vinculando-o à execução do Plano Individual de Atendimento, acentuando o seu caráter assistencial. Apesar de apontar também como objetivo a desaprovação da conduta, esta parece ocupar um lugar acessório para alguns operadores.

Inicialmente, gostaria de destacar do texto de Lacan a crítica ao humanismo e ao humanitarismo, como essa solução utilitária. Ao afirmar que a função expiatória do castigo é reduzida a seu fim correcional, que pode variar, abre para nós a questão sobre a finalidade da pena e para a disjunção entre a função do castigo para a Psicanálise e para o Direito. Por fim, aponta a concepção sanitária da penalogia, o recurso ao saber científico da psiquiatria, servindo igualmente a esse fim utilitário da prevenção.

E o que é o utilitarismo? O utilitarismo é uma teoria ética, que se baseia no princípio da utilidade. A definição clássica desse princípio é: o prazer e a ausência da dor são, de fato, desejados por todos os seres humanos, e cada pessoa busca seu próprio prazer (A semelhança desse princípio com o princípio de prazer freudiano é notável, tendo sido assinalada por alguns autores), Jeremy Bentham, James Mill e John Stuart Mill (de quem Freud fez algumas traduções) sendo os principais autores dessa versão clássica, filosófica, do utilitarismo. Para uma visão utilitarista do Direito Penal, um comportamento deve ser proibido se for indesejado pela sociedade, sendo sua lesividade um elemento do cálculo, mas não o mais relevante. A avaliação do resultado produzido pelo comportamento se dá por sua utilidade (MARTINELLI, 2014).

Em relação ao humanismo, apontado por Lacan, o próprio Código Penal clássico surge de uma visão humanista, tributária do iluminismo. Também a questão da utilidade já está presente em Cesare Beccaria, autor de referência para a localização do surgimento dessa versão chamada clássica do Direito Penal. Segundo os editores no Brasil de sua obra Dos delitos e das penas, Beccaria “condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social, declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos”, bem como o caráter retributivo e preventivo da pena.

Em relação à proporcionalidade das penas, um detalhe que me pareceu curioso é que não se trata apenas de avaliar a gravidade ou lesividade do ato, mas igualmente sua frequência, isto é, se um comportamento não é comum, ele não precisa ser inibido tanto quanto aquele que, menos grave, perturba a organização social por ser habitual. Esse o caráter preventivo, exemplar da pena. A utilidade da pena também, nesse sentido, depende da certeza da punição. Segundo esse ponto de vista, não é o tamanho da pena, mas a certeza de não impunidade que seria um fator mais poderoso de inibição do crime.

Destaco de um artigo de Savino Filho (2014), “Evolução do Direito Penal – Comentários”, a afirmação de que as primeiras manifestações do Direito se iniciaram com os primeiros agrupamentos humanos, em que a necessidade da ideia de punição nasceu do próprio convívio comunitário, em defesa do sentimento natural e sobrevivência contra atos injustos. Formulação que corrobora o argumento de Lacan no texto da criminologia, ao dizer que não existe sociedade em que não se estabeleça a relação crime-castigo através de uma lei positiva.

O autor afirma ainda que a formação do Direito Penal se deu em ciclos em que os castigos evoluíram. Ele lista: perda da paz, vingança privada, composição pecuniária, castigo corporal e pena pública, que eram regulados e desenvolvidos através de leis de usos e costumes, das legislações do Oriente, da Grécia, do Direito Romano, do Germânico, do Canônico, do Penal comum.

Seu artigo descreve as Escolas Clássica (Beccaria), Positiva (Lombroso), Eclética e destaca a Escola Nova de Defesa Social, que surge no pós-guerra. Essa nova Defesa Social reconhecia a luta contra a criminalidade como sendo uma das mais importantes tarefas da humanidade, tarefa que exigiria os meios adequados para esse combate. Esses meios adequados, que foram propostos como um programa mínimo que excluísse a ideia de pena ou retribuição, deveriam buscar a desjuridização e ter um caráter não repressivo.

O autor ainda assinala uma aproximação do Direito Penal com o Direito do Menor, a partir dessa escola nova de Defesa Social, com ênfase nas medidas de tratamento com vistas à reeducação e à reinserção social.

Ele destaca as teorias finalistas: o fim do Direito Penal é a proteção social e o controle. Cita Luigi Ferrajoli e articula garantismo penal com intervenção mínima. Esse ponto articula direito do cidadão e limite da intervenção do estado. Ressoa ao que Lacan aponta sobre a crise de legitimidade do exercício da punição pelas classes dominantes. Localiza-se aí uma crise do Direito Penal.

Ao percorrer rapidamente essa história do Direito Penal, podemos afirmar que se trata de mais uma crise, ou propor que a condição do Direito Penal seria de crise permanente?

Na atualidade, testemunhamos a existência de uma tendência internacional de humanização das penas, pelo menos em tese, atendendo às regras mínimas da ONU para as prisões, que datam de 1955, também no contexto do pós-guerra e da declaração dos direitos humanos, já apontados aqui como o pano de fundo da comunicação de Lacan sobre criminologia.

No Brasil de hoje, por um lado, Maierovitch (2014) afirma que a pena tem a finalidade ética de emenda, ressocialização e reinserção social, além de sua natureza retributiva e aflitiva. Por outro, Juarez Tavares (2014), entre tantos outros, critica o projeto de mudança do Código Penal em discussão no Congresso Nacional, por considerá-lo de caráter retórico e usar de apelo emotivo para justificar o endurecimento das penas. Afirma que o projeto está focado na punição, na criminalização dos movimentos sociais e que desconhece a falha do Estado em não promover a ressocialização do preso.

Enquanto isso, nos complexos penitenciários, funciona uma ordem feroz, um rigor nos castigos determinados pelos próprios presos, torturas, um real que nos espanta e revolta. Que coloca em questão não somente a dita falência do sistema, mas que nos permite relançar a pergunta sobre a função expiatória do castigo, para o sujeito e para o tecido social. Também, paradoxalmente, assistimos à chamada “judicialização” de todos os tipos de laços sociais e de todos os campos da existência. Exemplos não nos faltariam, seja de nossa prática profissional, seja de nosso cotidiano.

Perguntamo-nos sobre a incidência dessa pena privada da função de castigo, dessa demissão da autoridade de sua função de julgar e castigar, dessa alegada “desjuridização”, sobre o real da pulsão que se presentifica no crime ou no ato infracional.

Pode-se dizer que, para a discussão sobre nossa prática, em particular no sistema socioeducativo, devemos nos perguntar que contribuição a psicanálise lacaniana pode oferecer para possibilitar ao sujeito os instrumentos para saber fazer com o real em relação ao qual ele se encontra desarmado.

Dos trabalhos apresentados em nossos encontros do semestre, recolhemos alguns pontos de referência para abordar isso que escapa à regulação, mas que pode recorrer a um discurso como o do Direito.

Hélio Miranda pergunta: como produzir uma outra dimensão da verdade frente à demanda do judiciário de constatar a verdade dos fatos? E apontou a possibilidade de introduzir uma experiência da verdade que considere o sujeito e que, pela abertura da enunciação e manejo da transferência, faça vacilar o imaginário (abuso da criança pelo pai) e possa tocar a experiência do real (o real traumático da própria experiência infantil da mãe) e relançar o campo do desejo.

Fernando Casula apresentou-nos os paradoxos da inimputabilidade e suas consequências para o sujeito “fora da lei” que é o psicótico. Fora da lei também é o real da pulsão, sobre a qual o sujeito é, no entanto, responsável. As questões que Fernando nos apresenta concernem à função da ficção jurídica como um tratamento para esse real, tratamento a ser produzido via consentimento à punição. Nessa direção, opõe o utilitarismo da pena à responsabilização. A proposta de uma pena sob medida, podemos chamá-la de “utilitarista”, ao modo da psicanálise? Como um uso da ficção jurídica para inscrever o sujeito?

Kátia Mariás, ao tratar do crime e da violência, convidou-nos, com Freud e Lacan comentados por Maria José, a pensar a violência na perspectiva do excesso pulsional. Aquilo que em Freud é nomeado como pulsão de morte, mais além do princípio do prazer, e em Lacan, como o real do gozo. Excedente pulsional não regulado que, quando atuado, é a violência. Então, o ato tem uma causa: a presença do real do gozo. Lembrou-nos, ainda, que, para Freud, o crime edipiano era a forma privilegiada de dar tratamento à violência pulsional. O ato criminoso se constitui uma defesa contra a angústia que sinaliza a presença do objeto. O ato é uma espécie de resposta, de tratamento pela desaparição do sujeito no ato. Culpar-se por um crime, seja ele cometido ou desejado, para Freud, seria uma maneira de se estabelecer dentro da lei do pai. Na concepção lacaniana, o assentimento ao castigo é o que garantiria a possibilidade de responsabilização. Nesse sentido, a lei e a pena poderiam ser “úteis” ao sujeito.

Ludmilla Féres Faria, ao apresentar-nos o supereu, demonstra o avesso do princípio utilitarista. Aponta que o real da pulsão que escapa a qualquer artifício pode ser entrevisto na referência ao supereu, entendido como a instância que impede o equilíbrio ao encontrar no sofrimento a própria satisfação. Nesse sentido o supereu pode ser traduzido como a divisão do sujeito, dado que mostra que o sujeito não quer seu próprio bem, que ele trabalha contra si próprio.

Graciela Bessa segue essa trilha, lembrando-nos de que a hipótese do supereu sustenta que o que impede que a agressividade se dirija aos outros é a própria pulsão de morte, que, através do supereu, exerce sua ferocidade contra o sujeito. Uma vez que essa pulsão de destruição, ou de morte, é estrutural e que, enquanto pulsão, engendra uma busca de satisfação que não cessa, como tratá-la, temperá-la, nos termos que Graciela nos apresenta? Em seu texto, ela tece considerações sobre o mal-estar na cultura, apontando que, para Freud, é o mal-estar do sujeito, que ela nomeia mal-estar na identificação, que é o fundamento do mal-estar na cultura.

Em nosso último encontro, Maria José e Marina Otoni nos apresentaram alguns dos pós-freudianos que exploraram, de alguma forma, o campo da criminologia, relacionando suas descobertas e proposições à concepção freudiana, enunciada em 1906, em “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”. A questão pulsional é considerada por esses autores, segundo uma concepção desenvolvimentista da libido, o delinquente ou o criminoso sofreriam de uma fixação libidinal e permaneceriam em uma posição infantil. Para alguns desses autores, a questão do tratamento do criminoso envolve a educação ou uma reeducação (Seria possível pensar em uma “educação” das pulsões, sendo essa a contribuição da psicanálise à justiça, para esses autores?). Sobre a punição, esta não se coloca como uma condição para a responsabilidade, pois têm maior peso as ideias de prevenção e de cura.

Uma palavra sobre o real da pulsão. O que resiste ao simbólico é a pulsão de morte. Não se desenvolverá aqui esse tema, que já foi tratado nas intervenções ao longo do semestre, retomadas acima. Encontramo-nos em um momento da história humana, que pode ser escrito através do matema a>I, em que o programa civilizatório não privilegia a interdição ao gozo. Pelo contrário, o que se coloca é um imperativo de gozar e uma oferta insidiosa de objetos, um excesso sem regras. A esse propósito, cito o verbete “Excesso” do volume Scilicet “Um real para o século XXI”.

A crise atual da civilização não é, no entanto, um processo casual, mas, antes, um programa relacionado com a produção de um novo procedimento normativo posto na base de uma nova (in)civilização. […].

Esta é, portanto, nossa tese, a civilização do excesso (de gozo) é um discurso, um novo saber/poder que se exercita sobre as vidas através da injunção de gozo. […] É um poder que se exerce sem metáfora, sem insígnias, sem retórica e, em alguns aspectos, sem sentido (RAMAIOLI, 2014, p.139-140).

Miller (2009) chega a apontar que, se existe culpa na contemporaneidade, seria uma culpa de não gozar. Se a pulsão não pode ser educada, ela pode ser tratada pelos ordenamentos sociais e jurídicos. É também disso que Lacan trata nesse artigo. É, então, nesse sentido, que, no que se refere à psicanálise de orientação lacaniana, discutimos as novas ficções jurídicas que poderiam ser criadas para dar contorno, fazer borda a esse real.

Gostaria de esclarecer que tomei alguma liberdade para abordar a questão da utilidade ao não me deter em uma exploração circunscrita à referência ao utilitarismo, seja na Filosofia ou no Direito, mas tenha me permitido inverter a questão da utilidade, referindo-a ao pragmatismo proposto por Miller (2008) e que justificaria a ação lacaniana na cidade e nas instituições. Assim, também Miller aponta em que a Psicanálise poderia ser útil ao Direito, e, entre outras considerações, afirma que a Psicanálise permite ao Direito nuançar a crença na verdade, ao considerar a distinção entre o verdadeiro e o real. Como, para abordarmos o real, precisamos recorrer aos semblantes, inventar, o Direito, ao reconhecer-se como ficção, também poderia prestar-se, ser útil, ao tratamento desse real.

(1) Texto proposto para discussão no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 04/06/2014, no encerramento das atividades do semestre.

 


 

Referências
FOUCAULT, M. “Conferência IV”. In: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999. p.79-102.
LACAN, J. (1950). “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.127-151.
MAIEROVITCH (CARTA CAPITAL, 12/02/2014). “As prisões e os microtraficantes”. p.39.
MARTINELLI, J. P. O. “Uma leitura utilitarista do Direito Penal Mínimo”. Disponível em: www.academia.edu/5799781/uma_leitura_utilitarista_do_direito_penal_minimo. Acesso em: maio 2014.
MILLER, J.-A. “Rumo ao PIPOL 4”, Correio, São Paulo, n.60, p.7-14, 2008.
MILLER, J.-A. “Nada é mais humano que o crime”. In: Almanaque on-line n.4, jan-jun/2009. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque4.htm. Acesso em: maio 2014.
RAMAIOLI, I. “Excesso”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. (Orgs.). Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p.139-141.
RASSI, P. V. de G. S. Direito Penal Mínimo, Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano XI, n.50, fev 2008. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4498. Acesso em: maio 2014.
SAVINO FILHO, C. A. “Evolução do Direito Penal – Comentários”, Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: www.smithedantas.com.br/texto/ev_dir_penal.pdf. Acesso em: maio 2014.
TAVARES, J. (CARTA CAPITAL, 02/04/2014). “Retrocesso, não”. p.58.

Márcia Mezêncio
Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos), Psicanalista, Membro da EBP/AMP. E-mail: marcia.mezencio@terra.com.br.



Passagem Ao Ato Como Resposta Do Real

FREDERICO FEU

Podemos abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses. Na mesma proporção em que, na neurose, podemos contar com os fenômenos de retorno decorrentes do recalque, a psicose nos confronta com o ato como efeito da foraclusão. Seja nas suas origens, por ocasião do desencadeamento, ou como um ato conclusivo de um argumento delirante, seja como uma maneira de operar a castração no real, ou como uma tentativa de extração de um mal-estar corporal, no “impulso a golpear”, a psicose sempre parece tender, de alguma forma, ao ato.

De um modo geral, a passagem ao ato desvela a estrutura fundamental do ato, em seu sentido mais amplo (MILLER, 2014). O pensamento, na medida em que está dominado pelo recalque, está essencialmente sob impasse. Em sentido amplo, o ato é uma tentativa de sair desse impasse, caracterizando-se por uma ruptura entre ação e pensamento, ao contrário do que a tradição racionalista preconiza, ou seja, que um ato deveria ser a consequência lógica de uma cadeia racional de pensamentos. Nesse sentido, todo ato equivale a uma espécie de suicídio do sujeito, a um rompimento com o Outro, a um divisor de águas, visando a uma mutação subjetiva. Trata-se, como diz Lacan, de extrair da angústia a sua certeza, por oposição à dúvida suscitada pelo pensamento. O mesmo princípio poderia ser estendido à criação artística, à invenção de novos paradigmas no campo da ciência ou mesmo ao atravessamento produzido no campo do pensamento cultural e político por um acontecimento.

Proponho, nos limites deste texto, tratar a noção clínica de passagem ao ato a partir de algumas referências desenvolvidas por Lacan no Seminário, livro 10, “A angústia”, de 1962-1963, especialmente em torno do comentário do quadro que reproduzimos abaixo, em que a passagem ao ato é posta em relação com outros termos e conceitos. Isso nos coloca diante do problema de transpor uma noção clínica cujo movimento de elaboração se dá no enquadre estrutural das neuroses para o campo das psicoses. Além disso, há dificuldades de interpretação desse quadro, na medida em que ele não foi retomado por Lacan, dificuldades que nos parecem tanto maiores quanto mais exigirmos uma correlação formal de todos os seus termos. Devemos tomá-lo, então, de uma forma fragmentária, para um determinado uso, relacionando seus elementos sem fazer um todo e buscando estabelecer alguns parâmetros que nos levem da clínica das neuroses à clínica das psicoses, na qual o tema da passagem ao ato adquire todo seu peso.

Enquadre E Movimento Geral Do Seminário 10

A chave do Seminário 10 é a elaboração do conceito de objeto a, do qual a angústia vem a ser uma espécie de moldura para o neurótico e com o qual o sujeito se articula na cena fantasmática ($ <> a). O objeto a demonstra o efeito regulador da entrada na ordem simbólica: para dar conta do gozo, o sujeito (S) se dirige ao campo do Outro (A); se ele encontra, nesse campo, o significante do nome-do-pai, o efeito é sua divisão ($) entre o significante — que representa o sujeito para outro significante — e o objeto a .

Se definirmos essa operação, a que chamamos castração, como uma negativização do gozo pelo simbólico ou como equivalente a uma extração de gozo do corpo, o objeto a é o que compensa, com o mais de gozar, o menos da castração. Esse objeto, justamente por ser perdido, estabelece para o sujeito o regime de contingência de encontros e desencontros no real, mediando a sua relação com o Outro, na medida em que, para o neurótico, gozo e Outro se separam. Do lado do sujeito, o Outro aparece recoberto por uma barra (Ⱥ) — “o que me constitui como inconsciente, ou seja, o Outro enquanto aquilo que não atinjo” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36). Assim, estabelece-se a equivalência entre demanda e circuito pulsional na neurose. Partindo de uma zona erógena, representada pela elipse, a pulsão contorna um objeto — “essa prova e garantia única, afinal, da alteridade do Outro” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36) — retornando sobre esse mesmo ponto de partida, obtendo-se, dessa forma, a satisfação.

Esse objeto, que a pulsão irá contornar, é aquilo que há de mais variável na pulsão, embora cada sujeito, tomado em sua particularidade, desenvolva um padrão de repetição, um “modo de gozo” que caracteriza o sujeito e que encontra sua consistência no fantasma. Podemos, então, definir a passagem ao ato na neurose como uma precipitação do sujeito, a partir de um encontro desestabilizador, para fora da cena fantasmática, em que ele ocupa uma posição de resposta ao desejo do Outro, identificando-se ao objeto desse desejo.

Quanto ao sujeito psicótico, ele está mais confrontado ao real e com mais dificuldades em relação à mediação simbólica. Daí sua tendência a operar diretamente sobre o real nos fenômenos de passagem ao ato, em suas tentativas de barrar o Outro (em sua dimensão invasiva e excessiva), na medida em que, nessa estrutura, gozo e Outro não se separam. Assim, podemos falar do gozo não negativizado na psicose, especialmente na esquizofrenia, e da não extração do objeto a. Em lugar de um circuito pulsional que estabelece a possibilidade de encontros e desencontros com o objeto da demanda dirigida ao Outro, temos, na psicose, um curto-circuito da pulsão sobre o próprio corpo:

Construção Do Quadro Da Angústia

Podemos agora voltar ao quadro construído por Lacan no Seminário, livro 10, na tentativa de esclarecer suas inter-relações e localizar, aí, o momento da passagem ao ato. Buscaremos construí-lo passo a passo, supondo uma ordenação lógica.

1 – Observamos, inicialmente, que o quadro se escreve a partir de duas coordenadas, o eixo do movimento e o eixo da dificuldade.

A referência ao movimento está nas origens da elaboração freudiana do aparelho psíquico. Tanto no “Projeto” de 1895, quanto na “Carta 52”, redigida em dezembro de 1896, o aparelho psíquico é concebido levando-se em conta as relações de continuidade e descontinuidade entre pensamento e ação.

Se tomarmos o caminho “progressivo” da excitação no aparelho, a ação é o que decorre de um processo de inibição que caracteriza o trabalho de inscrição, retranscrição e tradução da excitação no aparelho psíquico, como um ponto de conclusão de uma cadeia de representações que dominou a excitação e chegou à consciência ao ligar-se a uma representação verbal. Teríamos, no entanto, que conjugar o eixo do movimento ao caminho “regressivo” que conduz o pensamento de volta à excitação no aparelho psíquico, desfazendo as suas conexões, na medida em que a passagem ao ato está em descontinuidade com a cadeia de pensamentos. A esse respeito, lembramos que o termo “Agieren”, utilizado por Freud (por exemplo, no artigo “A dinâmica da transferência”, de 1912), equivale a uma repetição em ato no limite do trabalho de rememoração, a uma mostração, na medida em que esse caminho regressivo, no curso de uma análise, atualiza a realidade psíquica da fantasia na transferência.

Seguindo o eixo da dificuldade, encontramos, por sua vez, a função da barra, que concerne ao sujeito em sua relação com o gozo. De fato, o sujeito barrado pode ser pensado como um efeito do movimento da excitação, na medida em que o sujeito, em seu desamparo, se dirige ao campo do Outro.

A montagem do quadro da angústia compreende, assim, uma tensão crescente que vai de um mínimo de movimento a um máximo de movimento, passando pelo termo intermediário da emoção, e de uma menor a uma maior dificuldade, de forma que podemos definir a angústia como a resultante de um máximo de movimento com um máximo de dificuldade.

2 – Definidas as coordenadas da angústia, podemos escrever a série colocada por Lacan em diagonal, em ligação com a série freudiana inibição-sintoma-angústia.

Inibição, sintoma e angústia são termos heterogêneos, dirá Lacan, estruturas diferentes. Não há, portanto, passagem ou gradação entre eles. De fato, embora possamos pensar no aparecimento da angústia como um efeito de falência da função estabilizadora do sintoma, estabelecendo assim uma sequência entre eles, podemos encontrar igualmente superposição entre a inibição de uma função e um sintoma, como na impotência masculina ou na anorexia.

Mas, de modo geral, a inibição está associada à detenção de um movimento e, nesse sentido, se opõe à angústia, sendo o sintoma um termo intermediário que faz a mediação entre movimento e dificuldade ou, conforme definição de Freud, uma formação de compromisso entre movimento pulsional e defesa.

3 – Se a inibição é detenção do movimento no nível de uma função, estar impedido é um sintoma. “Estar impedido é um sintoma. Ser inibido é um sintoma posto no museu” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). “Impedicare”, etimologicamente, quer dizer “ser tomado na trama”, o que nos leva da função ao sujeito à medida que caminhamos no eixo da dificuldade.

A trama de que se trata é a captura narcísica, isto é, “o limite do que se pode investir no objeto”, como dirá Lacan.

O impedimento ocorrido está ligado e este círculo que faz com que, no mesmo movimento com que o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que lhe está mais distante, ele depare com essa fratura íntima, muito próxima, por ter-se deixado apanhar, no caminho, em sua própria imagem, a imagem especular. É essa a armadilha (LACAN, 1962-1963/2005, p.19).

O sujeito que se encontra, no plano sintomático, impedido, se deteve diante da castração, rendendo-se à captura narcísica. Um passo a mais no eixo da dificuldade, e ele se encontrará embaraçado, termo que é correlativo à angústia no eixo vertical. O embaraço é definido como “forma leve da angústia” na dimensão da dificuldade. Etimologicamente, o termo francês “embarras” aponta para o sujeito revestido pela barra, “quando vocês já não sabem o que fazer de si mesmos” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). Em espanhol, estar “embaraçada” quer dizer estar grávida, em gestação, à espera. Embora daí se depreenda um movimento futuro ou algum tipo de desfecho, falta ainda à dimensão do embaraço a precipitação ao ato que encontramos à medida que caminhamos no eixo do movimento.

4 – Prosseguindo em direção ao sintoma, seguindo o eixo do movimento, encontramos a emoção (émotion). A emoção salienta algo de inquietante em comparação com a inibição, evocando, ao mesmo tempo, a ideia de uma exteriorização, no sentido de alguma coisa que se descarrega, que é colocada para fora, muitas vezes, conservando o sentido de reação catastrófica. Trata-se de um termo utilizado por Freud justamente para designar o movimento da catarse, uma vez que teria sido a ausência de reação adequada ao trauma o que estaria na origem do sintoma histérico. A catarse se realiza levando-se em conta essa tríplice condição: a rememoração, a exteriorização da emoção e sua tradução em palavras. Trata-se, portanto, de uma exteriorização simbólica, na medida em que o sujeito, sob transferência, for capaz de se desembaraçar de seu sintoma por meio da palavra.

Finalmente, ainda na linha do movimento, encontramos a efusão (émoi). O termo esmayer deriva do latim popular, exmagare, esmagado, em português, com o sentido de queda, perda de potência. Relaciona-se a um excesso de movimento que parece colocar o sujeito fora de si, na medida em que ele se encontra embaraçado pelo desenvolvimento da angústia. O émoi é “o perturbar-se mais profundo na dimensão do movimento. O embaraço, o máximo de dificuldade atingida” (LACAN, 1962-1963/2005, p.22), preenchendo assim as duas coordenadas da angústia.

5 – É possível agora completar o quadro com as referências ao acting-out e à passagem ao ato. Podemos desde logo observar que, em relação ao eixo da dificuldade, encontramos uma maior proximidade entre sintoma e acting-out, por um lado, e passagem ao ato e angústia, por outro.

De fato, o acting-out se produz a partir de um franqueamento do sintoma, estando logicamente determinado no curso de uma análise no limite do trabalho de interpretação, ali onde se desvela a estrutura da fantasia, destacando-se como fundamental o fato de que o acting-out está direcionado ao Outro. Quanto à passagem ao ato, ela parece se antecipar ao pleno desenvolvimento da angústia, sendo tomada por Lacan como uma precipitação que lança o sujeito em um movimento de queda para fora da cena fantasmática.

É o que se revela na análise feita por Lacan do caso da “Jovem Homossexual” (FREUD, 1920/1976). A passagem ao ato tem relação com o “deixar cair” (Niederkommen). Diante do olhar do pai com quem ela cruza na rua quando caminhava ao lado da dama — a quem a jovem se dedica, a contragosto do pai — se produz o extremo embaraço; e se lhe acrescentamos a emoção como desordem do movimento, o que chega nesse momento preciso ao sujeito é sua “identificação absoluta com esse pequeno a ao que ela se reduz” (LACAN, 1962-1963/2005, p.124), ao mesmo tempo em que ela se sente rechaçada, lançada fora da cena. É o suficiente para que ela se precipite, jogando-se de uma pequena ponte sobre a linha do trem, desde o lugar da cena onde atuava no sentido do acting-out. Ou seja: se a tentativa de suicídio é uma passagem ao ato, toda a aventura com a dama — que é elevada, como no amor cortês, a essa posição de objeto supremo — é um acting-out.

Psicose E Passagem Ao Ato

A questão que toca o analista, a cada análise, é justamente saber o quanto de angústia o sujeito pode suportar. Na clínica da neurose, a angústia é um guia, funcionando como sinal, o sinal de angústia. Podemos dizer que o sinal de angústia abre a possibilidade de um manejo, orientando a clínica da neurose em direção ao real, ao impossível de suportar, a partir do suporte da mediação simbólica. Se o ato analítico, esse ponto de viragem de uma análise, visa a extrair da angústia a sua certeza — já que, ao contrário do pensamento, a angústia é o que não engana — a questão é como chegar até aí bordejando, por assim dizer, os campos da passagem ao ato e do acting-out com os quais a angústia faz fronteira, como vemos no quadro.

Ora, o ato analítico é uma aposta que toma seu fundamento, na clínica da neurose, do fato de que o fantasma está emoldurado, enquadrado pelo sinal de angústia. Há um marco referencial em que essa aposta é possível: seu ponto preciso é a questão “que queres?”, que interroga o desejo do Outro. A relação com o objeto a é um modo de responder a essa pergunta, na medida em que o objeto a está, por assim dizer, a meio caminho entre sujeito e Outro, na medida em que o neurótico tende a se dedicar ao preenchimento da falta no Outro. O ato analítico visa a separar o sujeito do objeto ao qual ele identifica a sua demanda.

Na psicose, por sua vez, a angústia está a céu aberto; ela não funciona para o psicótico como um sinal ou um anteparo que se anteciparia ao seu pleno desenvolvimento. Para o psicótico, há impossibilidade formal de responder ao desejo do Outro pela via fantasmática. De fato, se, na neurose, o objeto a, na medida em que é extraído pela castração, vem a ser uma resposta possível a essa questão, na psicose, o sujeito encarna o objeto e, nesse sentido, encarna ele mesmo a resposta. Por conseguinte, falta a moldura que daria à angústia a sua contenção; falta a falta, como dirá Lacan, o contorno significante do objeto. Por isso, o sujeito seria lançado mais facilmente ao ato enquanto a angústia tenderia a aparecer mais do lado do Outro, como testemunhamos a cada vez que nos propomos a tratar um psicótico.

O campo da passagem ao ato apresenta-se, portanto, mais disperso nas psicoses justamente por faltar o traçado do contorno do objeto que a fantasia possibilita para o neurótico. Devido à sua dimensão invasiva, não limitada pela fantasia, o gozo, na psicose, predispõe o sujeito ao ato. Entretanto, talvez seja possível estabelecer algumas distinções que possam nos orientar minimamente na clínica da passagem ao ato. Assim, limitando-nos à fenomenologia dos atos hetero e autoagressivos, podemos distinguir:

a – Os atos impulsivos, aparentemente imotivados e muitas vezes repentinos, para os quais parece faltar a mediação simbólica e por meio dos quais a pulsão se faz ato. Podemos relacioná-los ao impulso a golpear que caracteriza a análise feita por Lacan do Kakon, esse objeto definido como a presença mesma do “mal” que o sujeito visa a atingir, seja extimamente ou no próprio corpo, em suas tentativas de barrar ou extrair o gozo, operando diretamente no real. Aquilo a que se visa é o mal-estar em sua urgência mesma, sendo a passagem ao ato uma tentativa de tratar o real pelo real. Assim, uma paciente é levada a atingir outro usuário de um serviço de saúde mental — que, nessas circunstâncias, poderia ser qualquer um — e, em seguida, tenta se lançar de uma janela sem que pudesse dar razões para isso, a não ser o impulso que acompanha o seu mal-estar e que a coloca, por um instante, fora de si. O que fazer diante de tais ocorrências, a não ser nos antecipando a esse mal-estar na medida do possível, oferecendo as contenções disponíveis na ocasião até que se restabeleçam as condições de mediação simbólica?

b – Os atos derradeiros, conclusivos, que pressupõe uma cadeia de pensamentos. Algumas vezes associamos a esses atos seu aspecto resolutivo e estabilizador para o psicótico, como acentuado por Lacan em sua tese de 1936. Um exemplo são os crimes hipermotivados na paranoia. A passagem ao ato pressupõe, às vezes, um longo período de preparação, embora nem sempre isso se faça anunciar. O importante a salientar é o aspecto lógico-dedutivo, nem sempre detectável, que acompanha tais atos, mesmo na esquizofrenia. Cita-se como exemplo uma paciente que veio a cometer uma tentativa de suicídio alguns dias após escutar de sua mãe uma frase que contestava sua interpretação delirante. A paciente vinha argumentando, em resposta ao seu mal-estar, que não tinha estômago, o que a deixava com uma sensação de vazio interior. A mãe acrescenta a essa formulação uma premissa universal: “todo ser vivo tem estômago”. É o suficiente para precipitar a conclusão: “logo, estou morta”. Podemos escrever logicamente essa dedução: (~q) (p  q) : (~q  ~p). Ou seja: “se eu não tenho estômago” (~q) e “se todo ser vivo tem estômago” (p q), conclui-se que, “se eu não tenho estômago” (~q), “eu não posso estar viva” (~p). Observamos que a certeza delirante, que incide sobre o particular, não é negada pela premissa universal. No entanto, em função da temporalidade própria às cadeias de pensamentos, resta-nos a chance de abrir a possibilidade de uma realização assintótica dessas deduções, bloqueando em alguns pontos o desenvolvimento da certeza delirante mediante a introdução daquilo que Lacan chamou de “o benefício da dúvida”.

c – Os atos de mutilação em série que incidem sobre o próprio corpo. À diferença do impulso a golpear que caracteriza o Kakon, essas mutilações e agressões ao corpo se distinguem por seu aspecto repetitivo e mesmo monótono e por seus efeitos de apaziguamento e esvaziamento. Muitas vezes, são atos silenciosos e solitários; outras vezes, inseridos em uma espécie de identificação grupal, como se observa em sites. Mas podem, igualmente, adquirir um valor de mostração e transferência de angústia. Cita-se como exemplo um sujeito que, repetidas vezes, insere objetos em seu corpo, condenando-se, assim, a uma série de intervenções cirúrgicas, e que fala disso sem mostrar sofrimento. Tais sujeitos dão, às vezes, a impressão de operar uma transferência do mal-estar para o Outro e de produzir neste um sentimento de impotência em lugar do impossível a suportar que concerne à relação de todo sujeito com o real.

d – Distinguimos os atos mostrativos, mais próximos do acting-out, das passagens ao ato, em função de parecerem mais destinados a provocar um efeito sobre o Outro, analista ou instituição, seja nas neuroses ou nas psicoses, e que revelam algum aspecto que não encontrou recursos simbólicos de expressão. Tais atos supõem, dessa forma, a existência de um cenário como campo de atuação e podem ser tomados, muitas vezes, na perspectiva do “tratamento do Outro”, exigindo uma interpretação e reorientando a posição do analista ou da instituição em relação ao paciente. Nisso também o acting-out se diferencia das passagens ao ato, em que o Outro é visado em sua dimensão intrusiva e excessiva para o sujeito, como Outro gozador, de quem o sujeito busca desvencilhar-se. Reconhecemos, assim, nos fenômenos de acting-out, a dimensão da transferência e um laço social mínimo. Um exemplo de acting-out pode ser recolhido no relato do “Caso Daví” (CARVALHO, 2000). Enquanto quebra os vidros do carro da gerente do serviço com uma pedra, o paciente se certifica de que o olham da janela. Esse e outros episódios podem ser referidos à frase “quero mostrar a eles que tenho valor”, que define a demanda de reconhecimento do sujeito frente ao Outro.

e – Por fim, teríamos os atos agressivos, que pressupõem o outro como semelhante, e a hipertrofia do imaginário. Aparecem, muitas vezes, justificados pela “raiva” ou pelo “ódio”, ou seja: a passagem ao ato é, nesses casos, dominada por um sentimento intenso e incontrolável que coloca o sujeito em posição de rivalidade em relação ao semelhante. Operam em uma vertente mais voltada à descarga da pulsão imaginariamente endereçada ao outro, em contraste com a tentativa de extração do mal-estar relacionado à presença do objeto Kakon. O outro é visado enquanto supostamente goza de algo que falta ao sujeito. Na medida em que o sujeito aparece aqui mais confrontado à castração, esses atos agressivos tendem a estar mais referidos à estrutura neurótica e à irrupção da violência, que decorre dos embaraços narcísicos do sujeito e de sua vontade de gozo.

 


Referências
MILLER, J.-A. “Jacques Lacan: observações sobre o seu conceito de passagem ao ato”, Opção Lacaniana on-line, ano 5, n.13, mar. 2014. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero13/index.html. Acesso em: abril/2014.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
FREUD, S. (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.18, p. 185-212)
CARVALHO, F. F. “O caso Daví”, Curinga, Belo Horizonte, n.14, p.116-123, abr. 2000.
i Este texto corresponde, essencialmente, à intervenção no Núcleo de Psicose do IPSM-MG, em abril de 2014. Em grande parte, retoma as elaborações publicadas com o título de “Psicose e passagem ao ato” na Revista Abrecampos, n.2, publicação do Instituto Raul Soares, 2000, do qual é uma versão modificada.

Frederico Feu
Frederico Zeymer Feu de Carvalho – Psicanalista, membro EBP/AMP. E-mail: fredericofeu@uol.com.br



Medicina E Psicanálise: Uma Parceria

GUILHERME RIBEIRO

A medicina contemporânea se sustenta em novas proposições epistêmicas. O surgimento das técnicas de avaliação e o uso dos protocolos de diagnóstico e tratamento trouxeram modificações significativas para a prática médica. Essas mudanças se sustentam no modo contemporâneo de produção de conhecimento médico, que é verificado em práticas que se tornaram mundialmente disseminadas, como a “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) e a psiquiatria orientada pelo “Manual de Diagnóstico e Tratamento” (DSM). A primeira se propõe a ser um guia para orientar as melhores práticas na medicina clínica, com ênfase nos sintomas, e a segunda orienta uma proposta para diagnóstico em psiquiatria, em que também são privilegiados os sintomas, sem levar em conta as causas psicodinâmicas.

A introdução da MBE e do DSM pode ser vista como uma substituição da avaliação clínica tradicional, que privilegia o caso a caso e a experiência clínica, pela lógica da avaliação e do protocolo. No protocolo o diagnóstico e terapêutica são sustentados em trabalhos científicos onde os resultados são medidos pela estatística e podem ser reproduzidos em outros experimentos semelhantes. As estatísticas estão no campo da matemática, da mensuração e do cálculo. A validade dessa substituição ocorre, pois existe uma equivalência (MILLER; MILNER, 2006, p. 4) entre os dois processos, entre a clínica do caso a caso e a mensuração/cálculo. A equivalência se dá por ambas produzirem um conhecimento sobre a condição apresentada pelo paciente, estão ambas na esfera do saber. No entanto, mesmo que exista a equivalência entre a prática do caso a caso e aquilo que é medido ou calculável, é um equívoco considerar que elas pertençam ao mesmo campo.

A prática da avaliação, que é realizada a partir de protocolos, vem do campo da administração, que não é o mesmo campo da clínica. A “clínica do DSM”, que propõe uma psiquiatria que se sustenta na quantificação e qualificação dos sintomas, que passam a definir os diagnósticos e tratamentos, sem levar em consideração os aspectos subjetivos daquele que sofre e que demanda alívio de sua condição, está ainda mais radicalmente inserida no campo da avaliação e dos protocolos. O DSM desconhece a causalidade psíquica além do que ela estabelece como uma origem cerebral para as doenças psiquiátricas. A MBE (GUYATT et al., 1992 p. 2421) ainda propõe que se considere a fisiopatologia no desenvolvimento das doenças, embora acentue que ela não deve mais sustentar os diagnósticos e terapêuticas médicas.

Para os médicos, as novas formas de produção de conhecimento na medicina se constituem em um grande desafio, pois são novos discursos que diferem da prática médica precedente. Se, na clínica tradicional, encontramos a valorização do raciocínio clínico e da experiência de cada médico que se responsabiliza pelo atendimento ao paciente, a MBE propõe que o mestre, tomado no lugar de autoridade clínica, como aquele que detém um conhecimento sustentado em sua experiência, seja deixado de lado. Para a MBE (GUYATT et al., 1992, p.2421), ao contrário da clínica tradicional, “o novo paradigma coloca bem menos valor na autoridade”. Os sintomas são avaliados a partir das evidências recolhidas no atendimento, e as respostas devem ser buscadas nos trabalhos científicos. Os trabalhos científicos que sustentam seus resultados no campo da avaliação estatística dos resultados. Essa mensuração da eficácia dos procedimentos, seja de forma qualitativa ou quantitativa, não leva em conta a experiência dos clínicos.

A introdução da lógica da MBE do DSM ocorreu em paralelo ao declínio da prática da clínica do caso a caso e associada ao avanço das tecnologias diagnósticas e terapêuticas sustentadas na ciência. Para Leguil (2011, p. 40), o declínio da clínica não decorre do fato de que os terapeutas, médicos, psicólogos não tocam mais o corpo do paciente. Esse declínio, verificado nas múltiplas tecnologias que substituem o raciocínio clínico, é decorrente do fato de que o corpo que desapareceu da clínica é o corpo do clínico.

A consequência se faz sentir na transferência nos novos tratamentos. O mestre em questão não é mais sustentado pela experiência dos clínicos, o mestre contemporâneo que é dotado da suposição de saber passa a ser o protocolo de avaliação, que pode ser encontrado rapidamente nos mecanismos de busca da internet. A ausência do corpo do médico modifica a transferência nos tratamentos que se efetivam.

Leguil (2011, p.40) constata que foi alcançado o ideal do DSM foi alcançado ao conseguir substituir a experiência acumulada dos clínicos e psiquiatras pelos protocolos de avaliação clínica. A sagacidade e a intuição dos clínicos não são mais levadas em conta na prática orientada pelos protocolos. É o sonho de fazer uma clínica sem transferência, em que também não há responsabilização do médico, tudo é confiado às mãos do Outro. Esse Outro é o Outro da avaliação, que pretende ocupar o lugar do saber universitário todo, pretensão que frequentemente utiliza a estratégia da intimidação (MILLER; MILNER, 2006, p. 17). Se, de um lado, os protocolos de tratamento colocam o médico ausente da relação terapêutica com o paciente, a posição que o médico passa a ocupar diante desse Outro todo é a de um “empregado da empresa universal da produtividade” (LACAN, 2001, p.14)

Ainda se pode apontar outras consequências para a clínica, à medida que a MBE (LAURENT, 2010) e a clínica do DSM passaram a orientar os tratamentos médicos. A escolha pela verificação científica das evidências resulta na redução da influência da intuição e da sagacidade do clínico na condução dos tratamentos. Outra consequência é a preferência por abordagens e tratamentos mais simples, em detrimento dos tratamentos mais complexos e que podem abranger muitos outros aspectos, como os elementos sociais, psíquicos e subjetivos, que não podem ser mensurados. Verifica-se, ainda, que a adesão aos protocolos limita as escolhas e as adaptações que podem ser feitas pelo clínico. Essas escolhas e adaptações são feitas mesmo que sua eficácia não possa ser sustentada pelas melhores evidências científicas e se sustentam na experiência. Finalmente, é importante ressaltar que os protocolos de avaliação levam também à produção de uma burocracia que é dedicada a sua manutenção e difusão.

Tendo circunscrito os elementos que marcam o trabalho do clínico na medicina contemporânea, passo a considerar qual poderia ser a contribuição possível da psicanálise nesse debate.

Incialmente é necessário distinguir o que é próprio da posição do médico e do analista. Podemos diferenciar o sintoma para o médico e para o psicanalista. Seja na estruturação de um sintoma endereçado à análise, na construção de uma fantasia, ou ao permitir que o paciente se movimente de acordo com as vicissitudes próprias do inconsciente, o analista coloca o sujeito em primeiro plano. Já a medicina é a prática que busca o alívio ou a desaparição dos sintomas e, para isso, lança mão dos recursos disponíveis pela ciência, em especial, da medicação, o que é a principal arma terapêutica do médico e do psiquiatra.

Um exemplo a considerar é a angústia. Laurent (2005, p. 29) aponta que, se a medicina se caracteriza pela eliminação dos sintomas, a questão de desangustiar ou não é própria da psicanálise. A psicanálise não defende a desculpabilização do sujeito por causas humanitárias, como é próprio da medicina. Laurent (2005, p.30) ainda exemplifica algumas possibilidades no tratamento analítico da angústia, seja com o sujeito angustiado com a presença do sintoma, ou com a angústia fixada pela fantasia, ou, ainda, com a angústia que não pode ser circunscrita nem pelo sintoma nem na construção da fantasia. Ao comentar o tratamento analítico de um sujeito psicótico, Laurent (2005, p.39) afirma que o analista pode ocupar um lugar que favorecerá a estabilização do sujeito psicótico, na medida em que o analista “se encontra no lugar de um parceiro-sintoma”. Esse lugar a ser ocupado é orientado a partir da transferência dirigida ao analista no tratamento.

Ao considerar o trabalho realizado pela medicina com o olhar da psicanálise, Lacan (1966/2001, p.10) faz uma advertência aos médicos, em relação à demanda de cura. Quando um paciente procura o médico, ele “não espera pura e simplesmente a cura”, na verdade, “ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente”, o que pode implicar que o paciente está “preso à ideia de conservar sua condição de doente” (LACAN, 1966/2001, p.10).

Em relação ao corpo, as tecnologias científicas de diagnóstico e tratamento se esforçam para apagar o que Lacan chamou de falha epistemo-somática, em que o saber sobre o corpo encontra limites que o próprio corpo lhe impõe. A parafernália tecnológica fotografa, mede, cifra o corpo de cada doente, o que, no entanto, não permite escutar os murmúrios do sujeito no atendimento. Ainda em relação ao corpo, sede da queixa do sujeito, o que existe, de verdade, sobre o gozo pode ser apresentado àquele que escuta: “o corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo” (LACAN, 1966/2001, p.11).

São essas as duas balizas que o médico dispõe para sustentar sua posição, em primeiro lugar, a demanda do doente, em segundo lugar, o gozo do corpo.

Para Lacan, a posição possível para o médico consiste em encontrar uma resposta a esse desafio do paciente na demanda. Em uma intervenção em um congresso de psiquiatria, Lacan (1972) aponta que, se o médico se dispõe a escutar o paciente, ele pode “realmente ter tudo que quer, os atos falhos, os balbucios, as fraquezas incríveis, as confissões que são raramente recolhidas”. Esse trabalho de escuta se sustenta no “interior dessa relação firme” entre o médico e a demanda do doente (LACAN, 1966/2001, p.14). Essa trilha permite ao médico conduzir o paciente a voltar-se para o lado oposto das ideias que emite ao fazer a demanda. Nesse novo caminho o sujeito produz na fala os significantes que revelam o que se esconde por trás da demanda. Nesse campo, trata-se da relação do sujeito com o gozo do corpo. Está aí a possibilidade de produzir aquilo que, para Lacan, é a forma do médico manter a originalidade de sua prática.

Seria possível dizer que uma clínica que se orienta pela subjetividade, que pode se ater ao modo de resposta à demanda e ao gozo do corpo, pode encontrar saídas opostas aquelas propostas pela MBE e pelo DSM. Para Laurent (2010, p. 263) essas saídas incluem a possibilidade de considerar a subjetividade, ao aceitar que os casos podem necessitar de intervenções mais complexas que a medicação, ao integrar a sagacidade e a intuição clínica, ao rejeitar os protocolos e os tratamentos que não admitem as adaptações individuais, ao valorizar os ditos e valores dos doentes, ao fazer disso material de seu trabalho e ao recusar a uniformização proposta pela burocracia institucional.

 


 

Referências
GUYATT, G. et al. “Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine”, JAMA, Chicago, n.268, 1992, p.2.420-2.425, 1992.
LACAN, J. (1972). “Intervenção sobre a exposição de P. Lemoine: sobre o desejo do médico”, Congresso da Escola Freudiana de Paris, Lettres de l’École freudienne de Paris, Paris, n° 9, p. 68-78, 1972.
LACAN, J. (1966). “O lugar da psicanálise na medicina”, Opção Lacaniana, São Paulo, Eólia, n.32, 2001, p. 8-14, 2001.
LAURENT, É. “Desangustiar?”, Curinga, Belo Horizonte, n.21, 2005, p.29-39, 2005.
LAURENT, É. “Los efectos perversos del EBM y los remédios que le aporta el psicoanálisis”. In: El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches, 2010, p. 262-264.
LEGUIL, F. “As demandas contemporâneas feitas à psicanálise II”, Curinga, Belo Horizonte, n.33, 2011, p.35-48, 2011.
MILLER, J-A.; MILNER, J-C. Você quer mesmo ser avaliado? São Paulo: Manole, 2006.

Guilherme Ribeiro
Médico e analista praticante, membro correspondente da EBP-MG. E-mail: guilhermecribeiro@gmail.com



Reflexões Sobre A Psicose Ordinária

THIAGO FERREIRA DE BORGES

O texto de Jacques-Alain Miller, “Efeito de retorno à psicose ordinária”, fruto de um seminário de língua inglesa em Paris, é extremamente importante para a clínica contemporânea, quando pensamos que a noção de psicose ordinária não só tem sido bastante discutida, como também utilizada (ao que parece, cada vez mais) no cotidiano de trabalho dos psicanalistas.

A importância que aqui é destacada reside na sua proposta principal, que é a de apresentar uma síntese dos indícios que ajudariam os psicanalistas a diagnosticar um quadro de psicose ordinária. Antes, porém, após um breve comentário sobre o “espírito estadunidense”, Miller fala sobre a origem da expressão e o seu caráter mais livre, aberto, então: “a psicose ordinária não tem uma definição rígida. Todo mundo é bem-vindo para dar sua opinião e sua definição da psicose ordinária” (MILLER, 2010, p.3).

Evidentemente, uma das funções dos seminários e discussões é justamente pôr à prova o valor das posições frente à expressão, com o intuito de auxiliar na lida com os fenômenos da clínica. Ele diz que não é um conceito, mas se sabe que, em parte, funciona como tal. Não no sentido tradicional da palavra conceito — aquele que visa a capturar o objeto ou fenômeno em sua totalidade — mas no sentido que limita o gozo (prevenindo contra o risco de que qualquer coisa caberia dentro da definição). A começar pelo fato mesmo de que é, antes de tudo, uma psicose. A novidade está na palavra “ordinária”. O adjetivo significa que, antes, toda e qualquer psicose era extraordinária, e isso era claramente uma referência ao que era ordinário desde a época de Freud, a saber, as neuroses. Era uma referência para a psicose a partir daquilo que a psicose não era, ou não é. Em Freud, foi assim, e, em Lacan, também, não como uma imitação, mas como um saber compartilhado. Isso é efetivamente dialético e prevalece também para as psicoses ordinárias, visto que são, em primeira e última instância, psicoses. Graciela Brodsky (2011) ao questionar a terminologia “pré-psicose”, em seu livro, Loucuras discretas: um seminário sobre as chamadas psicoses ordinárias, acentua, já no início, que, também para a psicose ordinária, ainda se faz referência ao fundamento de uma estrutura clássica,

[…] mas não chamamos de psicose unicamente os fenômenos que se produzem na psicose, mas uma estrutura que está desde o início […]. Ao passo que nosso ponto de vista é que a psicose, com ou sem desencadeamento, está lá desde sempre (BRODSKY, 2011, p.33). (Grifo nosso).

O termo “ordinário” sugere, ainda, jogando com o título do livro de Graciela, que, se, no passado, uma loucura não podia ser discreta, ou se era preciso um franco desencadeamento para haver o diagnóstico de psicose, hoje, entretanto, somos obrigados a lembrar que sempre se tratou de uma estrutura. Talvez os psicanalistas, apesar do conhecimento teórico da estrutura, não tivessem como diagnosticá-la, se não a partir de fenômenos claros e precisos. Isso, ao que parece, também é uma herança da clínica das neuroses. A questão é que, de maneira geral, o diagnóstico a posteriori, a partir dos fenômenos nas neuroses, causa muito menos incômodo e preocupação aos analistas do que no caso das psicoses. Talvez esse fato tenha ressonância na discussão atual sobre a crítica à ideia de déficit das psicoses em relação às neuroses a partir da clínica lacaniana dos nós. Voltar-se-á a esse ponto no final deste texto. Por ora, trilham-se os caminhos do texto de Miller.

Uma Orientação Para Um Diagnóstico

A ideia de Miller do “Tertiun non datur” (terceiro excluído), para as psicoses ordinárias, está presente na relação clássica binária Neurose/Psicose, não como um Borderline, mas como algo que se inscreve na estrutura da psicose.

Reforçando aquilo que se entende como dialético, Miller passa a discorrer sobre os indícios de uma psicose ordinária a partir não das suas próprias marcas, mas, precisamente, a partir daquilo que a psicose não é, ou seja, a partir da neurose. Acredita-se que os pontos que Miller sintetiza, para o reconhecimento de uma psicose, são provenientes da ausência de traços fundamentais da neurose. Nesse sentido, as psicoses (aqui, as ordinárias) se fazem presentes, a partir de uma negatividade no registro das neuroses. Antes de Miller detalhar os elementos de uma “loucura ordinária”, ele faz referência às psicoses, como Lacan formulara nos Escritos e no Seminário 3: a ausência da “chancela” neurótica chamada Nome-do-Pai (NP). Além disso, uma referência à ideia de desordem, como em Lacan, o que Miller rememora como presente no início da vida. Há certo parentesco entre o inicio da vida tomado pelo imaginário e que é posteriormente reorganizado pela ordem simbólica e aquilo que ocorre nas loucuras. Mas isso é o que diz o “Lacan clássico”, como lembra Miller, pois, em seguida, ele afirma, sobre o último Lacan, aquele em que o NP passa de próprio para predicado, o que quer dizer que pode ser qualquer coisa que sirva para orientar o sujeito no mundo. Essa “qualquer coisa” atinge o limite onde o sujeito não mais se sustenta. Nessa gradação que não admite números, a psicose ordinária se situa no terreno em que se opera como uma precariedade do NP, ou como algo que funciona, como se fosse… “mas, talvez, o que chamamos de psicose ordinária seja uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento“ (MILLER, 2010, p.12).

Como ressalta Graciela, talvez nunca se desencadeie, o que sugere uma amarração que, mesmo precária (sob certos aspectos neuróticos, é claro!), de alguma maneira, funciona. O NP deixa de ser a chancela das neuroses, sua exclusividade.

Assim, antes de Miller apresentar, de forma tripartite, aquilo que ele recupera dos Escritos como sendo “uma desordem provocada na junção mais intima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN apud MILLER, 2010, p.13), coloca quase como um princípio uma “dica de sabedoria”, ou seja, que, sem um saber sólido sobre a neurose, não se faz um diagnóstico de psicose.

Quando é neurose vocês devem saber! […] A neurose é uma estrutura muito precisa. Se vocês não reconhecem a estrutura muito precisa da neurose no paciente, podem apostar ou devem tentar apostar que se trata de uma psicose dissimulada, de uma psicose velada (MILLER, 2010, p.6).

Mais adiante ele reitera:

Uma neurose é algo estável, uma formação estável. Quando vocês não constatam — esta também é uma questão percebida pelo clínico — que há elementos bem definidos, bem recortados da neurose, a repetição constante e regular do mesmo, e quando não há nítidos fenômenos de psicose extraordinária, tentam dizer então que é uma psicose, embora ela não seja manifesta, mas ao contrário dissimulada (MILLER, 2010, p.13-14).

Parece clara, então, a importância da neurose enquanto estrutura para o diagnóstico das psicoses. Algo que certamente se relaciona, ao menos em parte, com o lugar social que as neuroses ocuparam até hoje na história da psicanálise. De uma forma ou de outra, elas ainda representam o “lugar comum”, ou a “normalidade”.

Isso ajuda a entender as três externalidades escolhidas por Miller como indícios da psicose ordinária. A clínica é delicada e sutil porque se devem procurar os pequenos sinais, como assinala Miller. A externalidade deve ser tripla — social, corporal e subjetiva — pois se corre o risco, se não o for, de se confundir com uma neurose grave. A assinatura da neurose, como disse Miller, não existe quando da identificação das três dimensões de externalidade. “Os indícios devem ser situados nos três registros” (MILLER, 2010, p.14).

Algumas Observações Sobre A Descrição Das Três Externalidades

Social

Muito claros e práticos, não convém reproduzir aqui os pontos apresentados por Miller, porém é interessante observar uma questão. O autor também destaca, para além da clara “relação negativa” com o social, os casos de relações “positivas”, demasiadamente rígidas. Em outras palavras, ele adverte para as identificações hipostasiadas, para os investimentos profissionais desenfreados e desmedidos.

Vocês podem ver então — e isso ocorre constantemente — psicóticos ordinários cuja perda do trabalho desencadeia sua psicose, porque, muito frequentemente, seu trabalho significava bem mais do que um trabalho ou uma maneira de viver. Ter esse trabalho era seu Nome-do-Pai (MILLER, 2010, p.16).

Tem-se, efetivamente, hoje, uma indicação explícita ao sujeito, para que este se agarre fortemente a uma identidade profissional, que ele faça disso seu ser, algo que não parece ser sem consequências para a questão do diagnóstico bem como do desencadeamento nas psicoses. Dito de outro modo, existem pequenos traços de loucura em quase toda a propaganda de escolha de profissão e carreira. Aqueles indivíduos que se encontram fortemente presos a uma profissão, centralizando suas vidas numa dada carreira, podem, em alguns casos, ter, nessa relação com a profissão, uma amarração que estabiliza a função paterna fragilizada nos quadros de psicose ordinária.

Corporal

A externalidade corporal como índice possível para a psicose reside, segundo Miller, na dificuldade comprometedora do sujeito de lidar com seu corpo. De acordo com o que foi apresentado pelo autor, pode-se falar em três características na relação como o corpo: (i) do excesso; (ii) da repetição ou atualização; (iii) da identificação petrificada.

Os três aspectos dizem respeito aos modos como o sujeito se vê levado a amarrar seu corpo — os grampos contemporâneos, segundo Miller, as tatuagens, os piercings, etc. Assim, um excesso pode significar um volume gigantesco de perfurações e desenhos pelo corpo; uma repetição ou atualização se deduziriam do fato de que sempre se está inclinado a repetir o procedimento, a trocar as joias, redesenhar ou fazer uma nova tatuagem; a identificação petrificada coloca tais ações no nível da necessidade, como um acting out de apaziguamento.

Interessante, porém, é que isso leva a refletir, com mais vagar, sobre uma externalidade corporal, quando se considera a ideia de que ter um corpo é algo relativamente normal para a psicanálise. É que, se o sentimento de externalidade é um índice possível para a psicose, por outro lado, a ideia de uma “normalidade” do “ter um corpo” pressupõe, de alguma maneira, alguma externalidade do sujeito em relação ao seu corpo, ou, ainda, é preciso algum distanciamento para que se possa dizer que se possui ou não alguma coisa.

Imediatamente se recorda que, então, se deve associar a externalidade mais com um “não ter” ou “perder”, do que, essencialmente, com algo que o sujeito não é, e, portanto, só pode possuir. Por isso a importância da compreensão da noção de amarração, de se “fazer um corpo”. Faz-se algo que não existe ou que deixou de existir, ou, ainda, que possua uma existência tão instável que necessita, a todo o momento, de novos cuidados e atualizações. É possível, então, que, nas psicoses, a prevalência da dimensão do ser um corpo, em detrimento do ter, provoque situações muito mais instáveis em termos subjetivos no que se refere às experiências corporais, se se fizer uma comparação com as neuroses.

Do ponto de vista de uma história dos conceitos que, de alguma forma, incide objetivamente também sobre a clínica da psicanálise, atenta-se sempre para o movimento de ser e ter um corpo.[2] Na poesia de Homero, antes da grande Filosofia, antes de Platão mais especificamente, não se encontrava uma palavra que definisse, para o indivíduo vivo, sua unidade corpórea, ou seja, os heróis homéricos referiam-se ao seu corpo de forma fragmentada. A palavra soma só era usada para a unidade corporal quando o indivíduo morria e sua psyche (alma) se esvaía do soma (cadáver), como um fantasma errante e irracional. É mesmo só a partir de Platão que a alma ganha efetivamente um estatuto racional (ou ao menos parte dela), ao mesmo tempo em que a palavra soma passa a ser usada também para o indivíduo em vida, representado, agora sim, seu corpo enquanto unidade.[3]

Dessa maneira, pode-se suspeitar de que, em algum momento da proto-história da cultura ocidental, o homem experimentou “coletivamente” sua existência como sendo um corpo, mas sem a unidade conceitual bem definida para tal. Atualmente, a ideia ou sentimento de que se é um corpo marca, incessantemente, cada momento de nossa existência, ao mesmo tempo em que não se pode abrir mão da ideia de que se possui um corpo. De fato, a cisão do indivíduo em corpo e alma exige pronomes possessivos. Se um indivíduo fosse plenamente identificado ontologicamente com o corpo, dispensaria, no plano da fala, o significante corpo, pois, toda vez que tentasse utilizá-lo, seria levado, cedo ou tarde, ao emprego de pronomes possessivos. Por outro lado, uma abstração radical, um congelamento do “ter” implicaria a impossibilidade do indivíduo de dialetizar sua relação com seu corpo e o dos outros, o que, no limite, pode contribuir negativamente para a avaliação das consequências sociais objetivas das ações sobre as pessoas. Eis o paradoxo a respeito do ser e do ter.

Subjetiva

Resume-se, como se sabe, na ideia de vazio. É, talvez, o índice mais difícil de perceber e diferenciar em relação às neuroses. O próprio Miller adverte sobre a sua ocorrência nas neuroses e tenta deixar claro aquilo de que se trata com exemplos de fragmentos de casos. A orientação parece se sustentar em dois pontos. Segundo Miller, “busca-se um índice do vazio e do vago de natureza não dialética” (MILLER, 2010, p.18). (Grifo nosso). Nesse caso, há uma fixidez especial desse índice. Além disso, mas com o apoio ainda na noção de fixidez, “[…] devem também procurar a fixidez da identificação com o objeto a como dejeto. A identificação não é simbólica, mas real, porque ultrapassa a metáfora” (MILLER, 2010, p.18).

O que significa, então, “natureza não dialética”? Nesse caso, parece ser algo já conhecido dos psicanalistas a respeito dos diagnósticos de psicose, e que também se encontra nos índices anteriores — social e corporal: trata-se do enrijecimento de uma certeza; certeza essa que não vacila para o sujeito. O real se apresenta como uma realidade que, para o sujeito psicótico, não possui, no seu cerne, uma contradição que possa fazer afrouxar a identidade. O vazio seria uma experiência que não pode ser relativizada, colocar sua verdade em questão é algo quase impossível para o psicótico. Se isso ainda acompanha a localização como dejeto, tem-se a incidência no corpo da questão subjetiva, pois “o sujeito vai na direção de realizar o dejeto sobre sua pessoa” (MILLER, 2010, p.18).

Uma Questão: Da Falta A Ser

A noção da pluralização do NP parece revigorar a defesa da singularidade do sujeito que a orientação lacaniana preserva como pressuposto de sua clínica, ou, ainda, de uma clínica possível. Isso se refere à dimensão ética e política da psicanálise enquanto prática social, que se apresenta, portanto, diferente e potencialmente crítica das tendências científicas de desaparecimento da clínica, representadas especialmente pelo DSM e suas atualizações.[4]

Sobre a clínica “em si”, a pluralização é, como se sabe, resultado do último ensino de Lacan e seus nós borromeanos. Ele questiona a noção de falta, ou seja, de déficit para as psicoses em comparação com a estrutura neurótica.

Se, no entanto, para a clínica, parece fazer sentido relativizar a noção de falta, apostando-se na diversidade de amarrações possíveis que cada sujeito pode inventar, não é possível esquecer que, a todo tempo, depara-se com a tarefa de avaliar as condições que cada analisando possui efetivamente para viver seu cotidiano social. Não se pode negar que, na clínica, seja ela das psicoses ou das neuroses, não se pode, de forma alguma, escapar ao horizonte do psicanalista, a preocupação com a “preservação social” do analisante. Isso se mostra, mais precisamente, no trabalho em direção à construção de um “saber fazer” que seja melhor ou menos deletério ao sujeito, o que, obviamente, é sempre considerado na relação do sujeito com a sociedade em que vive. Nenhum psicanalista é indiferente às consequências de uma toxicomania que consome todas as reservas de uma família ou que retira qualquer possibilidade do sujeito de reinserir-se socialmente. Preocupação com um saber fazer com o gozo que invade, com o desejo, não é, por parte de um bom analista, sem uma mirada para o social.v Isso implica que se sabe reconhecer, a partir da clínica, que existem diferenças, de maneira geral, e ainda substanciais, entre as possibilidades de realizações objetivas, no caso dos neuróticos, comparando-se com os psicóticos. Mesmo que haja psicóticos desempenhando atividades socialmente complexas, como um alto cargo executivo ou coisa parecida, isso não parece comprometer a percepção de que, em linhas gerais, os psicóticos tendem a ter mais dificuldades para ocupar posições e desempenhar determinadas tarefas.

A singularidade da resposta que cada um pode construir no encontro com um Pai, que está no nível da apropriação teórica no contexto do cotidiano da clínica, deve conviver com a teoria das estruturas, bem como com a própria ideia de relativização dos NP, como uma resposta teórica proveniente da particularidade de cada caso, ao se manifestar como indicativo (teórico), alcança, então, o nível do universal (mesmo nível das estruturas). Essa relação entre os escritos da primeira clínica e os últimos escritos de Lacan, com a realidade de cada caso, pode-se chamar, numa linguagem filosófica, de dialética entre o universal e o particular.

A abertura maior, no campo das psicoses, com o significante “psicose ordinária”, exigiu e exige, basicamente, duas indicações para se compreender a clínica hoje. Primeiro, que a neurose, como aquilo que não é a psicose, persiste enquanto estrutura bem definida, agora ainda mais, pelo alargamento do campo das psicoses. Não há dúvidas quanto a isso no texto de Miller. Mas, nas psicoses, a definição inicial lacaniana, tendo a ausência do NP, ou seja, as psicoses definidas principalmente pela ausência de algo da estrutura das neuroses, foi revista. Essa revisão é a pluralização do NP, ou ainda sua inexistência, sua adjetivação como semblante.

Essa generalização da psicose significa que não existe, na verdade, o Nome-do-Pai. Ele não existe. O Nome-do-Pai é um predicado, sempre é um predicado. Sempre é um elemento específico entre outros que, para um determinado sujeito, funciona como Nome-do-Pai (MILLER, 2010, p.20).

Miller insiste na diferenciação justamente porque ela, hoje, é mais difícil, sutil. A democratização do NP não implicou uma relativização das estruturas, elas não estão no mesmo nível. A questão é a seguinte: na neurose, o NP, isso que, na verdade, não existe, tem “cadeira cativa”, enquanto que, nas psicoses, nem sempre é assim, ele pode ter um funcionamento precário também, muito embora, em alguns casos de paranoia, “o make believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido” (MILLER, 2010, p.23)

Tudo isso para concluir dizendo que a questão da falta e/ou do furo talvez seja mais complexa do que se possa imaginar, ou fazer, no sentido de substituir um significante por outro. Apesar da pluralização do NP e da noção de “furo”, acredita-se que a noção de falta ainda está, de alguma forma, presente, e talvez seja mesmo importante para a orientação lacaniana, partindo do pressuposto de que ela não incide eticamente da mesma forma que em outros campos de saber. “O Nome-do-Pai está ali (na coluna da esquerda) enquanto aqui (na coluna do meio), ele não está. Na psicose ordinária, não há o Nome-do-Pai, mas há alguma coisa, um aparelho suplementar” (MILLER, 2010, p.22). (Grifo nosso). Se há furo no real, ele não exclui a noção de falta, mais do que obriga a reordená-la, na medida em que, diante desse real, uns se viram “melhor” que os outros, não somente no nível da preservação de uma vida possível, mas certamente em níveis em que a sociedade demanda respostas mais complexas de cada sujeito; respostas fundamentais para a continuidade da vida humana, a começar por aquele nível mesmo, de qualquer vida possível.

Permanecem, então, perguntas como: é possível abandonar a noção teórica de falta, considerando apenas a posição de que o sujeito psicótico, salvo no caso de uma catatonia completa, “se vira no mundo”, ao seu modo, mas se vira; sendo que os próprios indícios sugeridos por Miller para o diagnóstico de psicose e, também, os relatos, em vários casos clínicos, mostram uma dificuldade especial, singular, do sujeito psicótico em levar sua vida social adiante, se comparado com boa parte dos neuróticos? Pode-se, nessa comparação, abrir mesmo mão da ideia de falta? Uma crítica pré-dialética da noção de falta no interior da psicanálise poderia levá-la a um “autismo prejudicial” aos potenciais de diálogo entre a psicanálise e a sociedade, justamente pelo fato de que, dessa maneira, a clínica acabaria por corroborar um discurso hegemônico sobre o social, refratário às contradições, à alteridade, à singularidade, etc.? Em que medida, por fim, o questionamento da ideia de falta conserva algum tipo de receio com relação a uma avaliação social que indique um possível conservadorismo na psicanálise, quando se poderia supor justamente o contrário, ou seja, que considerar a falta de algo como um problema a priori, isso sim representaria algo da ordem do conservadorismo intelectual e ético? Ainda, será que existe, nessas questões, uma confusão anterior sobre o que deve ser debatido no nível teórico das estruturas e o que deve ser debatido no nível da prática clínica?

 

(1) Este texto, com algumas modificações, foi escrito originalmente como trabalho final para o curso de Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG.
(2) Sobre esse assunto, pode-se ouvir Sérgio de Campos em entrevista ao boletim Sinapsy, n.4, da XVIII Jornada da EBP-MG.
(3) Sobre essa questão, consultar minha dissertação de mestrado. BORGES, T. F. de. Interesse pelo corpo na Dialética do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. 2010. 198f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
(4) Recomenda-se o artigo de Sérgio Laia na coletânea De que real se trata na clínica psicanalítica?. (LAIA, S. A. C. de. “Coisas mensuráveis e ‘coisas de fineza’: a classificação dos transtornos mentais pelo DSM-V e a orientação lacaniana”. In: SANTOS, T. C dos; SANTIAGO, J.; MARTELLO, A. (Orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica?: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012. p.295-318).
(5) O que não quer dizer uma adaptação ao Outro social.

 


Referências
ADORNO, T. W. Dialética negativa. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BORGES, T. F. de. Interesse pelo corpo na Dialética do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. 2010. 198f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
BRODSKY, G. Loucuras discretas: um seminário sobre as chamadas psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Scriptum, 2011.
GAULT, J. L. et al. “O homem dos cem mil cabelos”. In: MILLER, Jacques, Alain. A psicose ordinária. Sérgio Laia (Org.) Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2012. p.129-133.
LACAN, J. (1955-1956) O Seminário, livro3: as psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20: o sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LAIA, S. A. C. de. “Coisas mensuráveis e ‘coisas de fineza’: a classificação dos transtornos mentais pelo DSM-V e a orientação lacaniana”. In: SANTOS, T. C. dos; SANTIAGO, J.; MARTELLO A. (Orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica?: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012. p.295-318.
MILLER, J.-A. “Efeito de retorno à psicose ordinária”, Opção Lacaniana on-line, Nova Série, ano 1, n.3, nov. 2010.
MILLER, J.-A. “A psicanálise, seu lugar entre as ciências”. In: SANTOS, T. C. dos; SANTIAGO, J.; MARTELLO A. (Orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica?: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012. p.13-34.

Thiago Ferreira De Borges
Doutorando em Filosofia pela UFMG, professor do Centro Universitário de Sete Lagoas – Unifemm. Email: tfborges@hotmail.com