A Adolescência Prolongada, Ontem, Hoje E Amanhã

PHILIPPE LA SAGNA

 

FOTO: ATIVIDADE DE CHRISTINA FORNACIARI, “SE EU FOSSE FRANCIS BACON”. JOVENS DO PROGRAMA CAPUT.

No século XX, nossa percepção da vida e da vida sexual em particular mudou muito em relação àquela do século passado. Ela foi modificada em diferentes planos, e, primeiramente, no plano do real. Segundo alguns autores, em particular Paul Yonnet (2006), antropólogo, de quem vou retomar algumas teses, há uma incidência real da ciência sobre a sexualidade humana, principalmente sobre a procriação e, portanto, sobre a duração e a repartição das idades da vida. Yonnet estudou a incidência de nossa nova relação com a morte, por causa do progresso da ciência sobre a vida da família. A quantidade de vida de que dispomos nunca foi tão grande: nosso tempo de existência quase dobrou em menos de um século.

Adolescência E Idade Da Vida

É notável que esse prolongamento da vida não seja homogêneo. Assim, a idade da tenra infância e da infância parece se reduzir, se condensar cada vez mais. A idade da maturidade é, ao contrário, cada vez mais restrita. Isso significa que passamos cada vez menos tempo sendo “maduros”. A adolescência e a terceira idade não param de aumentar até se tornarem idades hegemônicas. A saída da adolescência e a entrada na idade adulta estão ligadas às convenções e parecem ser cada vez mais retardadas; é o que prolonga desmesuradamente o tempo da adolescência. Por outro lado, os homens entram na terceira idade ou se aposentam cada vez mais cedo. Atualmente, aqueles que são considerados jovens adolescentes se situam entre quatorze e vinte e cinco anos. Consideramos geralmente que uma saída da adolescência é também uma entrada na vida ativa. O fato de que os jovens ficam mais tempo na casa de seus pais está ligado a diferentes fatores, muito estudados pelos sociólogos e pelos jornalistas:

– o prolongamento dos estudos;

– a impossibilidade real de encontrar condições de estabelecimento, isto é, uma moradia e um trabalho;

– a terceira razão, mais interessante para nós, é a dita ausência de ruptura de valores entre as gerações. Os jovens não estão mais em ruptura com as ideologias e os modos de vida atribuídos aos de seus pais. Desde 1968 há uma continuidade sem ruptura de valores entre crianças e pais.

Para Yonnet, uma das razões da “sociedade dos indivíduos” é que, a partir do momento em que a duração da vida aumenta, é a vida individual que se torna um valor. Ao contrário, quando a duração da vida é curta, o valor é a família, ou seja, aquilo que, para o indivíduo, persiste depois de sua morte. Durante muito tempo, em particular na época do Iluminismo e da Revolução, quisemos nos opor ao poder das famílias. O poder das famílias sobre o indivíduo era então efetivo. Hoje, é a família que se coloca a serviço do indivíduo.

Por outro lado, o tempo de formação do indivíduo está cada vez mais prolongado. A formação nunca é suficientemente perfeita e o trabalho é raro: passamos, portanto, a vida nos preparando. Essa preparação passa por um treinamento que supõe a ação. A ação, para a psicanálise, se diferencia do ato. Os adolescentes são muito ativos, mas, por outro lado, não fazem nada no sentido do ato concebido como uma ação que tem consequências. Treinar, praticar esportes, é frequentemente uma ação sem consequências. A oposição ação/ato é um dos critérios que permitiria distinguir a adolescência da maturidade. Censuramos aqueles que estão na adolescência por fazerem demasiadas ações, isto é, por se mexerem demais. Quando não sabemos que ato fazer, é normal tentarmos todas as ações possíveis.

O herói adolescente é autoengendrado: não é alguém que dependa dos outros, como percebeu Yonnet. É alguém que utiliza seus pais e seu entorno para engendrar a si mesmo. O sujeito moderno é, portanto, um autoengendrado. Isso é importante porque o autoengendrado é sempre também um autodestruído. O avesso do autoengendramento é a autodestruição. Isso esclarece certas tendências suicidas. Pressionamos cada vez mais o adolescente a se autoengendrar, isto é, a se formar de maneira autônoma e assim, sem saber, ele é pressionado a se autodestruir.

Atualmente, cultivamos um inacabamento de nós mesmos, de nossa formação, de nossa identidade, de nosso desejo, até mesmo da realidade. Esse inacabamento cultivado caminha junto com um certo desespero: se isso nunca acaba, é porque é interminável. Será sempre melhor amanhã, e o sujeito permanece suspenso a um futuro líquido no sentido de Zigmunt Bauman (2004). O inacabamento da “Bildung” do ego em formação produz também um ego vago in progress…

A Novidade Da Idade Da Escolha?

Atualmente, não nos engajamos porque não sabemos muito bem em que nos engajar. Podemos dizer que hoje nada mais é “para sempre”. Antigamente, o “sempre” ou o “para sempre” ocorria rapidamente. Muito frequentemente, entre dezesseis e dezoito anos, o sujeito sabia com quem ele ficaria “para sempre” no amor e qual ofício ele teria “para sempre”. Hoje, supomos que o sujeito tenha várias vidas, vários ofícios e até mesmo várias famílias, famílias recompostas. Então, o problema é que o sujeito passa a vida escolhendo e não vivendo. A possibilidade de escolha é preservada mais do que tudo. E, essa maneira de preservar em tudo a escolha, de estar diante de várias hipóteses sem escolher nenhuma delas e de experimentar um pouco todas, é exatamente a posição subjetiva do adolescente.

A adolescência não está simplesmente prolongada no tempo, ela é, além disso, valorizada socialmente como prolongamento generalizado e adolescência generalizada. A sociedade propõe que sejamos eternos adolescentes, sempre prontos para qualquer coisa que vai vir e que não vem, sempre treinando para esse algo que vai vir. Freud e todos os pós-freudianos pensavam que o laço social tinha efeitos sobre a psicanálise e a psicanálise sobre o laço social. Ou seja, que aquilo que nós tratamos não era unicamente efeitos de sujeito, mas também efeitos de discurso.

A Adolescência Com Freud

No século XX, Freud pensava que seria necessária uma ação exterior, uma ação social, para separar a criança de sua família. Mesmo a famosa inibição, a barreira contra o incesto que podia reinar no seio da família, era comandada pela sociedade. Para Freud, os laços familiares eram muito fortes. Seria preciso, portanto, opor a eles uma outra força, aquela da civilização. Era importante “estabelecer unidades sociais mais elevadas” (FREUD, 1972) do que a família. A sociedade fazia, portanto, uso de todos os meios a fim de que, no adolescente, se afrouxassem os laços familiares que existiam durante a infância. O que mudou, desde Freud, é que a sociedade hoje não faz quase nada para cumprir essa tarefa. De fato, a primeira coisa a fazer seria dar aos jovens os meios para se separar da família. Ora, na maioria das vezes, não é o caso.

Para Freud, a tarefa a ser cumprida no momento da puberdade é uma reconstituição diferente da relação com o objeto. A constituição de uma relação com o objeto novo vai preparar o encontro com um objeto exterior, ou seja, o encontro com um parceiro sexual, o que quer dizer aqui um parceiro/objeto no exterior do corpo próprio. Esse parceiro não pode ser o corpo próprio, o que constituiria uma solução narcísica, e isso não pode ser apenas um encontro na fantasia. Se há adolescências prolongadas, há também síndromes de Peter Pan, sujeitos que permanecem num amor não sensual infantil e eterno, sujeitos que se designam também atualmente como “assexuais”.

Se, para Freud, a tarefa a ser cumprida na adolescência é a “reconstituição” desse objeto sexual novo, há um obstáculo. A corrente sensual pode permanecer fixada numa satisfação autoerótica, numa satisfação masturbatória na qual o sujeito se satisfaz com o corpo próprio e com a fantasia. Na adolescência, com efeito, as correntes sensuais se descarregam alimentando-se das fantasias. Freud sublinha que uma produção desenfreada de fantasias é o que caracteriza a adolescência. A fantasia não é, de fato, algo que prepara o encontro com o objeto exterior, mas algo que se opõe a ele pela criação de um desvio.

O que vai estar em jogo é produzir um estatuto novo do objeto que possa permitir ao sujeito encontrar um objeto no exterior, um objeto que não seja o objeto edipiano do passado. Os psicanalistas observaram muito cedo que a série dos objetos do passado surgia naquele momento e, em particular, os objetos pré-genitais. Isso não quer dizer que a famosa regressão dos adolescentes os traga de volta ao pré-genital. Isso quer dizer que, para fabricar um objeto novo, que lhes servirá de guia em direção a um objeto exterior, eles vão utilizar em parte os objetos parciais pré-genitais. No caminho da constituição de uma sexualidade dita madura, o adolescente estará sujeito a tempestades de gozo “parcial” totalmente “imaturo”. É por isso que os adolescentes bebem, fumam, vomitam, sujam, gritam exatamente como se fossem bebês! Isso porque eles precisam buscar no passado os materiais para fabricar algo novo. O prolongamento da adolescência leva ao prolongamento dessas manifestações. Por exemplo, a anorexia/bulimia, enquanto epidemia, é algo que vai surgir nesse momento.

A Adolescência Difícil Dos Pós-Freudianos

Um dos grandes debates entre os pós-freudianos da IPA gira em torno da questão de saber se a etapa ou a via do narcisismo é um meio necessário para permitir o encontro com um objeto exterior ou se, ao contrário, é um obstáculo. Para alguns psicanalistas, com Freud, trata-se de um obstáculo. Eles consideram, com razão, que há uma oposição entre o narcisismo e o fato de encontrar um objeto exterior a si, já que o narcisismo é o amor de si mesmo e que o objeto exterior é suposto ser diferente do si. Outros vão pensar que, para atingir o objeto exterior, é preciso um eu suficientemente forte, é preciso reforçar o ego. O narcisismo não é então o obstáculo, mas o meio de obter o objeto exterior. Isso tem consequências:

– seja que a adolescência é sobretudo um trabalho de reforço do ego, de fabricação de um eu que deve ser um eu forte para assegurar a conquista do objeto, ou mesmo suportar seu encontro;

– seja que a adolescência é um tempo no qual não se trata de reforçar o ego, mas o desejo, desejo de ir ao encontro do objeto no exterior libertando-se das fantasias e do autoerotismo.

Há, portanto, dois modos de considerar o tratamento na adolescência: ou a ênfase é dada à identificação, sempre muito frágil, do adolescente, ou a ênfase é dada ao desejo. Atualmente, o discurso contemporâneo consiste antes de tudo em dizer: “Reforce sempre sua identificação”. Ser adulto é ter terminado a “formação” desse ego forte. A partir do momento em que o sujeito é sempre inacabado, ele apresentará forçosamente um distúrbio de identidade. De fato, o eu forte exigido pela sociedade é um eu suscetível de ter uma identidade mutável. Portanto, de fora o sujeito é persuadido a aderir a tal ou tal identidade, o que o desangustia, ao mesmo tempo em que o caráter instável dessa identidade restaura a angústia!

Ou se escolhe a identificação ou se escolhe o valor da des-identificação e do desejo. O valor da des-identificação tem consequências na esfera sexual, já que ela pode colocar em questão a identificação sexual que parecia antigamente uma fonte de identificação forte. Não nos vestíamos da mesma maneira, não vivíamos da mesma maneira, não falávamos da mesma maneira, não frequentávamos os mesmos lugares, caso fôssemos uma moça ou um rapaz. Os encontros se davam de maneira regrada, segundo um cálculo social. Compreendemos que todo o discurso de Freud sobre a necessidade de identificação surge numa época em que a identificação é uma ideia forte na sociedade.

Atualmente, a identificação valorizada é aquela que é líquida (BAUMAN, 2004), muito mais do que fixada: é preciso estar pronto para tudo! Pedimos, por exemplo, às vezes, ao adolescente, que ele se identifique com empatia ao outro sexo. É um efeito recente, que data da Segunda Guerra Mundial. É a partir desse momento, em que vemos rapazes com os cabelos compridos, que as identidades sexuais são perturbadas. Começamos a fazer disso uma doutrina que é a doutrina atual da IPA na esfera sexual: para se ter uma vida sexual realizada, é preciso participar da sexualidade do outro no sentido da identificação, pelo menos mental. Se antes participar da sexualidade do outro significava ter um parceiro do Outro sexo, hoje isso significa se identificar aos desejos, até mesmo ao gozo suposto do outro. Nos pedem para sermos “bissexuais”, o que vemos claramente nas fantasias contemporâneas.

A Descoberta Do Adolescente Prolongado

O termo adolescência prolongada data de 1923. Ele foi inventado por Siegfried Bernfeld (1924), que faz o seu retrato: o adolescente é um adolescente idealista, deprimido. Esse adolescente idealista tem tendência a abrir mão da busca do objeto exterior para se perder, não em fantasias, mas em algo que parece com elas, isto é, em sublimações. Temos aí a primeira aparição de uma tese que fará sucesso: como impedir o adolescente de sublimar?

Vemos a inversão das teses, pois hoje a ideia é de que é preciso absolutamente fazê-lo sublimar! O que Bernfeld diz é que essa sublimação participa de um medo narcísico de perder o falo. Ele observa justamente que isso explica o que ele chama de regressões arcaicas. Todos esses jovens que preparam a revolução passam, de fato, seu tempo em bares, onde eles fumam e bebem.

Bernfeld deixa Berlim em 1932 para ir para a América e sua tese do adolescente idealista é retomada por sua amiga Anna Freud (1958). Esta última descreve, sobretudo, uma adolescente asceta e intelectual que é um retrato psíquico da adolescência da própria Anna Freud, com uma discreta nota homossexual e masoquista. Para a doutrina psicanalítica clássica, a adolescência não era um período determinante no nível dos sintomas. Clinicamente, quando se propõe aos pacientes falar espontaneamente e livremente, observa-se que eles falam de sua infância e raramente de sua adolescência. Isso é verdade se eles são neuróticos. Mas todos os psicanalistas que, depois da guerra trataram psicóticos ou borderlines, observaram que, de modo inverso, eles falavam muito frequentemente de suas adolescências. Anna Freud vai então dizer que a adolescência é talvez mais determinante do que se crê. A determinação do desejo é o Édipo e a infância, e a fabricação do ego é a adolescência. Ela pensa que o essencial na psicanálise é a fabricação do eu, ou seja, a Ego-psychology. A adolescência é então quase tão determinante para ela quanto a infância.

Na metade dos anos sessenta, todo mundo, e também os psicanalistas, se apaixona pela adolescência. É o nascimento dos Teen-agers. É o nascimento da adolescência como entidade definida, como grupo social. Winnicott notava isso: “Os jovens adolescentes são isolados reunidos […] um agregado de isolados” (WINNICOTT, 1969, p. 401). É exatamente o que se constata na sociabilidade moderna.

Winnicott (Ibidem, p. 398–408) retoma a questão da adolescência prolongada: “É preciso precipitar as coisas?”, “É preciso apressar o movimento da adolescência?”. Winnicott diz: “de modo algum”. E esse “de modo algum” passará por um certo número de teses entre as quais esta, célebre, de que não é preciso tentar compreender os adolescentes. Não é preciso compreender os adolescentes, porque eles não querem ser compreendidos (Ibidem, p. 398). Eles ficam furiosos quando vocês os compreendem. A partir do momento em que o seu desejo é um x para você, que você não sabe o que você quer, não há nada mais irritante do que aqueles que sabem em seu lugar. É o que os pais frequentemente fazem. O que Winnicott também diz é que, se intervimos, arriscamos o pior. Arriscamos destruir, estragar um processo natural e arriscamos terminar na doença mental (Ibidem, p. 399). Para ele, o que mais falta ao sujeito adolescente é “se sentir real” (Idibem, p. 405). Poderíamos dizer que o sujeito moderno também não se sente real. Para se sentir real, o adolescente busca criar antagonismos (Idem). Ele provoca o Outro para se sentir real através da resposta que lhe é dada. Winnicott explica assim o acting-out adolescente. Dessa forma, ele define indiretamente o que seria um adulto: um adulto seria alguém que se sente real. Portanto, prolongamos também um sujeito irreal!

Naquela época, Peter Blos publica Os adolescentes (1967), obra na qual ele precisamente estudou “a adolescência prolongada” (1954), que ele chama às vezes de “a adolescência retardada”. Para ele, a conscientização do fim irremediável da infância, das obrigações do engajamento no mundo, da impossibilidade de escapar aos limites da existência individual, essa conscientização faz nascer um sentimento de medo, de opressão e de pânico. Por isso muitos adolescentes preferem permanecer numa fase transitória, a adolescência retardada. Esse é um retrato de um adolescente angustiado que oscila entre angústia e desespero. Ele observa que isso está ligado à impossibilidade de escolher um tipo de vida. Nos anos sessenta, vemos a aparição de um fato social novo: a possibilidade de escolher um tipo de vida. Anteriormente isso não era possível, e, segundo Blos, o risco de ficar angustiado não existia. Alguns lamentam a época em que o sujeito via seu pai cultivar a terra e ficava tranquilo porque, um dia, ele também cultivaria a terra. A ideia de escolher sua vida mudou totalmente a subjetividade contemporânea como o fato moderno de ter sucessivamente várias vidas profissionais e amorosas.

Blos sublinha que, para se tornar um sujeito, o essencial do trabalho é se separar das tendências regressivas, isto é, operar um luto do objeto ao mesmo tempo edipiano e pré-edipiano. O objeto edipiano é, por exemplo, o Outro materno; o objeto pré-edipiano são todos os objetos pré-genitais que alimentam a tendência regressiva como a tendência à intoxicação e a fazer a festa. Não sentir mais uma necessidade imperiosa de festa é considerado como um guia para uma saída da adolescência, enquanto em nossa sociedade contemporânea supõe-se que todo mundo deva fazer a festa até muito tarde! A partir do momento em que a sociedade líquida (BAUMAN, 2004) é valorizada, como essa de hoje, que não tem mais nenhuma fixidez, não sabemos o que acontecerá amanhã. Se o sujeito quer um futuro, ele deve mudar de identidade rapidamente. Nesses casos, onde vai entrar a festa? Ela só pode se alojar numa festa permanente. Não há mais distinção entre a festa e a sociedade. Uma não é o avesso da outra.

A ideia de Blos é que, se escolhemos nossa vida, devemos poder escolher nossa estrutura psíquica, e então uma das angústias da adolescência recai sobre o fato de não saber que estrutura psíquica escolher. Essa perspectiva é singular. Para Lacan, ao contrário, não escolhemos nossa estrutura psíquica. Os psicanalistas da IPA pensavam que a adolescência era o tempo em que se fabricava uma estrutura, e assim tomavam distância de Freud.

Para Blos, o essencial é se separar dos objetos internos para produzir uma individuação. O perigo, segundo ele, é que se essa individuação do sujeito é muito rápida, vai-se produzir um adulto “como se”, um falso adulto. Vai ser necessário, portanto, evitar a pressa na maturação da adolescência. É o fenômeno Tanguy que se anuncia: quanto mais o adolescente fica na casa de seus pais, mais ele se torna um adulto formidável. E Blos considera que tudo o que vai no sentido inverso desse prolongamento é forçosa e necessariamente um acting-out. Por exemplo, a criança que foge de casa, a jovem que engravida, todos esses fenômenos são acting-out, quer dizer, um efeito de pressa e uma recusa da maturação lenta. Ele considera em particular que o luto do objeto não tem por objetivo permitir o acesso ao objeto exterior, mas tem por objetivo reforçar o eu e as identidades. O objeto deve servir à individuação, à constituição de uma identidade forte prévia à separação. Houve alguns protestos em relação às suas teses na IPA, aquele de Erik H. Erikson (1976), por exemplo, que diz que na realidade a adolescência não é tanto um fenômeno psíquico, mas uma moratória social. É um fenômeno que não tem sua origem no sujeito, mas na modificação do laço social na metade do século passado.

Helen Deutsch observa que o essencial da clínica da adolescência não é uma clínica do sintoma, mas frequentemente uma clínica das ações, dos acting-out (DEUTSCH, 1977). Ela acrescenta que é a razão pela qual os pacientes adultos não falam muito frequentemente de sua adolescência. Por que eles não a evocam? Porque os acting-out não deixam traço, eles deixam lembranças, mas não traços determinantes (Idem). O acting-out é uma falsa separação, sempre a ser repetida, operada por meio de um objeto mostrado. Esse objeto, em jogo nesse falso ato, serve de pseudo-separação, no sentido de que ele serve de ponto de ruptura e de diferenciação. A adolescência é, portanto, algo que desencadeia um certo número de acting-outs que são, com efeito, o avesso das separações efetivas. Numerosos jovens passam o tempo estudando e se formando. Helen Deutsch observa que a sociedade contemporânea é uma sociedade do training, da preparação, que exige uma renúncia ao objeto real muito maior do que nos séculos XVIII e XIX. Ao contrário dos acting-outs, os sintomas, nascidos na infância, deixam traços porque eles são uma escrita tendo uma consistência própria.

No final do século XX, qual é a situação a esse respeito na IPA? Richard C. Marohn, em um artigo de 1999, ataca a posição de Blos. Ele critica a ideia de que em algum momento se chegaria a um self acabado. Para ele, o self não se acaba nunca, a transferência também não, a construção de si é infinita. Não se trata de falar de separação e de individuação, mas muito mais, na adolescência, de um “período significativo de transformação do eu” sem fim. Assim, a construção de si pode durar do nascimento até a morte. Os filmes de Woody Allen o presentificam: apesar de estar numa idade avançada, o personagem do filme procede sempre na construção de seu eu. O fato de afastar para o infinito o encontro do objeto serve sempre ao narcisismo.

Lacan E A Solução Do Objeto Separador

O ponto de vista lacaniano exige ser freudiano: não é a identificação que permite o acesso ao objeto, mas é muito mais o encontro com o objeto e sua perda que produzem uma identificação. É o encontro que produz a identidade e não a identidade que permite o encontro. No horizonte do encontro há a questão do ato sexual. Não há ato sexual que permita que um sujeito se assegure que ele é homem ou mulher. Felizmente há o amor, que pode fazer suplência a essa falha de certeza do ato sexual. O amor permite ao sujeito pensar que ele é homem ou mulher, de um modo muitas vezes um pouco delirante, que passa pela imaginação e pelo discurso. A maturação que deve operar a partir do encontro sexual não é de forma alguma aquela do eu ou do narcisismo, mas aquela da relação com o próprio objeto.

O objeto é, de fato, o que vai servir à separação do sujeito e do Outro. Para Freud, não se trata tanto para o adolescente de se separar do objeto, mas de utilizar um objeto “exterior” para se separar do Outro, o objeto a, objeto que deve ser distinguido da exterioridade “realista” do objeto. A utilização desse objeto passa por um certo luto do objeto edípico, como do objeto parcial, ou seja, dos objetos tais como eles existiam anteriormente para o sujeito. Na perspectiva freudiana, existe uma exigência social que permite a separação. Na perspectiva de Lacan, a sociedade vem em segundo lugar em relação ao efeito dos modos de discurso que servem para regular o gozo. Um dos modos no qual o gozo contemporâneo se distribui é o objeto dito mais-de-gozar. A sociedade vende produtos mais-de-gozar que consomem os adolescentes. Esses objetos de consumo vão entrar em concorrência com outros objetos e outras satisfações enodando fantasias e usos regressivos do objeto e saturando, por vezes, o local e o uso possível do objeto separador para o sujeito.

Para Lacan, a adolescência é por excelência o fato de que o sujeito passa da posição infantil de desejado à posição de desejante. Como criança, o adolescente certamente foi desejado ou não desejado, mas não lhe pedimos tanto que seja desejante. A partir do momento em que ele é adolescente, ele é convocado a ser desejante ou mais ainda a se propor “como um desejante”. No seminário A Angústia, Lacan precisa: “Propor-me como desejante, eron, é propor-me como falta de a” (LACAN, 2005, p. 198). Vemos que o objeto separador não é o objeto que dá as bases ao ego, mas que ele é o que produz um desejo, a partir do momento em que “eu me aproximo como desejante”, como falta de objeto.

Por exemplo, a jovem que, no desejo do rapaz é um pequeno a, poderá suportar esse desejo sem muita angústia se ela puder verificar que ela também não é “somente isso”, isto é, que ela fez um pouco o luto de ser esse objeto. O rapaz poderá também encontrar uma jovem, que é um pequeno a, não tanto porque ela é pequeno a, mas porque ela é o pequeno a que falta a ele. Trata-se aí, para o rapaz, de se aproximar como desejante, como “menos a”.

É preciso, portanto, uma queda do gozo da fantasia onde o sujeito se percebe como objeto para que se crie um desejo eficaz. O que constitui o desejo é uma sucessão de encontros do objeto, encontros que produzem um certo número de lutos. Cada vez que o sujeito encontra o objeto e que “isso falha”, o que é frequente e quase sempre certo, produz, no luto, um desejo. O desejo está ligado ao fato de se ter perdido o objeto numa experiência de amor real e não na fantasia onde o objeto subsiste intocado. As aventuras amorosas adolescentes são, portanto, extremamente formadoras do desejo. Os adolescentes têm aventuras curtas e múltiplas e é exatamente o que é necessário para eles. Há sempre exceções. O amor produz alguma coisa. É uma grande ideia da psicanálise: o amor é produtor, produtor de desejo e produtor de um novo tipo de objeto. Assim, a transferência como amor produz uma nova relação com o objeto, mas também um novo tipo de objeto que é, para Lacan, o objeto causa do desejo. É por isso que ele coloca que o amor é o que “permite ao gozo condescender ao desejo” (LACAN, 2005, p. 197). Lacan sempre se opôs à ideia ingênua da maturação ou da evolução.

A partir daí, percebemos que os amores que valem são também frequentemente amores que acabam. É a opinião de Marguerite Duras. Como é que sabemos que um amor acaba? Sabemos que um amor acabou quando começamos a amar algum outro. É nesse momento, entre um amor que se apaga e outro que nasce que tocamos o encontro do objeto, de um objeto em posição de causa. Podemos mudar de amor também, passamos de um amor de um certo tipo para outro de um outro tipo. É o que se passa na adolescência. A adolescência é mudar de amor. É por isso que a adolescência é uma clínica do amor; a questão é saber: há um amor adulto?

No final do Seminário A Angústia, Lacan propõe que o adulto é aquele que não ignora a causa de seu desejo. Seria então, para Lacan, o produto de uma análise. Talvez a psicanálise pudesse ajudar para que saiamos hoje dessa adolescência retardada que é também uma adolescência generalizada, proposta a todos. Isso supõe que compreendamos a lógica de um objeto a que participa da erótica do tempo, tal como o mostrou Jacques-Alain Miller (2000). Isso teria também o efeito positivo de acabar com o apetite inextinguível de identidade, porque a partir do momento em que o sujeito conhece a causa de seu desejo, é ela que o autoriza; não é sua identidade, ainda que ela seja forte, que lhe dará acesso a ela.

 

Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Márcia Bandeira

 


Bibliografia
BAUMAN, Z. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. RJ: Jorge Zahar Editor, 2004.
BERNFELD, S. Über eine typische Form der Männlichen Pubertät. Wien: Imago, 1924, BD.IX, S, p. 169-188.
BLOS, P. Les adolescents. Paris: Stock, 1967, esgotado.
BLOS, P. Prolonged male adolescence: The formulation of a syndrome and its therapeutic implications, American Journal of Orthopsychiatry. XXIV, 1954.
DEUTSCH, H. Problemas psicológicos da adolescência. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
ERIKSON, E.H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FREUD, A. Adolescence, The Psycoanalytic Study of the Child. New York: International Universities press, 1958, Vol. XIII.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
LACAN, J. O Seminário. Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005
MAROHN, C. R. A re-examination of Peter Blos’s concept of prolonged adolescence, Adolescent Psychiatry. 1999. Disponível em http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3882/is_199901/ai_n8851397/
MILLER, J-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Latusa – Escola Brasileira de Psicanálise, 2000.
YONNET, P. Le recul de la mort. Paris: Gallimard, 2006.
WINNICOTT, D. W. “L’adolescence”. In: De la pédiatrie à la psychanalyse. Paris: Payot, 1969.

Philippe La Sagna
Philippe La Sagna – psicanalista, AME da ACF, NLS e AMP. E-mail: plasagna@free.fr



A Iniciação Na Adolescência: Entre Mito E Estrutura

DOMENICO CONSENZA

FOTO: DURAMADRE, “UM CORPO INEVITAVELMENTE INTERCONECTADO”. SEBASTIÁN ARPESELLA.

A Adolescência, Momento De Crise?

Atualmente, a ideia da adolescência como momento de crise estruturante na experiência do sujeito é questionada. O debate interroga tanto a dimensão de corte, de descontinuidade em relação à experiência infantil, quanto o alcance emancipador e separador para o jovem do modo de construção do laço com seus pais. Segundo diversos autores do campo da sociologia e da psicologia, é particularmente a adolescência, em nossa época, que torna problemática a noção de crise da adolescência. O modo de vida dos adolescentes de hoje colocaria em evidência um “analfabetismo introspectivo” (FRANCESCONI, 2004, p. 168), “um hedonismo moderado”, um conformismo e um pacifismo que não combinam com a imagem codificada do jovem rebelde, contestatório, da tradição. Nessa perspectiva, a leitura psicanalítica da passagem à adolescência tende a ser reconduzida a uma variante contemporânea da representação romântica do processo de formação do jovem, reduzido a um mito: a adolescência como Sturm und Drang (OFFER, D. e SHONERT-REICHL K. A, 1992), tempestade e ímpeto, cuja leitura freudiana em termos de remanejamento da economia pulsional não seria senão uma sutil reformulação no campo clínico.

Além da apreciação que podemos dar a essa leitura, o que é importante é a questão que pode resultar para os psicanalistas quanto ao estatuto da adolescência e aos efeitos da transformação que as mudanças histórico-sociais podem produzir nela.O que acontece, de fato, com a adolescência na época do Outro que não existe? Como os adolescentes de hoje regulam o encontro com o real do sexo e da morte? Isso, enquanto a operação de interdição e de véu sustentada pela função paterna, mostra, neste momento de nossa civilização, os sinais de um declínio progressivo. Como é que eles se organizam nesse encontro com o real sem poder contar, em certos casos, com a relação estruturante do Nome-do-Pai, com sua função de orientação do Ideal do eu e com sua ação de regulação humanizante do gozo? Como é que eles iniciam um movimento de separação, quando é o próprio Outro social que lhes ordena a gozar sem limite, isto é, a não se separar? Esta é, de fato, uma questão que pertence ao registro ético e clínico que o nó da adolescência contemporânea traz hoje para nós.

A Sexualidade Na Adolescência:
Da Passagem Da Puberdade À Iniciação Sexual

O problema se situa na relação do adolescente contemporâneo com a sexualidade como pedra angular de seu desenvolvimento. Com o real do sexo no auge da passagem da puberdade, Freud colocou a questão essencial à qual o sujeito adolescente procura responder. Nesse sentido, a adolescência se apresenta para a psicanálise, segundo a fórmula eficaz de Alexandre Stevens, como “sintoma da puberdade” (STEVENS, 2004, p. 28). Trata-se, para o sujeito adolescente, de situar-se numa posição desejante que lhe seja própria em relação ao despertar pulsional que atravessa o seu corpo durante a puberdade. À esta exigência responde ativamente, após a passagem da puberdade – aquela do ciclo menstrual para a menina e da ejaculação para o menino –, o tempo lógico da iniciação sexual para o adolescente. Ele é então introduzido no encontro com o gozo na relação com outro sexo, que lhe dá abertura à experiência e à questão da relação sexual.

Em seu prefácio a “O despertar da primavera”, de Wedekind, Lacan formula dois tempos essenciais desse processo, que subtraem a experiência do adolescente de um linearismo psicológico gradual, que faria da iniciação sexual o tempo de realização necessário para a passagem da puberdade à adolescência. Antes de tudo, ele introduz a eminência do inconsciente do sujeito como dimensão que, através do sonho, encena a relação sexual do adolescente com o parceiro: “sem o despertar de seus sonhos” (LACAN, 2003, p. 557), os meninos não se preocupariam com o que significa para eles fazer amor com as meninas, escreve Lacan. O enigma que constitui o inconsciente do sujeito entra assim em jogo, em pleno processo de iniciação sexual do adolescente. No fundo, é um primeiro tempo lógico desse processo: a elevação da relação sexual ao nível do inconsciente, que o faz existir para o sujeito numa representação singular, imaginária, como enigma, num quadro fantasmático ou que dá lugar à fantasia. O primeiro tempo é então aquele em que, para o adolescente, há relação sexual, que é representável numa cena que o inclui. Em segundo lugar, Lacan esclarece em que consiste o nó real que uma tal experiência iniciática revela ao adolescente, definindo-o como verdadeiro princípio da iniciação: “Que o véu levantado [sobre o mistério da sexualidade] não mostra nada” (Ibidem, p. 562). Outra maneira de dizer que “a sexualidade [faz] buraco no real” (Idem). Nós podemos situar aqui o segundo tempo lógico do processo de iniciação sexual na adolescência: aquele no qual o jovem adolescente encontra, em suas primeiras vicissitudes da vida sexual com seus parceiros, a inexistência estrutural da relação sexual como experiência que faz trauma para ele.

É esse segundo tempo durante o qual o adolescente experimenta que na relação sexual o gozo é irredutível e não faz relação. Esse tempo de “não há relação sexual” está ligado, estruturalmente, ao primeiro tempo, durante o qual, ao contrário, a relação sexual existe, é representável para o sujeito e funciona como um véu inconsciente do buraco da não relação. É exatamente nessa tensão dialética entre o que leva o adolescente a fazer existir a relação sexual (T1) e o encontro traumático com sua inexistência (T2), entre o tempo do véu e o tempo do trauma, que se estrutura a iniciação sexual do adolescente.

Há Iniciação Sexual Do Adolescente Contemporâneo?

Não há como não sentir a perda do véu em torno do enigma da sexualidade na relação do adolescente contemporâneo com o sexo. Lacan (2001) sublinha isso, apontando a dimensão pública do levantamento do véu, no mundo atual, em torno da questão da puberdade. O efeito de uma tal operação que anda junto com o declínio da função paterna pode ser identificado, tal como observou Gilles Lipovetsky (2007) – citado num artigo de Serge Cottet (2006) –, no “desencantamento do sexo” (COTTET, 2006, p. 71) pela banalização da liberdade sexual (Idem), na “indiferença” (LIPOVETSKY, 2005, p. 53) e na “apatia” (Idem) amorosa da maioria dos adolescentes contemporâneos. Essa dificuldade para que o sexo faça enigma para o adolescente contemporâneo testemunha um impasse no processo de sintomatização da própria puberdade, aposta fundamental para a psicanálise na experiência da adolescência.

Nós podemos situar, antes de tudo, uma dificuldade do adolescente contemporâneo em se colocar no tempo T1 da iniciação sexual, isto é, no encontro do sujeito com o sexo como enigma inconsciente representável numa “Outra cena”. O primeiro nível de dificuldade para o adolescente de hoje consiste em fazer existir a relação sexual, fazer existir um Outro do Outro, num mundo que se caracteriza por um fechamento substancial – quando não é uma rejeição – do inconsciente, condição que não permite ao sexo adquirir para o sujeito um valor enigmático. Mas em segundo lugar, essa ausência de estruturação do sexo como representação inconsciente traz prejuízos ao modo de encontro, para o adolescente, do tempo T2, aquele da iniciação como trauma da inexistência do Outro do Outro. De fato, como sublinha Jacques-Alain Miller (2005), sem véu, sem ideal, não há trauma subjetivável.

Como é que o adolescente pode realizar sua vida com sua própria iniciação subjetiva nas condições atuais, em que a inexistência da relação sexual, a ausência de um Outro que funcione como garantia se apresenta como um dado que se propaga socialmente como uma verdade consubstancial ao niilismo de hoje?

Os supostos distúrbios de conduta na adolescência, as práticas compulsivas caracterizadas por frequentes passagens ao ato, típicas da adolescência, e mais ainda, na adolescência contemporânea, apresentam-se, sugere Phillipe Lacadée (2011), como fracassos e alternativas ao processo de estruturação de um sintoma no sentido freudiano do termo, impasse no trabalho de nomeação do real inominável. Para o adolescente, esses distúrbios podem, entretanto, em muitos casos, se revestir de um valor paradoxal, aquele de uma tentativa desesperada de fazer existir a relação sexual para construir um Outro do Outro e encontrar uma via de acesso à sexualidade. Cabe ao analista permitir aos adolescentes colocar em palavras essa função incluída nos seus atos desregrados, condição preliminar para uma subjetivação. E de levá-los a transformar seu sintoma em elemento não generalizável, mas, ao contrário, fantasmatizável.

O problema dos adolescentes de hoje quanto ao sexo se apresenta então como invertido em relação às épocas anteriores. De fato, não se trata para eles de conseguir inicialmente levantar o véu que envolve o mistério do sexo depois de tê-lo construído inconscientemente. Mas trata-se, antes de tudo, de introduzir um véu, de permitir a realização de uma fantasmatização que limite e torne suportável a errância do jovem adolescente exposto, sem mediação alguma, ao objeto inominável que está em jogo na relação entre os sexos. É somente assim que se tornará possível, através do trabalho de nomeação, aproximar a inexistência da relação sexual como trauma subjetivável, preservando-se, assim, de recair nas derivas do sem-limite próprio da adolescência contemporânea.

Traduzido do italiano por René Fiori com a colaboração de Monique Dellius.

 


Bibliografia:
COTTET, S. “Le sexe faible des ados: sexe-machine et mythologie du coeur”. In: La Cause Freudienne, Nº 64. Paris: Navarin/Seuil, oct. 2006.
FRANCESCONI M. “Non piu non ancora. Una reflessione psicoanalitica sul perturbante del crescere in adolescenza”. In: BARONE L. (a cura di) Emozioni e disagio in adolescenza, Milão: Unicopli, 2004.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio : ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra capa, 2011.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2003.
LIPOVESTKY, G. A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, São Paulo: Manole, 2005.
LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007
MILLER, J.-A. Effets thérapeutiques rapidez em psychanalyse. La conversacion de Barcelone. Paris: Navarin, 2005.
OFFER, D. and SHONERT-REICHL K. A., “Debunking the Myths of Adolescence: Fondings from Recent Research“. In: Journal oh American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 31, 1992.
STEVENS, A. “Adolescência como sintoma da puberdade“ . Curinga, nº 20. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. Novembro de 2004.



Almanaque on-line entrevista – Fernanda Freitas, Vinicius Viana, Jaqueline Luiza

FERNANDA FREITAS, VINICIUS VIANA, JAQUELINE LUIZA

Entrevista Com Jovens Estudantes

“A rua é nossa, e eu sempre fui dela”

No final do ano de 2015, alunos das escolas estaduais de segundo grau do Estado de São Paulo iniciaram um movimento contra a reorganização da rede de ensino estadual, feita de forma autoritária pelo governo paulista, que pretendia fechar 93 unidades de ensino escolar.

Segundo o governo de São Paulo, um dos objetivos é separar as escolas para que cada unidade passe a oferecer apenas aulas de um dos ciclos da educação (ensino fundamental 1, ensino fundamental 2 ou ensino médio) a partir do ano de 2016.

A oposição à proposta do governo paulista mobilizou os jovens secundaristas, que se organizaram para buscar soluções. Inicialmente, os estudantes procuraram o diálogo com as autoridades estaduais. Sem obter resultado, os jovens iniciaram uma jornada de lutas, que incluíram passeatas, resistência à violência policial, ocupação de cerca de 190 escolas e outras formas criativas de atuação política.

O movimento recebeu amplo apoio da sociedade, tendo à frente outros estudantes de todos os níveis de vários estados brasileiros, intelectuais, artistas de todas as áreas da cultura, lideranças religiosas, movimentos sociais, jornalistas independentes, etc.

A explosão dos adolescentes paulistas pegou de surpresa todo o país, pois o cenário aparente indicava forte apatia política da juventude ou adesão às visões individualistas do mundo. O radar social não apontava nenhuma possibilidade de um movimento de massas movido pela solidariedade na cidade mais rica e com maior centro de consumo da América Latina.

O movimento secundarista apresentou sinais contrários aos da leitura convencional. Os jovens revelam que têm opiniões diferentes, muita vontade de se fazer ouvidos e pretendem fazer valer seus desejos e direitos, entre eles, o de estudar. Ao se posicionarem como “senhores” de suas escolhas, eles acabam por despertar muitos de sonhos adormecidos.

O Almanaque entrevistou, via WhatsApp (o canal de comunicação da juventude), algumas lideranças dos secundaristas paulistas que participaram do movimento que atraiu atenção mundial. O objetivo das conversas com esses jovens foi apostar que eles podem transmitir à sociedade uma forma particular (deles) de “se virar” com a violência e verificar como é possível construir soluções que indicam um novo modo de fazer política, que abre mão, inclusive, dos grandes lideres.

Qual É A História Do Movimento, De Onde Ele Parte?

Fernanda Freitas, 17 anos. Escola Estadual Diadema (Primeira a ser ocupada).

 

 

A história surge por conta do projeto de reorganização escolar, que previa fechar 94 escolas, além de demitir professores e fechar também períodos. Recebemos a noticia em setembro e, desde então, nossa mobilização começou a fim de barrar a reestruturação.

Vinicius Viana, 18 anos, Sorocaba. Conclui ensino médio na Escola Técnica Rubens de Faria e Souza e é diretor do Grêmio da União Sorocabana dos Estudantes Secundaristas.

 

 

O movimento secundarista sempre esteve ativo, sempre foi uma luta intensa dos estudantes, e a UBES mostra isso com toda sua jornada de mais de 70 anos de história… Soubemos da reorganização e logo começamos a fazer nossos atos contra esse tipo de atitude autoritária, vinda do governo estadual de São Paulo. As ocupações em Sorocaba começaram em novembro, na escola Lauro Sanchez, a primeira ocupada na cidade. As ocupações partiram dos estudantes, com apoio da USES (União Sorocabana dos Estudantes Secundaristas), entidade de representação máxima dos estudantes secundaristas de Sorocaba. Como o MC Guimé já diz em uma de suas músicas, “a rua é nossa, e eu sempre fui dela”. O movimento estudantil sempre ocupou as praças e ruas, e, dessa vez, mostramos coragem ocupando as escolas.

Jaqueline Luiza dos Santos, 17 anos, ex-aluna do terceiro ano da Escola Ezequiel Machado Nascimento, cursa hoje a Faculdade de Sorocaba

 

 

O movimento secundarista que ocorreu em São Paulo em novembro e dezembro de 2015 foi basicamente criado pela revolta dos estudantes de todas as escolas públicas de São Paulo. Em relação à reorganização mais “desorganizada” que já vimos, o governador Geraldo Alkmin mexeu numa ferida séria ao tomar tamanha decisão de uma forma nada democrática, e fez com que os estudantes se rebelassem contra isso, unindo forças para barrar a reorganização e mostrar para a sociedade que o movimento só estava adormecido.

Como o movimento se organiza e se sustenta/mantém? (como escolheram as lideranças, como elaboraram cartilhas, como convocam reuniões, qual a importância dos meio digitais)Fernanda – Durante o processo de mobilização contra a reorganização, sentimos a natural necessidade de nos unir. Dessa forma surgiu o Comando das Escolas em Luta, que consiste em um grupo autônomo de estudantes, e surgiu no período de ocupações que vem nos ajudando para que a ideia de luta seja unificada.

Esse grupo Comando das Escolas em luta é forma do por quem? Quem formou? Como foi escolhido? Quem faz parte dele? Pois você disse que fazem parte dele, então entendo que é um grupo à parte

Dentro de nosso movimento não há lideranças, definitivamente. Aliás, isso foi algo que, durante o processo, prezamos sempre em ressaltar. O que aconteceu foi que, divididas as funções, alguns ficaram responsáveis por conversar com a mídia e, devido a isso, ficaram mais expostos, o que pode ter dado a entender que lideravam o grupo, mas isso não acontece, não temos hierarquia. Ainda não temos cartilha do próprio Comando (Comando das Escolas em Luta), mas é uma ideia futura. Convocamos reuniões mensais pela nossa página do Facebook, que carrega o mesmo nome, e lá divulgamos o evento, para que possa alcançar mais estudantes. Local e horário das reuniões são sempre decididos na reunião anterior, e assim seguimos. O meio digital nos ajuda a alcançar pessoas distantes e a propagar notícias; tem ajudado muito.

Vinicius – Aqui em Sorocaba conseguimos mandar alguns alunos ocupados para as assembleias gerais de São Paulo, mas fizemos muitas reuniões com os ocupantes aqui em Sorocaba mesmo.

A adesão tão grande dos estudantes é um reflexo da insatisfação com o governo do PSDB, da insatisfação com o sucateamento da educação.

Jacqueline – O movimento é muito bem organizado, eu diria. As lideranças são escolhidas de forma democrática e bem pensadas, as cartilhas sempre são criadas por pessoas envolvidas que têm experiência com Photoshop e programas de edição, sempre procurando atingir o publico alvo, que, no caso, seriam os estudantes. As reuniões sempre são convocadas pelas bancada do movimento, ou seja, presidentes, secretários, etc. E o meio digital é extremamente importante, pois a juventude atual está sempre conectada nas redes, como Twiter, Facebook e diversas outras redes sociais. Sendo assim, a importância é enorme, pois lá podemos dar mais visibilidade ao movimento.

O Que Significa O Ato De Ocupar As Escolas, As Ruas?

Fernanda – Acredito que, quando ultrapassarmos as linhas de nossas casas e o conforto todo, mostramos que nos importamos com a causa e queremos ver mudanças. Claro que eu não gostaria que fosse necessário ir às ruas para protestar por algo que é nosso por direito, mas como infelizmente temos que fazer, acho justo.

Vinicius – Ocupar os espaços públicos é um dever de toda sociedade, seja por mais cultura, educação… O movimento sempre buscou por educação, tivemos conquistas recentes muito importantes, como a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), com 10% do PIB e 75% dos royalties do pré-sal destinados à educação.

Jacqueline – Para mim, o ato de ocupar ruas e escolas significa mostrar a força da juventude e a revolta com diversas decisões tomadas de formas nada democráticas. Também significa unificar cada vez mais pessoas que cultivam o mesmo pensamento, o mesmo sentimento de revolução e de não comodismo com a situação atual de nossa educação, saúde, etc. Vai muito além de apenas sair e fazer barulho, como uma parte da sociedade infelizmente vê. Nós estamos atrás de mudanças, focando na melhoria e no bem-estar de toda a sociedade.

O Que Pretende O Movimento E O Que Conquistou?

Fernanda – O movimento, desde o ano passado, tem conseguido alcançar muitos estudantes. Revertemos o processo de reorganização, mesmo que temporariamente, e agora nosso objetivo é continuar a formação do “Comando das escolas em luta”; lutar dentro das escolas, como grêmios, e relatar nossa luta nas outras escolas, a fim de incentivar mais jovens para a luta. Estamos também estudando a corrupção que está envolvendo as merendas. Portanto, este ano vai ser de muita luta.

Vinicius – No ano passado tivemos, talvez, uma das maiores vitórias, que foi barrar a reorganização. Conseguimos fazer com que ela não fosse realizada de imediato e que tivéssemos mais um ano para “dialogar”, como o próprio governador disse.

Queremos uma escola livre de opressões, com mais cultura, democracia, esportes, eleições diretas para diretor; queremos uma escola com a cara da juventude, que não sirva apenas para nos transformar em massa de manobra; queremos que a escola forme seres humanos pensantes e críticos, que saibam os seus direitos.

Jacqueline – O movimento pretende crescer cada vez mais e mostrar para a juventude que podemos sim fazer a diferença se nos unirmos. A conquista com as ocupações de dezembro foi incrível e emocionante, pois além de barrarmos o tamanho retrocesso que seria a reorganização, nós derrubamos o Secretário da Educação, Herman Voorwald. Em Sorocaba, também conquistamos a primeira Diretoria de Ensino ocupada no Brasil, trazendo assim ainda mais força para o movimento e para as ocupações.

O Que Está Por Vir?

Vinicius – A nossa luta é diária, é passando de sala em sala, nos reunindo em praças, convocando assembleias com os estudantes e usando das redes sociais (como a página da USES no Facebook) para alertar e conscientizar a população.

Jacqueline – Esperamos que em 2016 possamos abrir esse canal de diálogo com o governador e que o que ele falou seja de fato cumprido, para que os estudantes, pais, professores e toda a comunidade possam dizer o tipo de reorganização que querem, para criar, de forma democrática, um projeto. Os estudantes não vão aceitar atitudes ditatoriais. Nós sabemos o que queremos, e o primeiro passo é sermos ouvidos. Não vamos calar nossa voz.

Muita coisa ainda está por vir, mas isso todo mundo verá futuramente. Posso te garantir que o movimento cresce cada dia mais.

Para Além De Barrar Os Abusos De Poder E Da Burocracia Governamental, Quais As Propostas Do Movimento Para A Educação No Brasil?

Fernanda – As nossas propostas são muito amplas, na verdade. No geral, queremos uma escola com o sistema diferente, mudar a educação de dentro para fora, por isso vamos lutar, unidos, em cada escola. Queremos que mais recursos sejam investidos na educação, professores mais bem pagos e menos alunos por sala. Uma democracia maior dentro das escolas, a participação ativa de alunos e de pais. E estaremos lutando aos poucos por cada causa. Um processo longo e demorado, mas do qual veremos resultados positivos em breve.

Jacqueline – As propostas são bem abrangentes, desde melhorias na educação em sala até melhorias no formato de ensino da rede pública. Queremos trazer maior diversidade de esportes para dentro das escolas e a discussão da diversidade de gênero, que já devia estar sendo discutida em sala há muito tempo. Tudo o que mais desejamos é deixar a escola com “a cara” do estudante, um lugar agradável para se estudar e aprender.

O Que Fez Tantos Jovens Aderirem Ao Movimento?

Fernanda – Não é difícil entender a mobilização de tantos jovens desde o ano passado. O projeto de reorganização queria fechar nossas escolas, ótimas escolas, aliás, e a ameaça real motivou a luta de cada aluno. Perder além da escola, mas a chance de ver mais estudantes estudando nelas nos deu vontade de lutar cada vez mais. Muitas pessoas sairiam prejudicadas. Somos jovens diferentes, orientação sexual diferente, de cores diferentes e vidas diferentes também, mas nos unimos pela mesma causa, causa que fez esquecermos as diferenças e lutar contra o governo.

Jacqueline – Como eu havia citado acima, o que fez esses jovens aderirem ao movimento foi a revolta e a falta de voz dentro de suas escolas, dentro da sociedade, dentro do padrão em que vivemos hoje.

Quem São Esses Jovens?

Jacqueline – Esses jovens são nada mais nada menos que estudantes que achavam que não tinham voz influente nenhuma em seu meio estudantil, mas nós tratamos de mostrar para eles que eu, todos eles, temos voz SIM, e somos capazes de fazer a mudança em união.

Qual É A Sua História Nesse Movimento? Como Se Envolveu? O Que Faz Hoje Nas Ocupações? Qual A Importância Dele Para Você?

Fernanda – Minha experiência como militante começou ano passado mesmo. Eu já havia apoiado a greve dos professores, mas pude participar mais ativamente dessa luta contra a reorganização. Desde o início, quando havíamos recebido a notícia do projeto, eu já me reuni com alguns estudantes da minha escola e pensamos em o que fazer para não deixar nosso ensino médio fechar (melhor ensino médio da cidade de Diadema). Primeiro, começamos organizando pequenos atos no centro da cidade para chamar a população para essa causa, depois seguimos até a Câmara dos Vereadores de Diadema, onde pedimos o espaço para participar de uma plenária. Chegando à plenária, conseguimos o apoio dos vereadores para que eles nos representassem futuramente. Não dando resultado, pensamos em fazer um abaixo-assinado. Com muita luta, conseguimos 10 mil assinaturas contra a reorganização em Diadema. Fizemos também o abaixo assinado on-line e conseguimos quase quatro mil. Levamos essas assinaturas até a ALESP (Assembleia Legislativa de São Paulo), na última audiência que teve sobre o assunto, e conseguimos entregar nas mãos do secretário Herman (secretario de educação naquele período). Ele assinou, mas também não obtivemos resposta. Passados quase dois meses de protestos e idas à Vara da Infância e Juventude estudando o caso, vimos que nada tinha dado resultado. Daí que surgiu a ideia da ocupação. Então, minha participação vem de muito antes, tenho lutado contra esse projeto antes das ocupações. Algumas pessoas não sabiam que, antes de ocuparmos, havíamos lutado de outras formas.

Posso dizer que esse processo me fez crescer muito como pessoa, eu amadureci e aprendi muito, me sinto mais politizada e mais humana, entendo causas como o feminismo graças a várias conversas e atividades culturais que tivemos sobre isso dentro das ocupações. Submeter-me a riscos e encarar com toda a seriedade me fez perceber que não podemos julgar ninguém pela idade. Eu tive que ter muita responsabilidade, era porta-voz e mídia dentro da minha ocupação, então não podia brincar com isso, o que me fez ter ainda mais compromisso com a causa. O amadurecimento foi inevitável, carrego as lembranças e a luta eternamente. Esse fato histórico mudou minha vida.

Vinicius – Minha história no movimento estudantil completa dois anos. Conheci o movimento no Congresso da União Paulista dos Estudantes Secundaristas em 2014, e desde então venho lutando por uma nova educação. O que mais me motiva é saber que há tantas pessoas indignadas com as mesmas coisas que eu, que anseiam por uma sociedade justa, onde o professor seja valorizado e que os resquícios da ditadura militar sejam deixados para trás. Onde o estudante não leve bala de borracha ou gás lacrimogênio, onde a juventude negra e periférica possa viver sem medo da PM, possa usufruir dos espaços de sua cidade. As ocupações surgiram como algo novo para a grande maioria das pessoas que, independente da participação ou não do movimento, nunca tinham vivenciado algo do tipo.

Jacqueline – Eu nunca havia participado de nenhum movimento estudantil, me envolvi profundamente no movimento durante as ocupações, me interessei e quis fazer parte cada dia mais. A importância é extrema. Eu me sinto em casa quando estou com o pessoal do movimento estudantil e com todas as pessoas que ocuparam comigo; somos uma família. E minha vida teve diversas mudanças desde então. Tenho uma visão mais ampla de tudo: política, gênero, cultura, tudo ficou muito mais claro e nítido desde então, e eu nunca me senti tão feliz e realizada na minha vida. Meu lugar é dentro do movimento, lutando por educação, lutando pelos jovens, lutando pela união.




Solidão Do Ser Falante

LAURE NAVEAU

FOTO: ATIVIDADE DE CHRISTINA FORNACIARI, “INVISIBILIDADE SOCIAL”. JOVEM DO PROGRAMA CAPUT.

Costuma-se dizer que a adolescência é uma passagem, um momento de conflito. Freud a nomeou puberdade, e Lacan a evocou em termos de real e de sonho. O poeta a chama de delicada transição, o psicanalista fala de mal-entendido, de despertar, de exílio, tentativas de nomear o que sobressai de um real que escapa às palavras e que pode levar a perder seu caminho. Acontece de um psicanalista ser chamado de passador do real da adolescência, e dessa inscrição em um outro discurso ter consequências.

Há E Não Há

A sexualidade não embaraça apenas os adolescentes, e se as coisas do sexo se tornaram mais acessíveis, se o discurso evoluiu – pela suspensão do recalque, em que a psicanálise tem sua parte –, o encontro com o outro sexo permanece um enigma: nenhuma resposta codificada convém, ele escapa a qualquer norma. O exílio é estrutural. O que se chama sexualidade é o que, para Lacan, faz um “furo no real”, e “como ninguém escapa ileso, as pessoas não se preocupam com o assunto” (LACAN, 2003, p. 558): é uma maneira de dizer que “não há relação sexual”.

Ao incidirmos a ausência de relação sexual sobre o adolescente, colocamos o destaque sobre o tempo de incerteza identificatória que lhe é próprio, tempo em que a separação da criança ideal que ele teria sido está em jogo. O que está em causa é o que se pode dizer, ou não se dizer, do mal-entendido que habita aquele que fala. O semblante do amor é a via que, com maior frequência, torna possível esse acordo entre os sexos. Mas se a sexualidade é causa de embaraço, “o amor é um labirinto de mal-entendidos” (MILLER, 2008). A psicanálise coloca, então, em cena, um paradoxo: Não há relação entre os sexos, por um lado; por outro, há uma relação possível ao corpo, ao falo, ao sintoma, ao gozo. Esse designador da existência revela, entretanto, ao mesmo tempo, um impasse lógico, aquele da solidão. É a tese lacaniana congruente com a primeira: a relação ao gozo isola, o gozo que há sublinha a não relação ao parceiro. A solidão está em jogo.

Jacques Lacan destaca particularmente a solidão como parceira da mulher, sobre o fracasso da união entre homem e mulher, a partir do gozo: “mesmo que se satisfaça a exigência do amor, o gozo que se tem de uma mulher a divide, fazendo-a parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira” (LACAN, 2008, p. 467). No Seminário A angústia, “o gozo do homem e o da mulher não se conjugam” (LACAN, 2005, p. 290), e, em Televisão, menção especial é feita sobre a maldição sobre o sexo (LACAN, 2003, p. 531), enunciada por Freud em O mal-estar na civilização.

Não há nenhuma fórmula matemática ou científica para escrever a relação sexual, mas, na língua, fórmulas românticas como “estava escrito” ou “foi fatal” tentam cifrar o que é da ordem da contingência. Lacan dirá mesmo que essas fórmulas acentuam a dimensão de semblante, de mascarada, de parada sexual “uma mulher só tem um testemunho de sua inserção na lei [fálica], […], através do desejo do homem” (LACAN, 2009, p. 65). O artifício do desejo do Outro dá sua inscrição ao sujeito. E, para o encontro, é preciso que uma mulher “caia bem”, diz Lacan, “que ela caia sobre o homem que lhe fala segundo sua fantasia fundamental, própria a ela” (LACAN, 1980, p. 16). Saber como cada um supre essa ausência, com o amor, com a fantasia – pois, esta, pode se escrever em uma fórmula – ou com o sintoma, é um dos pontos que está em jogo em uma análise.

O Feminino E O Tabu

O encontro de que se trata, no momento da adolescência, concerne o feminino na medida em que é a falta que está em jogo no feminino, o confronto ao que falta, para cada um dos dois sexos: o encontro amoroso não completa, mas descompleta, ele introduz a falta. Nessa perspectiva, é do lugar que um psicanalista poderá vir a ocupar em relação à falta que dependerá a possibilidade de ele se tornar ou não um parceiro que valha para um adolescente.

No texto de Freud sobre o “Tabu da virgindade” (FREUD, 1987, p. 175-192), é a mulher, inteiramente, que é tabu para o homem. Originalmente, escreveu Freud, o tabu foi colocado pelo homem primitivo que teme um perigo. A mulher, outra ao homem, estrangeira, incompreensível, é percebida por ele como inimiga. O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado pela feminilidade, e tem medo de se mostrar incapaz. O tabu é uma potência que se opõe ao amor pela mulher e que provoca um exílio entre os sexos.

A psicanálise intuiu, diz Freud, que

“a atitude de rejeição narcísica, misturada de desprezo, do homem em relação à mulher, deve ser atribuído ao complexo de castração e a influência deste complexo no julgamento feito sobre a mulher” (FREUD, 1987).

 A tese permanece válida ainda hoje, quando assistimos, no mundo inteiro, a um ódio real, religioso ou não, dirigido às mulheres. A outra face do tabu é a tendência da mulher de se defender de uma ferida narcísica que lhe seria infligida pela defloração.

Ferida ou desprezo, a questão se situa por isso, entre valorização e desvalorização, entre agalma e palea, ou seja, do ponto de vista do valor. Lacan dirá também que a mulher, visto que se quer falar dela, “on la dit-femme” (LACAN, 1983, p. 114), fazendo equivocar o dizer sobre a mulher com a difamação.

Na fase fálica da infância, descrita por Freud, existe apenas um órgão sexual válido: o falo. A novidade de Lacan é radical: o falo não é tanto um órgão anatômico real, mas, sim, um significante; o significante fálico que introduz uma função simbólica e lógica no inconsciente. O significante recoloca o véu do pudor sobre o órgão fálico desvelado por Freud, Aufhebung. O pudor é o afeto próprio à operação de simbolização, uma posição subjetiva em relação à função do falo que faz com que um homem e uma mulher não demandem e não desejem da mesma maneira.

Apenas passando pelos desfiladeiros do significante, nos diz Lacan, a sexualidade se constitui. A questão é então deslocada: não se trata mais de ter ou não ter o falo, mas de ser ou não investido, falicizado, pelo Outro materno.

No desenvolvimento ulterior da lógica lacaniana, se a captura do sujeito na linguagem implica que o sujeito apenas habita seu corpo se a linguagem lhe atribuir um, logo, o osso do embaraço sexual se situa na própria lalíngua, nisso que, da linguagem não pode se dizer, nisso que, “da sexualidade, faz furo”. É desse estofo que é tecida “a infernal mordaça sobre a boca” da Princesa de Clèves, tecido desse gozo que só pode ser dito entre as palavras e que deixa cada um em exílio. “Aceitação de sua ferida”, dizia Freud, “de seu exílio próprio à linguagem” prossegue Lacan, reinventando o falasser, o que, com efeito, estará implicado em uma análise.

Elise, A Ferida E O Exílio

Há quinze anos, recebi uma menina de quatro anos que acabara de perder seu pai e que demandava “ter” um psicanalista. Ela tinha escutado falar bem da psicanálise em sua família e, por isso, o acesso lhe foi facilitado. A análise transcorreu em três ocasiões, durante sua tenra infância, até uma primeira solução do luto. Ela a retoma em sua adolescência.

Colocada precocemente no trabalho do inconsciente, Elise soube localizar, tal como uma etnóloga, o lugar de esperança que fora colocada por seus pais, bem antes de seu nascimento, e também da desaparição de seu pai, na sequência de um drama vivido pelo casal. Ela ainda ocupava esse lugar de esperança, e de uma maneira redobrada para sua mãe, que ficou sozinha após a morte de seu marido e teve muita dificuldade em suportar isso. Ela pode ver, então, que faltava algo à sua mãe em função da desaparição de seu marido: ela não ficou preenchida por seus filhos e desejava outra coisa, para além deles.

Elise constrói, então, o mito de uma vida que se tornou complicada em função da ausência de um pai amado, ferida inaugural da criança que o pai abandona. Mas ela aprendeu a dispensar isso e a se servir do que ele lhe havia transmitido – seu amor – bem como um uso inventivo e artístico do lápis, que ela pôde constituir como um ideal para atenuar os efeitos do abandono. Ela pode também, por algum tempo, mobilizar seu avô para acompanha-la às suas sessões após a escola, tornar-se a melhor aluna de sua sala e conseguir queixar-se de suas colegas, com propósitos que revigoravam cruelmente a perda paterna e, ao mesmo tempo, lhe davam um estatuto de exceção.

Uma nova etapa iniciou-se em seguida para a criança transformada em jovem, e ela pediu para rever-me, por ocasião de sua entrada na adolescência, mais uma vez apoiada por sua mãe, que fazia análise e tinha encontrado um outro homem que contava para ela. A adolescência, logicamente, confrontava Elise ao encontro amoroso e a seu cortejo de mal-entendidos, assim como à rivalidade com as outras meninas. Em função da perda precoce de seu pai, que a levava sempre a “não ter confiança em si mesma”, ela procurava, nas sessões, o suporte fálico que lhe faltava, e a fazia perder o norte e hesitar em suas escolhas.

Então, ela retoma a palavra para expor as dificuldades nas quais mergulhava em situações diversas de sua existência, que podemos resumir em três pontos:

– Junto à família de seu pai, que lhe lembrava sem cessar, e sem consideração, a perda do pai falecido, Elise não sabe como manter a distância necessária sem receio de feri-los.

– Junto a seus amigos, que, a seu ver, parecem mais leves e mais à vontade do que ela própria com os semblantes na relação entre os sexos, ela descobre que sua relação precoce com a falta, que parecia fragilizá-la, lhe deu um pequeno “mais”: essa vontade de analisar e compreender as coisas de seu inconsciente.

– Junto a seu namorado, enfim, ela descobre que mantém uma relação fundada mais sobre a fraternidade que sobre a sexualidade, o que contribuía para criar um hiato entre eles. Ela decide se separar dele.

Mais uma vez, então, Elise escolheu encontrar as palavras para tentar fazer de seu sintoma, de sua “falta de confiança”, algo que a ajudaria a crescer. Para se separar da expectativa e do olhar muito opressivo de seu entorno – o de sua mãe, que continuava a contar com ela para reparar sua perda narcísica – e para encontrar seu lugar no discurso, ela se empenhou a reencontrar o ponto onde as palavras haviam falhado em nomear a coisa nova à qual ela se encontrava confrontada, do lado do sexual. Decidindo conversar com seu namorado para retificar a relação que lhe pesava, na qual ela experimentava às vezes tédio e apreensão, Elise alivia o peso de sua angústia de decepcionar o outro, uma angústia persistente que ela reconhece como um traço de sua infância. Sua relação ao bem-dizer lhe permite suportar o olhar carregado de censura que ela percebia nesse namorado, em função de seu distanciamento dele.

Pelo poder que ela dá ao fato de não ceder de seu desejo em sua enunciação, ela sai do luto e do medo do abandono do outro. Ela encontra sua língua, eu poderia dizer, e sua inibição em fazer ouvir sua voz baixinha para nomear o mal-entendido ao qual ela estava confrontada desaparece.

Mas se ainda lhe é difícil separar-se da relação ideal que mantém com sua mãe, Elise está decidida a entrar para uma Escola de Artes aplicadas. Assim, ela espera tirar proveito de seus dons artísticos e de sua criatividade, heranças de seu pai, que lhe foram tardiamente reveladas, ao mesmo tempo em que garantia sua relação ao bem-dizer. O nome do pai é, assim, reestabelecido.

 

Tradução: Cristina Drumond
Revisão: Ana Lydia Santiago

 


Bibliografia:
FREUD, S (1917). “O tabu da virgindade”. In: Contribuições à psicologia do amor III (Vol. 11, 2ª. Ed.). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
LACAN, J. “O aturdito”. In: Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005, p. 290.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 18 : De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2009.
LACAN, Jacques. “Le seminaire: D’écolage” 11 mars 1980, Ornicar ? n. 20-21 Paris: Lyse.
MILLER, J-A. “La psychanalyse enseigne-t-elle quelque chose sur l’amour?” Psychologie magazine, n. 278, octobre 2008.

Laure Naveau
Laure Naveau – psicanalista, AME da ACF, NLS e AMP E-mail: laure.naveau@wanadoo.fr



Sair Da Adolescência

HÉLÈNE DELTOMBE

 

FOTO: Conrado Almada.FOTO: CONRADO ALMADA.

Por muito tempo não se colocou a questão da adolescência, já que nós passávamos diretamente do estado de infans ao estatuto de adulto. Atualmente, constatamos que a adolescência se inicia cada vez mais cedo e se prolonga tardiamente. Há alguns anos um novo termo apareceu, o de adulescente, para caracterizar os que não conseguem sair.

A adolescência se tornou um fenômeno social estigmatizado por suas manifestações preocupantes: oposição, recusa, rejeição, marginalização, condutas aditivas. Os médicos generalistas se dizem hoje invadidos pelos problemas que os adolescentes impõem à sua volta.

Um uso excessivo é feito do termo adolescência. Um exemplo recente: em uma consulta para seu filho de seis anos, seus pais atribuíam as perturbações do filho a uma crise de adolescência muito precoce. Essa criança estava atormentada por pensamentos indesejáveis que lhe ditavam sua conduta, o impedindo de se submeter à autoridade dos pais.

Um Fenômeno De Civilização

Franz Boas, o antropólogo teuto-americano, foi o primeiro, em 1925, a pesquisar a adolescência. Sua hipótese indicava um fenômeno moderno, ligado à emergência das sociedades industriais incapazes de acompanhar os jovens até a idade adulta, lhes integrando à vida social, e queria verificá-la antes que os contatos entre as sociedades modernas e culturas tradicionais se multiplicassem.

Em 1928, uma de suas jovens estudantes, Margaret Mead, publicou os resultados de um trabalho intitulado Coming of the age in Samoa confirmando que a adolescência não é um momento de crise de valor universal, mas uma consequência cultural da evolução das sociedades: a jovem de Samoa é bem diferente de sua irmã americana, sua adolescência “não é de maneira alguma um período de crise e de tensão, mas o melhor período da vida”, ela tem poucas responsabilidades e os encontros entre adolescentes dos dois sexos sob as palmeiras são frequentes. Essa imagem do amor livre enfeitiçou os leitores.

Metapsicologia Da Adolescência

Mead foi criticada por ceder a uma premissa culturalista, mascarando a questão de que todo adolescente é levado a resolver, como Freud sublinha nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, indicando as origens das perturbações na adolescência durante as metamorfoses da puberdade (FREUD, 1980, p. 111). Dentre esses elementos, alguns são hoje particularmente significativos, como um “excesso de carinho dos pais” na primeira infância, que gera um adolescente “insaciável”, “temporariamente incapaz de renunciar ao amor, ou de se satisfazer com um amor mais contido” (Ibidem, p. 134). A busca pelo gozo é uma situação que se torna banal quando a criança é colocada no lugar de objeto a pelos pais, nesse contexto, estigmatizado por Jacques-Alain Miller, de “subida ao zênite social do objeto pequeno a” (MILLER, 2005, p. 11). Também é o caso quando o adolescente se arrisca em uma relação sexual com um parceiro, a presença de uma “pulsão parcial, que no curso da vida infantil já produziu um prazer excessivo”, “o processo sexual não pode continuar” (FREUD, op. cit., p. 118). Além disso, o sujeito se encontra dividido entre objeto de amor e objeto sexual, entre “duas tendências, a da ternura e a da sensualidade”, escreveu Freud (Ibid., p. 112). Buscando o objeto sexual, o adolescente se depara com o desejo de reencontrar o objeto original, o primeiro objeto de satisfação sexual. Esse objeto foi perdido no ponto em que a pulsão sexual se tornou auto erótica, e o adolescente tenta “reencontrar a felicidade perdida” (Ibid., p. 133). Um projeto impossível, já que o “objeto final da pulsão sexual não é mais o objeto original, mas seu substituto” (FREUD, 1987a, p. 171).

O tratamento analítico permite ao sujeito identificar suas dificuldades e encontrar uma solução, segundo a singularidade do desejo de cada um, mas não sem reconhecer com Lacan “que não há relação sexual”. Trata-se, com efeito, para cada um, de renunciar à ideia de que a relação sexual seria a saída aos conflitos e mal-entendidos que dividem o sujeito em seu ser.

Mal-Estar Contemporâneo

A consideração de Freud pelas dificuldades de todo adolescente não impede de dar razão aos trabalhos antropológicos mais recentes, que confirmam uma parte da hipótese de Franz Boas, segundo a qual as sociedades modernas reúnem características próprias a fazer da adolescência um período de tensões e angústia.

Freud, aliás, desenvolveu ele mesmo, em 1929, no Mal-estar na civilização, considerando que uma demanda maior é endereçada ao sujeito em nossas sociedades modernas do que nas sociedades tradicionais: “durante a evolução, a relação entre o amor e a civilização deixa de ser unívoca: o primeiro combate aos interesses da segunda que, por outro lado, o ameaça com dolorosas limitações” (FREUD, 1987b, p. 171).

A tensão entre família e civilização se torna ainda mais rude: “Essa hostilidade recíproca, continua Freud, parece inviável […] o afastamento da família, para todo adolescente, se torna uma tarefa” (Idem). Nesse contexto da civilização que a psicanálise pode intervir, como sublinha J.-A. Miller, frente à “necessidade de se desfazer o laço familiar. Fazemos uma análise para concluir esse rito de passagem ainda incompleto” (MILLER, 1992).

Alguns Sintomas Do Laço Social

Quando, nos anos 30, Jacques Lacan já sublinhava em Os complexos familiares que nós somos inexoravelmente confrontados ao declínio da função paterna, de acordo com um processo inerente às sociedades modernas (LACAN, 2001), afirmávamos, ainda nos anos 60, que o adolescente buscava “matar o pai” para se libertar da dominação familiar. Entretanto, o desapego da família não se resolve na oposição. A adolescência se tornou uma classe de idade na qual todos procuram apoio em seus semelhantes, através de identificações recíprocas, criando modos de vida. Os sintomas tomam uma nova forma, a dos sintomas do laço social que, por vezes, terminam em epidemia: alcoolismo, toxicomania, bulimia, anorexia, delinquência, suicídios… Modos de vestir e do comportamento marcadas pela rejeição dos adultos, acentuando um processo de marginalização.

O adolescente se encontra, assim, preso em um fenômeno de segregação social, que pode fixá-lo em uma posição de gozo que determinará seu modo de ser: “Sou toxicômano”, “Sou bulímico”… Ele não se situa mais como um sujeito com questões que precisam ser resolvidas, pior quando não é encorajado por seus próximos, facilmente iludidos pelo discurso sociológico sobre a adolescência, ao modo: “Ele é adolescente, com a idade isso passa.” Ora, trata-se de considerar o sofrimento expresso no sintoma, um pedido singular de dizer. Tal como J.-A. Miller formulou em seu curso, o parceiro do sujeito é o sintoma, formando com o sujeito “o casal do gozo” (MILLER, 1998). Na falta de resposta de um Outro, ele convoca um sintoma para fazer o Outro existir através dos significantes que ele sustenta em seu nó. A psicanálise pode permitir ao adolescente decifrar seu sintoma desde que ele encontre os meios de resolver o seu “não quero saber de nada”, que visa proteger seu modo de gozar.

Uma Demanda De Bem-Estar

É o problema que essa adolescente, Anne, de 17 anos, trouxe com ela quando entrou em minha sala aos tropeços, durante as primeiras consultas. Ela se assentava, fixava os olhos no teto e o sorriso extasiado exprimia o gozo que lhe tomava todo o seu ser, e, assim, em minha presença, ela se ausentava. Dominada por drogas pesadas, ela permanecia imóvel e muda por uma eternidade. Ela veio ao meu encontro em consideração ao amigo de infância que não suportava mais vê-la perdida, sem rumo, e lhe falou da sua análise começada há dois anos, insistindo para que ela me procurasse. Ela era, no entanto, incapaz de atender a esperança que ele tinha por ela, pois, ao contrário, ela me confiava o orgulho que tinha da sua vida marginal, seguindo seus amigos de errância pelas ruas, onde dormia por vezes.

Em seus momentos de lucidez, no entanto, ela era tomada de angústia com a ideia de não haver mais lugar algum para ela. Foi com o passar dos encontros, aos poucos, que ela pôde descobrir a importância da presença de alguém que esteja ali e que queira ouvi-la. Contou-me de maneira fragmentada que se drogava há muitos anos. Primeiro “baseados”, drogas leves, álcool e, posteriormente, drogas pesadas. Indicou-me sua preocupação com a necessidade de aumentar as doses e diminuir os intervalos entre o uso dos tóxicos; pois a sensação de falta era insuportável. Eu a escutava sendo cuidadosa e discreta, sem emitir julgamento. Corajosamente, Anne arriscou uma demanda: que eu a ajudasse a encontrar um bem-estar.

Não havia alternativa que a de deixar-me guiar por essa demanda paradoxal, insistindo para que me explicasse o que ela queria dizer com isso – encontrar o bem-estar –, confiando na palavra que permitiria aos significantes tomar a frente sobre sua vontade de gozo. O desejo do analista só pode encontrar seu caminho se articulando a essa busca, trata-se “de fazer do gozo uma função e de lhe dar sua estrutura lógica” (MILLER, 2007, p. 26). O menor sinal que ela me dava era uma ocasião para lhe interpelar, mas no início expressava apenas a vontade de “atingir o nirvana”. Essa demanda estava na lógica da sua fantasia, que ela colocava acima de tudo, inclusive do nosso encontro.

De onde lhe vinha essa vontade desenfreada de gozo? Ela tomou essa questão para si e, pouco a pouco, evocou lembranças, fornecendo, assim, a prova de que “antes de tudo o sintoma é o mutismo no sujeito supostamente falante” e que “é propriamente no movimento de falar que a histérica constitui seu desejo” (LACAN, 1973, p. 16). O intervalo do uso de tóxicos foi aumentando, a relação transferencial se estabeleceu.

A Busca Por Gozo Absoluto

Quando criança, ela observava a relação de seus pais, suas brigas, e não suportava nem a violência do seu pai sobre sua mãe nem a conformidade desta. Esse era o acordo sintomático de seus pais. A discórdia, portanto, representava para ela uma objeção à relação sexual; ela se perguntava o que os mantinha juntos. Ela os espiava à noite pela porta aberta do quarto deles, se deixando cativar pela cena primitiva. Da qual ela deduziu que o gozo sexual era o que fazia a relação sexual, desenvolvendo em excesso seu imaginário sobre esse plano. Ela se deu conta de que suas divagações infantis foram exacerbadas pelo ciúme, em sua posição de filha única, remoída de solidão perante seus pais.

Anne pensava que iria conhecer a “vida de verdade” quando tivesse relações sexuais. Ela não se esforçava e era boa aluna, mas a escola não parecia despertar nela o menor interesse, já que não esclarecia o que lhe era importante. Ela se empenhou desde muito jovem a conquistar rapazes, para dar forma a sua idealização da pulsão sexual (LACAN, 2006). Aos doze anos ela fugia de casa e matava aula. Apesar de tudo, ela passava de ano, mas deixou a escola durante o final do segundo grau para romper com os hábitos de encontros e adições e estudar para o vestibular em um local isolado, o que lhe permitiu ser aprovada, por pouco. Ou seja, ela se protege do pior, mantendo uma certa vigilância, para não perder-se completamente.

Insatisfeita, Anne multiplicava seus encontros, pois ela ainda acreditava “no Um da relação, relação sexual” (LACAN, 1975, p. 13), não querendo reconhecer que o gozo sexual é marcado pela sua impossibilidade. Essa fantasia, no entanto, se enfraquecia a cada novo encontro ruim, colocando-a em perigo. Mas, ela guardava a esperança de ser preenchida, atestando sua recusa em assumir que toda relação se amarra na dimensão do fracasso e que sempre é “o encontro, no parceiro, de sintomas, de afetos, de tudo que em cada um marca o traço de seu exílio […] da relação sexual” (Ibid., p. 132).

O período de sua adolescência se fechou no fracasso de sua busca e suas decepções repetidas a levaram a rapazes que consumiam álcool, drogas leves e, depois, drogas pesadas. O consumo de substâncias tóxicas com um parceiro sexual lhe deu por um momento a ilusão de realizar seu fantasma de gozo absoluto, mas bem cedo não teve mais relações sexuais, o falo, deixou de estar nos encontros. Ela e seus companheiros de miséria mergulharam em um mortífero gozo autoerótico, desertando de sua própria existência.

O Romance Familiar

Um dos primeiros efeitos da palavra no dispositivo analítico foi o de dar status de sintoma à adição da qual Anne começou a se queixar e sentir como um sofrimento. Ela revelou ter tentado várias vezes se suicidar, testemunhando assim que o “hedonismo é um sonho” e que “o gozo além do princípio do prazer, […] indica o horizonte da pulsão de morte” (LAURENT, 2007, p. 18). Mas se separar do objeto de gozo criou um vazio, a angústia decorrente a levou a elaborar seu romance familiar no dispositivo analítico que “se encontra no lugar da falta de relação sexual” (LACAN, 1975, p. 187), o que permite a emergência de um novo saber.

A experiência analítica lhe permitiu exumar lembranças de sua primeira infância. Ela se lembrou de que era tratada como uma pequena rainha pelos seus pais, situação da qual ela se aproveitava exageradamente. Objeto de uma ternura excessiva do seu pai, ela era insaciável e provocava inveja em sua mãe. Ela não suportava frustrações nem as obrigações e afastava agressivamente tudo o que a incomodava em seu caminho. Ela submetia seu cachorro aos piores e mais humilhantes tratamentos, e ele permanecia dócil. Ela se lembrou de situações em que se sentiu transportada em um transe, como aconteceu em uma festa em torno de uma fogueira que a mergulhou em um estado hipnótico do qual que seus pais não conseguiam lhe arrancar.

Ela reuniu o que sabia sobre seu pai e interrogou-o sobre o que ainda ignorava: filho único, origem judia, ficou escondido em Paris com seus pais quando ainda era uma criancinha, durante a guerra 39-45. Perdeu sua mãe ao final da guerra, morta de frio e de fome. Durante essa época, assim que pôde, saía sozinho às ruas à procura de comida e informações. Físico, homem erudito, descrito por ela como um leitor assíduo, buscava informações constantemente e se apoiava nesse saber para se confortar na ideia de que a humanidade iria se perder. Isso causava horror em Anne, e a admiração pelo seu pai se desdobrava assim em hostilidade, já que ela atribuía o cinismo e a violência do seu pai a essa lucidez. Ela observava também que a cultura da sua mãe era inócua, dada sua posição masoquista perante o marido. Ela passou a sentir repulsa pelo saber e se sentia, assim, justificada a viver a vida segundo seus impulsos.

Tratava-se de fazê-la perceber que se seus motivos de recuo face ao saber eram sérios, ela, no entanto, os utilizava de abrigo para encontrar conforto em um modo de vida. A falta de eficácia do saber de seus pais não a dispensava de se aventurar na direção do que poderia lhe esclarecer e orientar. A consideração pelas identificações a seus pais –masoquista como sua mãe, violenta como seu pai – abria o caminho para um novo saber, o saber inconsciente. Ela, que acordava à noite sem saber porque gritava, e dizia nunca sonhar, um dia veio correndo contar um sonho em uma sessão. “Meu pai me perseguia. Eu queria me suicidar e cortava a garganta do meu pai.” Ela descobre, por esse sonho, o traumatismo que constitui para ela a relação a seu pai. Ela interpreta sua deriva aditiva e suicida e se extrai do que ela é como “sintoma […] do casal familiar” (LACAN, 2001, p. 373). Ela quer resolver a angústia que suscita o amor mortífero de seu pai. Ela percebe em seguida que o verdadeiro conflito não está entre seus parentes e ela, mas sim entre ela e si mesma, entre seus impulsos e sua razão, entre gozo e saber.

Do Significante Ao Indizível

Sua morbidez se reduzia, e Anne começava a levar a sério a questão do saber, considerando sua escolha do estudo com um outro olhar. Ela havia se inscrito em belas artes supondo que esse seria o curso que a dispensaria da necessidade de fazer apelo ao saber. Acreditava que bastaria deixar-se levar pela sua livre expressão. Mas, impedida de seguir qualquer curso por conta de seu estado, ela começou seu curso apenas no ano seguinte, depois de fazer uma nova inscrição; só então ela começou a explorar a dimensão inconsciente da sua relação com a arte. Adolescente, ela modelava personagens fazendo caretas, expressando diferentes lados da dor, mas ela os destruía nos momentos de crises de cólera com seus pais, ou, quando se sentia muito solitária, os quebrava jogando contra muros ou espelhos, como se fosse, assim, exorcizar seu sofrimento. Esforçando-se para seguir os cursos na universidade, ela começou a pintar também. Ela me disse não suportar a arte contemporânea porque as deformações lhe angustiavam, e, apesar disso, suas telas eram muito sombrias, não figurativas. Eu lhe fiz reparar que ela passou de modelagens figurativas a uma pintura abstrata. A experiência analítica, lhe colocando na trilha significante de sua existência, lhe abria a via de uma expressão pela pintura ligada ao seu gozo.

No decorrer da análise, seu pai adoece gravemente. Enfraquecido, ele não conseguia mais se debater com os horrores da sua infância, deixando a angústia emergir, o que tinha efeitos deletérios sobre a subjetividade de Anne. Esse quadro era aprofundado nas sessões de análise, mas a parte indizível era passada para sua pintura em modo não figurativo testemunhando o “irrepresentável” (WAJGMAN, 2000, p. 35) que seu pai fazia pesar sobre ela, sabendo que “o acontecido não pode ser figurado, nem dito” (Idem). Se o quadro, tradicionalmente, é uma janela sobre o mundo assim como o quadro da fantasia, a pintura abstrata “faz quadro de um fora da história” (Ibid., p. 42), consiste no projeto de fazer quadro da ausência de objeto (Ibid., p. 44). Assim, Anne participa da “arte não como um lugar de consolação, de esquecimento, ou de uma traição, mas ao contrário como esse lugar onde o irrepresentável viria se mostrar” (Ibid., p. 48). Ela encontra uma forma de expressão que inventou e que faz suplência à relação sexual que não existe. Sua pintura, que não tem sentido algum, tem “efeito de sentido”, o de considerar um período da história e seus efeitos subjetivos – “um efeito de gozo” –, apaixonada por sua experiência artística, ela expõe suas telas – e “um efeito de não relação sexual” –, ela fala de arte com seus companheiros, ela está com eles em uma conquista de saber e não mais em “uma demanda de felicidade” segundo a lógica de sua fantasia.

 

Tradução: Renato Sarieddine
Revisão: Márcia Mezêncio

 


Bibliografia
FREUD, S. (1912). “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” (Vol. 11, 2ª Ed). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987a.
FREUD, S. (1930). “O mal-estar na civilização”. (Vol. 21, 2ª Ed.). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987b.
FREUD, S. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. (Vol. 7, 2ª Ed). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. “La troisième”, Lettre de l’E.F.P. nº16, Paris: 1975.
LACAN, J. (1969 ) “Notas sobre a criança” In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1938) “Os complexos familiares na formação do individuo” In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, É. “Les enjeux du congrès 2008”, Lettre mensuelle, nº261, septembre/octobre 2007.
MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. In: Opção lacaniana, N. 42. Fevereiro de 2005.
MILLER J.-A. L’orientation lacanienne, “De la nature des semblants”, enseignement pronounce dans le cadre du département de psychanalyse de Paris VIII, aula de 29 de janeiro de 1992, inédito.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne “le partenaire symptôme” en seignement pronounce dans le cadre du département de psychanalyse de Paris VIII, aula de 18 de março de 1998, inédito.
MILLER, J.-A. Uma leitura do Seminário: de um Outro ao outro. In Opção lacaniana, 49. Agosto de 2007.
WAJGMAN, G. “A arte, a psicanálise, o século”, Lacn, l’écrit, l’image, Paris: Flammarion, 2000.

Hélène Deltombe
Hélène Deltombe – psicanalista, ECF e AMP. E-mail: helenedeltombe@gmail.com



O Sintoma Na Encruzilhada Dos Caminhos: Um Caso Extremo De Recusa

PIERRE NAVEAU

 

 

Propomos aqui apresentar o caso de um jovem de 15 anos, Adrien, que decidiu persistir numa posição de recusa radical. Seu sintoma é ser, inteiramente, recusa. Ele faz de si mesmo o signo de que há algo que não funciona neste mundo, que o mundo vai mal.

I Joyce O Sintoma

A fim de abordar esse caso extremo utilizando um vocabulário renovado, escolhemos tomar como referência o ultimíssimo ensino de Lacan e passar pela leitura e comentário de dois de seus textos que foram publicados por Jacques-Alain Miller com o mesmo título: “Joyce o sintoma”. De fato, esses dois textos evidenciam mais particularmente duas noções inéditas: portemanteau[1] e escabeau[2]. Parece-me ainda mais importante utilizá-las na medida em que esses dois termos do discurso corrente nos remetem a dois instrumentos que têm, cada um, sua utilidade.

O Portemanteau

Tomemos como ponto de partida a definição de sintoma dada por Lacan em seu Seminário RSI, por ocasião de sua aula de 18 de fevereiro de 1975. Lacan destaca que “o sintoma reflete no real, o fato de que algo não funciona, onde? – não no real certamente, ele esclarece, mas no campo do real” (1975, p. 105). Lacan faz alusão, me parece, à distinção que ele introduziu entre os três campos do real, do simbólico e do imaginário, que se entrecruzam em um nó específico – o nó borromeano. Ele indica, então, que há “coerência” (Ibid., p. 106), como ele diz, entre o sintoma e o inconsciente. A esse respeito, ele argumenta que o sintoma se define pela “maneira como cada um goza do inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina” (Idem). É, portanto, notável que Lacan, em sua conferência de 16 de junho de 1975, venha a afirmar que, paradoxalmente, Joyce, o sintoma, é também Joyce enquanto “desabonado do inconsciente” (LACAN, 1975, p. 1610). Joyce é um sintoma, na medida em que o vínculo entre o sintoma e o inconsciente é rompido. O sintoma está, no caso de Joyce, desconectado do inconsciente. Portanto, uma questão se coloca: do que Joyce goza? Para responder a essa questão, Lacan não nos remete ao início da vida de Joyce, isto é, ao seu livro inaugural, no qual ele narra sua vida, Retrato do artista. Ele convida seus ouvintes a ler a sua última obra, Finnegans Wake. Cada palavra, ou quase, ele insiste, é um pun[3]. Um pun muito particular, ele esclarece. Muitas palavras não são jokes, chistes, mas o que Lewis Carroll chama em inglês de portmanteau, isto é, “mots-valises[4]” ou “palavras-portemanteaux”. O termo portmanteau aparece, na escrita de Lewis Carroll, no capitulo VI de Through the Looking–Glass, quando Alice pede a Humpty Dumpty que ele lhe explique o poema que ela não entende, e que se intitula Jabberwocky (CARROLL, 2010, p. 246). Humpty Dumpty ensina a Alice que uma palavra-portemanteau é uma palavra que contém várias significações, de fato várias palavras. Por exemplo, slictueux significa “flexível, ativo e untuoso” e flivoreux quer dizer “frívolo e infeliz” (Ibid., p. 247-248). Nesse fragmento de frase, que se encontra no início do sétimo capítulo de Finnegans Wake e que concerne o personagem de Shem: “também Shem em pessoa, Doctateur, pegou a recompensa” (JOYCE, 1997, p. 269), fica claro que a palavra doctateur contém, ao mesmo tempo, as palavras “docte, docteur e dictateur”[5]. Podemos, portanto, dizer do poema de Lewis Carroll o que Lacan diz de Finnegans Wake: “leiam as páginas de Finnegans Wake, sem tentar entender. Pode-se ler isso. Se pode-se ler isso (…) é porque sentimos a presença do gozo daquele que escreveu isso” (LACAN, 2007, p. 160). Segundo Lacan, o gozo de Joyce deve ser relacionado, portanto, não ao duplo sentido do joke (chiste), mas às múltiplas significações do pun. Joyce goza do uso que ele faz da palavra-portemanteau. É, quando ele escreve, sua maneira de gozar da linguagem. Joyce recusa o equívoco da língua que ataria, como no chiste, o laço com o Outro. Joyce diz Lacan “se proíbe de jogar com os equívocos que mexeriam com o inconsciente de qualquer um” (Ibid., 162). Apesar de seus dois nomes fazerem ressoar o riso da alegria, há um abismo entre Joyce e Freud. Desse ponto de vista, Joyce é sintoma, se faz sintoma, porque o que ele escreve não se endereça ao inconsciente do Outro, “não… Concerne em nada”, esclarece Lacan (Ibid., 161), o leitor. “Não há qualquer chance”, acrescenta Lacan, de que o que ele escreve “retenha algo do nosso inconsciente” (Ibid). O laço com o Outro se desfaz. Não se trata de criar um sentido, mas de destruí-lo, de aniquilá-lo. A língua inglesa, como observa Lacan, é, para Joyce, “a língua dos invasores, dos opressores” (Ibid., 162). É uma língua imposta. É por isso que há, para ele, esse gozo destrutivo que consiste em despedaçar a carne de uma língua. O que conta não é o sentido e sim o gozo, esse gozo, diz Lacan, “é a única coisa de seu texto que nós podemos alcançar” (Ibid, p. 163). É, de fato, o que toca o leitor de Finnegans Wake. Ele fica estupefato. O sintoma que Joyce constitui na cultura é rebelde ao sentido. Ele encarna a opacidade, essa estrutura de linguagem que apresenta a particularidade de ser, segundo a definição de Lacan, um real que exclui o sentido (LACAN, 1975-76, p. 20 e p. 34). É por isso que um tal sintoma se situa nesse limite, que é o de um caso extremo. Lacan faz, então, entrar em cena o termo escabelo, quando ele diz que Joyce “reservou (para Finnegans Wake) a função de ser o seu escabelo” (LACAN, 2007, p. 160-161). Assim, Finnegans Wake é o escabelo no qual Joyce se empoleirou mantendo-se à beira do ininteligível! Nessa perspectiva, que se abriu para ele do alto de seu escabelo, seu nome, como ele havia predito, lhe sobreviveu. Como diz Lacan em seu Seminário sobre Joyce, este quebrou o Nome-do-Pai e escolheu o Nome contra o Pai. Ele rejeitou o Pai e preferiu o Nome ao Pai (LACAN, 2007). Ele recusou ser tolo do pai (être la dupe du père).

O Escabelo

No texto publicado em Outros escritos, que tem igualmente o título de “Joyce o sintoma”, Lacan (2003) destaca o termo escabelo. A palavra escabelo aparece no Retrato do artista, quando Joyce conta que seu pai falou com ele de uma maneira incompreensível no momento em que, precisamente, ele estava assentado em um escabelo: “Stephen estava assentado em um escabelo, ao lado de seu pai, prestando atenção ao seu longo e incoerente monólogo” (JOYCE, 1992, p. 118, tradução nossa). Lacan indica que a arte de Joyce é o resultado, o efeito do orgulho que o levou a subir em seu escabelo de artista e a escrever como ele escreveu. É nesse sentido que Joyce não é um santo. Pois, diz Lacan, só há santo se quisermos escapar dessa posição extrema (LACAN, 2003, p. 562). O santo é, ele esclarece, aquele que escolhe a escapada (to escape quer dizer, em inglês, “escapar a”) e que se castra de seu escabelo, do escabelo de seu orgulho (Idem). Lacan evoca, a esse respeito, “a castração do escabelo”, o que ele chama a “escabeaustration[6]” (Ibidem, p. 563). O pecado de Joyce, o sin que Lacan acentuou, não é a concupiscência, como o próprio Joyce tende a dizê-lo em seu Retrato do artista, mas o orgulho. Joyce quis se tornar o mestre da língua inglesa com o intuito de destruí-la. O dizer de Joyce, que rejeitou a psicanálise, se diferencia do dizer de Freud e do dizer de Lacan, que se viram, um e outro, às voltas com o desejo do analista. Lacan evoca o dizer de Joyce quando ele afirma que “Joyce queria não ter nada, exceto o escabelo do dizer magistral” (Idem), isto é, de um dizer de mestre. Lá onde o histérico é escravo da linguagem que, tal como uma cisalha, recorta seu corpo, Joyce escolheu ser o mestre dela, para torcê-la a ponto de quebrá-la. Ele não quis que o que ele escrevesse fosse compreendido, ele se manteve à beira do incompreensível. Como Lacan destaca, “à beira do incompreensível é (nesse caso extremo) o escabelo do qual nos mostramos mestre” (Ibidem, p. 566). Para caracterizar a posição de “não-santo” de Joyce, Lacan inventa, assim, a palavra-portemanteau artgueilleusement[7]. Joyce, diz Lacan, escabote[8] através de sua arte. Ele escamoteia a castração do escabelo. Como? Graças a seu savoir faire. Ele tem um saber fazer com a matéria sonora das palavras que o singulariza. Lacan inventa o verbo escaboter: ele “é o primeiro, ele chega até mesmo a dizer, a saber escaboter[9] muito bem por ter levado o escabelo a um grau de consistência lógica onde ele o mantém” (Ibidem, p. 565). Finalmente, a tese de Lacan é a de que um certo gozo da opacidade desperta: “Só há despertar, de Wake, afirma ele, através desse gozo” (Ibidem, 566). Desse ponto de vista, Lacan, aliás, faz uma aproximação entre Joyce e ele mesmo (Idem).

A Vontade De Morrer De Um Jovem

O jovem, cujo caso eu proponho evocar aqui, é, como Joyce, um sintoma. Como é que esse sintoma se manifesta? É a essa questão que temos de responder, nos apoiando nas noções inéditas que acabaram de ser expostas.

A Dita “Tentativa De Suicídio”

Adrien tem quinze anos. Ele ficou hospitalizado por um ano, em um hospital psiquiátrico, porque fez o que ele chama de “uma tentativa de suicídio”. Eu o encontrei, uma única vez, por ocasião de uma apresentação de enfermos que aconteceu em um hospital-dia para adolescentes. O que Adrien chama de “sua tentativa de suicídio” é, na verdade, algo singular. Ele tinha estocado os medicamentos no armário de seu quarto. Soulian e Prozac. Sua mãe percebeu isso quando o ajudava a arrumar o quarto. Ele os tinha escondido na caixa onde sua mãe guardava sua flauta transversa. Ele tinha decidido se suicidar. Sua mãe descobriu os medicamentos estocados dois dias antes da data que ele tinha escolhido para passar ao ato. A caixa onde sua mãe guarda a flauta tem um fundo falso. Ela teve a ideia de levantar o fundo. Se ela não tivesse pensado nisso, não teria encontrado os medicamentos que ele tinha escondido. Faltou pouco para que ela não tivesse feito isso. Adrien insistiu sobre o caráter contingente do incidente. Se sua mãe não tivesse descoberto os medicamentos, dois dias depois ele teria tomado uma garrafa de água e os teria engolido. Ele pensou em suicidar-se dessa forma quando esteve em um hospital psiquiátrico. Uma adolescente tinha tomado medicamentos. Vinte e cinco, ela contou. Foi por isso que ele escolheu dobrar a dose e estocar cinquenta. Assim, acrescentou, ele tinha certeza de que morreria. Ele pensava ter chegado a esse ponto extremo, que é o da certeza de morrer. Ele apostava, portanto, nessa certeza. Ele tinha feito disso uma aposta. Certamente, como Lacan chegou a dizer, a única coisa de que temos certeza é de que vamos morrer. Mas Adrien queria ser o mestre da certeza de morrer. Estocar os medicamentos em quantidade suficiente significava para ele tornar-se mestre dessa certeza.

A Rivalidade Com O Irmão

Adrien tem um irmão mais velho, Damien. Ele não se dá bem com seu irmão. Este é um ótimo aluno, bem sucedido. A pior nota do irmão é sua melhor nota. É por isso que Adrien se considera um fracassado. Eu pergunto se ele reconhece em si uma qualidade. Ele responde que não tem nenhuma. Eu arrisco então e digo que, ouvindo-o dizer o que se passa com ele, percebe-se imediatamente que ele é um rapaz inteligente. Ele retruca rapidamente: “De jeito nenhum, eu não sou inteligente”. Mostro, então, que ele não aceita que as pessoas reconheçam nele alguma qualidade. Ele diz que se ele faz um julgamento tão severo de si mesmo é porque ele se compara com seu irmão. Aliás, um colega um dia lhe disse: “Você é realmente um idiota!” Ele viu pelo seu olhar e pelo tom de sua voz que esse colega realmente pensava o que dizia. De fato, Adrien pensa que ele é um cretino. Ele poderia ter dito: Eu sou um tolo ou Eu sou um imbecil, ou ainda Eu sou um idiota. Mas Adrien gosta de dizer Eu sou um cretino (Je suis um crétin), porque, como ele mesmo explica, Adrien rima com crétin (“Adrien le crétin, ça consonne”).

Seu Pai E Sua Mãe Não Gostam Dele

Seu pai é engenheiro. Sua mãe é jurista. Adrien diz, de forma surpreendente, que eles são cool. Eu pergunto: “Seu pai gosta de você?” “Não!”, ele me responde. Seu pai e ele nunca se beijam, nem para se cumprimentar nem para se despedir. Eu pergunto se alguma vez seu pai o abraçou. Ele também responde que não. Ele não conversa muito com o pai. Se ele faz uma pergunta, o pai logo se irrita. Adrien diz que não gosta de sua mãe. Eu pergunto se ela fica preocupada com o que acontece com ele. Ele me responde que não. “Ela fica transtornada?” “Não!” “Ela fica assustada?” “Não!” “Sua mãe lia histórias quando você era pequeno?” Qual não foi minha surpresa quando ele me respondeu que ela lia para ele e para o irmão o Código Civil! Foi então que Adrien disse uma coisa impressionante. Sua mãe, que é jurista, lhe disse: “Quando você tiver dezoito anos, você será livre para se matar.” Em outros termos, ela lhe dá a entender que, quando ele tiver dezoito anos, será responsável por seus atos. Sua mãe estará livre dessa responsabilidade. Estupefato, saiu do fundo do meu coração e eu gritei: “Sua mãe é completamente louca!”. Mas Adrien, no auge da entrevista, perde a paciência. Ele diz: “Eu não estou nem aí, nem para a minha mãe nem para o meu pai. Eu sou obcecado pela morte. Eu só penso nisso!”. Ao tomar como axioma a escolha de identificação com a certeza da morte, Adrien é então levado a evocar o pensamento da morte. Há para ele uma relação entre o eixo de sua existência, que é aquele da vontade de morrer, e o pensamento da morte. A única coisa que o separa da passagem ao ato é o pensamento. Seus pais lhe são indiferentes, ele afirmou, porque ele pensa constantemente não neles, mas na morte. É essa indiferença que ele projeta neles ao pronunciar essas palavras desiludidas: “Eles me ignoram completamente. Eles não estão nem aí para o que está acontecendo comigo”. Ele chegou até mesmo a dizer que pensou em matá-los, que tem esse poder. Uma noite, ele se levantou e foi até a cozinha, pegou uma faca na gaveta e a colocou de volta. “Eu pensei, naquele momento, declarou ele, que poderia degolá-los.”

Ser O Mestre

Esse jogo com Adrien exige muita prudência e habilidade. Ele diz: “Eu quero morrer”. Eu lhe mostro que temos o direito de não concordar com ele. Ele responde que, se temos o direito de não concordar, não temos, entretanto, o direito de impedi-lo de se matar. Eu tomo partido e digo que isso pode ser discutido. “Se não nos opusermos a essa intenção, podemos ser acusados de não-assistência à pessoa em perigo. Que ele seja maior ou menor pouco importa. O que importa é que a responsabilidade de cada um é colocada em questão, a partir do momento em que ele declara sua recusa de viver e sua vontade de morrer. Quando ele afirma: ’Eu tenho o direito de me matar se eu quiser’ e insiste no que ele considera como seu direito mais íntimo, ele dá a entender que ele é o mestre de sua vida e de sua morte, que ele tem, de um certo modo, um direito soberano de vida e morte sobre ele, e, portanto, sobre seu próprio corpo.” Meu sentimento é, de fato, que é através de sua vontade de morrer que Adrien quer vencer o obstáculo, que pode fazer dele um mestre. Ele diz ser o mestre de sua vida e de sua morte, mas ele parece acreditar que só será o mestre se ousar enfrentar a morte, se ele se matar. Ele será, então, o assassinado, o morto, o cadáver. Ele terá se tornado, portanto, equivalente ao Um do traço que se conta. Adrien, com essa vontade, se identifica, então, à certeza do traço, da marca irredutível que se escreve. É, precisamente, a definição que Lacan dá do mestre, segundo Hegel, em seu Seminário 16 (LACAN, 2008). O mestre é aquele que se identifica ao traço do Um. Ser o mestre é se imobilizar, é se fazer um. Ele dá a impressão de que, se ele não se mantiver nessa posição extrema, nesse lugar de uma experiência limite, então nada se sustenta, nada é certo, nada vale.

O Escabelo Do Orgulho

Eu lhe pergunto se, de vez em quando, ele tem o sentimento de que alguém o aprecia, gosta dele. Ele responde que não. Visivelmente, o desejo do Outro lhe causa horror. A única coisa que ele pôde dizer a esse respeito foi que, nesse hospital-dia, ele é um “paciente especial”. Não poderíamos argumentar que nesse “eu sou um paciente especial” aparece uma ponta de orgulho? Não poderíamos arriscar em dizer que Adrien se empoleirou no alto do escabelo de seu “Eu quero morrer e nada pode me impedir”? Adrien, com o seu Eu quero morrer, para retomar a palavra de Lacan, escabote, pois ele não demonstra nenhuma aflição, nenhum pesar, nenhum desespero, nenhum abandono. Ele privilegia uma intenção, uma decisão, uma vontade pura. Ele escolheu o nada ao invés do ser. Ele tropeça no ato. O que lhe falta é o ato. Em seu caso, não se trata da morte como ato falho, mas da morte como ato faltante. Se podemos dizer dessa forma, isso lhe falta terrivelmente. É, aliás, nessa perspectiva do ato a ser realizado que ele encontra seu único ponto de apoio. Não sem uma ponta de desafio, como se ele quisesse me dar uma rasteira, ele não pôde deixar de dizer, no fim da entrevista, que ele sabia agora como proceder para se matar.

O Desinteresse Pela Língua

O Eu quero morrer é, então, para Adrien, uma ideia fixa. Ela está parafusada em sua mente. Eu arrisquei tudo e lhe perguntei se ele não gostaria de mudar essa ideia fixa. Esta, triste, poderia ser desparafusada, e uma outra, mais alegre, poderia ser parafusada no seu lugar. Esse meu modo de falar não o fez rir. O tom de comédia não lhe convém, destoa, é dissonante. Eu então lhe perguntei se ele se sentia deprimido. Ele ficou com raiva. Ele não está deprimido, explicou ele, ele é um suicida, não é a mesma coisa. Ele colocou os pontos nos is: a única coisa que o interessa é o suicídio. Ele decidiu se matar, é tudo. Ele é fascinado pelo vazio, é assim. Quando ele tinha sete anos, pensou em se jogar pela janela. No momento de concluir a entrevista, eu perguntei: “Você escreve?”. Ele me respondeu que, uma vez, ele escreveu uma história, um esboço de um romance, ele explicou. Uma mulher é estuprada. Uma criança nasce desse estupro. Um menino, talvez. Quando cresce, essa criança mata sua mãe. Esse foi o cenário que ele conseguiu articular. A relação sexual é um estupro. E a relação entre a criança e sua mãe só pode passar por um assassinato. Que significação dar a essa sequência trágica? A única coisa que pode ser dita é que essa história curta dá a entender que é somente na morte que a criança não é separada da mãe. Essa ficção, reduzida a sua expressão mais curta, não seria uma tentativa desesperada e vã de escrever o que não pode se escrever – a relação sexual? Em todo caso, o que se escuta no que Adrien conta do que ele escreveu é que ele não tem nenhum gosto pela língua enquanto tal. Ser o Mestre, para Adrien, é não ser, como Humpty Dumpty acredita ter-se tornado, o mestre das palavras. As palavras não são nada e nada fazem por ele. As histórias não lhe dizem nada. Adrien está longe, muito longe do jogo das palavras. Cada criança tem seu mundo. Adrien tem o seu. Nesse mundo, a palavra-portemanteau, que intriga tanto Alice e apaixona Deleuze (2011), não convém. Mas se fosse preciso arriscar a inventar uma nova palavra-portemanteau para caracterizar a posição subjetiva de Adrien, talvez possamos propor a seguinte: horsgueilleusement, que faria ressoar o orgulho de estar fora de, isto é, ao mesmo tempo, o orgulho e o fora de, o fora do mundo, do discurso, do laço social. A esse respeito, Adrien está só. O grito de Adrien, se pudermos falar assim, é: “Acabou a tagarelice!”. Já se falou muito, Humpty Dumpty significa isso com uma palavra insólita: Impenetrabilidade. É desse ponto extremo do muro da impenetrabilidade que Adrien se aproxima. A única saída possível é então a passagem ao ato.

Para Concluir

O sintoma ao qual Adrien então se identificou é um: Eu quero morrer. Esse Eu quero morrer é a fórmula geral da pulsão de morte e nos remete à posição que Aristóteles dá como exemplo da Proposição Universal Afirmativa (PUA): “Todo homem é mortal”. Lacan (2003, p. 450) observa – essa PUA joga todo homem nas contas da morte, inscreve todo homem sob o traço da mortificação. Como Lacan indica, então, a morte é, desde então, possível. Para Adrien, trata-se exatamente de fazê-la passar da modalidade do possível à modalidade do necessário. Podemos dizer de Adrien o que Lacan diz de Moritz no seu prefácio do Despertar da primavera, de Wedekind: ele é “um não-tolo” (Ibidem, p. 559). Adrien aspira, de fato, como Moritz, levar a cabo o ato que barra o significante, que recusa a vida, nega a palavra e faz objeção ao laço social. Ele prioriza o ser-para-a-morte ao invés do ser-para-o-sexo (LACAN, 2003, p. 362–363). A fantasia é impossível. O desejo se esvanece. O sintoma de Adrien, em sua radicalidade, está assim desconectado do inconsciente. Afinal, podemos falar de Adrien como Lacan fala de Joyce – ele é desabonado do inconsciente. E encontramos em Adrien o que encontramos em Joyce – a recusa do inconsciente e a recusa desse pesadelo que é a história. O ponto comum entre Adrien e Joyce, guardadas as devidas proporções, é o fato de se situar num ponto extremo. Desse ponto de vista, o sintoma de Adrien é inanalisável. Adrien quer se fazer ilegível. Trata-se, para ele, de escapar a toda leitura possível, e, para sempre, apagar-se totalmente.

 

 

[1] NT: peça de madeira ou de metal fixada na parede, que serve para pendurar roupas, casacos e outros objetos.
[2] NT: pequena escada com poucos degraus. Em português “escabelo”, que tem o mesmo sentido, mas tem um uso restrito em nossa cultura.
[3] NT: Pun: do inglês, trocadilho, jogo de palavras
[4] NT: Mot-valise: palavra composta por pedaços não significantes de duas ou várias palavras.
[5] NT: douto, doutor e ditador.
[6] NT: Palavra formada por escabeau + castração.
[7] Palavra formada por “art” (arte) + “orgueilleusement”, (orgulhosamente). Traduzido em “Outros escritos” como “orgulhartosamente”.
[8] Aqui Lacan joga com “escamoter” e “escabeau” e faz um novo “mot-valise”.
[9] Traduzido em “Outros escritos” para “escabelotar”

 


Tradução: Cristina Vidigal e Maria Bernadete Carvalho
Revisão: Márcia Bandeira

Bibliografia
CARROLL, L. Através do espelho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
DELEUZE G. Lógica do sentido. São Paulo: Ed.Perspectiva, 2011.
LACAN, J. Le Seminaire, livre XXII, “RSI” in Ornicar? N. 4. Paris: Lyse, 1975.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007 (Seminário proferido em 1975-1976).
LACAN, J. “Joyce o sintoma”. In: O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007 (Conferência proferida em 16 de junho de 1975).
LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. “Joyce, o sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar de primavera”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.



A Adolescência Como Abertura Do Possível

MARCO FOCCHI

FOTO: Jesse Barbosa , Sr. Ka.FOTO: JESSE BARBOSA , SR. KA.

A adolescência não é um conceito clássico da psicanálise, mas uma referência de Freud (1976a) pode, no entanto, ajudar-nos a nos orientar nessa questão. Trata-se de seu artigo de 1889 sobre as lembranças encobridoras. Freud esclarece seu caráter híbrido, dizendo que elas utilizam ao mesmo tempo um material infantil e reformulações sucessivas a fim de responder a questões que são colocadas numa idade mais tardia.

Tal como sabemos, as lembranças encobridoras não refletem, ou refletem apenas em parte, episódios pertencentes à infância; elas são mais do que tudo (não são mais que) montagens tardias realizadas com um efeito (de) a posteriori. A idade na qual a maioria dessas lembranças se forma se deduz facilmente das necessidades às quais elas vêm responder. São aquelas, shilerianas (FREUD, 1976b) a partir das quais Freud forjou o primeiro modelo da noção de pulsão: fome e amor (1976a).

A partir do momento em que o sujeito sai do enquadre simbólico da família para se abrir para o espaço do mundo, se impõem a ele as primeiras escolhas concernentes à direção a dar à sua existência, seu lugar na sociedade e na orientação de seus sentimentos para novos objetos de amor. Para enfrentar o inédito e o desconhecido, o sujeito se serve do que tem à sua disposição. Os traços e as experiências infantis são então retomados nesse contexto modificado; misturados com temas atuais, eles traçam as pistas ao longo das quais buscar uma satisfação adequada a essas novas exigências.

As lembranças encobridoras, com sua natureza composta, constituem assim um limiar, uma fronteira temporal entre a infância e o horizonte transformado da vida. As questões fundamentais às quais elas devem responder são aquelas do sentido da vida e da morte, que se colocam na adolescência num plano diferente daquele da infância. Devemos acrescentar a isso aquelas do amor a partir do momento em que o sujeito abandona seus antigos objetos para se abrir a novas possibilidades.

Maturação E Adaptação?

A concepção da adolescência definida por nós a partir do limiar que são as lembranças encobridoras difere daquela de Erik Erikson (1976), que a apresenta como uma fase do desenvolvimento na qual a identidade se constrói numa perspectiva de adaptação, ou ainda daquela de Peter Blos (1967), que interpreta a adolescência subdividindo-a em diferentes fases: uma primeira fase de pré-adolescência, caracterizada pelo crescimento da pressão pulsional, uma segunda fase comportando um processo de separação dos pais e a construção dos ideais, uma terceira na qual o sujeito é pressionado pela busca de um objeto de amor, e enfim uma fase tardia em que o sujeito atinge uma posição sexual e genital definitiva.

Depois do estudo clássico de Stanley Hall, a adolescência, que se tornou um capítulo da psicologia evolutiva, é considerada como uma condição particular da passagem entre a idade infantil e a idade adulta, isto é, a maturidade realizada. Mas, precisamente, essa definição formulada como um simples truísmo nos parece problemática. Tomar a adolescência como uma fase de transição de um estado para outro significa que se considera como adquirida a definição de um início e de um fim, de um ponto de partida e de um objetivo a se atingir. A ideia de uma consecução que definiria a idade adulta não se sustenta a não ser se se raciocina em termos de normalidade, isto é, de adaptação, e não é por acaso que são os autores da ego psychology os que mais se consagraram a esse tipo de estudo.

Os autores kleinianos adotaram uma perspectiva diferente. Donald Meltzer (1991) centra o problema, sobretudo, sobre o saber. A queda do ideal que toca as figuras parentais concerne principalmente à pretensa onisciência deles, e, no desencantamento que se segue, o espirito se põe à busca da verdade como o corpo busca o alimento, encontrando diversas vias possíveis. Uma primeira via consiste na eventual regressão à posição infantil, o retorno à família, a recusa de andar para frente ou se afastar do ninho completamente. A segunda compete a se juntar ao grupo de pares, mas pode derivar em direção ao bando ou à horda. A terceira é aquela do isolamento. Resta, enfim, aquela da abertura ao mundo social, a mais próxima da normalidade, que permite a maturação e o acesso ao mundo adulto. Aí também, apesar de tudo, a argumentação é desenvolvida em termos de normalidade e de maturação, o que parece um escudo difícil de evitar quando se fala de adolescência.

Doldrums[1]

A leitura de Winnicott (1969) é mais pessoal apesar de ele não abandonar os temas clássicos sobre a adolescência: a desconfiança diante do quadro familiar, a necessidade de provocar, a busca da verdade e o evitar das falsas soluções. Mas ele nota também que o adolescente, no fundo, não quer ser compreendido, ele vê, por assim dizer, uma antítese entre a adolescência e a busca de compreensão. Na adolescência trata-se, sobretudo, de um tempo no qual o sujeito deve se compreender a si mesmo mais do que ser compreendido, e para isso ele deve se subtrair à compreensão prévia do Outro. Esse tempo é aquele dos doldrums, melancolias, depressões ou tristezas que dominam os humores nascentes, ou ainda um sentimento de mar cinzento ou ainda a alternância da calma plena e de tempestades súbitas como aquelas que se encontram sob alguns céus oceânicos.

Os doldrums do adolescente winnicottiano parecem refletir os versos de A música[2], da coletânea de As flores do mal. Depois de ter descrito a música tomando como um mar o poeta que, com o peito saliente, luta contra as torrentes na convulsão da tempestade das paixões, o poema se conclui com um contraste brutal: “— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrível me exaspera!”.

São esses versos que Joseph Conrad coloca exergo em A linha de sombra: uma confissão, um dos mais belos romances sobre a iniciação na vida. Eles reenviam à parte central do romance, a esmagadora calma planície no seio da qual o jovem oficial, em seu primeiro comando, vê colocada à prova sua tenacidade e sua coragem. Sobre a linha de sombra, sobre o limiar que se trata de atravessar, há, entretanto, dois obstáculos a ultrapassar. Um é os doldrums: enquanto o segundo oficial é tomado pelo delírio e a tripulação colocada fora de ação pela febre tropical, o jovem capitão deverá sair da imobilidade da calma planície por meio de suas próprias forças.

Mas antes ainda, para chegar ao navio, ele não deve deixar escapar a oportunidade de assumir o comando, ele deve tê-la e perceber que o pobre e miserável capitão Hamilton busca surrupiá-la dele. É então que o capitão Giles, velho lobo do mar com expertise no comando dos navios, mas também na arte de navegar na vida, vem ajudá-lo. O protagonista não percebe imediatamente a sabedoria do discurso de Giles, tomando-o por um simples idiota. O diálogo entre o protagonista e o capitão Giles é formidavelmente construído, as palavras deste último parecem nunca chegar ao ponto central, pois ele sabe muito bem que o que é crucial não pode ser dito diretamente; ele sabe que a oportunidade não pode ser explicada, mas apenas indicada, tal como uma interpretação analítica. O capitão Giles é o modelo por excelência daquele que sabe falar a quem ainda não conhece o que está em questão. Ele não acredita que suas palavras possam ser escutadas pelo neófito da mesma maneira que pelo homem de experiência. É o estatuto do saber que está em jogo em A linha de sombra, é a demonstração de sua essencial intransmissibilidade: o que Giles compreendeu não pode ser comunicado ao jovem, que simplesmente o refutaria, mas Giles, com o que sabe, pode levar o jovem a se aperceber e, assim, a poder captar o que se passa diante dele sem que ele veja.

Um Mundo Atrás Do Mundo?

O clássico romance de formação, em suas diversas expressões, tem também como fio condutor o tema do reconhecimento: o protagonista deve aprender a ver o que tem diante dos olhos, mas que inicialmente não se desvela de forma alguma a ele. David Copperfield (DICKENS, 2014) luta para fazer um caminho na vida e se casa com Dora, filha de Mr. Spanlow, o titular do curso de advogado em que fez seu aprendizado. Quando Dora morre, Agnes, a filha do advogado Wickfield, com o qual David tinha morado durante seus estudos universitários, está ao seu lado. David vai levar um tempo para perceber aquilo que Dora, morrendo, tinha percebido imediatamente com clareza: o fato de que Agnes estava apaixonada por ele, que secretamente ela sempre o havia sido, e que é junto dela que se realizaria seu destino sentimental.

O quadro da iniciação feminina é bem diferente. Não é de seu próprio amor que Jane Eyre (BRONTË, 2011) deve se aperceber – as mulheres nesse ponto têm uma certeza incomparavelmente superior à dos homens –, mas ela deve descobrir o mistério de um homem. Mr. Rochester, se dando conta de que sua paixão secreta por Jane é compartilhada, a pede em casamento, mas a faustuosa residência de Thornfield Hall guarda um terrível segredo que Jane deverá dolorosamente descobrir no momento mesmo em que se casa: Mr. Rochester já é o marido de uma mulher louca, isolada numa torre, escondida do olhar de todos. O incêndio da propriedade contribuirá para retirar o obstáculo e para oferecer a Jane um Mr. Rochester viúvo, mas a partir de então cego e desprovido do fausto que a havia deslumbrado. O que Jane deve reconhecer, acolher e fazer seu, é o cofre de chumbo de um homem privado da suntuosidade dos semblantes fálicos.

O amor não é o único tema da descoberta adolescente. O jovem Törless (MUSIL, 1996) é aluno do colégio militar muitíssimo exclusivo ao qual o destinou a fortuna de uma família burguesa próspera. Bozena, a prostituta, o faz descobrir a sexualidade sob um aspecto degradado, lhe revelando o que há de obscuro, de confuso, de dissoluto, de destrutivo atrás do mundo diurno, racional e burguês. O que Törless deve descobrir, com dor e sentimento de abandono, é a ausência de qualidade do mundo no qual ele vive. Isso se tornará para Ulrich, o protagonista de O homem sem qualidades (MUSIL, 2015), recusa radical de valores esvaziados de sentido. Depois de ter participado com dois colegas, Reiting e Beineberg, dos serviços infligidos ao fraco Basini, Törless conhece com ele uma experiência erótica. O que ele deve deixar é o mundo burguês ao qual pertence sem perceber sua vacuidade.

Num clima inteiramente diferente, Os indiferentes (MORAVIA, 1988) conta a revelação de um mundo atrás do mundo. Um jovem e sua irmã, Michele e Carla Ardengo são passivos diante da vida, incapazes de experimentar outros sentimentos além do tédio. Eles fingem não ver a ligação que Leo Merumeci tem com a mãe deles, Mariagrazia. Leo, cansado da mãe, busca seduzir a filha, enquanto Michele sofre passivamente os avanços de Lisa, uma amiga de sua mãe. Leo tenta embebedar Carla no dia de seu aniversário de vinte e quatro anos com o objetivo de se aproveitar dela, mas esse propósito fracassa porque a jovem, que não é habituada ao álcool, se sente mal e vomita. Tudo isso se passa num clima de torpor moral no qual Lisa se encarrega de acordar Michele lhe mostrando a relação entre Leo e sua irmã. Michele tenta vingar a honra da família: ele atira em Leo com uma arma que se esqueceu de carregar, se condenando a um destino de perdedor. Trata-se aqui, também, de ver a duplicidade e a hipocrisia do mundo convencional no qual os jovens estão aprisionados. Entretanto, nesse caso, os protagonistas não conseguem ultrapassar a prova e atravessar o limiar: a pistola do irmão emperra e sua irmã aceita se casar com Leo, um casamento sem amor que lhe assegurará a continuidade e o bem estar de sua vida burguesa.

Os Ritos De Iniciação Tribal

A descoberta de um mundo atrás do mundo – além da descoberta da sexualidade e seu lugar na sociedade – constitui também a substância dos ritos de iniciação que assinam a saída da infância nas sociedades primitivas, com a diferença que implica a dimensão do sagrado. Os ritos de iniciação tribal introduzem de maneira estritamente codificada o jovem na experiência, o que o romance de formação deixa para contingências mais diversas.

Com uma diferença importante nas formas, vemos que a problemática é análoga: é necessário atravessar o limiar das aparências para ir em direção a uma verdade que não se mostra imediatamente. Nos ritos de iniciação tribal, trata-se de aceder ao conhecimento das relações místicas entre a tribo e os seres sobrenaturais que estão na origem da criação (ELIADE, 1976). Isso passa pela aprendizagem de comportamentos, de técnicas e de instituições que pertencem ao mundo adulto, ao mesmo tempo em que o acesso ao conhecimento dos mitos, das tradições sagradas da tribo, dos nomes dos deuses, da história e das façanhas deles. Sair da infância significa aprender como as coisas vieram ao ser, e ao mesmo tempo o que funda os comportamentos humanos, as instituições sociais e culturais. Aceder ao fundamento significa remontar às origens onde tudo começou, num tempo mítico.

A presença do ritual nas sociedades tribais e sua ausência em nosso mundo tem uma significação precisa. No mundo moderno, não haveria lugar para um ritual porque a descoberta do mundo atrás do mundo se faz de maneira progressiva, numa época em que o homem se considera autorizado a continuar e aperfeiçoar indefinidamente o dado inicial, em busca do novo. Nas sociedades arcaicas prevalece muito mais o contrário: projetar o novo num tempo primordial fazia retorno ao horizonte atemporal das origens.

No romance de J. Conrad, o contraste entre o antigo e o novo é particularmente evidente. Aí a iniciação concerne à tomada de responsabilidades que implica o comando e o comando deve ser disputado com o velho capitão Hamilton. O jovem se opõe ao antigo, o antigo é apresentado como sem recursos – ele nunca consegue pagar seu aluguel – e reivindica os aspectos sobre os quais o autor faz incidir um sopro de ironia, nos sugerindo que suas pretensões são, se não abusivas, pelo menos fora de propósito. O início do diálogo com o capitão Giles parece creditar a suspeita do jovem de que aquele que nós consideraremos, na sequência, como um velho sábio, poderia bem ser, ao contrário, um velho parvo.

No mundo dessacralizado, o que é velho ou mesmo antigo não prevalece de forma alguma sobre o que é atual; ele está, pelo contrário, submetido a um imperativo de renovação. Nas sociedades arcaicas, o acesso à responsabilidade e o fim da ignorância supõem, ao contrário, a morte iniciática da criança para que um homem novo seja forjado no molde do tempo original, um homem que terá tomado sobre si o peso da tradição. O velho mundo é aniquilado por um retorno simbólico ao caos primordial, não para avançar em direção a um mundo novo, mas para restabelecer o mundo ao seu começo, ali onde as coisas chegaram pela primeira vez. Os gestos e as operações que se desenrolam no curso da iniciação são de fato a repetição de modelos exemplares, são os mesmos gestos e as mesmas operações que aquelas realizadas pelos pais fundadores.

Num outro plano, a sexualidade que para Törless se revela na decadência e se apresenta como uma força empurrando-o para recusar o mundo no qual nasceu, participa, ao contrário, nas sociedades arcaicas, da espera do sagrado. Mircea Eliade destaca a aparente contradição presente nas culturas nas quais a virgindade é particularmente valorizada ao mesmo tempo que os pais da jovem não apenas toleram, mas encorajam os encontros com os rapazes. Não se trata, no entanto, simplesmente de liberdade pré-matrimonial ou de costumes dissolutos, mas da revelação de uma sacralidade da mulher que toca às fontes da vida e da fecundidade. Os encontros pré-conjugais das jovens não têm em si um caráter errático, mas acima de tudo ritual: elas participam mais de um mistério sagrado do que são fonte de prazeres terrestres.

Desencantamento

Em sua intervenção no congresso de Nápoles em junho de 2009 sobre o tema Variações sexuais e realidade do inconsciente, Domenico Cosenza (2009) se pergunta muito justamente como, na época contemporânea, se realiza o encontro com esse mundo atrás do mundo quando faltam os ideais reguladores fortes, permitindo estruturar o momento de atravessamento do limiar da adolescência à luz da verdade desalojada de seu lugar central.

Nos romances dos séculos XIX e XX, a descoberta da verdade é acompanhada de efeitos de desidealização, de queda das aparências, atrás das quais se revela uma realidade degradada, ou imoral, ou uma melancolia devoradora, como em A ilha de Arturo (MORANTE, 2003), uma das obras primas insuperáveis do gênero.

Wilhelm – o pai de Arturo, um mito para seu filho, que sempre imaginou suas ausências como maravilhosas viagens pelo mundo, lhe dando aos olhos do filho a dimensão de um herói sem igual – se revela no final do romance não ser nada além de um pobre homem, bode expiatório de todos, e cujas grandes viagens nunca foram mais longe do que os arredores de Nápoles. Arturo embarca então e se afasta de Procida sem nunca se virar para trás: enquanto a ilha se torna cada vez menor na medida em que o navio se afasta, ele deixa sua infância para trás com decepção e uma nostalgia infinita.

A separação adolescente coincide, nesse caso, com o desvelamento, com uma verdade dolorosa ou despojada, com um desencantamento que é o contrário da descoberta do sagrado e da dimensão espiritual da vida que acontece nas sociedades arcaicas. Devemos então nos resignar a esse empobrecimento dos sonhos, a essa degradação dos ideais, a essa perda de imaginação como preço a ser pago e porta de entrada na idade adulta, um empobrecimento nostálgico que deixa como única alternativa um conformismo assentado nos imperativos pragmáticos da riqueza material?

A Queda Dos Semblantes

A literatura moderna propõe outra abordagem do atravessamento do limiar conduzindo da leveza aturdida da infância à responsabilidade adulta: é a imagem da inversão que se encontra na conclusão de um dos textos mais ricos e densos da literatura do século XIX, um livro que certamente não falta na biblioteca de nenhuma criança e que vale a pena ser percorrido, mesmo na idade adulta: As aventuras de Pinóquio (COLLODI, 2002). Saído do País dos Brinquedos, Pinóquio é devorado pelo Tubarão (na versão de Walt Disney é uma baleia particularmente agressiva, talvez uma evocação da potência sugestiva que Moby Dick, encarnação da essência do mal, exerce sobre o imaginário americano). Na barriga do Tubarão, Pinóquio encontra Gepeto, aliás muito frágil para conduzir seus projetos de fuga. Pinóquio sobrevive levando Gepeto em seus ombros e, com a ajuda de um atum, nada até a margem. Essa inversão de posição, na qual o filho carrega o pai – tendo como pano de fundo Eneias carregando Anquises – equivale a salvar o pai. A criança que foi sustentada por seu pai, agora o ajuda. É apenas depois dessa inversão entre o acima e o abaixo, entre o salvador e o salvo, que o boneco se transforma em criatura de carne e osso. Aí nada de desilusão nem de nostalgia, mas muito mais uma reconciliação. Não é a revelação da verdade de um mundo atrás do mundo, mas um encontro com o real, com o risco de ser engolido – o tubarão é uma representação genial disso – e com a necessidade de encontrar uma solução.

Pinóquio, como exemplo de passagem do limiar da adolescência, segue sem dúvida uma via mais próxima daquela que Lacan sugere em seu comentário de O despertar da primavera (WEDEKIND, 2008), texto banhado numa sexualidade mais crua, e que nos dá elementos para captar as coisas nessa perspectiva. Lacan (2003) indica que o que se trata de desvelar não é um mundo atrás do mundo, mas o real da ausência de relação sexual. O que se revela com a queda dos semblantes é que não há relação sexual, e com o real não se trata de buscar uma via de adaptação. Não nos adaptamos ao real, diz Lacan (2005), no máximo nos habituamos com ele. Os adolescentes representados por Wedekind em O despertar da primavera, Wendla, Moritz, Melchior, descobrem a brutalidade do sexo, a hipocrisia burguesa dos adultos, o fracasso, a vergonha. Nisso eles são como os adolescentes do romance de formação e devem rasgar o véu de uma responsabilidade fictícia e intolerante. Os dois primeiros sucumbem. Wendla morre logo depois de um aborto mal praticado. Moritz se suicida para não revelar a seus pais seu fracasso escolar. Melchior é salvo, ele que, tendo encontrado seu amigo suicidado no cemitério e depois que buscou levá-lo consigo para a tumba, escolhe seguir uma enigmática figura de Homem Mascarado, no qual Lacan reconhece a expressão do semblante por excelência.

 

Melchior: Qui êtes-vous? Qui êtes-vous? Je ne peux me confier à un homme que je ne connais pas.

L’homme masqué: Tu n’apprendras pas à me connaître à moins de te confier à moi.

Melchior: Croyez-vous?

L’homme masqué: C’est ainsi! D’ailleurs tu n’as plus de choix.

Melchior: Je peux encore à tout moment tendre la main à mon ami.

L’homme masqué: Ton ami est um charlatan. Nul ne sourit qui n’a plus qu’un sou vaillant em poche. L’humoriste sublime est de toute la création la créature la plus pitoyable, la plus déplorable[3].

 

As aparências burguesas caíram, sua duplicidade, sua afetação, suas imposturas são desmascaradas e, até aí, o percurso é o mesmo que em Törless ou em Os indiferentes. Mas não há o gesto de recusa virando as costas à dissimulação, como em Törless, ou o compromisso conformista, como em Os indiferentes. É a escolha de seguir apesar de tudo o semblante, que aqui o Homem Mascarado encarna. Em outros termos: não há necessidade de acreditar no semblante para segui-lo. O que Carlo Collodi representa com sua fábula burlesca, Wedekind mostra de maneira dramática, mas, em um caso como no outro, trata-se de dizer sim ao pai, de salvá-lo da queda à qual ele seria condenado se ele retirasse sua máscara, refutando toda fé nos semblantes.

Reunamos Para Concluir Os Pontos Que Examinamos:

1 – A adolescência, que na tradição psicanalítica pós-freudiana foi considerada uma fase, um tempo de maturação visando à adaptação, pode ser considerada mais como um momento de escansão quando se apoia no texto freudiano: ela é o limiar entre uma situação estática e a abertura do possível. Isso faz da adolescência o caso particular de uma eventualidade mais geral. Ficar apaixonado, por exemplo, em qualquer idade que seja, sempre tem no fundo um caráter adolescente, a partir do momento em que esse novo amor reabre um campo de possibilidades que a rotina da vida se encarrega em geral de fechar.

2 – Essa passagem do estático ao possível é codificada de maneira ritual nas sociedades arcaicas como movimento, conduzindo de uma vida por natureza irresponsável – assim é considerada a infância – a uma vida que assume a cultura da tribo e, portanto, a uma vida que tem um sentido. O acesso ao sentido vem da participação no tempo dos começos, a revelação do original sagrado, a iniciação em um mundo mítico escondido atrás do mundo de todos os dias. O mundo tem sentido porque há um mundo invisível atrás do visível, que constitui seu fundamento e seu princípio. O limiar da adolescência desemboca, portanto, na obtenção de uma vida espiritual como suplemento da vida natural que permite a integração responsável do indivíduo na comunidade da qual, a partir de então, ele conhece e compartilha os valores.

3 – Num mundo dessacralizado, a revelação iniciática abre, ao contrário, para o vazio, a pobreza, a degradação, a enganação que se mantém atrás da aparência do mundo visível. Quando o sagrado não tem mais função de organizar a vida da comunidade, fazer cair o véu das aparências leva a desmascarar a mentira, a desmistificar. O romance de formação apresenta assim a experiência da adolescência como desencantamento, isto é, como o contrário do que ela é nas sociedades arcaicas. Abrir os olhos pode também querer dizer descobrir o amor, como para David Copperfield, mas isso ocorre depois de uma travessia que despoja a infância de todo encanto, fazendo-a passar pelo embrutecimento de um trabalho que é pura exploração e por inumeráveis intimidações que mostram a realidade de um mundo atrás do mundo que é sua pura negação. David deve, além disso, desmascarar a hipocrisia repugnante de Uriah Heep, sua falsa humildade, sua obsequiosidade traiçoeira, seus desejos ignóbeis que são o equivalente da perversidade mórbida presente em Törless. Atravessar o limiar da adolescência num mundo dessacralizado significa despojar a infância de sua magia e de sua inocência e vê-la desaparecer com nostalgia como Procida em A ilha de Arturo.

4 – Na perspectiva que podemos destacar a partir de Lacan, a queda dos semblantes não corresponde à revelação de um mundo atrás do mundo, ao florescer de uma verdade escondida que faz decair o que é manifesto. O véu cai deixando captar o real, que não é um mundo porque ele não é todo. Não se entra assim numa lógica que opõe o verdadeiro e o falso, porque o semblante não é reduzido ao reino da mentira e pode guardar uma função. A queda do semblante, da qual advém o encontro com o real, é, sobretudo, o tempo em que pode se verificar uma inversão do que não cessa de não se escrever ao que cessa de não se escrever – se pensamos nisso, é a mesma inversão que se realiza para Pinóquio quando a fuga impossível se torna possível – e é a abertura sobre o possível que advém com a adolescência.

É interessante observar também que frequentemente, na clínica, quando se procura encontrar o momento constitutivo dos sintomas ou do mal-estar do qual o paciente se queixa, se não fatores traumáticos ou solução de continuidade em sua vida, remonta-se sempre ao tempo da adolescência. O momento constitutivo do sintoma é a adolescência porque é um tempo no qual o encontro com o real como abertura do possível deixa um traço. É à luz disso que devemos considerar o fato de que as lembranças encobridoras são o equivalente freudiano do sintoma, o traço do atravessamento do limiar, com o qual o sujeito poderá ou não se identificar. Em outros termos: ele poderá gozar ou sofrer dele.

 

 

Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Lilany Pacheco

 


Bibliografia:
BAUDELAIRE, C. A música. In: As Flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BLOS, P. Les adolescentes: essai de psychanalyse, Paris : Stock, 1967, esgotado.
BRONTË C. Jane Eyre. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.
COLLODI, C. Les aventures de Pinocchio, Paris : Mille et Une Nuits, 1998.
CONRAD, J. A linha de sombra: uma confissão. Porto Alegre: L&PM, 2010.
COSENZA, D. “L’initiation dans l’adolescence: entre mythe et structure”, Mental, n.23, FEEP, dezembro de 2009.
DICKENS, C. David Copperfield. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.
ÉLIADE M. Initiation, rites, sociétés secrètes. Naissances mystiques. Essai sur quelques types d’initiation, Paris: Gallimard, 1976.
ERIKSON, E. Identidade: Juventude e crise, Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FREUD, S. “Lembranças encobridoras”, In: Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1976a.
FREUD, S. “O mal-estar na civilização”, In: Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1976b.
LACAN, J. Prefácio a “O despertar da primavera”, Outros Escritos, RJ: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. Le triomphe de La religion, Paris: Seuil, 2005.
MELTZER, D. “Psicopatologia dell’adolescenza”, in Quaderni di psicoterapia infantil, n. 1, 1991.
MORANTE, E. A ilha de Arturo. São Paulo: Berlendis e Vertecchia, 2003.
MORAVIA A. Os indiferentes. Rio de Janeiro: Bertrand Braisl, 1988.
MUSIL, R. O jovem Törless. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
MUSIL, R. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
WEDEKIND, F. L’eveil du printemps. Paris: Gallimard, 1974.
WINNICOTT, D.W. “L’adolescence”. In: De la pédiatrie à la psychanalyse. Paris, Payot, 1969.
[1]Termo de navegação marinha ou aérea indicando o momento em que não se sabe de que lado o vento vai virar ou se vai haver vento. To be in the doldrums: estar num marasmo, na fossa, estagnar.
[2] BAUDELAIRE C., “A música”, As Flores do mal
A música p’ra mim tem seduções de oceano!
Quantas vezes procuro navegar,
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano,
Minha pálida estrela a demandar!
O peito saliente, os pulmões distendidos
Como o rijo velame d’um navio,
Intento desvendar os reinos escondidos
Sob o manto da noite escuro e frio;
Sinto vibrar em mim todas as comoções
D’um navio que sulca o vasto mar;
Chuvas temporais, ciclones, convulsões
Conseguem a minh’alma acalentar.
— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrível me exaspera!
Tradução de Delfim Guimarães
[3] Melchior: Quem é você? Eu não posso confiar num homem que não conheço.
O homem mascarado: Você não aprenderá a me conhecer a não ser confiando em mim.
Melchior: Você acha?
O homem mascarado: É assim! Aliás, você não tem mais escolha.
Melchior: Eu ainda posso a qualquer momento estender a mão ao meu amigo.
O homem mascarado: Seu amigo é um charlatão. Ninguém sorri sem ter um tostão válido no bolso. O humorista sublime é de toda a criação a criatura mais patética, a mais deplorável
(WEDEKIND, 1974, p. 95, tradução nossa).

Marco Focchi
Marco Focchi- psicanalista, AME da SLP e AMP. E-mail: marcofocchi52@gmail.com



A Clínica Dos Adolescentes: Entradas E Saídas Do Túnel

VILMA COCCOZ TURINETTO

FOTO: JOÃO PERDIGÃO

Não Há Adolescente Sem Outro

Definir a adolescência como “a mais delicada das transições” (HUGO, 1971, p. 20) – feliz achado que Philippe Lacadée (2011) nos faz compartilhar – permite conceber essa saída da puberdade numa lógica de discurso, e não simplesmente como etapa do desenvolvimento biológico.

Freud compara a metamorfose da puberdade ao fato de “escava[r] um túnel dos dois lados ao mesmo tempo” (FREUD, 1987a, p. 144): portanto, um furo tendo uma extremidade que fura a autoridade, o saber, a consistência do Outro e a outra que perturba a vivência íntima do corpo. Do modo como Freud formula essa metáfora, deduzimos que construir um túnel é também atravessá-lo; a saída dependerá do contorno e da localização correta do furo que afeta o saber e daquele que concerne o gozo. Se, aplicando-a a esse trajeto particular da vida, mantivermos firmemente esse princípio psicanalítico de que não já sujeito sem Outro, isso toma o valor de um axioma: “Não há adolescente sem Outro”, a saber – além dos pais, professores ou tutores –, a instituição ou o analista. As respostas, a posição dos adultos que virão ou não investir a função do Outro, adquirem uma importância fundamental, decisiva, para a entrada e para a saída do túnel.

Seria mais pertinente falar de adolescências, no plural. De fato, cada adolescência, estando ligada a uma experiência subjetiva e a uma história particular, sua modalidade “crítica” e a forma que tomará sua conclusão, não pode ser generalizada nem padronizada. De um ponto de vista estrutural, o sujeito se encontra nessa passagem da vida, seja numa dialética com o Outro e sua inconsistência seja em ruptura com ele, com um sentimento de errância, de estar abandonado, desamparado, desorientado diante do que lhe é dado viver.

Depois de anos de experiência, podemos afirmar que, na clínica da adolescência, há lugar para operar uma subjetivação da dificuldade estrutural à qual o jovem ou a jovem são confrontados. Mas é preciso admitir também que essa operação requer frequentemente um trabalho de elaboração, uma participação decidida da parte dos adultos de referência. É habitualmente necessário sustentar uma série de entrevistas com a família com o objetivo de dar a palavra ao sujeito. Que ela seja hesitante, atrapalhada, arrogante, reivindicadora, conciliadora ou mentirosa, a palavra, uma vez instalada no dispositivo analítico, toma então valor de enunciação particular levada em conta pelo Outro; fato acompanhado, nos casos de conflitos inflamados, de diálogos rompidos ou impossíveis. Durante as entrevistas com os pais – juntos ou separadamente – e o adolescente, o analista tem a oportunidade de colaborar, em ato, no momento delicado da separação e da diferenciação das diversas subjetividades implicadas. A adolescência de um filho ou de uma filha deve ser subjetivada pelos pais em sua dimensão verdadeira, tal como um luto libidinal que os afeta e os concerne: a satisfação que a criança trazia ao narcisismo de seus pais se esfacela, é preciso que ela se aloje em outro lugar. Esse lugar novo não é concebido antecipadamente, ele se constrói laboriosamente, a partir desses dois furos que se revelaram: aquele relativo ao Outro e aquele relativo ao corpo. O trabalho de educação não está acabado, e essa situação nova requer uma delicada alquimia entre, de um lado, o respeito do território da criança – seus gostos, sua intimidade, seus desejos –, e, de outro lado, a responsabilidade dos atos de um menor que não se trata de abandonar à sua sorte. E tudo isso, mesmo se a criança se obstina nas vias contraditórias ou afastadas das expectativas, dos ideais paternos e apesar dos sentimentos de ambivalência que o sujeito manifesta ou provoca.

O adolescente tropeça no real do discurso, nessa questão essencial do ser falante: como fazer com o gozo? Ora, esse encontro com o limite do discurso é precisamente o que mina a autoridade da palavra do adulto e gera um choque emocional. É por essa razão que aqueles que imaginam erroneamente que basta informar e esclarecer se chocam com o fracasso esmagador da educação sexual, das estratégias de prevenção da gravidez e do consumo de entorpecentes. Diante da inevitável degradação da autoridade, alguns adultos adotam comportamentos extremos – rigidez ou permissividade exageradas – numa tentativa desesperada de recuperar uma influência enfraquecida. Às vezes – em caso de falsa saída de sua própria adolescência – o pai ou a mãe, numa identificação infeliz com seu filho, tentam uma cumplicidade entre “amigos” e trocam confidencias, às vezes obscenas, sobre as dificuldades que eles encontram com seu próprio gozo. É essa espécie de tentativa que justifica o termo de “adulterados”, com o qual Lacan (2008, p. 321) qualificou os adultos.

Compreendemos assim a importância da resposta desses últimos, se considerarmos que, nessa época da vida, se reedita no inconsciente a questão inaugural do sujeito quanto ao desejo do Outro: de que desejo eu nasci? Quanto valho para o Outro? Ele pode perder-me? Esse momento ganha uma importância especial aí onde justamente o adolescente é convocado a afrontar a “declaração de seu sexo” (LACAN, 1967): espera-se que ele formule ou que ele defina sua identidade sexual. A ausência de uma resposta acabada e conclusiva sobre o ser sexuado no simbólico o coloca à prova em relação ao real. Isso toma uma dimensão traumática e angustiante, e dá lugar a uma desintrincação pulsional, uma crise do desejo, do gozo da vida, tendo como consequência um crescimento da incidência da pulsão de morte.

Não há manual de instruções que garanta uma saída honrosa do túnel: em sua travessia, o sujeito experimenta intensamente o non-sens da vida, o que desencadeia uma afluência desenfreada de sensações e de afetos tão fortes quanto contraditórios, assim como a tentação da morte, pensada, imaginada ou fantasiada. Uma inclinação por temas escabrosos surpreende seu círculo que percebe uma espécie de júbilo em cultivar pensamentos e interesses sombrios e sinistros. É por essa razão que a eventualidade de comportamentos de risco ou francas tentativas de suicídio são uma constante preocupação na clínica psicanalítica com adolescentes.

O próprio Freud foi chamado a intervir sobre esse tema em 1910, num simpósio onde foi colocada a questão sobre a responsabilidade a ser atribuída aos professores nas passagens ao ato suicidas de seus alunos. Em sua intervenção, Freud manifesta uma visão muito aguçada sobre os responsáveis pela educação diante desse momento da vida. Alguns instantes antes de sua exposição, um professor havia intervindo, tentando inocentar os professores pelo final trágico como o de certos jovens, argumentando que esses atos infelizes tinham igualmente lugar em camadas desfavoráveis (não escolarizadas). “Mas o colégio [responde Freud com ironia e justeza] deve fazer mais do que não pressionar os jovens ao suicídio; ele deve lhes proporcionar o anseio de viver e lhes oferecer sustentação e ponto de apoio numa época de suas vidas em que eles são pressionados, pelas condições de seu desenvolvimento, a afrouxar sua relação com a casa parental e com sua família. […] A escola não deve nunca esquecer que ela trata com indivíduos ainda imaturos, aos quais não pode ser negado o direito de se atrasar em alguns estádios, ainda que incômodos, de desenvolvimento. Ela não deve reivindicar para sua conta a inexorabilidade da vida, ela não deve querer ser mais do que um jogo de vida” (FREUD, 1987b, p. 217-218).

A lucidez da reflexão de Freud nos toca particularmente em nossa época, na qual vemos crescer a cada dia o caráter definitivo de certos julgamentos sobre os jovens, da parte dos professores e dos avaliadores, tomando assim a forma de uma inexorável sentença do destino. Numerosos são esses pequenos jovens que, diante desses julgamentos, abandonam toda tentativa de se recuperar, se declarando “incapazes ou um zero à esquerda” por causa de seus fracassos ou de suas condutas.

Para Maria, felizmente, as consequências nefastas que já surgiam puderam ser evitadas, sua entrada no túnel da puberdade tendo precipitado uma demanda de análise. Tudo começou por um grande acting out: um desmaio com convulsões que a enviou ao serviço de urgência, num susto geral. Depois de terem submetido a criança a todo tipo de teste, concluíram que ela “não tinha nada” e, graças à intervenção de um parente, a psicanálise cruzou sua vida. As crises diminuíram imediatamente e Maria conseguiu inverter o preconceito que já se reforçava quanto a seu comportamento. No tempo das primeiras entrevistas, se destacava de suas afirmações a tensão na qual seu sintoma se articulava ao discurso do mestre. Ela tinha constatado a incidência que podia ter sobre a popularidade de uma jovem de seu colégio uma infelicidade ocorrida na vida pessoal desta. À imagem dessa contaminação histérica de crises de choro num internato que Freud descreveu, e no momento sensível do início da sedução e da formação das alianças e das leaderships, Maria havia detectado que as ausências (devidas a dificuldades na vida familiar) de colegas assim “distinguidas” ganhavam um valor na consideração do Outro encarnado por um professor. O acting-out respondia a uma lógica inconsciente complexa que se elaborou ao longo das sessões, enquanto que o sintoma desaparecia da cena com a descoberta pela criança da trama inconsciente na qual ela estava tomada. Esse avanço não foi feito sem os pais que, passado o estupor inicial, tiveram que admitir uma mudança total da parte de uma criança até então exemplar. Operou-se então uma mudança na maneira deles considerarem sua filha; eles compreenderam que esse momento particular atravessado por Maria exigia, entre outras coisas, “distingui-la” por um tratamento especial em relação a seus irmãos menores. Até então, ela era simplesmente tratada como a mais velha de uma série, sem diferença particular.

Para além da cronologia, é preciso o desenrolar de um tempo lógico, com uma conclusão que faça ponto de basta, limite vital, onde a saída do túnel ganhe, no melhor dos casos, a forma de um projeto de vida.

O Percurso Do Túnel

A respeito da incorporação da estrutura, devemos precisar que, nessa encruzilhada da adolescência, observam-se alguns invariantes. É verdade que essas mudanças na relação com o gozo, pela qual nossa civilização é atravessada, atribuem a essa encruzilhada uma notável especificidade; entretanto, observamos – apesar de tingidos pelo discurso contemporâneo – algumas coordenadas comuns a todas as épocas. Sobre essas invariantes, o livro de Robert Musil intitulado O jovem Törless, publicado em 1906, continua tendo um enorme interesse para nós. Esse livro descreve de modo magistral essa travessia do túnel vivida por um jovem, onde os adultos estão implicados, a importância dos pares, dos semelhantes, aparece aí em toda a sua dimensão. Estranha e fundamental experiência de socialização que afeta a sexualidade, com a violência sórdida que pode acompanhar o tormento e as tentações.

A primeira cena do romance se desenvolve numa pequena estação de uma estrada de ferro; pais se despedem de seu filho que parte para uma escola renomada aonde são enviados os filhos das melhores famílias. Apesar de ele próprio ter insistido em conquistar esse nível de sua formação, “essa decisão deve tê-lo feito chorar muito […] as saudades de casa o invadiam, com uma terrível violência” (MUSIL, 2003, p. 8), nem os jogos nem as distrações dos internos o interessavam:

Ele escrevia para sua casa quase cotidianamente, e não vivia senão nessas cartas; todas as suas outras ocupações lhe pareciam incidentes insignificantes, irreais […] O estranho é que essa paixão súbita e devoradora por seus pais era inesperada e bastante desconcertante aos seus próprios olhos […] Houve alguns dias nos quais ele tinha se sentido relativamente bem, depois isso o havia tomado repentinamente, com a violência de uma tempestade. Saudades, nostalgia de casa, se dizia. Na realidade, tratava-se de um sentimento muito mais vago e complexo. […] Assim, Törless não conseguia evocar a imagem daqueles que ele chamava então comumente, para si só, de seus “queridos, queridos pais”. Se ele tentasse fazê-lo, não lhe vinha a imagem, mas o sofrimento sem limites cuja nostalgia o atormentava alimentando-o, porque essas chamas ardentes eram ao mesmo tempo dor e deslumbramento. Também o pensamento de seus pais não foi logo mais para Törless nada além do pretexto para acordar esse sofrimento egoísta que o trancafiava em seu orgulho voluptuoso” (Ibidem, p. 8-9).

Essa passagem ilustra bem o modo subjetivo pelo qual o túnel se escava, até que o menino tome consciência, claramente, que de fato: “elemento positivo, uma força interior, alguma coisa que havia desabrochado nele sob a cobertura do sofrimento” (Ibidem, p. 9). Do outro lado do túnel, o furo relativo ao corpo e ao narcisismo se abria igualmente deixando aflorar uma angustiante sensação de fragilidade: “Assim, ele mesmo se sentiu empobrecido e frustrado, como uma jovem árvore que, depois de ter inutilmente florescido, afronta seu primeiro inverno” (Ibidem, p. 10).

O autor descreve claramente a posição dos pais do personagem: nem os sofrimentos do primeiro período que sucedeu a separação nem a alegre leveza do segundo os fizeram suportar o penoso caminho interior que o filho deles está vivendo: “eles não reconheceram […] [que] foi a primeira tentativa, aliás, infeliz, do jovem para sozinho desenvolver suas energias interiores” (Idem). Entretanto, o eixo central do drama reside nas paixões que desencadeiam nele suas primeiras experiências de gozo, tanto hetero como homossexuais. É justamente essa problemática do gozo que Lacan (1967) evoca em seu breve, mas substancial comentário da obra, quando ele se alarma com a posição dos professores que desviam o olhar, não querem saber nada da atroz – e espontânea – captura das crianças nos fantasmas de seus colegas.

O caso de Juan é ilustrativo sobre esse ponto. Aluno considerado superdotado, suas capacidades sendo realmente extraordinárias, ele chegou ao colégio sem problemas maiores, apesar de uma falta de “aptidões sociais”. Mas em plena puberdade, começaram a persegui-lo por seu fracasso nas disciplinas esportivas e de educação física, que colocavam em evidência a falta de domínio de seu corpo; seu rendimento intelectual caía na medida em que seu espírito estava ocupado pelos pensamentos obsedantes devido aos atos cotidianos ofensivos e humilhantes que ele suportava com dificuldade. O desprezo da parte das jovens foi a gota que fez transbordar o copo. Ele se tornou vítima do que chamamos em nossos dias de bullying, inclusive da parte das crianças menores; ele se tornou um pestilento, aviltado e bode expiatório de todos. A apatia e a abulia que ele manifestava em casa contrastavam com um estado de hiperatividade na sala, que o impedia de ficar sentado em silêncio. As notas e as punições infligidas pelos professores redobravam, colocando em perigo o destino de gênio que seus pais projetavam para ele e para o qual eles trabalhavam duramente.

Além das sessões com ele, o trabalho de elaboração com os pais foi fundamental, levando-os pouco a pouco a compreender o lugar de exceção no qual seu filho se situava. Eles entenderam que a ausência de eficácia simbólica do significante da lei o empurrava ao desafio e a gozar dos semblantes de autoridade. Pudemos elaborar, juntos, estratégias de sustentação para impedir a segregação de Juan, que parecia inevitável. Em pouco tempo, a situação se estabilizou e o tratamento continuou até que ele se sentisse integrado ao grupo e que o amor de uma jovem o distinguisse.

O Corpo, Sexuado

O caminho evocado aqui é uma trajetória discursiva complexa, ao mesmo tempo movida e interrompida pelas pulsões que, por um empuxo novo, desencadeiam na adolescência emoções e afetos poderosos; a dimensão do corpo aí se encontra, portanto, fortemente engajada. O Outro, solicitando o abandono do discurso infantil para passar a um modo novo e pessoal de habitar a fala, coloca-o em questão, desvalorizando os esforços ou negando seu alcance, e desse jeito contribui para que o adolescente forje sua própria enunciação abrindo um caminho tateando. É por isso que o adolescente passa várias horas em sua toca[1], não por preguiça ou por negligência, mas porque ele efetua um trabalho de elaboração psíquica, de lenta e progressiva subjetivação, de um novo modo de ser com o qual se apresentar ao mundo.

Apesar de intelectuais, seus pais não podiam compreender a mudança de seu filho Jorge, que não era mais aquele ser sociável, com vários interesses, nem esse brilhante colegial que ele havia sido até então. Ele se tornou abúlico, preguiçoso, blasé. A ansiedade de seus pais crescia com as ameaças de castigo ao recusar certas normas e contrapor com formulações inconvenientes as incitações de quem queria encorajá-lo. Diante desse quadro, se acrescentaram faltas por doenças repetitivas das quais ele saia esgotado e ainda mais abatido. Durante o trabalho com seus pais, decidiu-se transferi-lo para uma escola que lhe preparasse para um vestibular em arte, mais apropriado à sensibilidade do menino. Essa escolha foi crucial na resolução do estado preocupante no qual ele afundava perigosamente, devastado por ideias de suicídio.

Entre as respostas sintomáticas apresentadas por esses dois jovens, muitas são de uma ordem regressiva: numerosos casos de toxicomania, de anorexia, de bulimia e de adições se declaram nesse período.

Amélie Nothomb, a escritora belga, descreve muito bem essa ruptura total com o mundo infantil que a havia mergulhado – através de um transitivismo marcante com sua irmã – num estado larvar. Elas passavam horas intermináveis deitadas no divã a se entediar, abúlicas, deprimidas, sozinhas, o que para ela derivou num grave estado de anorexia. A saída desse túnel escuro e mortífero, graças à escrita, tomou a forma de um genial autotratamento pelo qual a autora de La biographie de lafaim resolve a solução falha de um grave sintoma de tipo regressivo. Traduzida em várias línguas, Nothomb se tornou um ícone importante para os adolescentes, pela crueza refinada e irônica com a qual ela relata os avatares de seus jovens anos. Ela lhes fornece um notável efeito de verdade sobre essa experiência do túnel, o de que eles lhe são reconhecidos num momento em que os semblantes do mundo adulto vacilam e se tornam falsos e hipócritas.

Renée, quatorze anos, atravessou um período similar, apesar de seus recursos não terem tido a eficácia daqueles de Nothomb. Identificada com o sintoma de uma irmã mais velha, ela começou a induzir seu próprio vômito e se distanciar dos interesses intelectuais que, até então, cativavam-na. Revelou-se uma obsessão por seu corpo que ela queria tornar perfeito por meio de exercícios e de uma disciplina de controle. A grave anorexia para onde essa dependência a levou necessitou de uma hospitalização. Seus pais tiveram então a veleidade de recorrer a uma psicanálise. Mas eles se chocaram com uma sugestão antianalítica do hospital, desaconselhando essa via a eles, o que fez eco a uma demanda inconsciente de rejeitar a implicação subjetiva no sintoma; eles então engajaram sua filha nos trilhos normativos da medicina e da terapia cognitivo-comportamental. Nesse caso, a influência dos pais demonstrou sua eficácia, mas no sentido contrário ao sujeito do inconsciente.

O sujeito e seus próximos estão frequentemente longe de suspeitar que a esses sintomas encontram-se subjacentes incitações à mortificação ou tentativas mais ou menos graves de suicídio ou de se colocar em situações de perigo. A clínica psicanalítica nos ensina que o essencial, para uma saída mais ou menos bem sucedida do túnel, está na disponibilidade dos recursos simbólicos e imaginários para tratar um real do sexo que desvela a inconsistência do Outro. Com efeito, o real, em sua definição lacaniana, escapa à fala e ao sentido, o que Lacan formulou como sendo o grande segredo desvelado pela psicanálise: é impossível escrever a relação entre os sexos. Ou seja, não se pode escrever a lei de atração dos corpos sexuados como se escreveu a lei da gravidade, a lei da atração dos planetas. Mas essa dificuldade estrutural é em parte atenuada se a problemática do gozo ganha uma orientação propícia ao significante fálico, regulador da castração. Mesmo nos casos em que o significante fálico não opera no inconsciente como regulador de gozo, constata-se os benefícios de sua incidência imaginária como artifício, o que permite a diferença entre os sexos operando uma falta sobre o Outro materno.

A mãe de Oscar, jovem adolescente, alarmada pelo machismo de seu filho que, a seus olhos de feminista e militante de esquerda, parecia sinistro, pôde subjetivar sua responsabilidade sobre a causa do comportamento de seu filho. Exagerando sua ternura materna – ela não tinha vida de casal – ela impunha a seu filho uma proximidade física que lhe era dificilmente suportável; dispondo da função que regula a diferença dos sexos no inconsciente e funda a barreira do incesto, ele reagia com uma violência e uma agressividade excessivas ao encontro do sexo feminino. Nessa ocasião, entrevistas separadas com os pais divorciados desembocaram numa compreensão sem precedentes. A consequência foi a intervenção pacificadora do pai, consentida pela mãe, que se mostrou crucial para Oscar, para a retificação de uma identificação viril que lhe permitiu uma aproximação mais cavalheira das meninas.

E O Túnel No Século XXI?

Vemos que essa encruzilhada e seu alcance subjetivo respondem a alguns elementos estruturais que podemos considerar como invariantes, aos quais cada época dá seu colorido. Entretanto, é bom se interrogar sobre os efeitos que podem ocasionar essas mudanças que conhecemos hoje na relação com o gozo. A esse respeito, o artigo de Serge Cottet (2006) avança uma tese original a respeito das razões singulares do mal-estar que, de uma maneira ou de outra, afeta o gozo dos seres falantes, no atual estado de capitalismo avançado, incessante produtor de objetos de gozo. Decorre disso que às invariantes estruturais vieram se acrescentar as consequências de um empuxo a gozar devido à atual permissividade e ao relaxamento dos diques que freavam ou desviavam esse gozo egoísta e cruel próprio às pulsões parciais. Cottet se refere a Lacan que, a propósito da complexa articulação entre a lei e o gozo, exprimiu o que a experiência analítica lhe ensinou: “O que é permitido se tornou obrigatório” (LACAN, 1995, p. 286). As consequências de abulia, de tédio e de saciedade das quais se queixam os saciados do gozo, fazem Lacan (2003) dizer que se as ficções de interdição não existissem, seria necessário inventá-las, e ele alerta contra as consequências nefastas de um desejo levando a um acesso fácil ao gozo. Disso Cottet nota que em nossa época, na qual se desvanecem os papeis sexuais, são os sentimentos e não o sexo que são agora considerados como indecentes: por falta de destinatários e na ausência de receptores, aquele que exprime sentimentos cai no ridículo.

Sejamos conscientes do risco da insistência da parte dos psicólogos em apresentar a conquista da identidade como modelo de saída da crise da adolescência, pois hoje se divagou muito a partir da confusão que se estendeu a todo o planeta, entre o ser e o corpo. Os adolescentes são uma presa fácil para o mercado da confusão mediática que promove o imperativo “ser sexy”, slogan no qual eles caem, acreditando resolver assim esse desarranjo do corpo que faz tremerem as identificações.

Os Adolescentes No Campo Freudiano

Se levarmos em conta os avanços da clínica de orientação lacaniana promovida por Jacques-Alain Miller, o que chamamos de saída do túnel equivale ao achado de uma solução sinthomática coordenada à conquista de um semblante ligando o sujeito a um parceiro sexuado. Tal como vimos, tanto a entrada quanto a saída do túnel está estreitamente ligada às respostas que os adultos de referência podem oferecer ao sujeito em dificuldade. Porque, finalmente, trata-se de um trabalho de separação que possa despertar ou facilitar o interesse dos jovens por sua existência no “grande mundo”.

Quando Freud se lembra de seus próprios anos de túnel, que ele situava entre seus dez e dezoito anos, “com seus pressentimentos e suas errâncias, suas transformações dolorosas e seus sucessos benéficos” (FREUD, 1987c, p. 285), ele declara que esse grande mundo simbólico se torna para ele “um consolo sem igual nos combates da vida” (Idem). Foi nessa época que Freud viu nascer o pressentimento de uma tarefa, que não se esboçava, a princípio, senão em voz baixa até que eu não pudesse em minha dissertação de final de estudos vesti-la de palavras sonoras: eu queria em minha vida trazer uma contribuição ao nosso saber humano (Idem).

Lidas na perspectiva de “Sobre a psicologia escolar”, as cartas de juventude de Freud ganham um grande interesse; retroativamente, sentenças apaixonadas e confidências profundas endereçadas a amigos íntimos ganham, então, sentido. Tomemos a carta a Emil Fluss de 28 de setembro de 1872. O futuro psicanalista declara se encontrar no caso de um sábio que vocês questionariam sobre o passado da terra. […] Eu singro de velas abertas em direção ao futuro; que eu pude abordar aqui um dia, me refrescar aí, eis o que se apaga bem rápido da memória quando se tem apenas o objetivo diante dos olhos (FREUD, 1990, p. 231).

O editor espanhol (FREUD, 1973) dessas cartas nota muito justamente que nessa fase pode-se ler uma antecipação de que o valor subjetivo da lembrança depende da presença do afeto. Ele mostra igualmente que a preocupação de Freud não se refere tanto a sua identidade como argumento da questão do “quem sou?” quanto à questão sobre o que ele sabe e o que ele pode ou não chegar a saber. Freud termina sua carta pedindo a seu amigo notícias de sua mãe, pois, como ele explica, “me agrada explorar a densa rede dos fios que nos ligam, fios que o acaso e o destino teceram em torno de todos nós” (FREUD, 1990, p. 231).

Fazemos nossas essas lindas fórmulas para nos orientar nas condições atuais da adolescência. É urgente colaborar com a difusão de estratégias institucionais orientadas pelo ensino de Lacan, tais como o Courtil ou os dispositivos do Cien, a fim de proteger todos esses jovens que, renunciando a uma verdadeira realização subjetiva, se perdem na busca de autossacrifícios que eles oferecem, sem o saberem, a “deuses obscuros”, o que os condenam a permanecer na obscuridade do túnel. As boas saídas, as saídas em direção a “o grande mundo” e ao gozo da vida, se decidem numa “equação pessoal” tecida com o fio do acaso e do destino. Dito de outra forma, num entrelaçamento de inconsciente e de encontros contingentes cuja forma não estava ainda inscrita na experiência, para ser aquela de cada um, resultado de uma invenção singular que não pode, no entanto, se aventurar no mundo sem que o Outro diga “sim”.

 


 

Tradução: Cristina Drummond
Revisão Renato Sarieddine
Bibliografia:
COTTET, S. “Le sex e faible des ados: Sexe-machine ET mythologie Du coeur”, La Cause Freudienne, Nº 64. Paris: Navarin Éditeur, octobre 2006.
FREUD, S. “As transformações da puberdade”. In: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Vol. 7, 2ª ed.). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1987a.
FREUD, S. Contribuições para uma discussão acerca do suicídio (Vol. 11, 2a ed., pp. 217-218). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1987b.
FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (Vol. 13, 2a ed., pp. 283-288). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1987.
FREUD, S. Lettres de jeunesse. Paris: Gallimard, 1990.
HUGO, V. Os trabalhadores do mar. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
LACAN J. O Seminário. Livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
LACAN, J. O Seminário. Livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. “Petit discours aux psychiatres de Sainte Anne”, 11 de outubro de 1967, inédito.
LACAN, J. O Seminário. Livro 14: a lógica do fantasma, aula de 1º de fevereiro de 1967, inédito.
LACAN, J. “Televisão”, Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
MUSIL, R. O jovem Törless. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
[1] Segundo o termo apropriado (“terrier” em francês) de nossa colega Erminia Maccola.

Vilma Coccoz Turinetto
Vilma Coccoz Turinetto – psicanalista, AME da ELP e AMP. E-mail: vicoccoz@correo.cop.es



“Dora” E As “Maridas”: Duas Tentativas De Abordar O Feminino A Partir Do Amor Ao Pai

MARIA AMÉLIA TOSTES

 

 

Da Histeria Ao Feminino: O Desafio Que Dora Nos Propõe

“A histeria não se manifesta apenas como uma neurose, mas, também, como uma maneira de colocar a problemática da feminilidade” (ANDRÉ, 1991, p. 114). Fazer conversar em uma mulher a histeria com o feminino é o desafio que Dora[1] nos requisita desde quando, aos 18 anos de idade, em 31 de dezembro de 1901, em plena virada para o século XX, ela comunica a Freud que vai lhe deixar, e esse seu gesto provoca a pergunta: o que quer uma mulher?

No vigor do ideário iluminista, quando o papel social da mulher estava sendo fortemente alinhavado ao da “boa mãe” e ao da competente dona de casa (ANDERSON e ZINSSER, 2009), Dora é conduzida por seu pai até Freud para que este a colocasse “no bom caminho” (FREUD, 1989, p. 33). Dora não vinha se mostrando uma moça de bom comportamento, pois estava irredutível na exigência de que seu pai rompesse o relacionamento que mantinha com o Sr. e a Sra. K, dois antigos amigos de sua família. Sem contar que já fazia algum tempo que Dora começara a dar sinais de “abatimento, irritabilidade e ideias suicidas” (Ibidem, p. 32).

Dora é diagnosticada por Freud como uma histérica, mas uma histérica diferente das outras. Em correspondência a Wilhelm Fliess[2], quando Freud rascunhava o que é hoje conhecido mais como Caso Dora, ele diz: “de qualquer forma, é a coisa mais sutil que já escrevi, e produzirá um efeito ainda mais aterrador que de hábito” (Ibidem, p. 13).

A novidade que Freud percebe em Dora, inicialmente, tem a ver com a simplicidade de sua histeria que, ao invés dos clássicos “estigmas de sensibilidade cutânea, limitação do campo visual ou coisas semelhantes”, apresenta-se carregada de manifestações corriqueiras do cotidiano que se prestarão ao esclarecimento dos fatos “mais comuns” e “sintomas mais frequentes e típicos” da doença (Ibidem, p. 31).

Freud só se dá conta de que a simplicidade sintomática de sua paciente escamoteava, na verdade, uma complexidade inédita em sua clínica de histeria quando, com cerca de três meses de tratamento, Dora lhe comunica sua decisão de abandonar a análise – “hoje estou aqui pela última vez” (Ibidem, p. 101), – frustrando as expectativas de Freud, que previa que seu “pleno restabelecimento talvez requeresse um ano” (Ibidem, p. 113).

A saída de Dora “em circunstâncias peculiares” de seu processo analítico (Ibidem, p. 92) vai merecer de Freud algumas elaborações, as quais seguirão basicamente por dois vieses: o transferencial – “fui surpreendido pela transferência” – e o que ele chamou de seu “erro técnico”, que estaria relacionado à sua demora em notar a “moção amorosa homossexual pela Sra. K” por parte de Dora (Ibidem, p. 113).

Ambos os caminhos trilhados por Freud para tentar entender por que Dora o abandona demonstram que sua paciente lhe apresentara em análise questões que lhe demandavam novas ferramentas de trabalho. A moça não desmaiava nem se contorcia como as outras da sua época e sua rebeldia se deslocava do corpo todo para se concentrar, sobretudo, na língua – uma língua afiada. Dora desdenhava das laboriosas interpretações de Freud: “ora, será que apareceu tanta coisa assim?”, perguntou ela depois que Freud lhe esmiuçara, durante duas sessões inteiras, ponto por ponto do seu segundo sonho (Ibidem, p. 101).

Mas é justo nas interpretações que Freud faz à sua paciente sobre esse seu segundo sonho que ele expõe a sua dificuldade em perceber que a pergunta que Dora dirigia ao dicionário, após a morte do pai, no sonho, era a mesma que ela encaminhava a Sra. K e demandava saber de Freud: “o que é uma mulher?” (LACAN, 1956-57/1995, p. 144). Assim é que a pergunta fundamental de uma mulher fora formulada, em análise, por uma histérica – aquela que está mais para o masculino do que para o feminino.

Dora É Aquela Que Ama Seu Pai

Ao interrogar sobre o seu sexo, Dora expõe a insuficiência do falo paterno para lhe dar o que lhe falta. No caso de seu pai, tratava-se de uma impotência concreta. “O pai, que é feito para ser aquele que dá, simbolicamente, esse objeto faltoso, aqui, no caso de Dora, ele não o dá, porque não o tem” (LACAN, 1956-57, 1995, p. 142). Contudo, Dora destina um amor a seu pai “correlativo e coextensivo à diminuição deste (dom viril)” (Idem). Ou seja, quanto menos seu pai podia lhe oferecer como falo, mais Dora encobria essa impotência com o seu amor, como é próprio da relação amorosa na qual o falo, tal como o dom, é dado em troca de nada. “A carência fálica do pai atravessa todo o caso como uma nota fundamental”, e Dora ama seu pai “precisamente pelo que ele não lhe dá” (Ibidem, p. 143).

Ocorre que Dora não sabe “o que ela é, não sabe onde se situar, nem onde está, nem para o que serve, nem para que serve o amor” (Ibidem, p. 149). Sua posição é daquela que possui uma questão: “o que é que meu pai ama na Sra. K?” (Ibidem, p. 143). Dora se situa em algum ponto entre seu pai e a Sra. K. Mas existe ainda a figura do Sr. K, que é com quem Dora se identifica, enxergando nele a sua própria condição: a de ponte para um mais além do amor – do pai, no caso de Dora, e da Sra. K, no caso do Sr. K. A triangulação se dá, então, entre Dora, o Sr. K e a Sra. K. O pai de Dora fica de fora, na condição de Outro por excelência (Ibidem, p. 145-46).

A situação permanece equilibrada até que o Sr. K diz a Dora, na “aventura do lago”, que ele não tinha mais nada com sua mulher, e Dora lhe esbofeteia o rosto (FREUD, 1989). Para Lacan (1956-57/1995), essa atitude de Dora é da ordem do insuportável de ser tolerado por ela, pois, ao se identificar com o mesmo lugar ocupado pelo Sr. K, de forma invertida, ela se vê não sendo nada, igualmente, para seu pai. Dora, conforme diz Lacan, é aquela “que ama seu pai” (Ibidem, p. 143). Ela o ama em troca de nada, como é próprio do amor em seu sentido mais primitivo, mas ela não pode se imaginar não significando nada para ele.

Dora, uma histérica, inaugura o século XX perguntando o que é ser uma mulher a partir de um amor endereçado ao pai. É por amor, então, que Dora quis saber sobre o seu sexo, no século passado, em um tempo em que as mulheres enfrentavam pesados obstáculos quando não se contentavam em ocupar apenas a sala de estar. O cenário feminino global mudou desde então, e o tradicional “sexo frágil” se impõe hoje como força motriz fundamental da vida social, política e econômica das sociedades ocidentais, podendo-se constatar, sem nenhuma estranheza, que, atualmente, “o mundo é das mulheres[3]”.

As “Maridas” E A Falência Do Pai

É em meio a essa feminização atual que nos deparamos com um comportamento que nos chama a atenção: elas são vistas sempre em par – onde uma está, a outra está por perto. São inseparáveis. Frequentam a night, mas também curtem os parques, os saraus, as feiras, a rua. Estão em dia com a moda e com o mundo fashion. São absolutamente contemporâneas: ficam à vontade com seus corpos e transitam com desenvoltura pelos espaços urbanos. Elas são amigas de todas as horas e ocasiões. Sentem-se protegidas e confiantes quando estão juntas. São companheiras, cúmplices, confidentes, sedutoras e carinhosas uma com a outra. São namoradas? Não. Elas são heterossexuais e fazem sexo com parceiros de ocasião. Às vezes elas dividem o mesmo parceiro, quando ele cai nas graças de ambas. Atestam não competir entre si nem sentir ciúmes uma da outra. Os homens são coadjuvantes nessa relação de “maridas” – como elas definem esse tipo de compromisso com a melhor amiga.

Nessa suposta divisão de funções – amorosa e sexual –, as “maridas” são enfáticas ao afirmar que “pegam, mas não se apegam” aos homens, pelo menos facilmente. Elas podem se desgrudar uma da outra quando surge um namoro sério que acaba em casamento. Mas garantem que nunca se desvencilham por completo, porque felicidade mesmo é ser casada com a melhor amiga[4].

As “maridas” exibem uma atuação feminina da ordem do dia, em que a parceria entre as duas mulheres aparenta se estabelecer pelo viés afetivo desvinculado do sexual e dos homens. Uma clivagem entre amor e sexo, bem conhecida do universo masculino, que agora ganha valor junto a um tipo de público feminino. Não deixa de ser curioso que, no limiar do século XXI, a pergunta “o que é uma mulher” seja feita de mulher para mulher, prescindindo de um Sr. K como intermediário, como no caso de Dora.

Marie Hélène Brousse considera que, tradicionalmente, as histéricas nunca foram as mais adequadas para irem mais além do pai, mas, na sua opinião, o fator decisivo para a variedade contemporânea de atuações entre mulheres com aspectos homossexuais se concentra na queda da figura paterna. Segundo Brousse, o pai, hoje, deixou de ser a figura identificatória fundamental da histérica que, mesmo quando ainda consegue amá-lo, não é um amor capaz de sustentar a impotência paterna como no século passado[5].

Para Lacan, o pai é sempre aquele que possui uma função simbólica, ostenta uma titulação de ex-combatente (ex-genitor) e, ao mesmo tempo, nunca perde a sua condição de “potência de criação”, seja esse pai um doente ou não. No discurso da histérica, o pai desempenha o “papel-pivô, maiúsculo, o papel-mestre” (LACAN, 1992, p. 89) e, mesmo fora de forma, esse pai é capaz de sustentar, “sob esse ângulo da potência de criação, sua posição em relação à mulher” (Idem). É o que Lacan designa como “o pai idealizado” da histérica. O pai de Dora era um pai castrado em sua condição de potência sexual, mas que desempenhava o papel-pivô de toda a estória. Segundo Lacan, todos os casos freudianos de histeria exibem um pai deficiente e, no entanto, completamente atuante sob o ponto de vista da sua função simbólica (Idem).

Considerações Finais

As “maridas” explicitam o quão fora de combate estão os homens de uma forma geral, especialmente no quesito amoroso. Dora amava e idealizava um pai ex-combatente e impotente – como diz Lacan –, e esse amor lhe sinalizava com o lugar da mulher diante do falo como dom em suas parcerias amorosas. Se as “maridas” atestam que, melhor do que amar um homem é amar sua melhor amiga e fazer sexo com um homem, elas talvez estejam mais interessadas em revelar do que encobrir a falta do falo paterno, numa demonstração de que um falo em potencial, como o do pai, não lhes tem mais nenhuma serventia.

Amar uma igual a si e fazer sexo com um diferente de si: eis o que as “maridas” postulam. Estaríamos diante de uma lógica funcional que visa ao melhor custo-benefício de cada gênero? A especialização-setorização-classificação-cientifização da relação amorosa seria o traço moderno desse comportamento de “maridas”? O amor fundamental e nobre, como “coisa de mulheres”, e o sexo desejável, casual e desclassificado, como “coisa de homens”, apontaria para um paradigma de mercado e de consumo no qual se deve buscar no outro apenas o que ele pode oferecer de melhor, uma vez que o sujeito contemporâneo é aquele que não deve se contentar com nada menos do que “o melhor”?

Dora, no século XX, demandava saber sobre o seu sexo pelo viés do amor ao pai como aquele que, potencialmente, poderia lhe dar o que lhe faltava. Tratava-se de um amor na qualidade de um “devir”, portanto – um amor no qual a histérica normalmente acredita como sendo capaz de encobrir a sua falta tal como ela encobre a impotência do pai para si mesma. As “maridas”, nossas contemporâneas, sinalizam que, ao invés de apostarem suas fichas em um falo capenga, que falha e frustra, como é o caso do falo paterno, elas preferem potencializar, por si mesmas, as suas relações com os dois sexos – da melhor amiga elas obtêm o amor; dos homens, o sexo.

Mas, se as “maridas” podem ser tomadas como um desdobramento da falência paterna na contemporaneidade, a ponto de prescindirem da figura masculina para indagar sobre o feminino, não seria o caso de considerarmos o que Lacan nos apresenta, ou seja, de que o pai continua exibindo a sua condição de potência criadora e, como tal, ostentando a sua tradicional condição de figura pivô da estória das histéricas? Isto é: pela via do pai idealizado ou do pai desfalicizado e fragilizado, as histéricas ainda formulariam suas estratégias amorosas a partir do pai?

Por outro lado, esse amor “puro” entre duas amigas “maridas”, no sentido de um sentimento desvencilhado do sexo e da diferença sexual, nos suscita uma outra pergunta: o que é um homem para uma mulher, em nossos dias?

 

[1] Faz-se referência aqui ao nome escolhido por Freud para designar a sua paciente no relato que ele formula em 1901, mas que é publicado em 1905, sob o título “Fragmento da análise de um caso de histeria”.
[2] Conforme Carta 140, de 25 de janeiro de 1901 (Freud, 1901-05, p. 13).
[3] O mundo é das mulheres foi o primeiro programa feminino da TV brasileira realizado na década de 60, pelo canal 5 da antiga TV Paulista, atual TV Globo, que lançou com sucesso a apresentadora Hebe Camargo, já falecida. (http://www.youtube.com/watch?v=cv40-tcU-RQ) Por sua vez, o ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva fora ovacionado quando, em junho de 2011, expressou essa frase durante uma cerimônia, em Curitiba, se referenciando ao incremento da presença feminina no Planalto Central. (http://oglobo.globo.com/politica/o-mundo-das-mulheres-diz-lula-2877204)
[4] As “maridas” foram tema da revista Marie Claire número 289, de abril de 2015: uma edição comemorativa dos 24 anos da chegada da revista ao Brasil.
[5] Entrevista disponível em: http://moviepsi.blogspot.com.br/2013/05/entrevista-marie-helene-brousse.html.

 

 


 

Bibliografia
ANDERSON, B. S. e ZINSSER, J. P. Historia de las Mujeres – Una historia propia. Espanha: Editora Critica, 2009.
ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2a Ed., 1991.
BROUSSE, M-H. [março de 2013] Nodus – L’aperiòdic virtual de la secció clínica de Barcelona. Entrevista concedida a Howard Rouse. Disponível em http://moviepsi.blogspot.com.br/2013/05/entrevista-marie-helene-brousse.html.
Acesso em 10/1/2016.
FREUD, S. (1901-1905) Fragmento da Análise de Um Caso de Histeria. In: STRACHEY, J. (ed.) e RIBEIRO, Vera (trad.), (Vol. 7, 2ª ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago (versão brasileira de 1989).
LACAN, J. (1956-1957). Dora e a jovem homossexual. In: O Seminário. Livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
LACAN, J. (1969-1970). O Mestre Castrado. In: O Seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
“As novas maridas”. Revista Marie Claire. Rio de Janeiro: Editora Globo, número 289, abril de 2015, p. 102 -105.

Maria Amélia Tostes
Maria Amélia Tostes – Aluna do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, jornalista, mestre e doutora em Ciências da Saúde. mameliatostes@uol.com.br (31) 98888 – 7755



Da Solução Do Sintoma Ao Sinthoma Como Solução

LEANDRO MARQUES SANTOS

 

 

O sintoma é o mal do qual o sujeito quer se livrar, e, portanto, é aquilo que o leva a falar a um analista sob a forma de uma demanda. Jésus Santiago, no testemunho de seu passe, fala sobre sua demanda de análise após a morte de seu pai: “sou tomado por intensa angústia, e pela ideia atormentadora de que poderia vir a ficar deprimido e doente como ele. Eis o que me impulsiona para o meu primeiro tratamento analítico” (SANTIAGO, 2013, p. 89).

Segundo Freud, os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente. No caso de Jésus Santiago, o pensamento atormentador da possibilidade de ficar deprimido e doente como o pai tem relação direta com sua missão de salvá-lo, encarnada pelo seu nome próprio.

Na neurose obsessiva, os sintomas surgem pelos pensamentos invasores, impulsos dentro de si mesmo, ritos obrigatórios. Essas manifestações, que fogem ao controle do sujeito, geram a ele perturbações e sofrimento. Isso fez com que Freud a nomeasse de “doença louca” (FREUD, 1915-1916, p. 267).

Uma das pacientes de Freud, citada na Conferência XVII (1915 – 1916), que cometia repetidamente o ato de chamar a empregada próximo a uma mesa, cuja toalha estava manchada de vermelho, de acordo com Freud, repetia esse ato no intuito de corrigir a falha do marido na noite de núpcias.

Portanto, Qual Seria A Função Do Sintoma?

O sintoma é uma consequência do encontro do sujeito com a castração (SANTIAGO, 2015, p. 163). Ele é “signo da falha da relação sexual” (SKRIABINE, 2013, p. 19), o que seria um outro nome da castração, sendo sua função a de um substituto, uma espécie de suplência à falta da relação sexual que o significante falha em escrever, ou seja, a linguagem não dá conta dessa relação, portanto, o surgimento do sintoma.

Porque Ele Se Forma Assim?

Freud nos ensina que o sintoma é fruto de um conflito entre a necessidade de satisfação da libido e as proibições internas e externas, ou do ego e da realidade, encontrado pela libido na busca de satisfação. Essas proibições fazem com que a libido, que possui um “caráter fundamentalmente imutável” (FREUD, 1916, p. 362), invista em forma de catexia, em tempos anteriores, nas fixações de satisfações que eram obtidas na infância, passando assim a operar através do sistema inconsciente. O ego, então, opositor a essas realizações, passa a persegui-la e compeli-la a escolher uma forma de expressão da própria oposição. Assim, cito Freud: “o sintoma emerge como um derivado múltiplas-vezes-distorcido da realização de desejo libinal inconsciente, uma peça de ambiguidade engenhosamente escolhida, com dois significados em completa contradição mútua” (FREUD, 1915-1916, p. 362-363).

O sintoma então age repetindo a forma infantil de satisfação, porém de maneira deformada devido à censura do ego, provocando sofrimento ao sujeito que reclama dele sem perceber que também se satisfaz ali. Como nos revela Santiago ao falar sobre seu “esquartejamento”, “um suplício sofrido pela ação de forças antagônicas”, posto em cena pela análise na qual ele se valia da “inocência do menino” para não saber sobre seu “aprisionamento no gozo sacrificial” (SANTIAGO, 2013, p. 93).

Santiago relata o esforço nocivo que fazia para tentar dissolver as identificações com o ideal viril, “identificação da criança-orifício com a virilidade da mãe”. Revela que “exatamente nesse ponto, o amor se transfigurava em sintoma. Em detrimento do amor, prevaleciam as repetições com a satisfação escópica promovida pela fantasia” (SANTIAGO, 2015, p. 166).

Freud, ao descrever sobre a regressão da libido às fixações de satisfação da infância, toca num ponto fundamental, que é o da fantasia, e a compara à realidade vivida por cada sujeito, com base no que cada um traz em relação às histórias de sua infância, sem se importar, a princípio, se os fatos são ou não verídicos, uma vez que foram criadas pelo sujeito neurótico e, por isso, têm o valor de verdade: “no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva” FREUD (1915-1916, p. 370). Como podemos ver na contribuição dada por Santiago em seu passe, “a fantasia se origina da relação da criança com a mãe viril”. Na adolescência, isso inverte: “de objeto-orifício passei a me identificar com o objeto-olhar da mãe. Assim, ao me identificar com ela, eu me virilizava; virilizado me sacrificava” (SANTIAGO, 2015, p. 166).

O ponto de fixação provoca sempre uma repetição por parte do sujeito, evidenciando que há algo no sintoma que resiste à decifração (SOUTO, 2003, p. 11).

Santiago, ao falar das repetições com a satisfação escópica promovida pela fantasia, afirma que “tais repetições se mostravam refratárias às interpretações e construções que buscavam elucidar o impasse amoroso… da identificação da criança-orifício com a virilidade da mãe” (SANTIAGO, 2015, p. 166).

O Sintoma Seria, Portanto, A Realização Da Fantasia?

“Lacan nos esclarece que o sintoma é aquilo que envelopa a fantasia, o gozo que a fantasia comporta… aquilo que da fantasia pode aparecer sob a forma significante” (MACHADO, 2004, p. 2). Como no caso de Santiago, ao assumir a forma do “boneco-de-verdade”: “O sujeito se apega a esta forma fálica que o representa para o Outro” (SANTIAGO, 2013, p. 91).

Sendo assim, a realização da fantasia pela via do sintoma é a realização do gozo, e Lacan chama de sintoma a incidência do gozo sobre o corpo. Portanto, o sintoma vai além da fantasia, comportando gozo e fantasia, sendo o gozo inapreensível pelo significante. Santiago, no percurso de sua análise, reencontra o que ele chama de “a dimensão mortífera do objeto, que aparece inicialmente velado pelo investimento libidinal no corpo próprio via o brilho do boneco-de-verdade” (SANTIAGO, 2013, p. 92).

O Nome-Do-Pai É Um Sintoma?

Lacan destitui o Nome-do-Pai rebaixando-o a um tipo de sinthoma, ou seja, o Nome-do-Pai seria igual ao sinthoma (JIMENEZ, 2005). Tal como o quarto nó, que amarra os três registros – real, simbólico e imaginário –, conforme demonstrado por Lacan ao referir-se a Joyce no Seminário 23 (LACAN, 1976).

Miller, na abertura da Conversação II de Arcachon, sustenta que um sintoma pode assumir a função de Nome-do-Pai e afirma que “o Nome-do-Pai, ele próprio, não é nada mais que um sintoma” (MILLER, 1997, p. 106).

Porém, Lacan não deixa de ressaltar a importância desse quarto elemento do nó borromeano, afirmando que o pai é esse quarto elemento… esse quarto elemento sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real. Mas há um outro modo de chamá-lo… eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma (LACAN, 1976, p. 163).

Há Solução Para O Sintoma?

O sintoma pode ser interpretado, e assim podemos dizer que há solução para o sintoma. No entanto, para o sinthoma não há interpretação, permanecendo um resto inominável. Portanto, “o sintoma é curável; o sinthoma não” (JIMENEZ, 2005).

Jésus Santiago demonstra em seu testemunho que o “boneco-de-verdade”, que encobre um “gozo mortífero”, é dissolvido pela sentença “negue teus heróis”, extraída de um sonho de final de análise (SANTIAGO, 2013, p. 95). Portanto, “no lugar da oferenda em sacrifício ao Outro, há o gozo traumático, considerando-se que sua consistência é o vazio próprio da montagem pulsional” (SANTIAGO, 2015, p. 169).

No percurso de uma análise opera-se a queda dos significantes, e, com isso, uma redução do gozo e também dos sofrimentos provocados pelos sintomas próprios de cada ser falante. No entanto, o inconsciente não se esgota, ou seja, permanece um resto, e nesse resto podemos encontrar uma solução (SOUTO, 2003, p. 11).

Para chegar a esse ponto, é preciso servir-se do pai na medida em que, numa análise, se articula com os significantes causadores de gozo e se descobre os objetos da fantasia. É servindo-se do pai que o sujeito neurótico tem a chance de sair da posição fantasmática que o coloca como objeto de gozo do Outro para inventar um novo modo de gozo. Essa invenção pode ser chamada de parceiro-sintoma, como nos esclarece Miller: “a relação do parceiro supõe que o Outro torna-se o sintoma do falasser, isto é, torna-se seu meio de gozo” (MILLER, 1998, p. 104).

Marcus André Vieira, em seu testemunho de final de análise, conta como foi essencial servir-se do pai para poder dispensá-lo quando fabrica o nome “mordidavida” para dar lugar ao gozo que não cabe em corpo nenhum, o gozo não apreendido pela fantasia, um gozo além do pai (VIEIRA, 2013, p.101).

Dispensar O Pai É Fazer Do Sintoma Um Parceiro?

Inventado e sustentado pelo passante Marcus André Vieira em seu testemunho, o nome “mordidavida”, que estabelece a parceria sintomática entre o falasser e seu sinthoma, só foi possível porque Marcus André se serviu da “mão mordida” do pai para poder dispensá-lo e ir além. Seu pai possuía 53 cães, e, portanto, tinha as mãos sempre machucadas por separar as lutas entre eles, numa violência disfarçada, como nos afirma Marcus. Este, então, encontra um lugar para o pai ao afirmar que “a mão mordida deu-lhe lugar… o do louco” (VIEIRA, 2013, p.102).

Se considerarmos que o Nome-do-Pai é um sintoma e que sempre haverá um resto, um real inapreensível, podemos concluir que dispensar o pai é fazer parceria com o sinthoma como um modo de gozar que o sujeito inventa.

Trata-se de uma invenção, pois mesmo num final de análise não é possível chegar ao significante S1, à verdade sobre o gozo. O falasser chega ao limite de saber pela via significante, o S1 “foi apenas um choque do significante com o corpo” (SILVA, 2015, p. 174).

A invenção do sinthoma não surge do nada, ela dispensa o pai pelo fato dele ter-se servido. Portanto, podemos dizer que o sinthoma já estava presente no sintoma e que a análise seria o processo de lapidação, no qual o sinthoma surge, ao final, como algo aparentemente novo, mas que sempre esteve lá, encoberto pelos significantes mestres (MACHADO, 2004).

No final de uma análise, conforme é possível constatarmos nos relatos de passe, há um resto que não se ultrapassa, portanto temos que viver com ele. Por mais longe que o sujeito leve sua análise, por mais que se reduza o gozo, restará o sinthoma como modo de gozo.

Utilizando-se da famosa frase de Lacan, “não há relação sexual”, Miller ensina que “o falasser, como ser sexuado, faz parceria, não no nível do significante puro, mas no nível do gozo, e essa ligação é sempre sintomática” (MILLER, 1998, p. 106).

E Como Fazer Com O Parceiro-Sinthoma?

Se as possibilidades pela via significante estão esgotadas, não há como saber sobre o que fazer com o resto de gozo, ou seja, não se sabe antes de fazer, trata-se de um saber-fazer que se dá em ato, sem significado, que não está dirigido ao Outro. “Trata-se de um saber que só se sabe ao fazer, depois de feito… um saber que só é sabido em ato” (MACHADO, 2004).

Jésus Santiago afirma que “o amor pressupõe viver o vazio da pulsão sem o recurso da fantasia” e relata que, no final, foi necessário dissolver a miragem fálica para poder “construir-se como objeto a serviço do vazio próprio da pulsão” (SANTIAGO, 2015, p. 168).

A via de entrada numa análise é também a via de saída, que vai da solução do sintoma ao sinthoma como solução. No percurso de uma análise, que se envereda pelas redes simbólicas que determinam o sujeito, as soluções pela via do sentido, daquilo que é interpretável, se reduzem ao resto inominável, ao real do sinthoma, que se transforma em parceiro. Portanto, o sintoma não se soluciona, mas é a própria solução parceiro-sinthoma.

 


 

Bibliografia:
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FREUD, S. (1916) “Os caminhos da formação dos sintomas”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Vol.XVI, Conferências introdutórias sobre psicanálise (parte III), Rio de Janeiro: Imago, 1976.
JIMENEZ, S. Sinthoma e fantasia fundamental, Latusa Digital, Rio de Janeiro – EBP-RJ, n. 12, 2005.
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MACHADO, M. R. O. “Qual a relação entre sintoma e sinthoma?” – Cadernos de psicanálise: SPCRJ, Rio de Janeiro, n. 23, V. 20, 2004.
MILLER, J.-A. “O osso de uma análise”. Seminário proferido no VIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e II Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise. Bahia: Biblioteca Agente, 1998.
MILLER, J.-A. et al. (1997). Os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica. A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.
SANTIAGO, B. A. L. “O falo como semblante: Rumo ao final de análise”, Curinga: Trauma nos corpos, violência nas cidades. Belo Horizonte: EBP-MG, n. 39, 2015.
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SANTIAGO, J. “O nome, o oco e a fonação”, Opção Lacaniana, n. 67, Dezembro 2013.
SKRIABINE, P. “Do sintoma ao sinthoma”, Revista de Psicanálise: @gente Digital, Salvador, n. 8, 2013.
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SOUTO, O. S. “Como a psicanálise cura”, In: Curinga: como a psicanálise cura. Belo Horizonte: EBP-MG, n. 19, novembro 2003.
VIEIRA, A. M. “Como morder o mar”, Opção Lacaniana, n. 67, dezembro 2013.

 


Leandro Marques Santos
Leandro Marques Santos – Formado no Curso de Psicanálise pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, Psicanalista, Pós-graduado em Gestão Financeira na PUC-MG. E-mail: leandromarquesbh2@gmail.com.