Comentário – Fernanda Otoni B-Brisset

FERNANDA OTONI B-BRISSET

FOTO: FREDERICO BANDEIRA

 

O relatório de Lilany traz orientações preciosas que articulam a clínica da toxicomania hoje e o que ela distingue como o campo político das adições. A distinção entre toxicomania e adição é um trabalho de investigação que a rede TyA tem feito e que nós acompanhamos.

Localizar as adições como um campo político me fez pensar que quando Lacan toma a política como um efeito de discurso, ele extrai dessa formulação que o inconsciente é a política. O inconsciente, como discurso do Outro, é um dos efeitos da copulação da linguagem com o corpo. Esse encontro contingente guarda um mistério – o do corpo falante – e determina uma política – a política do gozo. Ao marcar o corpo, o significante, num mesmo golpe, o mortifica e recorta na carne o vivo que anima o psiquismo. Esse encontro produz gozo e define sua orientação. Uma orientação para o gozo é uma das consequências desse encontro do significante com o corpo. Assim, entendo que o inconsciente é a política, o que se verificava mais claramente sob a lógica do inconsciente transferencial, na aproximação mesmo do inconsciente com o discurso do mestre, o lugar de agente dado ao S1.

Todavia, será que o inconsciente é a política ainda hoje, quando evidenciamos na clínica certa mutação no campo simbólico, face ao inconsciente real? Eu guardava essa questão comigo. Como atualizar a leitura dessa assertiva lacaniana com a derrocada dos mestres? Destacar as adições como um campo político parece se abrir a essa investigação. A política continua sendo um efeito de discurso, mas hoje o discurso capitalista é o que buzina nos nossos ouvidos. O direito ao gozo surge como uma marca do cidadão moderno. Os meios de comunicação, a favor desse discurso, ensejam o consumo dos objetos através de uma linguagem não articulada, palavras iterativas, imagens espetaculares, sem apelo à interpretação, mas que ressoam no corpo. Isto parece apontar que os significantes em circulação produzidos pelo discurso capitalista, sem apoio no sentido, se infiltram como um real no corpo, de forma rígida, determinando os modos aditivos do gozo. Na última lição do Seminário Orientação Lacaniana destacou-se que “o lugar do simbólico não é o espírito, mas o corpo”. Não seria no campo das adições que verificamos que o inconsciente real é a política? Todos adictos, cada um com sua droga, em terra onde o Outro não existe! Um discurso (capitalista), um inconsciente (real), uma política do gozo (aditivo).

Seguindo esta pista – o campo político da adição na era do parlêtre, numa leitura cruzada com o texto do Miller, em direção à adolescência -, vemos como as drogas e as imagens, hoje, participam da construção da adolescência de forma preponderante. O filme Gangues de Hollywwod destacado por Lilany, a partir de um caso real, é exemplar.

O filme, como na vida real, mostra como a eclosão do real do sexual desorganiza o sentido e soluções montadas na infância. O púbere não reconhece mais o corpo próprio, nem o Outro familiar é uma referência suficiente para restabelecer sua unidade. É um momento onde se nota uma desamarração, desentrincação… uma soltura das amarras do gozo estabelecidas na infância a exigir uma reconfiguração. A tendência ao agir se instala.

Miller, não gosta da expressão “desenvolvimento da personalidade”, mas a utiliza para destacar que esse momento é um tempo de indefinição, de impasse, embaraço, à espera de uma amarração do gozo que foi desinstalado na saída da infância. Dirá quando o narcisismo se reconfigura e que, de Freud a Lacan, a saída da infância é um momento onde, nessa sala de espera de um novo laço, dentre os objetos de desejo, o corpo do Outro surge de forma privilegiada, passando a jogar sua partida na economia do gozo.

Freud, em “A psicologia do escolar”, mostra como o adulto aí era tomado como modelo que poderia servir nessa reconfiguração. Prevalecia em Freud uma aposta de que a criança desorientada pelo despertar da adolescência poderia retomar a estrada principal a partir do encontro marcante com um Outro de fora, no caso, um adulto.

Porém, os tempos são outros. É para dizer dessa nova era que Miller, lendo Robert Epstein, vai sublinhar que os adolescentes, na história, foram considerados como adultos, viviam entre eles e podiam tomá-los como “modelos”. Contudo, agora, “fazemos adolescentes viver entre eles, isolados dos adultos, numa cultura que lhes é própria, suscetíveis a modas e entusiasmos”.

Lilany, nessa direção, enfatiza o que considero uma das teses do relatório: Na atualidade constata-se que em lugar da escolha de um objeto articulado ao quadro da realidade erótica representada pela fantasia, o que se destaca é a prevalência de um gozo autista, da iteração da pulsão e sua vocação aditiva. Evidência clínica que verifica que o gozo habita o corpo próprio. Os destinos da pulsão, hoje, em muitos casos seguem bem instaladas nesse curto-circuito, um circuito que não passa pelo Outro e faz do corpo próprio um Outro corpo para o sujeito.

Vejamos o filme. A princípio, não há adultos nele. Tem algo que ali se passa que testemunha esse deserto do adulto entre os jovens. Começa com um menino sem jeito, com um corpo que parece escapar de si. É excluído dos grupos. Até o encontro com uma menina. Não é o apelo erótico que aí faz o laço, mas o convite a extrair dos adultos os seus gadgets. Primeiro os carros largados, depois as casas esvaziadas de modelos famosas. Visitam seus closets, experimentam a transformação do corpo próprio num outro corpo e saem de lá vestidos delas. Imagens e mais imagens. Postam fotos e mais fotos de si nas redes sociais. Fazem bazar com os objetos, parecem populares. Acumulam malas, usam e espalham os objetos pela casa, e se acham: são muitos os espelhos. Interessante é que junto à montagem dos corpos com os objetos desses modelos famosos, os adolescentes vivem uma rotina atravessada por imagens e objetos, e ainda as drogas.

Jésus Santiago considera que “mesmo na experiência do espelho, pode surgir o momento em que a crença na imagem contida no espelho enfraquece-se e abala-se e por efeito torna-se alvo de perturbação no corpo.” Esta perturbação, esse resíduo desalojado do espelho, no caso da gangue de Hollywood, parece que era tratada com Louboutin, anestesiando esse pedaço. Assim, os jovens, compulsivamente, retornam várias vezes às mesmas casas, usam a casa como se fosse extensão deles, a cada vez que a celebridade viaja. Eles são elas. E o impressionante do filme é que nenhum adulto sente falta de nada que foi roubado. A gangue segue sustentando a unidade do corpo nessa amarração entre objetos e imagens, e Louboutin, compulsivamente. Até que uma câmara de TV captura a imagem da gangue, por acaso, e o adulto entre em cena na forma da polícia. A montagem de corpo cai da cena, de forma singular para cada um.

Miller nos convida a estudar a forma lógica da imiscuição, hoje. E é aí que uma pergunta do relatório pode nos orientar. Até que ponto a adesão ao campo das imagens e seus objetos virtuais, na era do outro que não existe, para alguns casos, denota um esforço para encontrar um ponto de amarração para o gozo? Lilany sugere que nossa clínica parece confirmar que pela adição aos objetos e imagens ofertados pelo discurso capitalista se faz uma amarração hoje, monta-se um tamborete sobre o qual um corpo se sustenta sem passar pela mensagem do Outro.

Será que na clínica do parlêtre – a clínica com adolescentes a demonstra como nenhuma outra -, certa imiscuição se passa na parceria com o campo político da adição? Poderíamos encontrar a lógica da imiscuição do adulto no púbere, não mais como mensagem como Lacan destaca no caso de Gide, mas um adulto imiscuído através do consumo de sua imagem e objetos, servindo de cabide para fazer um corpo no laço social?

Não seria uma saída como a de Gide, mas, em muitos casos, parece ser uma solução para o impasse, ainda que frouxa, uma orientação para a amarração do gozo. A lógica da imiscuição do adulto joga sua partida, com vigor, mas perguntaria se o adulto-modelo, hoje, também se imiscui através de imagens e objetos e não só por sua mensagem?

Um modelo biruta, né? Modelo século XXI.

 

[1] Comentários ao relatório: Drogas e imagens – novas adições, de Lilany Pacheco apresentado na XVI conversação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais


 

 

Fernanda Otoni B-Brisset
Fernanda Otoni B-Brisset. Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail:fernanda.otonibb@gmail.com



O Que Fazer Com Seu Corpo?

SÉRGIO DE MATTOS (RELATOR)

GIULIA PUNTEL

Problema

Como se constrói hoje um corpo?

O corpo se evidencia no último ensino de Lacan; não se goza sem corpo. Contudo em “Adeus ao Corpo”, Le Breton cita Stelarc: o corpo é obsoleto, é urgente livrar-se dele ou emparelha-lo com tecnologias e experiências extremas para ampliar possibilidades. Na performance The third hand, uma prótese de mão, aumenta muito a eficácia corporal, a partir de sinais elétricos vindos dos músculos abdominais e da perna. Longe de ser supérflua, a terceira mão agarra objetos, gira sobre si, é capaz de sentir.

Ao mesmo tempo, os corpos cada vez importam mais, hiper investidos, mais visíveis que nunca. A perda do corpo do mundo, de suas coordenadas simbólicas orientando nossos modos de gozo, nos leva a preocupar-nos com o corpo para dar corpo à nossa existência.

Investigar o tema e testemunhos sobre sua construção permitiram apreender o problema desde as sociedades tradicionais até as contemporâneas. Recorremos a estudos antropológicos sobre a população ameríndia, à prática do Zazen e às atuais modificações corporais. A segunda vertente do relatório trabalha a construção a partir de conceitos da psicanálise.

Campo de construção

Seja para proteger, curar, negar, alimentar, gozar dele, extrair de outros substancias para compô-lo, o corpo é centro das preocupações humanas. Ele sofre, não funciona, não aquenta mais, precisa satisfazer-se, domina nossa existência nos momentos que não está bem. É na hiância onde o mal estar se instala que dele lembramos e precisamos construir ou reconstruí-lo.

Um corpo nunca esta pronto e a rigor não sabemos o que ele é. Sempre aquém ou além, surpreendente, desregulado, imaturo, o corpo que fala, é aberto a um espectro de afecções e capaz de ampla gama de respostas. É essa sensibilidade e potencialidade que o torna também capaz de sintomas e novos arranjos.

Algum corpo não passou por modificações? Consciente ou inconsciente, voluntariamente ou não, pela alimentação, pelo uso no cotidiano, pela estética, podemos afirmar que todo corpo é de uma forma ou outra alterado, transformado. A história da humanidade é marcada por modos de interferir no corpo com múltiplas justificativas. M. Mauss nas “técnicas do corpo” mostra como cada cultura constrói seu corpo à sua medida sem cessar. A psicanálise começou interessando-se pelo corpo que não obedecia a fisiologia. Os distúrbios psicogênicos na visão, paralisias histéricas são clássicos. Hoje visível em todos os lugares, o corpo sobe ao céu- não mais a alma – como lugar de gozo. Assim precisamos investigar como foram e são hoje construídos, o que as novidades nos ensinam e suas consequências.

O corpo Genérico – os Yalawapíti

de Castro mostra como a noção de corpo construído é intrínseca à vida ameríndia. Nos Yawalapíti o corpo humano é submetido a processos intencionais e periódicos de fabricação: inumakiná (Umá, fazer ou fabricar). As relações sexuais são o inicio dessa tarefa. Fabricar significa também “mudar o corpo” e consiste em intervenções que conectam corpo e mundo: fluidos vitais, alimentos, eméticos, furos, escarificações, pedaços de outros corpos, penas, peles, óleos. Porque o que faz um corpo (humano ou não) é o modo pelo qual é afetado: o que ele come, como se move, se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário. O corpo é um feixe de afecções e capacidades.[1]

O corpo das espécies, sendo o modo pelo qual o espírito universal indiferenciado se particulariza, faz de tudo que existe um possível enunciador, capaz de autorreflexão, em posição de sujeito da perspectiva de um corpo. Corpo animal e humano são instrumentos e não falsa aparência de uma essência; são dispositivos que especificam o espirito. Por isso é preciso construí-lo desde cedo. No perspectivismo ameríndio, corpo não é sinônimo de realidade em si, mas conjunto de modos de ser que constituem um habitus.

Trata-se menos de um processo de desanimalizar pela cultura que de particularizar algo inicialmente demasiado genérico,diferenciando-o de outros coletivos humanos e de outras espécies. [2] Não se trata de culturalização de um substrato natural mas de fabricação. E ao lado da fabricação a metamorfose – yaka –que reintroduz o excesso e a imprevisibilidade na ordem do socius. Vestir uma máscara ritual é ativar os poderes de um corpo outro, como no uso dos trajes de mergulho. Veste-se um escafandro para funcionar como um peixe, respirando sob a água. Com a aquisição da linguagem, passa-se o mesmo, para os índios, ela se dá no nível dos hábitos corporais. Aprende-la supõe que essa toque o corpo, com o sexo, os fluidos fisiológicos, a alimentação, com uma materialidade encarnada, que informa o envolvimento com a linguagem.

Zensualidade

Ao lado do livro de M.Hardt e A.Negri, Império, nosso encontro, evoca em Lituraterra: Império dos Semblantes. Alusão ao Império dos signos[3], livro de R.Barthes sobre o Japão, onde a escrita comporta o vazio de significação e a sociedade sabe lidar com o vazio: A troca de signos é de uma riqueza, de uma mobilidade, de uma sutileza fascinante […] A razão é que lá o corpo existe, segundo um puro projeto erótico.

O livro destaca a arte das embalagens, magníficos embrulhos do vazio. Apreço pela vacuidade, presente nos haicais e na própria escrita ideográfica, onde predomina isenção e efração do sentido. O que é aí o corpo, nesse mundo flutuante de signos que se entretém entre si? Na história japonesa, nota-se ao lado da produção de moldes, formas de entender, viver e expressar o corpo; um outro modo, perturbador, que o Zen gerou no seio dessa cultura.[4]

No primeiro caso, usos paradigmáticos do corpo, encarnados nos setores dominantes, em seguida imitados pela população. Conjunto de certa iconografia corporal: samurai, haijin, gueixa. Por outro, Zazen prova de que o Império dos signos não se fecha sobre si, funcionando como ferramenta opondo-se ao marco mental e social restritivo, intervindo no modo de entender o corpo e valer-se dele. Zen concebe o humano como corporal (sem alma, interioridade, sem sujeito que dirija), numa prática da vida da pessoa-desde-o-corpo, lugar de apagamento e esvaziamento do sentido. Corpo em transito entre bonbu e bodhy (vivência e representação do corpo mais imaginativa, sensorial). O Zazen não elimina paradigmas mas os desestabiliza, os relativiza, os subverte.

Tal postura surgiu do encontro das doutrinas budistas com uma visão gozosa, corporal e emotiva do ser humano, já encontrada em Genji Monogatari, encontro cujo produto é segundo Otávio Paz o que o Japão nos ensinou: uma sensibilidade.

Marca-se ai uma diferença em relação às abordagens paradigmáticas do corpo, nessas a construção social atua como realidade fundante do ser humano. A visada própria do Zen não desconsiderando fatos históricos, inclui uma resposta que não é dócil à pauta corporal proposta, abrindo-se à construção de uma dicção sobre eles! A lógica da posição anti-paradigmática é a explicitação da natureza singular da experiência corporal.[5]

Essa abertura ao novo emana do hara[6], desde onde o corpo pensa outramente, pensa sem pensar (mushin), sem consciência pessoal. Concentrando na postura, consentindo a tudo que lhe ocorre, sem ir contra nem se entretendo com isso, esse corpo deixa-se atravessar, por um saber, que não é nem instintivo, nem tampouco um sistema articulado. Saber que no budismo se chamaPrajna: Sabedoria além da sabedoria, experiência de vacuidade e interconexão entre as coisas, representável com imagens da vacuidade e transitoriedade (rios, nuvens) expressão de uma existência sem substância.

Body Mod: Identidade em pedaços

Alguns cortes fizeram girar o uso do corpo na história do ocidente que traçam a rota até o momento atual. O primeiro quando os anatomistas transgridem a fronteira da pele, dissecam os corpos, expõe as vísceras, abrindo espaço para o surgimento no ocidente de um corpo-objeto.[7] O segundo, instaurador da modernidade, o cogito cartesiano[8], separa o homem (substância pensante) do corpo cujo modelo é a máquina feita de peças e engrenagens (substancia extensa). O corpo encarna então a parte ruim e frágil, um rascunho a ser corrigido.

Outro fator de corte: as estruturas imaginárias da história; a rede de símbolos da tradição judaico-cristã. Na Criação divina homens são co-criadores, logo há valorização da ação sobre o mundo e gosto pela experimentação. O Cristianismo por exemplo fundamenta sua especificidade nos temas da encarnação, conduzindo a atividade espiritual que lhe é própria para seu enraizamento objetivo.

Nesse ambiente surge uma razão motivada a tomar o corpo imperfeito, mortal e sua reconstrução, como um dos empreendimentos mais importantes da modernidade. Essa razão militante adquire impulso, devido as novas tecnologias, tornando-se uma das apostas estratégicas mais subversivas e de alto impacto das performances contemporâneas. O empreendimento de compensação das fragilidades tem paradoxalmente o levado a tornar-se excesso e imagina-se seu desaparecimento, substituição, imersão num mundo virtual. Esse ativismo que invadiu o mundo com seus objetos técnicos, relativizou valores, perturbou tradições, desligou o homem de suas imagens estáveis propostas pelo social, deixando os corpos desligados de suas referencias vindas do Outro. Corpos deixados a si-mesmos convocados a se construírem sem as antigas referências que os dominavam mas também os confortavam. A atualidade dos corpos, configura-se com a convergência de alguns fatores importantes: 1) Corpo do ser falante nascido imaturo fragmentado 2) Discurso científico cujo método reduz o corpo a peças de uma máquina que podem ser trocadas, reparadas 3) Imaginário coletivo que pretende recriar a natureza 4) Introdução no mundo de próteses cada vez mais sofisticadas e potentes compensando os limites corporais.

Do ponto de vista da psicanálise, o cenário produz um corpo em que a libido a ele retorna com mudanças de distribuição. A libido que se ligava aos objetos do mundo e estabilizava imagens do eu enquadrada pelos ideais, retorna investindo novos objetos que erogenizam o corpo de formas isoladas. Constrói-se – com objetos-signos – ilhas de satisfação, em uma região que parece nova. Discernível entre um que de hipocondria (retorno da libido a novas áreas investidas do corpo que ganharão erogeidade) e um investimento num corpo construído individualmente para reconectar-se a um Outro cada vez mais circunscritas a âmbitos limitados entre pares ou como arte. O corpo encarna-se em performances individuais, com características inéditas.

Nas entrevistas[9], nota-se efeitos das modificações:

Thiago: Comecei com 15 anos… estava construindo minha identidade diferente da desejada pelos pais, o menininho que vai para a Igreja que não toca no corpo… não conseguiria viver sem essas modificações … sempre tive interesse por corpos que não fossem padrões.

Há uma satisfação diferente antes e depois das modificações? Thiago: Eu era completamente complexado com meu corpo, … estranha minha relação com ele, não usava bermuda, nem camisa regata…me achava branco, perna fina, braço fino, conforme fui me modificando fui recuperando meu próprio corpo. Tatuei a perna ganhei uma bermuda, tatuei o braço usei regata, até conseguir trabalhar com performance artística e chegar ao nu, foi recuperar o corpo mesmo – as modificações me ajudaram muito, é um outro Thiago …foi a forma que encontrei, outra pessoa encontra outra, fui ganhando meu corpo à medida que fui modificando-o.

Como escolhe o que vai colocar no corpo?

Rafa: O que escolho pode ter significado ou não… são coisas que remetem a algo que vivi … tinha problemas com o corpo e ainda tenho, sou muito tímido, era fechado e isso abriu uma porta, me forçou a socializar, a responder o que era aquilo que viam. Minha pele é minha história. Já fiz modificações, suspensão pra chegar no meu limite, queria me elevar, sair do corpo… Mas não tem padrão! Não quero que generalizem! Cada um faz por um motivo…um porque é doidão, outro quer uma elevação espiritual, você é modificado, não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano.

O corpo para você é obsoleto?

Thiago: Completamente. Se fosse levar em consideração o natural, já estaria morto. Além da construção da identidade e o recorte tatuagem e piercing, sou asmático, preciso de uma bombinha pra respirar, tenho esteretrocônio, precisei de transplante de córnea, lente de contato e óculos, precisei da tecnologia pra sobreviver.

Os testemunhos, embora não generalizáveis, contém constantes que encontramos nas bibliografias: construção da identidade, domínio de si, experimentação dos possíveis corporais. Aqui o indivíduo, torna-se ele próprio fonte de escolhas segundo as ofertas do seu mundo, como modo de vivificação e gozo. Os corpos ai respondem à lógica da bricolagem, sujeitos aos acontecimentos que o marcam, gerando uma erótica das peças. Tomados nesse contexto, como conjunto de peças carnais, é possível dizer com Orlan: “Querida amo seu baço e a linha de seu fêmur me excita”.

Na atividade artística propriamente dita Irene Accarine, com Stelarc, Orlan e outros, propõe um conceito que nos serviria para pensar esses corpos: o “alter-corpo” ou “corpos-elas”, eles contrastam com as imagens pseudo belas das publicações que alimentam os olhares dos solitários de nossa época, são corpos que gozam de si mesmos deslocados, feitos de outras bordas que aquelas delimitadas pelo domínio do signo fálico e da imagem ideal.

Construção pela psicanálise

A psicanálise também constrói seu corpo. O constrói como imagem, corpo do Outro e lugar de satisfação: corpo libidinal, pulsional. É para a psicanálise antes de tudo um corpo que se faz para gozar de si mesmo. Ela o constrói ao longo dos tratamentos, no autismo, psicoses e menos evidente nas neuroses; torna-se evidenciado nos testemunhos de Passes.

Como imagem, orientou Lacan, a relação entre ela e seu efeito de real. Eficaz por dar unidade ilusória a um organismo pontuado por ilhas de autoerotismo. O estádio do espelho advém dessa orientação, a imagem narcísica, o eu ideal ao qual o sujeito nunca se identificará totalmente e o ideal do eu, enunciações de valor e rejeição. Imagem global e corpo fragmentado se enlaçam nessa montagem através das zonas erógenas: pontos de abertura do organismo e grampos, permitindo a comunicação entre corpo e mundo exterior através das experiências de gozo.[10] Na ruptura desse laço, a explosão da imagem global, angustia, estranheza e catástrofes subjetivas.

É isso que causa alguns avanços da ciência: rupturas da imagem total, ao converter o organismo em objetos cortados, compráveis, refragmentando o corpo ao extremo. Também ao criar novas imagens, vistas por máquinas, ela escapa das redes simbólicas que as continham produzindo efeitos perturbadores. Neste contexto, M.H Brousse considera que o eu ideal vem substituindo o Ideal do Eu: à medida que a ciência avança em relação ao conhecimento e às modificações do organismo e das imagens, mais débeis são os ideais tradicionais, relacionados ao discurso do Outro sobre o corpo, e sobre essa questão corporal do gozo… esse ideal funciona, por certo, como imagem do corpo, mas uma imagem do corpo um pouco cortada do Outro da palavra. Mas parece-nos que além disso, um certo retorno a um relativo autoerotismo das peças soltas também ocorre.

É preciso notar que uma tese psicanalítica sobre a construção dos corpos, supõe uma comunicação, que se faz entre o corpo, a imagem e o Outro, ou sua falta. Talvez possamos ver nos testemunhos dos Body Moders uma espécie de reatualização do Estádio do Espelho num diálogo, as vezes monólogo, com o estatuto atual desse Outro. E nos testemunhos de passe aspectos dessas interações levada ao extremo.

O primeiro testemunho de Marcos André Vieira, nos lembra que o corpo que temos é feito daquilo que foi possível fazer com o que o Outro fez conosco. Ele se constitui a partir do encontro entre o excesso que nos habita e a incidência do Outro em nossa vida. O que se traça deste encontro define o que será e o que não será possível em termos de prazer e dor, assim como dos locais onde isso acontecerá.

Nesse espaço entre vivo, imagem e Outro, incorpora-se toda sorte de composição do que seria para cada corpo que fala, a construção de um modo de gozo que um tratamento pode construir.

Marcus testemunha como seu corpo montado pela fantasia vivia-se como um mosquito leve até ser tocado pela palavra do analista com a gravidade de um tambor: Seu coração é um tambor – estantanbour. A interpretação do analista é visceral; desloca a montagem significante e imaginária do fantasma (mosquito leve) e se serve da materialidade sonora ressoando no corpo como as batidas do coração tambor. Trata-se de um exemplo paradigmático, do uso da interpretação analítica, no que diz respeito a construção do corpo. Marcus testemunha a partir deste momento o acontecimento de um novo corpo. Naquele vivido como um mosquito, coração batendo rápido, tomado em uma constante luta de picadas e partidas, Marcus vê abrir-se um espaço corporal sem lugar e forma claros, e nada do Outro. Do mosquito ao corpo tambor aparece um vácuo, onde um novo corpo pode acontecer. Seria instrutivo investigar como neste nível da experiência analítica, tocar o corpo depende da materialidade sonora e de ressoar em um vazio? Jésus Santiago testemunha[11] como o orifício não é um oco e que é preciso alcança-lo – o vazio intrínseco da pulsão – para livrar-se do engodo fálico. Seriam nossos corpo, cada um a seu modo, como um tambor – borda/vazio – com suas sonoridades que poderão ou não ser tocado pelo analista segundo uma interpretação visceral?

Corpo do acontecimento de gozo

Desde o gozo, somos, e os passes dão seus testemunhos – antes de tudo construídos por acontecimentos de corpo, incorporação, corporificação, provocando desregulação no organismo, despedaçamentos, excessos jamais apaziguados pelo princípio do prazer. Somos feitos de efeitos no corpo chamados à partir do seminário XX de afetos. Afecções no corpo vivo, excitações perturbadoras que constituem na raiz os corpos que nos chegam para tratamentos, marcados as vezes febrilmente com signos que não lhe dá consistência.

O significante traumático, piercing significante, escarificação da linguagem, escrita litoral, faz buraco no corpo e carnaval, e poderíamos reserva-lhe o status do mais radical elemento material, de construção do corpo no que se refere à nossa práxis. Sobre essa carne cuja palpitação, condiciona e anima todo o universo mental [12], o acontecimento de corpo, é o que consideramos como a substancia última, a argamassa do que constrói hoje um corpo para nós.

Para finalizar uma advertência. Cito Lacan: Quando voltarmos à raiz do corpo, se revalorizamos a palavra irmão […] saibam que o que sobe, que ainda não vimos até as últimas consequências, e que se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. E. Laurent[13]comenta o que ai se anunciava, baseava-se na lógica de que diante do desatino do nosso gozo, só haveria o Outro para situá-lo:não sabemos o que é o gozo segundo o qual poderíamos nos orientar. Sabemos apenas rejeitar o gozo do outro. Daí a vontade de normalizar o gozo daquele que esta deslocado.

 

 


Sérgio De Mattos (Relator)
Sérgio de Mattos Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: sergioecmattos@hotmail.com



Comentário – Cristiane de Freitas Cunha

CRISTIANE DE FREITAS CUNHA

 

POR GIULIA PUNTEL

O relato de Sérgio de Mattos nos instiga a percorrer suas referências. Com Viveiros de Castro, aprendemos a perspectiva ameríndia de construção do corpo, no processo de reclusão, exibição e metamorfose. Na cultura yawalapíti, o social constitui o corpo, não é algo externo que se deposita sobre ele. Nesse processo de fabricação, há uma dialética entre a reclusão e a exibição do corpo. A fabricação dos corpos, com a tecnologia da reclusão, tem início com as relações sexuais com a finalidade de procriação. Na puberdade, o corpo é recluso por um tempo, durante o qual o púbere depende da comunidade para sua sobrevivência, e os pais se abstém das relações sexuais. A reclusão da puberdade é marcada pela fragilidade e pela vergonha. Depois, há a exibição do corpo nos rituais comunitários, nos quais o corpo é marcado. A reclusão envolve, por fim, a morte e o luto. A fabricação produz seres humanos que acedem à vida, adquirem a capacidade de perpetuá-la e morrem. Há também a metamorfose, algo da ordem do excesso, do imprevisível, que pode transformar os homens em espíritos ou em plantas, como na experiência do xamanismo (CASTRO, 2002).

Um fragmento de uma entrevista do relatório de Mattos evoca também a modificação corporal para produzir um ser humano, ao dizer que “a pele é sua história: não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano”.

Seguimos Gustavo Dessal, em suas viagens e meditações sobre a vida amorosa. Em Boston, no verão de 2012, ele se depara com um encontro de cosplay[i]. Dessal captura imagens dessas identidades flexíveis, apartadas do encontro com o sexo, com o real, com a castração, com o desejo. Personagens que posam para a sua câmera e o ignoram. De Tóquio, ele nos fala da concretude da inexistência da relação sexual, materializada no deslocamento do encontro com o parceiro para a aquisição das bonecas infláveis – que não demandam nada, conforme o anúncio do fabricante –; no caminho para casa, evitando o encontro com o parceiro que demanda, quando há um; no trajeto pelas casas de massagens; nos aparatos que assessoram a masturbação. E, para saciar o desejo do encontro com um corpo vivo, há os bares onde os gatos podem ser acariciados. E, mais além do desejo, a reclusão dos hikikomori, adolescentes enclausurados em seus quartos. Em Nova Iorque, na primavera de 2013, Dessal visita lojas cenográficas onde se podem comprar corpos e pedaços de corpos. Ele observa que em Nova Iorque há lugar para a estranheza, desde que a diferença continue inserida no sistema produtivo, na lógica do empreendedorismo de si mesmo (DESSAL, 2013).

Continuamos pelo fio do empreendedorismo de si com Safatle, que nos fala da plasticidade mercantil do corpo (2015, p. 193). O capítulo que trata desse tema é aberto com duas citações: “eu creio que o corpo é obsoleto”, de Orlan, e outra, “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”, de Margaret Thatcher.

O corpo se torna obsoleto, o risco se torna obsoleto. Convocados a uma mutação e reconfiguração contínuas, a sociedade e os indivíduos assumem o estatuto de uma empresa. As técnicas de gestão e de intervenção terapêutica, a administração e a psicologia convergem para fornecer o arcabouço desse projeto de humanização do capitalismo e ajudam a gerir o medo do fracasso e a insegurança, inadmissíveis em uma sociedade flexível. Nesta, as normas não são transgredidas, são flexibilizadas em um cálculo preciso dos custos e resultados (SAFATLE, 2015).

No projeto da mutação corporal, as dietas, fármacos e cirurgias prometem uma configuração de si a baixo custo. E, no mercado do corpo, a mídia é um instrumento privilegiado de expansão, incorporando qualquer resistência. Nos anos 90 do século passado, observa-se um processo de reconfiguração de representações midiáticas relacionadas ao corpo. A Benetton lança uma campanha publicitária na qual corpos marcados pela aids são expostos. Calvin Klein e Versace investem na erotização de corpos doentes, mortificados, portadores de uma sexualidade ambígua. Os consumidores são convocados a um papel de cidadão diante do revestimento da mídia como forma de conscientização e provocação. E em uma perspectiva inclusiva dos consumidores, a mídia investe também na exposição dos corpos saudáveis e harmônicos, simultaneamente, expondo a bipolaridade das marcas (SAFATLE, 2015).

Uma peça publicitária da PlayStation apresenta o corpo com interface de conexão, um corpo protético e reconfigurável. Vemos um corpo diante da prateleira de cabeças, disponíveis para escolha e uso, como na loja de corpos e pedaços de corpos de Dessal. Uma outra peça contrapõe o tédio da vida cotidiana e a aventura da vida virtual (SAFATLE, 2015). Na vida cotidiana, a morosidade do trabalho; na virtual, a conquista de impérios com exércitos numerosos, que atesta o valor da existência.

O capitalismo avançado, humanizado, inclusivo, deixa à margem a experiência da estranheza, da fissura (LACAN, 1962-1963). Os mercados comuns tornam cada vez mais duros os processos de segregação (LACAN, 1968).

E são seres humanos à margem, segregados, que podem se aventurar na experiência analítica. Corpos marcados pelos significantes do Outro, que testemunham um mal-estar inerente ao ser humano. Que podem se permitir falar de modo precário sobre esse mal-estar no corpo que não se é, mas se tem. Um dos entrevistados por Sérgio de Mattos (2015) diz: “são coisas que remetem a algo que vivi (…) tinha problemas com o corpo e ainda tenho”. Ainda, apesar das modificações, suspensões, elevações, tentativas de sair do corpo. Ele atesta o fracasso da técnica, da ciência, para curar o mal-estar. E conclui: “não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano”.

[1] Cosplay: Segundo Dessal, condensação do inglês costume, disfarce; display, exibição; play, jogo.

 


BIBLIOGRAFIA
DESSAL, G. “Meditações de um psicanalista sobre a vida amorosa em Mutandia”. In: TORRES, M., SCHNITZER, G., ANTUÑA, A., PEIDRO, S. Transformaciones: ley, diversidad, sexuación. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2013, p. 267-275.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
______. Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École, in Silicet, Paris, Seuil, 1968, p. 14-30.
MATTOS, S de. “O que fazer com o seu corpo?” Disponível em <http://oimperiodasimagens.com.br/pt/faq-items/o-que-fazer-com-seu-corpo-sergio-de-mattos/>. 2015. Acesso em 28 de junho de 2016.
SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
CASTRO, E. A. V. de. Inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

Cristiane De Freitas Cunha
Cristiane de Freitas Cunha. Médica e Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: cristianedefreitascunha@gmail.com



A Química Da Libido

SAMYRA ASSAD

NICOLETTA CECCOLI. RECORDAR.

 

O gérmen, a letra

 

Química e libido, a princípio, parece-nos demonstrar dois termos que se opõem, a não ser quando, a partir de uma escolha (objetal) amorosa – seja ela permitida ou condenável, conveniente ou não –, frequentemente, escutamos: “existe uma química entre nós…” E ninguém ousaria explicar, prontamente, a razão disso. No máximo, fazemos poucas alusões, as quais cederiam o lugar, mais tarde, para transformar as alusões em ilusões. Desde aí, o impacto do corpo com o real, com o que não possui sentido, entra em cena na vida amorosa de um sujeito.

 

Assim, a química, a libido, enfim, certos aspectos do desejo, passam a ocupar lugares importantes no cenário de uma investigação psicanalítica, o que, inegavelmente, nos convida ao esforço de depurar, nessa mescla entre o eu e o objeto de desejo, o que advém de uma substância viva, ou, pelo menos, até aí chegar esbarrando com o que é inominável. Depurar a química da libido de um corpo vivo, marcado pela linguagem, certamente nos conduzirá a um corpo que a precedeu, portanto.

 

De algum modo, percebe-se uma conexão intrínseca entre esses dois termos com o lugar de uma inscrição no sujeito falante, dando partida à sua existência no mundo. A função dessa inscrição será dada a partir dos seus efeitos sobre o sujeito, sem que este, no entanto, possa a ela retornar senão sob a forma de um estranho familiar ou de um exterior totalmente íntimo. “O fenômeno da vida permanece em sua essência completamente impenetrável. Ele continua a nos escapar, não importa o que façamos” (RENNÓ, C., 1999, p. 5).

 

Ressalta-se nisso que “a psicanálise não se ocupa da substância viva, mas sim das forças que nela operam, (…) a pulsão” (Idem). Desse modo, é possível observar, através das forças que operam sobre a substância viva, um gérmen. Lacan afirma que “essas forças, de alguma forma, vão se estruturar em torno do que pode ser definido como a função da letra, fazendo desta um análogo do gérmen” (Idem, p.07). Miller prossegue:

 

(…) isso é ir muito longe na ‘biologização’ do significante. (…) o gérmen se inscreve no corpo, é distinto do soma, do corpo como soma; ele sobrevive ao soma. Por isso, podemos compreender porque a letra é análoga ao gérmen. Primeiramente porque sendo a letra aquilo que, do significante, se inscreve no corpo, ela é incorporada. (…) Em segundo lugar, ela não é o soma, e por último, a duração da letra se estende para além da vida do corpo, como nome próprio (…) a letra não é um gérmen; o gérmen é celular e a letra não (MILLER, 1999, p. 44-45).

 

A ideia de uma formação contingencial está presente nisso, nesse encontro do corpo com a linguagem, do qual resulta o traço como uma letra, trazendo consigo uma parte insondável, porém ali, sustentando a vida textual de um porvir do sujeito. Uma letra do destino, dizemos assim, podendo ser lida – contingencialmente também – em um modo de vida adotado: uma espécie de “marca registrada”, inventada, inimitável, única de cada um, singularmente patenteada. Letra do gozo, diríamos com Lacan. Uma espécie de nome próprio.

 

Portanto, através das forças que operam sobre a substância viva, um complexo caminho da necessidade ao desejo se desenrola. A química da natureza dos hormônios vai dando lugar a uma vida mental, à medida que um traço orientador de uma satisfação dá início a um circuito que tende a se repetir, já que o destino poderia ser entendido como um dos nomes do inconsciente.

 

Narcisismo, libido e objeto

 

A teoria da libido se baseia em grande parte no trabalho de Freud sobre o narcisismo. As formulações relativas à libido do eu e à libido do objeto são trazidas por ele especialmente pelo modo em que o eu e o objeto são peculiarmente interagidos, sendo o objeto invariavelmente uma representação mental. Podemos imaginar que isso acontece sob o foco de um olhar cujo ponto de onde advém a luz é faltoso.

 

Freud falava de uma “química especial”, através da qual se distinguiam quantidade e qualidade da libido. Logo, a produção, aumento ou diminuição, distribuição e deslocamento da libido do eu possibilitavam explicar os fenômenos psicossexuais observados em sua clínica.

 

Assim, na década correspondente aos anos de 1895 a 1905, Freud fazia recair a ênfase sobre a “química sexual”, dizendo-nos que “nos processos sexuais, substâncias de espécie peculiar decorrem do metabolismo sexual” (FREUD, S., 1905/1972, p. 222). No entanto, posteriormente, ele vai constatar: “estamos no escuro quanto ao órgão ou órgãos a que a sexualidade se prende” (Idem). Logo, restava ainda uma lacuna sobre a natureza da excitação sexual: “a análise das perversões e psiconeuroses mostrou-nos que essa excitação sexual não se origina apenas das partes chamadas sexuais, mas de todos os órgãos do corpo” (FREUD, S. 1905/1972, p. 223).

 

Freud, então, é levado a uma conclusão insatisfatória que emerge dos distúrbios da vida sexual, qual seja, a de “sabermos muito pouco sobre os processos biológicos que constituem a essência da sexualidade para podermos construir, com nossa informação fragmentária, uma teoria adequada à compreensão dos estados tanto normais quanto patológicos” (FREUD, S. 1905/1972, p. 250). Esse limite, por conseguinte, o impulsiona a recorrer ao mito, principalmente quando ele observa que existe algo que vai mais além do princípio do prazer.

 

Da biologia ao mito

 

Miller faz a leitura de que “é pelo viés da suplantação da biologia frente ao mito que ele (Freud) inventa a sua pulsão de morte e a inscreve no mito, não conseguindo que ela tivesse crédito no plano propriamente biológico” (MIILER, 1999, p. 14).

Parece-nos, então, que a biologia freudiana suplantada pelo mito que deu origem ao conceito de pulsão de morte foi sucedida pela biologia lacaniana, se posso dizer, trazida para sustentar o conceito de gozo ligado ao corpo vivo. Mas aqui não poderíamos supor, por exemplo, que haveria um saber próprio do corpo, o qual Freud teria revelado sob a espécie de uma química especial da função sexual, e que Lacan teria a relido como sendo o gozo próprio do corpo vivo?

 

Se assim o for, penso que isso sofisticaria, e de certo modo atualizaria, o que, enfim, diz respeito ao nosso objeto de investigação, a saber, o lugar da causalidade psíquica ligada à química da libido, portanto, no século XXI.

 

De Freud a Lacan

 

Pois bem. Como o regime da civilização na época de Freud se sustentava na interdição, o século XX se mostrou como sendo a era do Pai, do simbólico, de uma referência simbólica que orientaria as representações, o campo da significação. As transformações da puberdade contavam com essa referência; os sintomas eram interpretáveis a partir de uma cadeia simbólica inconsciente.

 

Os mitos de Édipo e de Totem e Tabu apresentavam a transmissão de um impossível acerca dos efeitos da libido sobre o corpo. Isso caracterizava, enfim, as neuroses sustentadas por uma lei que instaurava o desejo e a culpa, a partir da morte do Pai. Portanto, a inscrição da função paterna para o sujeito era trazida sob uma forma épica, implicando o aspecto simbólico da morte, da castração, em uma inscrição da linguagem no ser falante.

 

A adolescente Dora, o rapaz Homem dos Ratos e a jovem homossexual expressavam, portanto, no sentido mais restrito de uma subjetividade do século XX, a referência a um Pai, à castração – e, na perversão, o seu desmentido.

 

Em contrapartida, na nossa contemporaneidade, século XXI, o regime civilizatório não mais se assenta sobre a interdição, mas sobre o gozo. Observa-se, hoje, um quadro social em que a satisfação é exigida sem mesmo que o sujeito se pergunte sobre o que ele quer.

 

Situamo-nos, portanto, na era do mais além do Édipo. A predominância do real em detrimento do simbólico nos conduz, inclusive, a levantar uma hipótese – aquela de uma química inerente ao jogo libidinal do sujeito contemporâneo que não se interage com um traço constitutivo, mas com a sua pluralização, já que a referência paterna caiu. Encontrei depois um comentário de Marcelo Veras, em rede social, que me chegou como luvas: “Precisamos com urgência reler o texto Psicologia das Massas pensando os novos modelos de identificação, não mais organizados pelo traço, mas pelo gozo autista do objeto a”. (VERAS, M., 26/05/2016).

 

Quais seriam, então, os efeitos da libido sobre o sujeito diante da queda dos Ideais e, por conseguinte, da ascensão do gozo? Se aí o império é o da satisfação e da imagem, do olho absoluto e não o da castração, da desinibição e não o da inibição, qual será, enfim, a transformação da puberdade nos tempos atuais?

 

De outra ordem…

 

É notória a incidência crescente e expressiva das psicoses silenciadas ou ordinárias, provavelmente assentadas sobre uma ordem de ferro, sucedânea à queda do Pai. Assim Lacan a denominou em 1970, inclusive, preconizando a perda da dimensão amorosa na subjetividade. Podemos dizer que encontramos hoje essa ordem de ferro por meio de normas familiares, políticas, sociais e religiosas. Além disso, vemos as ofertas relativas aos dispositivos táteis e visuais, os quais favorecem uma conexão com o corpo através do uso superegoico inerente ao laço virtual entre os jovens adolescentes. Todos conectados![i]

 

Trago aqui, especialmente, um recorte clínico que tange os efeitos da libido sobre o caso de um jovem homossexual, por exemplo, que faz uso de aplicativos introduzidos em seu celular. Trata-se de um recurso para se distrair e fugir do tédio e da solidão. Esses aplicativos permitem ao jovem a exibição de seu corpo nu para que o outro o veja, e vice-versa, e, enfim, avaliam se querem ou não se relacionar sexualmente – não sem antes passarem pelo que se entende, assim, como crivo da beleza de um corpo, segundo o culto a ele dirigido via protuberância dos músculos.

 

De todo modo, parece haver aí a presença não de dois, tal como uma representação simbólica permitiria supor em se tratando de um endereçamento da libido, mas, de Um, de Um sozinho… Com o tato no celular através dos seus dedos, todo um império visual sustentado pela ordem de uma satisfação narcísica determina a sua excitação sexual. Eles marcam um encontro, se relacionam e vão embora, cada um depois permanecendo no anonimato do seu canto original, escuro, solitário, fazendo ressoar o vazio do silêncio quando o barulho da poeira abaixa.

 

Trata-se de uma ordem que permitiria ao jovem transitar entre elementos viventes dos mais diversos possíveis, inclusive descartá-los ou ser ele próprio descartado, em meio ao sexo casual e compulsivo: forte terreno do sadismo e do masoquismo, enfim, uma satisfação cujo pano de fundo pertence à pulsão de morte.

 

Aplicativos como Nude, Hornet, Grindr, Scruff e Tinder permitem o acesso e o descarte do gozo em nome de um uso narcísico cujas letras, para provar a existência do sujeito, passam por um aparelho, grosso modo dizendo, não propriamente mental… Possivelmente, isso demonstra outra transformação da puberdade nos tempos atuais. Outras letras ditam o destino do gozo para esse sujeito. A propósito, a materialidade fônica desses aplicativos é algo que salta aos ouvidos, acompanhada, inegavelmente, de um tom estrangeiro. Basta repeti-los seguidamente, lendo-os em voz alta…

 

Sirvo-me de uma pergunta de Miller, feita quando ele aborda o dispositivo da internet: “O que é que se multiplica nessas ficções? Multiplicam-se, finalmente, os semblantes de corpos. Isso torna apenas mais insistente a questão sobre o que está fazendo, de seu lado, o corpo original, enquanto seu semblante é mostrado” (MILLER, 1999, p. 32). Ou seja, nesse reenvio ao “corpo original”, algo de estranho, em ato, permanece.

 

Uma lacuna advém, tal como o jovem adolescente o demonstra: “O superficial é falso…” Sim, podemos concordar com ele, mesmo porque, “o elemento anulado pela distância não está presente, a saber, o que esses corpos não fazem juntos, presencialmente, pois, juntos, eles tornariam presente uma interdição, uma separação, uma não-relação” (MILLER, 1999, p. 32). O aforisma lacaniano – a relação sexual não existe – permanece intacto, independente das ilusões das quais o sujeito contemporâneo faz uso através do império das imagens. Talvez até o aguce.

 

Quando o sujeito enuncia a frase citada acima, vislumbra-se o caminho de sua desobjetalização, ou a uma submissão não-toda aos traços impostos nas ofertas de satisfação que o discurso da ciência e do capitalismo imprimiram na evolução dos tempos. Necessariamente, um ponto de angústia precederá tanto essa questão quanto uma solução singular.

 

Em se tratando da biologia dos corpos, do metabolismo sexual à substância gozante, ou do percurso que se inicia com a química da libido em Freud ao saber do corpo em Lacan, o adolescente freudiano transmite, com o seu sintoma, o dois em um; o adolescente lacaniano, o Um em dois, certa manifestação autística do gozo.

 

Parece ser assim que a solidão é trazida na cena analítica do século XXI.

[1] Com relação a esse aspecto, trabalhei um caso de uma adolescente que fez do seu inseparável iPhone uma extensão do seu corpo como uma solução. O lugar contingente que esse aparelho ocupou pôde ser extraído quando a fórmula confusional do sujeito, inicialmente trazida como “uma coisa pensa em mim”, adquiriu outro estatuto: esse aparelho como extensão do seu corpo alojou, justamente, esse fenômeno. O gozo se deslocou do corpo para o objeto inseparável de suas mãos, o que me permitiu introduzir um parêntesis especial para intitular esse caso: “I (am) phone…”. O trabalho foi apresentado na Jornada Clínica do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, “O Corpo Falante – Sobre o ICS no século XXI”, em abril de 2016 no Rio de Janeiro. Texto inédito.

 


BIBLIOGRAFIA
FREUD, S (1905/1972). “Transformações da Puberdade”, In: Obras Completas de Sigmund Freud. Escritos sobre “Três Ensaios da Teoria da Sexualidade” – 1905. Rio de Janeiro: Imago, vol. VII, págs. 213-250.
MILLER, J-A. Elementos de Biologia Lacaniana, Belo Horizonte, EBP-MG, 1999.
RENNÓ, Celso, “Apresentação”, in: MILLER, J-A. Elementos de Biologia Lacaniana. Belo Horizonte, EBP-MG, 1999, citando Lacan em 1955.
VERAS, M. Comentário em rede social, disponível em www.facebook.com.br, acesso em 26/5/2016.

Samyra Assad
Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: samyra@uai.com.br



Filiação: Demissão Da Autoridade, Desamparo Do Adolescente

MÕNICA CAMPOS SILVA

ATIVIDADE DE CHRISTINA FORNACIARI, “ESCULTURAS DE 1 MINUTO”. JOVEM DO PROGRAMA CAPUT

Para além do declínio do pai, como deixar de se servir dele? Embora estejamos contemporaneamente diante do enfraquecimento do Nome do Pai, a paternidade continua como uma função reguladora da tirania. Nessa medida, quando utilizamos o termo desfiliação, não é de qualquer ruptura que se trata, mas a da filiação, seja pelas ações processuais, seja pelo afastamento permeado pela revelação do fim do afeto.

 

Com sua intervenção “Em direção à adolescência”, Miller (2015) auxilia pensar os efeitos de uma desfiliação quando aponta que a adolescência é uma construção. Os recursos psíquicos necessários para tal construção estão também em como o sujeito nomeia sua família e em como as funções são estabelecidas, bem como no que essa constituição regula ou em como faz o empuxo à tirania. Assim, ao pensarmos na desfiliação, do que falamos? De um desenlaçamento, na medida em que o sentido que a função paterna possibilita ao gozo se ofusca, passando a não mais oferecer o apaziguamento, antes regulador.

 

Uma breve colocação sobre o pai em Freud e Lacan é necessária, visando a sustentar o que seriam os efeitos da desfiliação, ou seja, os efeitos subjetivos da judicialização do fim do compromisso parental.

 

Este tema conduz a duas vertentes para pensar a incidência do pai: a subjetivação pelo adulto do que é ser pai, e, o mais importante, aquela da criança para quem o pai funciona. Dessa maneira, também a judicialização da paternidade, propriamente dita, leva-nos a uma questão própria à psicanálise e melhor formalizada por Lacan – “o que é ser um pai?”. De início, na psicanálise, a preponderância do pai como função interditora relaciona-se à época freudiana, a lei da interdição do incesto é a condição do desejo. Não existe “acesso ao sujeito freudiano que não implique o pai como função chave, tanto por sua presença como por sua ausência” (FRYD, 2005).

 

Mesmo antes de utilizar a construção sobre o complexo de Édipo, em um artigo de 1906, intitulado “Romance familiar”, Freud demonstra que, para a criança, os pais são fonte de autoridade e conhecimento, o que a faz desejar igualar-se a eles. Em seu crescimento, a criança torna-se crítica e constata ser negligenciada em termos de amor pelos pais, ou seja, constrói uma fantasia, um mito próprio, que visa a responder sobre de onde vem e qual é seu lugar para os pais. O pai entra como suporte das identificações com as quais avança o sujeito, sendo também quem aponta a mãe como objeto desejável ao cifrá-lo com uma proibição. Em “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924) e em “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” (1925), Freud vai atentar para o fato de como a criança, diante de uma gama extensa de possibilidades em suas descobertas, depreende da sua relação com o pai, uma orientação que regule e ordene o modo como a sexualidade afeta seu corpo e suas relações na família e na sociedade.

 

Ao seguirmos a construção freudiana sobre o pai notamos que, a partir do momento em que Freud constatou o lugar do pai como o do interdito do incesto na economia psíquica, este ganha o lugar de alicerce da construção tanto do edifício social quanto do religioso, ficando estabelecida a concepção de Lei articulada ao pai. Este último, como uma construção mítica: morto como ser, conservado como significante. Nesse sentido, Freud dá ao pai o estatuto de função.

 

Para Lacan, o pai é o que introduz a castração, inicialmente, de um modo simbólico, como pai morto, e, posteriormente, como pai vivo, pela via de consequência de seu gozo representando e veiculando o interdito e vetorizando o desejo. Ao longo da obra de Lacan, há modificações sobre a noção de Pai. Partimos de um pai como sustentação da ordem simbólica, como fundamento do laço social reduzido a um símbolo até chegarmos à sua função de sinthoma, como pai vivo, múltiplo das “exceções”, a lei.

 

Em seu seminário 4, A relação de Objeto, Lacan nota que

 

se a castração merece efetivamente ser isolada por um nome na história do sujeito, ela está sempre ligada à incidência, à intervenção, do pai real. Ela pode igualmente ser marcada de uma maneira profunda, e profundamente desequilibrada, pela ausência do pai real. Essa atipia quando ocorre, exige então a substituição do pai real por alguma coisa, o que é profundamente neurotizante (LACAN, 1995, p.,180).

 

Após um salto, no final dos anos 60, em seu seminário De um Outro ao outro (1968-1969/ 2006), Lacan ratifica que o fato de não se ter certeza de quem é o pai é que está na essência e na função do Pai como Nome. É importante destacar que, nesse seminário, Lacan faz clara alusão à problematização da entrada da ciência no campo da paternidade:

 

A essência e a função do pai como Nome, como eixo do discurso, decorre precisamente de que afinal, nunca se pode saber quem é o pai. […]. Aliás, é absolutamente certo que a introdução da pesquisa biológica da paternidade não pode, de forma alguma, deixar de ter incidência na função do Nome-do-Pai (p. 149-150).

 

Embora Lacan já previsse a entrada da ciência no campo subjetivo, ele diz de uma incidência na função e não de um desmoronamento do Nome-do-Pai. Nesse sentido, Lacan continua servindo-se do pai, enquanto função, mesmo ao pluralizá-lo, dando a ele o estatuto de ferramenta da qual o sujeito pode se servir. Lacan marca que é por se conservar como “simbólico que o Nome-do-Pai é o eixo em torno do qual gira todo um campo da subjetividade” (p. 150). Assim, podemos arriscar que, mesmo a ciência se apresentando como forma de certificação de quem é o pai, ele permanece sendo essencialmente um desconhecido, sendo o que não é ofertado pela ciência e ratificado pela justiça, um conhecimento no real.

 

Em O avesso da psicanálise, Lacan insiste que a questão do pai não pode ser localizada pela ciência. Do pai real, que de alguma maneira efetiva a castração, a ciência não dá conta. É o ponto de incerteza que exige a nomeação do pai, sendo a construção da realidade psíquica ligada mais à função paterna do que ao biológico. O Nome-do-Pai é presente e constitutivo do sujeito como semidito, a falha fazendo parte do Nome-do-Pai.

 

No final de seu ensino, o Nome-do-Pai deixa de ser a garantia e passa a operar a partir de uma lacuna, sendo o que comportará um lugar para a causa do desejo, para o singular.

 

A escolha de um gozo e não de outro, daquele que é a causa do desejo por uma mulher e não do que está ligado à imposição da disciplina ou à aplicação da lei é que possibilitará a inscrição da marca paterna (ZENONI, 2007, p. 20).

 

Não se trata mais do universal da lei, mas do “um por um” dos sujeitos que se dizem pais, ou seja, da exceção que qualquer um pode fazer para que a função da exceção se torne modelo (LACAN, 1975).

 

Podemos concluir, a partir de Freud e Lacan, que a função do Nome do Pai responde a um uso prático, podendo-se dela prescindir com a condição de dela nos servirmos. Para Phillippe Lacadée,

 

(…) o pai é aquele que permite apreender a rotina que faz coincidir o significante e o significado. Por isso, é melhor que uma criança tenha acesso a um homem que lhe permita calcular, sob sua presença, a função essencial para todo o ser humano que é a invenção, uma vez que o pai é a invenção do sujeito (2006, p. 54).

 

Entretanto, se é no momento da adolescência que o sujeito precisa se descolar da autoridade parental, como fazer quando a sustentação necessária para essa transição se desfaz? Quando, diante da lei, a referência paterna é destituída? Quando o operador da função a abandona? Observamos que os endereçamentos após a desfiliação, da ruptura de promessa, ganham cores mais intensas. Os efeitos para esses sujeitos se apresentam mais devastadores, mais ainda na adolescência.

 

É no tribunal de família que chegam as demandas ao judiciário para se abdicar do lugar de pai. Escutar esses casos auxilia na busca por entender por que esse pai, por vezes figura viva, ao se demitir da paternidade, provoca profunda desregulação. Nessas situações, o supereu caprichoso viria ocupar esse lugar da função, transformando-se em tirania para esse sujeito? A pergunta se faz a partir da verificação de que, na maioria das vezes, há uma solução pela via de um tamponamento, tirânico, da questão. Há algo na desfiliação que abala profundamente a relação lei/desejo, tornando a vida exigente (imperiosa), e vemos muitas vezes impotentes, como as sentenças, medidas de proteção ou responsabilidade no campo do direito que não restabelecem a ordem e uma orientação para a subjetividade.

 

Em termos de efeitos subjetivos, notamos produzir nos jovens o que Miller (2015) aponta em seu texto, ou seja, um prolongamento, ou mesmo uma fixação da adolescência, como real, que não cessa de não se escrever, mas também, em alguns casos, diante do inassimilável, produz certa antecipação da posição adulta na criança e no adolescente. Para Lacan, uma das consequências da demissão do pai é que o significante serve mais ao gozo do que à comunicação. Assim, se o nome do pai é aquele que tem “as ferramentas necessárias à bricolagem da vida, ou ao menos que faz seu filho acreditar nisso” (LACADÉE, 2006, p. 56), por sua vez, a desfiliação expõe o insuportável, ”por ter revelado um buraco na significação de seu ser no Campo do Outro (Idem)”. É como se a nomeação simbólica vacilasse, ficando o sujeito à deriva de um puro real, irredutível ao efeito de sentido. E ainda que o pater incertus est, ao tornar-se pater est, tenha em si a certeza sobre a paternidade, incide sobre a ficção construída pelo sujeito. Dessa forma, na desfiliação,

 

o filho tem acesso direto a um pai que não sustenta mais a função paterna, tornando-se uma pessoa anônima, humilhando o filho que disso se envergonha. O pai não está mais ali para velar o objeto real, dando um nome ao real, ao contrário, não há mais ninguém para introduzir o filho em uma dívida simbólica devida à função do Nome do Pai (Idem).

 

A ruptura abrupta de uma história constitutiva pode deixar o sujeito, frente a um real, sem recurso. A prática institucional revela-nos que o efeito de uma destituição paterna na subjetividade do sujeito permite, ainda assim, a construção de uma saída, fazendo uso do pai. Contudo, um mal-estar, um impossível, se coloca, pois se o direito pode instaurar ou desinstaurar a paternidade do ponto de vista legal, na subjetividade, ao contrário, não se pode inscrever ou desinscrever o pai. A legalidade ou a prova pericial podem interferir drasticamente na vida de um sujeito, colocando em teste os recursos que ele articulará para encontrar um novo nome, uma nova resposta.

 

Na prática judiciária, frente aos casos que nos chegam, podemos perceber que a justiça, em certa medida, ao responder as ações, tenta demonstrar que, mesmo no judiciário, campo da lei, é preciso passar pelas regras que constituem o mundo humano, bem como por uma transmissão, ou seja, que algo da castração, do interdito, esteja presente. Para a psicanálise, o sujeito é constituído a partir do lugar que ocupa na relação pai e mãe. O direito, ao tentar regular aquilo que escapa, vai buscar modos de provar e estabelecer o que são e o que não são pai e mãe. Isso não só é difícil como impossível, localizando nesse ponto a dificuldade para tratar os casos nos quais se demanda, de algum modo, a judicialização da parentalidade em geral.

 

É certo que uma regulação é necessária e que a função do Estado é buscar oferecer o maior ou melhor interesse para a “pessoa em desenvolvimento”, conforme preconiza o ECA, tentando, inclusive, manter a filiação. Contudo, podemos perceber que o sentenciamento, por si só, não regula os sujeitos, e, como consequência, não promove mudanças significativas ou efeitos que beneficiem os jovens em questão. Pois é a própria impotência do sujeito para lidar com o que se apresenta, bem como para que essa intervenção do outro tenha efeitos, o que está em jogo. O dado externo, ou seja, a sentença, não regula o modo como o sujeito responde.

 

A problemática da filiação/desfiliação lançada no campo do direito alcança a construção ficcional realizada pelo sujeito, fazendo-nos buscar entender qual lugar ocupa a família para o sujeito. Mais além de seu aspecto social e seu percurso histórico, chegando à diversidade do que podemos chamar de família contemporaneamente, consideramos que, do ponto de vista psíquico, ela é a substituição do biológico pelo simbólico. De outro modo, na psicanálise, a família distingue a dimensão humana da condição biológica na medida em que a família é o que o sujeito nomeia, enquanto função, como pai e mãe (LAURENT, 2008). Nesse sentido, não há prova pericial e decisão judicial que por si só restitua ou destitua um pai. Uma criança, como o resto do encontro entre a causa de um desejo e um sintoma, é marcada por essa equação. Ela é esse fruto. Assim, os lugares de pai e mãe são inelimináveis, e a marca que deixam é o sujeito – não pode ser suspensa.

 

De tal modo, diante da casuística, buscamos apreender em que a presença de um homem, com seu investimento, se associa à função paterna e sobre as consequências subjetivas de um desaparecimento abrupto dessa figura, ou seja, quando há uma ruptura dos laços e do investimento estabelecidos concretamente. Entretanto, é possível antever que o sujeito filho não fica impune; há um abalo em sua crença sobre o semblante, sobre a ficção que construiu para seu ser a partir da função paterna.

 

Vinhetas práticas:

 

Uma criança é criada por seu pai até a entrada na adolescência. Após a separação do casal, o pai descobre que a criança não é sua. No que se refere à criança, a partir do resultado do DNA, ela perde a posição privilegiada no desejo desse pai e passa a ter acesso à sua raiva, que a humilha e exclui. A criança vive certa perturbação, se desorienta, respondendo com seu silêncio. Em um atendimento, a criança fala: “me chamam de bastardo. Não sei o que significa isso direito, mas tem a ver com o fato do meu pai não querer me ver”.

 

Em seu seminário De um Outro ao outro, Lacan aponta que o mais importante para a criança é entender como o saber, o gozo e o objeto a lhe foram oferecidos pela linguagem, ou seja, que aquilo que lhe foi oferecido seja sustentado pelo desejo de um pai e de uma mãe. Como fazer valer uma solução própria do sujeito, uma invenção diante do real fora de sentido que, nesse caso, advém do exame de DNA, resultando em uma desfiliação abrupta? Essa criança terá que decidir se e como responder a isso, tomando o ponto de vista de que há aquilo que não mudará. Embora a sentença judicial mantenha a paternidade do ponto de vista legal, há claramente a retirada desse pai de sua vida. Fica a impermeabilidade do DNA e, como consequência, esse sujeito faz uma interrupção na relação com o saber, e uma importante debilidade se instala.

 

Em outro caso, com percurso semelhante ao primeiro, o adolescente passa a se intoxicar e, em pouco tempo, morre de overdose. É possível perceber que se trata de uma revelação que faz cair a ficção, tendo como efeito de um saber absoluto que não deixaria lacuna para uma saída subjetiva.

 

Em outra situação, um jovem, ótimo aluno, com boas aspirações profissionais, é interpelado por seu pai que lhe revela, subitamente, não sê-lo. O genitor comunica que buscará a justiça para solicitar a retirada do registro paterno da certidão de nascimento, bem como para a suspensão do pagamento da pensão alimentícia, propondo que, apesar disso, o garoto continuasse a considerá-lo pai. Diante desse contexto, o adolescente passa a ter dificuldades na escola, desinteressando-se por ela e pela futura profissão. Inicia uma relação de amizade com o traficante da região, se aliando a este e indo vê-lo todos os dias, embora não seja usuário de drogas. Não sabe bem por que vai, mas é lá que quer estar. A resposta desse adolescente evidencia o engessamento e a devastação produzida.

 

O que a ruptura de promessa provocou? Parece-me que, após a perplexidade, com o fim da crença e tomados pela pulsão – já que o que regulava cai –, esses sujeitos buscam responder. A crença no Outro fica abalada, o real que aí aparece é inicialmente maciço e sem borda. Aparece, como comenta Miller, “uma realidade imoral, sem dialética e sem compromisso”[i].

 

Uma última casuística de demissão paterna chama a atenção: após a separação do casal, apesar de não haver obstáculos para a convivência paterno-filial, ocorre um distanciamento radical do pai. A judicialização, solução do filho para seu desamparo, nesse caso intitulado juridicamente de abandono afetivo, pouco ou nenhum efeito produziu na relação com seu genitor, mesmo que no nível das obrigações legais este não se ausentasse. Assim, fica a pergunta: teria acontecido uma “desadoção[ii]”, uma ruptura de promessa? A consequência maior para esse filho é uma desorientação, à qual busca dar tratamento pela Lei.

 

Diante das vinhetas apresentadas, alcançamos que, no mundo humano, diferente da natureza, um filho, biológico ou não, terá sempre que ser adotado, ou seja, terá que haver um investimento, um desejo que não seja anônimo, para que ali se constitua um sujeito.

 

A prática analítica permite perceber a importância do uso da ferramenta pai e como, apesar do sofrimento e do abandono iniciais, as demandas que se apresentam, principalmente dos filhos, vão ao viés de uma solução que os amparem. É o uso que cada um pode fazer da função paterna que orientará a construção de uma saída própria. Assim, podemos escutar a incompreensão e a desorientação quando verbalizam suas histórias e o anseio por uma resolução rápida. Ante os casos, é possível observar que a operação realizada pela função paterna não é passível de ser anulada, mas o desaparecimento da presença do pai tem efeitos para a criança e para o adolescente. Mesmo que tenham recursos simbólicos suficientes, isso não dá garantias de que as saídas serão tranquilas. Ao contrário, podemos ver, em nossa prática, que as saídas podem ser mortíferas. Nessa medida, o que podemos extrair é que não há intervenção do direito que altere o sujeito constituído. Entretanto, essas intervenções podem alterar o modo como o sujeito vinha lidando com a vida, com as faltas, com sua própria inscrição. Nos casos apresentados, vemos a constante em que os adolescentes são retirados do lugar de objeto de desejo e lançados para o lugar de dejeto, sem que qualquer tratamento seja dado à responsabilidade que cabe aos responsáveis pelo filho nessa situação.

 

É importante criar as condições para que cada um possa falar sobre seu lugar em sua história, permitindo uma responsabilização, principalmente dos adolescentes. Se o sujeito não aparece no enunciado, é preciso fazer valer a enunciação e auxiliá-lo para que ele se aproprie dela. Desse modo, permitir que uma elaboração possa ser feita não é encontrar uma resposta adequada, é muito mais suportar o que não encontra uma adequação. É sustentar que é possível uma nova saída que seja digna para o próprio sujeito, no sentido de sua responsabilidade, com contornos possíveis, e não um engessamento que não comporte nada do que é próprio ao sujeito.

 

[1] MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia.
[1] O termo “desadoção”, como o de desfiliação, é aqui utilizado para indagar o aspecto do desejo, da singularidade que deixa de existir.

 


BIBLIOGRAFIA
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LACADÉE, P. “O uso do Nome-do-Pai: a ferramenta do pai e a prática analítica”. In: Invenções Paternas. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, vol. 23, 1ª Ed., 2006, p. 55-70.
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______. (1956-57/1995) O seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1968-69/2008) O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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______. (1974-75) O seminário, livro 22: R.S.I. – inédito.
______. (1975-76/2007) O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LAURENT, E. Século XXI – não relação globalizada e igualdade dos termos. (Inédito), 2008.
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VILLELA, J. B. “Desbiologização da paternidade”. In: Revista da Faculdade de Direito, 21, 1979, p. 401-419. Disponível em www.abmp.org.br. Acesso em 30 jul. 2010.
ZENONI, A. “Versões do Pai na psicanálise lacaniana / O percurso do ensinamento de Lacan sobre a questão do pai”. In: Psicologia em Revista, 13, 2007, p. 15-26.

Mõnica Campos Silva
Mônica Campos Silva. Psicóloga, psicanalista, psicóloga judicial do TJMG, mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG. E-mail: monica.camposilva@gmail.com



O Real Da Puberdade E A Saída Da Infância

MARGARET PIRES DO COUTO

FREDERICO BANDEIRA

Freud examina a puberdade no último dos Três ensaios, dando ênfase às metamorfoses que ela comporta. É a entrada na puberdade que anuncia o fim da infância, e, nesse contexto, Miller (2015) propõe que pensemos menos numa lógica evolutiva e mais numa topologia do corte. O novo emerge e agita esse corpo, que é desalojado da imagem ideal até então sustentada, exigindo um novo arranjo.

 

A experiência da psicanálise visa então a investigar esse momento e a permitir ao adolescente encontrar uma solução para esse novo que o agita.

 

O que seria esse real responsável pela metamorfose da puberdade? Como os jovens têm se arranjado com o novo que os acomete? Como a questão do sexo se inscreve para os jovens hoje diante de uma cultura que propõe não mais falar em diferença sexual? Como esse novo se inscreve e perturba o corpo? Quais arranjos esse falasser encontrará para inscrever esse corpo no discurso e na cultura?

 

1) O real da puberdade: o encontro com um gozo difícil de nomear

 

O real em jogo nas transformações do corpo, característico da puberdade, não pode ser reduzido a um real orgânico. O que se chama empuxo hormonal não deve ser entendido como um fenômeno exclusivamente físico, mas como um fenômeno de corpo. Corpo esse tomado por um gozo estrangeiro, não significantizado pela palavra e, por isso, experimentado como um gozo fora do corpo.

 

A irrupção de gozo constitui a emergência de alguma coisa diante da qual as palavras falham. Na puberdade, o sujeito depara-se com essa parte de desconhecido, em face da qual as palavras desfalecem, a ponto de se chocarem com um impossível de dizer, agitando tanto os corpos como o pensamento e tornando difícil sua tradução em palavras (LACADEÉ, 2011, p. 74).

 

O surgimento desse novo produz o que Lacan chamou de uma falha de saber no real. O que significa isso? Para os animais, o instinto é um saber no real que faz com que não haja nenhum problema quanto à relação sexual. Para o ser falante, esse saber no real não existe. Macho e fêmea não sabem o que fazer juntos e precisam da intervenção do Outro, da palavra do Outro, do discurso. Privado da solução animal do instinto, mas embaraçado com a pulsão em razão de sua inserção na linguagem, o sujeito, por razões de estrutura, encontra esse buraco, esse vazio na relação entre um homem e uma mulher. Trata-se, portanto, do encontro com a não relação sexual e da inexistência de saber no real quanto ao sexo.

 

O encontro com esse real, com esse gozo, traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem, com a língua, e pode levar tanto ao despertar quanto ao exílio.

 

O despertar do real da sexualidade, em vez de viabilizar a relação sexual, como se poderia esperar, pode suscitar o gozo das fantasias que afastam tal possibilidade. O despertar dos sonhos que os meninos adolescentes vão ter que enfrentar é malsucedido. No lugar de se relacionar com o Outro, ele se exila ainda mais em sua solidão (LACADÉE, 2011, p. 75).

 

Esse sentimento do despertar e do exílio do adolescente, que se articula com o encontro sexual, desterritorializa o sujeito de sua infância e antecipa a separação de sua família, de sua casa e de seus pais.

 

A queda dos semblantes paternos e das identificações fálicas

 

Freud, em seu texto “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar” (1914), apresenta a tarefa mais essencial do adolescente: separar-se da autoridade de seus pais como o desligamento de seu primeiro ideal. Freud afirma: “Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai” (1914, p. 288). Desligar-se do pai implica um trabalho de separação simbólica que, por sua vez, não deve ser entendido, como assinala Hugo Freda (1996), como “fazer sem o pai”. Sem pai, não há desligamento. O desligamento desse primeiro ideal permitirá ao adolescente encontrar outros modos de inscrição na cultura.

 

A identificação constituída como ideal do eu, produzida na saída do Édipo, faz traço e serve de base para que o sujeito se veja digno “de ser amado, e até amável”, permitindo-lhe ter uma ideia de si e orientar sua existência. O ideal do eu é o vetor sobre o qual a identificação constituinte se apoia. O ideal do eu equivale ao ponto de basta que estabiliza o sentimento de vida, que dá ao sujeito seu lugar no Outro (LACADÉE, 2011, p. 22).

 

Com a chegada do real da puberdade, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava a identificação constituinte de seu ser e o sentimento de vida. Esse ponto de apoio vacila e o sujeito se confronta com algo que, ao fazer “furo no real”, o reenvia a um vazio. Há, portanto, certo despedaçamento do imaginário com o surgimento desse real. Do lado da identificação simbólica, o sujeito precisará operar uma separação das figuras de seus pais e modular de outra forma seus ideais, de outra forma que não seja a modulação pela simples identificação paterna.

 

Desse modo, para que o adolescente avance para além da cerca simbólica da família, para que se abra para o mundo e afronte o inédito, ele precisará se servir dos traços e das experiências infantis à sua disposição, que servirão de ferramentas nessa trilha (FOCCHI, 2009).

 

A adolescência é, assim, essa delicada transição em que todo sujeito se encontra ao se separar do Outro. É o momento em que se separa do significante mestre ideal, quando é o caso, que até então lhe serviu de sustentação.

 

Em seu texto “Contribuições para discussão acerca do suicídio (1910)”, também interessante para pensar as questões dos adolescentes, Freud ressalta que esse é o momento da vida em que há o afrouxamento dos laços familiares, e, por isso, trata-se de momento oportuno para atos em que o sujeito se coloca em risco. Freud acusa a escola de não cumprir, nesse momento, uma função que lhe caberia: “não impelir os jovens ao suicídio” (FREUD, 1910, p. 217). A escola, como substituta da família, poderia enlaçar o jovem com a vida por meio da oferta de um saber que fosse transmitido mediante um desejo vivo, ancorado pelos educadores. O adolescente poderia encontrar ancoragens identificatórias no espaço escolar, que lhe serviriam de bússola nesse momento difícil da existência.

 

Damasia Freda, em El adolescente actual (2015), ressalta que, na ausência do ideal regulador, encontramos como sintoma contemporâneo entre os adolescentes a desorientação. Nesse sentido, é preciso que o tratamento analítico permita ao jovem encontrar algo, algum significante que possa servir de orientador na existência. Em seu livro, a autora cita a pesquisa que ficou conhecida como os “Nem-Nem”, também realizada no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas. Em 2013, a referida Fundação divulgou um dado alarmante: o Brasil tem hoje 1,5 milhão de jovens com idade entre 19 e 24 anos sem trabalho e fora da escola. Em face da desorientação promovida pelo declínio do ideal, os jovens aderem, com frequência, a discursos tanto religiosos como políticos de caráter totalitário, sem nenhuma dialética.

 

A mesma autora, ao citar os trabalhos de Hélène Deltombe, aponta que a adolescência se converte em uma etapa em que cada um busca seus apoios – sobretudo por meio de seus semelhantes – em identificações recíprocas que fundam modos de vida. Os sintomas podem se articular ao laço social e se converter em epidemias, tais como o alcoolismo, a toxicomania e a delinquência, acentuando seu traço de rechaço ao Outro. Trata-se de grupos em que se apaga a alteridade e que, ao permanecerem numa identificação horizontal, ganham uma consistência imaginária, que conduz à segregação.

 

2) Corpo e sexuação

 

O encontro com o real da puberdade, com aquilo que faz furo, perturba a vivência íntima do corpo e traz inquietações. O corpo torna-se o lugar onde se atualizam os problemas da identidade e do gozo indizível.

 

Algo agita o corpo, e, com frequência, o adolescente percebe as modificações de seu corpo como sendo outro corpo. O enlace da imagem do corpo com o corpo pulsional, que até então sustentava o corpo simbólico da criança, se modifica. O corpo tomado como semblante fálico, ou seja, como substituto do que falta à mulher e como equivalente do desejo do Outro, se encontra perturbado pela irrupção do gozo, fazendo com que o adolescente perca o suporte imaginário. Opera-se então uma desconexão entre seu ser de criança e seu ser de homem ou de mulher, que tinha sido constituído a partir do espelho do Outro, do desejo desse Outro. Lacadée (2011) sugere a noção do surgimento de uma mancha negra no campo dessa imagem, mancha essa que muito angustia o sujeito. Podem surgir, nesses momentos, os fenômenos mais diversos, como despersonalização, sensações de falta de limite, errâncias e produções de marcas no corpo, que visam a limitar e a localizar o gozo.

 

A ausência de uma resposta acabada e conclusiva sobre o seu ser sexuado no simbólico ganha, para o adolescente, valor de colocação à prova em relação ao real. Ele precisará agora subjetivar esse novo modo de ser. Os meninos e as meninas já não sabem o que fazer e vão procurar encontrá-lo no discurso.

 

A metamorfose que a puberdade produz é, assim, uma nova e radical distinção entre o menino e a menina. Até então, bastava que a distinção entre eles fosse uma distinção significante. Agora se trata de como se diferenciar a partir da relação com o outro sexo. É assim que a diferença menino e menina se extrai da diferença na linguagem e da diferença imaginária igual/não igual para se transformar numa diferença difícil para o sujeito de suportar e de subjetivar. O sexo deixa de ser apenas um fato de semblante, enquanto significante, e encontra o gozo sexual, que se destaca do corpo e se introduz entre os dois sexos. Os dois sexos se diferenciam por sua relação com o gozo sexual. Esse gozo fora do corpo é novo em relação às satisfações sexuais da infância, ligadas ao corpo e aos objetos pulsionais. Durante a infância, os semblantes entre os sexos estão sustentados e regulados pela autoridade dos pais. Mas, na puberdade, o real, esse novo que invade, rompe com essa dimensão do semblante, e o sujeito terá que se virar com isso (ROY, 2009).

 

O significante fálico é aquele que poderá operar no inconsciente como regulador do gozo, distribuindo o gozo de acordo com a diferença dos sexos. Falar de sexuação é, de alguma maneira, assumir inscrever-se de acordo com o significante fálico. A sexuação dependerá do encontro do corpo com o significante fálico que opera a significantização tanto da diferença sexual como do gozo, que o parasita e o agita (BRODSKY, 2003).

 

Quando esse significante fálico está ausente ou opera de forma muito precária, quais são as consequências para o campo da sexuação? De que tipo de artifício o sujeito poderá lançar mão na construção das identidades sexuais? Qual é o efeito hoje do apagamento da exceção e da diferença – presente na máxima do “todos iguais”, inclusive dentro da política de igualdade gêneros – para a sexuação?

 

Algumas respostas contemporâneas dos adolescentes ao real da puberdade

 

A adolescência é um dos momentos em que mais do que nunca a não relação sexual reaparece para o sujeito. Ao encontrar-se com a inexistência do Outro, o adolescente produzirá sua resposta sintomática. Trata-se, por conseguinte, de um arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com o mundo e sua relação com o gozo.

 

Stevens (2013) enumera uma série de possíveis respostas, por ele nomeadas intomáticas, que os adolescentes podem construir diante do real da puberdade. São respostas com o saber: quando eles se tornam apaixonados pela pesquisa e esse saber sobre o mundo torna-se um substituto da falta de saber sobre o sexual. Respostas em relação às identificações: os sujeitos inventam identificações imaginárias ou simbólicas, fundamento dos grupos de adolescentes. E uma terceira série de respostas em relação à fantasia que falha: os atos, sejam as passagens ao ato, sejam os acting-out. Quando falha o sintoma e surge o real sem borda, temos os atos como resposta.

 

Em todas essas respostas está em jogo o Outro, são respostas que jogam com o Outro. Na contemporaneidade, temos outra lógica: dispensar o Outro, sem dele se servir. Não se trata, como afirma Stevens (2013), do pai como sintoma, mas, cada vez mais, da dificuldade de responder com o pai, na medida em que há um declínio da função paterna. Quais seriam os efeitos disso sobre a adolescência?

 

Para Miller (2015), é sobre os adolescentes que se fazem sentir, com maior intensidade, os efeitos da ordem simbólica em mutação. A principal mutação diz respeito ao declínio da função paterna, que se degradou. Os registros tradicionais que ensinavam como ser um homem ou uma mulher não existem mais. A transmissão do saber e as maneiras de fazer escapam à voz do pai.

 

Outro efeito dessa mutação simbólica destacado por Miller se dá em relação ao saber. Miller o nomeia autoerótica do saber. Segundo ele, a incidência do mundo virtual faz com que o saber, antes depositado nos adultos, ou seja, no Outro, esteja agora no bolso, facilmente disponível, dispensando a mediação desse Outro. Antes, o saber era um objeto que se precisava buscar no Outro, era preciso extraí-lo do Outro, o que necessitava uma relação com o desejo desse Outro.

 

Na relação com o corpo, também encontramos soluções que revelam a presença do opaco e do indizível, presenças que resistem à subordinação da palavra e são portadoras de um tumulto pulsional, que pode conduzir ao pior. Por meio do pôr-se em risco, algo do gozo do corpo pede para ser limitado e regulado por uma marca simbólica, uma vez que a ordem da castração não opera. Por não receber essa marca do Outro simbólico, o adolescente a providencia sozinho.

 

Como ensina Lacadée (2011), o jovem trata e esfola seu corpo, cuida dele e o maltrata, ama-o e odeia-o com intensidade variável, ligada à sua história pessoal e à capacidade de seu entorno de lhe oferecer os limites necessários para refrear o gozo. Quando os limites não comparecem, o jovem os busca na superfície desse corpo. Ele testa os limites físicos, colocá-los em jogo para senti-los e apreendê-los, a fim de que possam conter o sentimento de identidade. Produz “marcas” corporais, criando uma espécie de nova pele, por meio das tatuagens e piercings, por exemplo, mas que podem chegar a ferimentos corporais deliberados: incisões, escarificações, etc. Outros podem fazer dos objetos mais diversos, inclusive os tecnológicos, uma extensão do próprio corpo e utilizá-los como modos de amarração.

 

Os adolescentes contemporâneos se apresentam frequentemente sob o signo do excesso. A demanda do Outro é recebida como um imperativo tirânico, e, por outro lado, os produtos de consumo encontram-se na lógica da adição (ROY, 2009). Eles ficam submetidos a uma ordem de ferro e são levados a escolher um modo de gozo que evite a questão sexual, um gozo-fora-do-sexo. A toxicomonia e também a anorexia-bulimia jogam com o consumo, com o vazio e com o pleno, mas ambas envolvem um gozo autista, ou seja, que pode ser obtido sozinho, sem o Outro.

 

Finalizo com uma indicação que extraio do texto de Hugo Freda (1996): se a passagem da infância à adolescência desaloja o sujeito de sua língua e de seu corpo infantil, é preciso então que ele possa encontrar novos modos de inscrição no mundo e de re-constituição de seu Outro.

 


BIBLIOGRAFIA
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FREDA, H. “O adolescente freudiano”. In: RIBEIRO, H. C. e POLLO, V. (Orgs.). Adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1996, p. 21-30.
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FOCCHI, M. “A adolescência como abertura do possível”. In: Mental, nº. 23. Quel avenir pour l’adolescence?, Paris, diffusion Seiul, dezembro de 2009, p. 29-40.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio. Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.
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MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 20 de mai. 2016.
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ROY, D. “Proteção da adolescência”. In: Mental, nº. 23. Quel avenir pour l’adolescence?, Paris, diffusion Seiul, dezembro de 2009, p. 51-54.
STEVENS, A. “Quando a adolescência se prolonga”. In: Opção Lacaniana online, Ano 4, número 11, Junho 2013, p. 11-15.

Margaret Pires Do Couto
Margaret Pires Do Couto. Psicanalista, Membro da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. mpcouto@uol.com.br



Adolescência, O Que É?

ROBERTO ASSIS FERREIRA

 

NICOLETTA CECCOLI. AUTO-RETRATO.

 

Adolescência, o que é? foi o título que me foi sugerido. Tenho como proposta falar para aqueles que atendem no campo da saúde mas entendem que a psicanálise pode trazer contribuições importantes à sua prática.

 

Sinto-me à vontade em trazer alguma coisa do campo da psicanálise para a medicina. A medicina sempre pescou em outros campos do conhecimento, como exemplos: a causalidade infecciosa de diversas doenças – uma contribuição de Pasteur, que era um biólogo; a genética de Mendel, este era um monge e botânico; a farmacologia de Pauling, e por aí afora.

 

Voltando ao tema, vamos começar com a adolescência e a puberdade. Esses são conceitos diferentes, vêm de áreas diferentes do conhecimento, e distingui-los clareou bastante minha prática. O conceito de puberdade vem da biologia, da medicina, corresponde a um momento do desenvolvimento do organismo humano, quando acontecem transformações muito intensas, sobretudo no corpo. Freud (1901-1905) fala em metamorfoses da puberdade. Os processos biológicos da puberdade são universais, mesmo com particularidades, variações individuais. Há casos de puberdade tardia e precoce, há fenômenos que caem no campo da patologia. Em síntese, a puberdade é um conjunto de transformações físicas e hormonais que marcam o fim da infância. Não vou aprofundar essa questão.

 

Já o conceito de adolescência tem várias compreensões. O que se chama adolescência desperta o interesse das ciências humanas e sociais: da antropologia, da sociologia, da psicologia e da própria psicanálise. Para alguns, é uma fase do desenvolvimento humano, confundindo-se um pouco com o conceito de puberdade. Vamos trabalhar com algumas contribuições da psicanálise. Miller (2015), no texto “Em direção à adolescência”, considera a adolescência uma construção. Pode-se falar em construção social, com particularidades em diversas culturas.

 

A adolescência é um momento de dois grandes chamamentos. Há um chamado que vem do corpo, do próprio corpo e do corpo do outro; e um segundo, que vem do campo do Outro, do desejo do Outro. O que esse Outro quer de mim? Há uma imagem que vi, não sei se em Lacan: um mosquitinho olhando para um louva-a-deus ameaçador de boca aberta. O mosquitinho, a mercê do louva-a-deus, se interroga: o que ele quer de mim? É isso aí, o ser falante se angustia diante do desejo do Outro. Como responder a essa grande boca aberta?

 

Freud apontava para duas questões nesse momento da puberdade. A primeira, no campo da sexualidade, para a qual o sujeito nunca está preparado. A segunda, a separação, ou seja, o descolamento dos pais ou, ainda, falando de forma mais ampla, a separação do outro familiar. Essa separação só será possível se alguma coisa aconteceu no tempo da infância, se alguma coisa aconteceu no Édipo, se houve, como clareou Lacan, a entrada do Nome do Pai.

 

Alexandre Stevens (2004) entende a adolescência como sintoma da puberdade. Essa é uma boa aproximação clínica: pensar a adolescência como uma resposta à irrupção pubertária. O sujeito, nesse momento, inventa um modo de sobrevivência visando a essa difícil travessia.

 

Gosto de ilustrar com uma analogia: você está andando de ônibus, está em pé, sem lugar para se assentar, “no balanço pra lá e pra cá”, é preciso se segurar em algo, senão se vai ao chão. Isso chamo de sintoma, um segurador de ônibus, alguma coisa em que o sujeito se segura para enfrentar as atribulações da vida. O sintoma, para a psicanálise, não é propriamente sintoma de doença, embora possa ser. Não é um fenômeno universal nem apenas particular, é algo singular, cada um tem sua adolescência como seu sintoma. Portanto, a partir da psicanalise, podemos adotar a compreensão de que adolescência, para cada um, é singular. É alguma coisa que dá sustentação ao sujeito. A adolescência entendida como sintoma pode dar sustentação à travessia da infância para o mundo adulto, substituindo, em nossa época, os ritos de passagem de outras culturas. Essa é uma leitura possível das coisas, o que não impede de haver outras.

 

Em direção à adolescência

 

Miller (2015), no texto “Em direção a adolescência”, provoca e incita o campo freudiano a trabalhar sobre a adolescência. Propõe que se trate das questões da atualidade, mas aponta a importância dos conceitos básicos. Não há como aprofundar esse debate sem partir do estudo da própria criança, sem ir ao que Freud e muitos pós-freudianos elaboraram, chegando-se ao que se produz hoje. Está colocado o desafio, principalmente àqueles que se dedicam à clínica da adolescência.

 

Miller coloca que, para a psicanálise, há três questões centrais na adolescência. Como primeira, a saída da infância, momento que vem à tona com a puberdade. Aí é fundamental ler Freud (1901-1905), em especial seu texto “Metamorfoses da puberdade”, mas também estudar fora da psicanálise.

 

Como segunda, um tema bem atual, a diferenciação sexual. Como essa questão se coloca para o ser falante na infância e na adolescência? Já não se sabe mais o que é ser um homem ou uma mulher. Os semblantes estão confusos, as balizas simbólicas já não dão tanta sustentação à transmissão vertical: o Nome do Pai, o Ideal do eu, as insígnias do Outro. Isso leva os jovens na contemporaneidade a construir respostas com seus próprios recursos, usando a transmissão horizontal, a identificação com os pares, os modismos, as “comunidades de gozo”. Essa falta de referência estimula a experimentação. Cada um procura, pela própria experiência, o que é melhor para ele, o que lhe dá mais satisfação.

 

Um parêntesis: a medicina biotecnológica, resultante da aliança da ciência com o capitalismo, traz grandes avanços técnico-científicos, mas deixa um resto, que bate às portas da medicina. A clínica do adolescente é precursora dessas manifestações, na qual há resistência, de clínicos e de pediatras, ao atendimento de adolescentes. Pode-se listar formas de adoecer, atuações de risco, enfim, desafios à saúde: depressão, bipolaridade, anorexia, vícios em informática, inibições sexuais, toxicomania, violência e mortalidade por causas externas, etc., problemas pouco valorizados pela medicina há algumas décadas.

 

Como terceira, o que Miller chama de “a imiscuição do adulto na criança”, aí está em discussão o que ele chama, sem gostar da expressão, de “desenvolvimento da personalidade”, no qual se articulam conceitos como o eu ideal e o Ideal do eu, nesse momento púbere em que o narcisismo se reconfigura. Miller (1999), em outro lugar, comentando o Seminário 5 e referindo-se ao terceiro tempo do Édipo, faz diferenciação entre Supereu e Ideal do eu, duas funções que têm sido confundidas na psicanálise. Afirma que o Supereu suporta funções de proibição, por outro lado,

 

o Ideal do eu exerce sua função sobre o desejo e a normatividade sexual. Lacan diz: tipificação. É uma função que coloca o sujeito sobre o eixo do que deve fazer como homem ou como mulher. Todas as perguntas sobre a identificação feminina ou viril são questões que, na teoria psicanalítica, giram em torno do Ideal do eu, noção que Lacan teve prontamente como leitor de Freud (MILLER, 1999, p. 75).

 

Adolescência, um momento especial de encontro com o real.

 

Costuma-se colocar a adolescência como um momento de despertar. Há uma famosa peça teatral de Wedekind, do fim do séc. XIX, “O Despertar da Primavera”, que foi comentada por Freud e Lacan. A peça conta a história de jovens que viveram esses chamamentos da puberdade, a vivência da sexualidade numa época de grande repressão sexual. Desenrola-se uma tragédia: um jovem se suicida, uma garota engravida e morre ao provocar aborto, outro rapaz é salvo do chamado ao suicídio por um avatar do pai – “um cavaleiro mascarado”. Nesse momento especial da puberdade, o que leva ao despertar é o que na psicanálise lacaniana se chama de Real, um encontro com o real. Um encontro com real pode levar o sujeito a mudar de direção: construir um sintoma; fazer uma passagem ao ato, como um suicídio; desencadear uma psicose…

 

O que seria esse real que leva o sujeito a despertar? O Real não pode propriamente ser definido, mas é possível tentar passar dele alguma compreensão. O Real como “encontro faltoso”, um encontro com a falta, como está no seminário 11; “como impossível”, impossível de suportar; como “encontro traumático”, aquilo que não tem sentido, aquilo que escapa à simbolização, enfim, um encontro com o que desencadeia a angústia: aquilo que não engana!

 

Em algum momento, contingencial ou não, há encontro com o Real. Em especial na adolescência, o simbólico que se constrói na infância, muitas vezes não é capaz de dar conta das situações enfrentadas, constituindo-se respostas sintomáticas.

 

No mundo contemporâneo: qual a resposta à invasão pubertária?

 

Na contemporaneidade, a adolescência tem caráter cada vez mais particular, de família, de época, de camada social, de grupos sociais. Há tendência a um alongamento da adolescência tanto para baixo, quando meninos e meninas de nove anos se portam como adolescentes, quanto para cima, quando rapazes de 26 a 30 anos ainda se comportam como adolescentes – ainda estão estudando, morando com os pais, sem definição de uma profissão.

 

Uma dimensão fundamental de nossa época é o declínio da ordem simbólica, ou seja, o declínio do Nome do Pai. Como consequência, pode-se falar do hedonismo contemporâneo. Vive-se em uma sociedade de grande insatisfação, na qual há a ilusão hedonista de um gozo ilimitado, levando à busca contínua de objetos de consumo, gadgets de toda ordem lançados continuamente no mercado. Jacques-Alain Miller criou a expressão I < a (Ideais < objetos).

 

Miller (2015), no texto já comentado – “Em direção à adolescência” –, aponta para o que há de novo na adolescência e ressalta questões que vêm sendo estudadas por nossos colegas analistas. Entre elas, a referida procrastinação da adolescência, como esse tempo de separação dos pais e do laço familiar vem se alongando. Isso é comum nas camadas médias mais abastadas, nas quais predominam famílias pequenas e gregárias, associando-se às dificuldades de inserção no mercado, dificultando ocupar um lugar no mundo do trabalho. Em outro aspecto, há uma nova relação com o saber: este já é não é mais propriedade dos adultos, está facilmente acessível, a transmissão já é não tão vertical pelos pais e pelos professores, que serviam de modelos. Os modelos estão nos próprios pares. Vive-se também uma realidade imoral, degradada, banalizada, até certo ponto amoral. Por outro lado, pode-se falar em socialização dos sintomas, em modismos sintomáticos, em “comunidades” de gozo. Miller aponta para diversas consequências das mutações da ordem simbólicas, como o declínio do patriarcado, a destituição das tradições e o déficit do respeito – “respeitar e ser respeitado”. Por fim, alerta para um fenômeno que cresce na própria Europa e se antepõe ao discurso da ciência, uma outra tradição: o Islã.

 

Clínica da recusa: uma característica da adolescência

 

Há uma particularidade de importância na condução do tratamento de adolescentes. Pode-se falar de recusa ou de rechaço ao tratamento. Essa é uma questão central no trabalho clínico com as anoréxicas. Isso está nas anoréxicas, mas também está nos adolescentes. O adolescente, na maioria das vezes, não tem demanda própria. Às vezes há motivações médicas: febre, dor no estômago, cefaleia, a puberdade que ainda não começou. Querem tratar disso e pronto!

 

Acontece que as preocupações dos pais podem ser de outra ordem. Estes usam essas queixas, que permitem ao adolescente ir ao médico para que sejam abordadas outras questões. É preciso entender que essa é uma característica dessa clínica. Não há demanda pois não há transferência prévia, o adolescente não supõe no Outro um saber sobre suas questões. Claro que o adolescente pode “ser transferido” com o profissional com quem trata desde a infância, mas é uma transferência constituída de outra ordem. O que não indica sempre que essa transferência permita uma abordagem no campo específico da adolescência. Alguma manobra vai ser necessária ao profissional, é preciso algum manejo para que se constitua espaço para as questões próprias da adolescência.

 

Dependendo das questões, elas podem ser abordadas pelo próprio profissional, outras devem ser referenciadas a outro, como a um analista ou a um psicólogo. Em geral, não dá bons resultados receitar inicialmente um psicólogo; há resistências. Antes, é preciso permitir que a subjetividade do sujeito venha à tona, que algo surja nesse campo. Essa é minha experiência. E, para que alguma coisa surja da subjetividade, de queixas subjetivas, é preciso uma pitada de escuta, abrir uma pequena janela de escuta, como tem insistido a prof.ª Cristiane de Freitas Cunha (2014).

 

Há uma nomeação que aprendi, é um instrumento. Por exemplo: um médico, para permitir ao adolescente se deslocar ao trabalho de suas questões com outro profissional e abordar aquelas que realmente estão perturbando a sua vida e a da sua família, tem que se colocar no lugar de um “médico passador” (MILLER, 2012, p. 98). Alguém que permita a passagem de um campo ao outro.

 

É o que se aprende no trabalho com as anoréxicas e com os adolescentes. O médico sabe que o paciente tem anorexia, mas, para permitir a entrada de um analista, de um profissional ligado às questões que estão ali incutidas, tem que estar disposto a escutar, possibilitar que a subjetividade do paciente apareça.

 

Concluindo, a clínica do adolescente é uma clínica da recusa, na qual não há demanda própria para tratamento das questões subjetivas. Mesmo quando há algum laço transferencial, este pode se romper. O que compete a nós? Escutar o adolescente e talvez ir um pouco além, ajudá-lo a encontrar um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Essa é uma tarefa que se coloca para cada profissional da área da saúde, mesmo para aqueles que não vão assumir a condução do trabalho psicoterápico ou psicanalítico.

 

A inscrição e a não inscrição no campo do Outro

 

Ainda um último aspecto! Um grande desafio à adolescência: como conquistar um lugar no campo do Outro? A questão do sujeito “se inscrever” ou “não se inscrever” no campo do Outro. Hugo Freda (1996), no artigo “O adolescente freudiano”, aborda esse tema em um texto muito rico e delicado. É uma questão muito clínica, pois muitos adolescentes não conseguem sair da adolescência e ficam perdidos na vida. Por não encontrar esse lugar, não foram capazes de se inscrever nesse campo do Outro. Alguns desses jovens até construíram ideais, tinham expectativas, mas fracassaram e não conseguem fazer a virada, ou seja, retificar suas expectativas, se reescrever no campo do Outro, fazer novas amarrações. Hugo Freda entende a adolescência como esse momento em que se buscam e se constroem os caminhos para a inscrição no campo do Outro. Ele cita Freud como um exemplo bem-sucedido. Ele queria trazer uma contribuição ao saber humano e trouxe. Cita outros exemplos bem-sucedidos e alerta que se pode repertoriar sintomas e comportamentos diante da impossibilidade da inscrição: o suicídio, a toxicomania, os viciados em jogos, delinquentes e, enfim, formas bizarras de inscrição.

 

Por fim, uma palavra aos profissionais que se dedicam à adolescência: feliz do jovem que, em dificuldades, encontra uma referência confiável no mundo adulto, um avatar do pai, “um cavaleiro mascarado”, uma referência capaz de dizer sim, de escutá-lo e ajudá-lo a construir uma direção.

 

Não devemos esquecer que a adolescência é um período de trabalho, de desafios, de incertezas, de sintomas sociais, mas também é um dos momentos mais belos da vida, merecendo ser vivida intensamente.

 

 

 

[1] Seminário de abertura sobre adolescência do NIPPM – 1º semestre de 2016. Texto gravado e transcrito por Bianca Ferreira Rocha, reformulado pelo expositor.

BIBLIOGRAFIA
CUNHA, C.F. A janela da escuta. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREDA, H. O adolescente freudiano. In: Adolescência: o despertar/Kalimeros, EBP: Rio de Janeiro, Heloisa Caldas e Vera Pollo (Orgs) 1996.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: transformações da puberdade (1905), In: Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006 (Edição Standard Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.7).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia.
______. Perspectivas do Seminário 5 de Lacan: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999.
______. Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2012.
 STEVENS, A. Adolescência como sintoma da puberdade. Clínica do contemporâneo. Curinga, Belo Horizonte, n.20, p.27-39, 2004.
WEDEKIND, B. F. O despertar da primavera. Lisboa: Ed. Estampa, 1991.

Roberto Assis Ferreira
Roberto Assis Ferreira. Médico, Analista praticante, Doutor em Medicina, Prof. Emérito da UFMG, Membro EBP/AMP. robassisf@gmail.com



Sobre A Saúde Mental: Que Instituição Para Os Adolescentes?

HENRI KAUFMANNER

ÉDER OLIVEIRA
Em suas reflexões sobre a psicologia escolar, Freud nos fala do impacto que causava o encontro casual de um antigo professor pelas ruas de Viena. Tal impacto era acompanhado por um estranhamento, que pode se resumir à pergunta: “será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, eram tão pouco mais velhos que nós?” (FREUD, 1977, p.74). Freud confessa que o encontro com seu antigo mestre lhe provoca uma dúvida sobre o que teria exercido a influência mais determinante em sua formação: sua preocupação com as ciências que lhe eram ensinadas ou a personalidade de seus mestres. Se, sob sua pena, a importante articulação entre o Outro e o Saber já revelava sua importância, o movimento de destituição desse lugar idealizado do Outro também se mostrava primordial. 

Não por acaso, nesse pequeno texto, Freud discorre sobre a importância do pai, ligação fundamental na vida de uma criança, presente particularmente naquilo que ele nomeia ambivalência emocional. Observa que, a partir da segunda metade da infância, a criança, começando a vislumbrar o mundo exterior, avança em direção a um desligamento dessa idealização primeira, afirmando ainda que tudo o que há de admirável e indesejável em uma nova geração é determinado por esse desligamento do pai.

 

O tema de nossos trabalhos neste semestre no NIPS (Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental) do IPSMMG (Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais) convoca-nos a investigar as questões trazidas pela adolescência quando nitidamente nos vemos diante de uma realidade bem distinta daquela experimentada por Freud.

 

Como pensar uma relação possível ao Outro, num tempo em que o Mestre não surpreende mais? Que instituições poderiam acolher e tratar os adolescentes, nos quais o desligamento do Outro é uma marca determinante? Como podem os adolescentes hoje em dia construir uma nova ligação a um Outro, no qual o que domina é a lógica do não todo?

 

Esse pequeno fragmento das reflexões de Freud já nos apresenta algumas variáveis do problema.

 

Miller (2015), em sua intervenção “Em direção à adolescência”, desvela uma dimensão autoerótica do saber que predomina hoje em dia. Os adolescentes trazem o saber no bolso, ele não passa mais pelo Outro. Em sua intervenção, somos ainda apresentados a uma série de consequências relativas ao declínio do Pai e à inexistência do Outro. Há toda uma diversidade de comportamentos ligados a uma demanda de respeito, à denúncia da tirania do Outro e à uma realidade imoral. O avanço da Ciência, ao deslocar do mestre o saber, esvazia a dimensão simbólica do Outro, que passa a se apresentar ora inconsistente, ora em uma consistência, diríamos, malévola.

 

Miller fala da adolescência como uma construção, e que poderia ser tomada em várias perspectivas. Temos, assim, a adolescência cronológica, a biológica, a psicológica, a cognitiva, a sociológica, entre outras. Assinala ainda que dizer que se trata de uma construção se refere a uma convicção de que se trata de um artifício significante. Segundo ele, vivemos uma época que nega, com muita boa vontade, o real, ocupando-se apenas dos signos que são, em última instância, semblantes.

 

Adolescência é um daqueles conceitos que, embora não psicanalítico, convoca-nos a operar com ele, tamanha a sua presença e o campo de sentido que cria, além dos inegáveis efeitos na cultura e na clínica. A adolescência é, no mínimo, um semblante de nossos tempos.

 

Freud, por seu lado, referia-se apenas aos acontecimentos da puberdade. Nos “Três ensaios”, o evento da puberdade é marcado pelo fato de que a pulsão sexual, até então autoerótica, encontra agora o objeto sexual. Assim, as pulsões passam a se subordinar à pulsão genital, tendo como consequência o estabelecimento de uma nova finalidade pulsional, repercutindo de modos diferentes no que seria um homem e no que seria uma mulher, determinando, assim, a diferença entre os sexos. As alterações produzidas pela puberdade tornariam a tensão pulsional impossível de ser satisfeita apenas em sua vertente de ternura, como até então, exigindo também do sujeito a colocação em cena de uma tensão sensual, chamada às vezes por Freud também de corrente agressiva da pulsão. É nítido observar que algo da ordem de uma irrupção no campo pulsional exige um rearranjo dos modos de satisfação que afetam o corpo, não mais apaziguados por aquilo que Freud nomearia de escolhas narcísicas do objeto.

 

As pulsões sexuais encontram seus primeiros objetos apegando-se às satisfações das pulsões do ego. Assim, as primeiras satisfações sexuais são experimentadas em ligação com as funções de preservação do Eu. Contudo, na puberdade, não é mais possível sublimar a corrente erótica do amor; a via da sublimação não é mais suficiente para manter o desejo sexual acomodado a uma satisfação apenas pela corrente da ternura, e, forçando a barreira do recalque, este cobra seu preço.

 

Assim, podemos associar a queda dos semblantes e a impossibilidade da sublimação como dois elementos marcantes dessa irrupção da puberdade. Um real que não se acomoda mais às soluções até então encontradas pela criança.

 

Foi Lacan quem articulou semblante e real. Um significante, por si só, não significa nada, é um qualquer um, e não há relação natural entre as palavras e as coisas. O que está em jogo é a sua utilização da linguagem como laço, e, para tanto, é necessária a mediação de um discurso. A estabilidade de um discurso é o que vela o valor de crença dos sentidos com os quais construímos a realidade. Assim, para que algum efeito de discurso se produza, resultando numa amarração no campo do sentido, é necessária uma rede de semblantes, e que essa rede de semblantes determine um mais-de-gozar. É a rotina, a regularidade dessa rede, que assegura um sentido na relação entre o significante e o significado, estabilizando, assim, o campo semântico.

 

A puberdade rompe com a regularidade narcísica da criança, desvela o valor de crença da realidade na qual a criança se sustentava até então. O sujeito se vê embaraçado diante da invasão de um gozo que não se pode sublimar fora do discurso.

 

Assim, se a puberdade, como assinala Freud, convoca o sujeito a um movimento, diria eu dialético, de desligamento/religamento do Outro, podemos vislumbrar que, diante do declínio do pai, da inexistência do Outro, os efeitos de tal convocação em nossos dias são inegavelmente angustiantes.

 

O adolescente contemporâneo depara-se com uma realidade na qual os semblantes se multiplicaram, não mais organizados em torno de um Outro idealizado. O avanço da ciência e o declínio do sentido por esse produzido transformaram o campo da realidade e dos semblantes, até então articulados.

 

A Ciência, inaugurada por Galileu, afirmava-se como a escrita da natureza pela matemática. Entretanto, se descolou dessa mesma natureza, e as letras, com as quais a Ciência se escreve hoje, tocam um real que não se confunde mais com o que nos acostumamos a pensar como natural. As letras, assim isoladas, passaram a circular em uma identidade de si, não mais atreladas ao sonho da universalidade da natureza, mas em um circuito que tem sua própria lógica e que, atuando sobre os corpos, produz efeitos com os quais nos deparamos e vamos nos deparar cada vez mais, devido a um inevitável aumento de sua dominância no mundo.

 

Tal dominância tem consequências significativas sobre os discursos e, por conseguinte, sobre a cadeia de sentidos pelos quais ordenamos nossa experiência de realidade, nossos semblantes.

 

Aos efeitos do avanço da ciência e à pulverização do campo de sentido produzido pela tentativa de redução do real à lógica resultante da livre circulação das letras, devemos acrescentar os efeitos incidentes na economia de gozo do falasser, consequentes à aliança da ciência ao capital. Essa aliança interfere diretamente na relação desses com o corpo, pela produção de objetos de consumo, gadgets gerados a partir da oferta de um gozo que agora se faria possível pelas ofertas do mercado.

 

É nesse contexto que encontraremos muitos dos adolescentes que chegam aos serviços da chamada Saúde Mental. Invadidos por essa experiência estrangeira do gozo, convocados ao consumo e ao ato, os adolescentes trazem no corpo a novidade. Uma novidade que transborda e que lhes exige uma construção sintomática.

 

Como religar onde o Outro não existe?

 

Não são poucas as instituições que buscam restaurar, de forma moral, esse Outro que assim reaparece em sua dimensão superegoica.

 

A psicanálise aposta em um caminho em que se torne possível acolher esses corpos e a novidade que neles incide em sua dimensão singular. É preciso um tempo para a invenção do falasser e seu sintoma. Um tempo para que cada um, atravessado que é nos dois polos de sua causação, desarticulado do sentido e imerso na liquidez do gozo, possa recorrer a novas invenções sintomáticas que lhe permitam uma resposta singular, só sua, não universalizável, ao que ele é. Com isso, talvez ele inscreva em sua vida o algo próprio e inalienável de seu ser.

 


BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 285-288. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIII).
FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 118 – 228. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.VII).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em: 20 fev. 2016.

Henri Kaufmanner
Henri Kaufmanner. Psiquiatra, Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Coordenador do NIPS/IPSMMG. E-mail:Kaufmanner@gmail.com



“Bons Rolês E Tudo O Que For Bom”: A Gente Não Quer Só Comida

RAQUEL GUIMARÃES E VIRGINIA CARVALHO

ÉDER OLIVEIRA

“A favela pede paz, mas a guerra nunca vai acabar…”, enuncia Juca, que vivencia em seu território um intenso e mortífero conflito que não cessa desde 2013. Trata-se de uma tensão entre dois grupos do tráfico, Bahia e Barriga, que se tornaram rivais por disputas que os integrantes não conseguem precisar o início.

 

Juca faz parte do Bahia, grupo constituído por jovens de 15 a 20 anos que agem de modo impulsivo e violento, sem demonstrar cálculo em suas ações que, em geral, são direcionadas ao outro grupo. Esses jovens vinham realizando frequentes enfrentamentos à gangue do Barriga. Para tanto, iam ao território inimigo, com armas em punho, ameaçando e convocando para o confronto. Em seguida, corriam para seu território aguardando o ataque rival.

 

“Estamos marcados para morrer”: o encontro fortuito com a morte

 

Uma proposta de trabalho com a gangue do Bahia se colocou a partir da perturbação que experimentaram esses jovens diante da notícia de que um de seus colegas havia contraído o vírus HIV. Tal diagnóstico se deu no momento em que o jovem foi ferido e hospitalizado após uma troca de tiros. Frente a esse diagnóstico, os jovens do Bahia se agitaram receando também ter o vírus, em função das parceiras em comum, e anunciaram: “Se a gente também tiver contaminado, vamos botar pra quebrar, já que estamos marcados pra morrer”.

 

A morte, presentificada no conflito que eles nomeiam “guerra”, não era questão para o grupo até o momento. Mas a notícia de que um dos integrantes havia contraído um vírus que poderia matá-lo traz para a cena o medo de morrer. A partir disso, tem-se o convite para a conversação.

 

Segundo Ana Lydia Santiago (2011, p. 97),

 

a conversação é uma prática da palavra para tratar as manifestações indesejadas que produzem insucessos e fracassos. Busca-se uma mutação do falar livremente sobre os problemas. O ponto de partida para as conversações é “o que não vai bem”, formulado por meio das queixas. A aposta da conversação é passar da queixa – que paralisa a ação [..] e produz identificações indesejáveis […] – a um outro uso da palavra em que a queixa toma a forma de uma questão e a questão, a forma de uma resposta: invenções inéditas.

 

Para tanto, a primeira pergunta, colocada aos jovens pela enfermeira, foi: “O que lhes tira o sono?”. Respondem dizendo da guerra, da polícia e dos “alemão”. Juca anuncia seu medo de que os irmãos e outros colegas morram por causa da guerra: “poucos da minha época estão vivos hoje, a maioria ou morreu, ou está presa”.

 

Os efeitos do primeiro encontro foram observados por um dos jovens, que disse que, após o encontro, só coisas boas aconteceram, sem mais troca de tiros entre os grupos.

 

A partir disso, um segundo momento é proposto. Frente à oferta da palavra, a demanda que surge dos adolescentes é a de que ali se falasse sobre o direito ao lazer, sobre o que a cidade oferece para eles se divertirem.

 

Atividades circenses realizadas por jovens abriram o terceiro encontro. Na conversação, em que foi lançada a pergunta sobre o que seria diversão para eles, algumas falas se destacaram: “Eles são bons de circo e nós somos bons de tiro. Se levar eles lá para fora, iremos dar aula de tiro”; “A erva (maconha) e as mulheres trazem tranquilidade; com a erva e as meninas nós ficamos suave”; “É necessário ter polícia para controlar, a polícia é quem mantém o controle”. Um dos jovens disse que a polícia evita uma guerra maior: “A polícia vem pra nos controlar, sem eles aqui todos vão andar armados, vai ter gente andando de bazuca”, e completa: “Se não fosse a polícia, a favela não existiria”.

 

Considerando que o primeiro instante da conversação é o de nomeação das queixas, localizou-se que o grupo se queixava de não saber como se divertir e que a “guerra” lhes tirava o sono. Nas falas, os jovens indicaram a adrenalina de se ter uma arma na mão, de fugir da polícia, de atacar o grupo rival. Falaram da identificação com a “quebrada” e do modo como circulam e se apropriam das ruas e becos, geralmente a partir de delimitações no território que a rivalidade com o outro grupo impõe.

 

“A gente não fica tranquilo depois de matar”: o mal-estar da “guerra”

 

Um novo encontro e a apresentação da “quebrada” fizeram-se importantes. Falaram sobre a violência gerada pela guerra e também sobre o impacto do conflito nas famílias, na comunidade e em suas vidas. Ao desenharem sua “quebrada”, duas frases se escrevem: “Paz na favela” e “A guerra nunca acaba”. Afirmaram que não é fácil estar em guerra, ter que matar o outro, mesmo sendo rivais. Localizam que não é só adrenalina e diversão e que estão permanentemente sobre tensão, com medo de serem surpreendidos pelo grupo rival e perderem suas vidas. Desvela-se um mal-estar na conversação, que é encerrada com a fala dos jovens de que não tem como a guerra acabar, pois isso está para além deles.

 

Anunciavam, com a angústia experimentada por se darem conta do lado mortífero da “guerra”, uma tentativa de passar da queixa inicial sobre a diversão a um questionamento sobre a guerra, em que estivessem incluídos. Demandavam diversão, mas as conversações indicavam um ponto de fixação na guerra que parecia dar contorno e sentido à vida dos jovens que dela participavam, ofertando um lugar na comunidade e, até mesmo, um modo de vida.

 

“Mil grau”: prescindir da guerra

 

O quinto encontro aconteceu em um lugar fora do território, permitindo ao grupo circular por outros espaços da cidade que pudessem ofertar diversão. Na chegada ao local programado, os jovens se mostraram animados para jogar futebol. Dois deles não jogaram por estarem com o movimento de uma das pernas comprometido por balas alojadas no corpo, demonstrando incômodo com a pouca mobilidade. O jogo de futebol foi repleto de provocações, mas sem conflitos. Os jovens relataram terem se divertido muito.

 

Após o jogo, foram em busca de mais diversão. Entraram por uma trilha seguindo o caminho que levava às quedas d’água. As brincadeiras giraram em torno do cotidiano da guerra. Fizeram muita algazarra correndo e gritando: “cuidado com os alemão”; “olha a polícia”. No retorno à quadra, os jovens se reuniram para a conversação, ratificando o que os interessava: “queremos bons rolês e tudo o que for bom; paz no coração e dinheiro”.

 

Os acontecimentos da “guerra” atravessaram os encontros. A polícia vinha se fazendo mais presente, com muitas prisões e apreensões de drogas, prejudicando as vendas do tráfico. Uma decisão foi tomada pelas lideranças de ambas as gangues Barriga e Bahia: era preciso pôr fim à guerra.

 

Na conversação que se sucedeu a essa decisão, os jovens solicitaram assistir a um filme escolhido por eles. Durante a exibição, se agitaram nos momentos em que era retratada a guerra entre duas gangues do Rio de Janeiro. A cena final do filme mostra o momento em que um dos personagens decide não dar continuidade aos confrontos, selando um acordo de paz com o rival. Os jovens se mostraram revoltados, dizendo não concordar com tal atitude do personagem.

 

Após o encontro, vão ao baile funk do bairro vizinho com armas e coletes à prova de balas, sugerindo uma rivalidade com o grupo que organizava o evento. Foram expulsos do baile pelas lideranças da gangue do local.

 

Esse episódio coloca em questão o movimento do grupo, que parecia insistir na guerra, indicando que ela tinha função, servindo como engrenagem que regula a relação com a comunidade, com os outros jovens. O que indicam eles ao se lançarem na guerra ao mesmo tempo em que demandam diversão?

 

A oferta da palavra a esses jovens nas conversações colocou-se no sentido de que eles localizassem a tensão e o medo provocados pelo conflito das gangues. O ponto de partida desse trabalho foi a angústia do grupo frente ao real da morte que irrompe, não da “guerra”, mas do HIV contraído por um dos integrantes. Nesse sentido, as intervenções, nos encontros, visavam a marcar um estranhamento à banalização da “guerra”. Os efeitos puderam ser recolhidos somente a posteriori, com o cessar fogo e com a necessidade de que algo se reconfigurasse no modo como eles vinham se movimentando na vida.

 

As conversações puderam ser concluídas com uma solicitação feita pelos jovens. Pediram a organização de uma partida de futebol contra os integrantes do grupo do Barriga. O jogo contou com um número significativo de jovens de ambas as gangues em uma calorosa disputa. Saíram dizendo que havia sido “mil grau”, muito bom. Atualmente pedem que outras partidas aconteçam. A guerra cessou.

 

“Eles são bons de circo, a gente é bom de tiro”

 

Na carta a Einstein, Freud (1932/1996) se dedica a trabalhar a questão “Por que a guerra?”, indicando, para tanto, que o desejo de aderir à guerra é efeito da pulsão de morte, impulso destrutivo que se apresenta no campo limítrofe entre o psíquico e o somático, demandando satisfação. A guerra, segundo o Freud de “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, de 1915, altera a relação dos homens para com a morte. Ela passa a não ser mais “um acontecimento fortuito” (p. 301), pois “o acúmulo de mortes põe um termo à impressão de acaso” (p. 301).

 

Faria (2013) lembra que, no Brasil, morrem mais jovens por ano nas guerras entre gangues do que nos países em guerra. Segundo sua pesquisa, esses jovens, em um momento vítimas e, em outro, agressores, são “levados pelo tráfico, pela conquista de território […], pelo prestígio, pela menina” (p. 12). Para ela, “o tênue limite que separa os `jovens da esquina’ ou as ‘galeras’ das ‘gangues’ se desfaz frente à ameaça de um terceiro, alguém da comunidade, uma turma de bairro vizinho e, em especial, a polícia” (p. 21). Nesses momentos de enfrentamento e ameaças, quando o sentimento de grupo se reforça, emergem as gangues: “O que, de início, era apenas turma, acaba se tornando grupo de conflito, com seus primeiros líderes e suas próprias regras de convivência” (p. 21).

 

Mas teriam as “guerras” entre gangues o mesmo estatuto que o das guerras entre os países? Se, nestas últimas, é possível identificar uma inscrição simbólica, essa outra “guerra”, feita pelos jovens, apresenta muito mais uma vertente de gozo, pela via da transgressão.

 

Freud (1915/1996) sustentava para Einstein que lutar contra a guerra seria contrapor à pulsão de morte seu antagonista, Eros. Ou seja, favorecer o estreitamento dos laços sociais atuaria contra a guerra. Para ele, o amor e a identificação seriam duas maneiras de promover tal estreitamento.

 

Miller (2015), ao comentar sobre a participação dos adolescentes no Estado Islâmico, nos lembra que, para Lacan, as identificações são determinadas pelo desejo do Outro, mas não satisfazem a pulsão. Perguntando-se sobre o motivo pelo qual as cenas de decapitação dissipadas pelo Estado Islâmico atrairia tantos recrutas, Miller interroga se não seria essa uma tentativa de uma nova aliança entre identificação e pulsão.

 

No relato do confronto entre Bahia e Barriga, chama atenção, mais do que as questões próprias da “guerra”, o modo jocoso como os jovens do Bahia se colocavam nela. A ideia da morte em função dos conflitos entre as gangues era certa e esperada, fora do acaso, como indica Freud, ao descrever a situação de guerra entre os países. No entanto, o diagnóstico do HIV coloca em cena a contingência e a necessidade de um rearranjo.

 

Se inicialmente os Bahia respondem, como grupo, pela vertente do “somos bons de tiro”, a dificuldade que revelam e pela qual pedem ajuda é a de fazerem parte do “circo”. Esses jovens, em seu “despertar dos sonhos” (Lacan, 1974/2003), querem se divertir, mas não sabem como fazê-lo. Conversando sobre a guerra, percebem que ela não é divertida, é mortífera. E pedem auxílio para encontrar na cidade lugares em que possam fazer “bons rolês” e encontrar “tudo mais que for bom”.

 

No jogo de futebol proposto por eles, os jovens do Bahia parecem ter encontrado um novo lugar para recolocar suas “armas” fálicas. Consentem com o fim da guerra depois do jogo, que deu lugar às provocações, fazendo borda ao conflito. Para Freud,

 

alguém que está crescendo deixa de brincar, renunciando claramente ao ganho de prazer que a brincadeira lhe trazia. Mas quem conhece a vida psíquica das pessoas sabe que nada é mais difícil do que renunciar a um prazer que um dia foi conhecido. No fundo, não poderíamos renunciar a nada, apenas trocamos uma coisa por outra; o que parece ser uma renúncia é, na verdade, uma formação substitutiva ou um sucedâneo (1908/2015, p. 55).

 

Em uma conversação, lidamos com a demanda do Outro e a do sujeito. Nesse caso, a demanda do Outro era a paz na favela. Considerava-se essa “guerra” como um sintoma. No entanto, dar voz aos jovens que vinham perdendo o sono com a possibilidade de morrerem de outro modo, que não nessa “guerra”, permitiu a localização do impasse deles em relação a ela. A dimensão mortífera da “guerra” se apresenta e eles se perguntam sobre como sair dela, dando lugar à pulsão. Foi possível se deslocarem da “guerra da favela”, rumo à pergunta sobre como fazer para se divertirem. O jogo de futebol entre as gangues parece ter entrado, nesse caso, como a invenção inédita desses jovens, através das conversações. Não como uma solução pret-à-porter pela via educativa ou sublimatória, mas como recurso para responderem aos impasses experimentados em suas construções adolescentes. Após o jogo, a paz até pode ser mantida na favela, mas não sem dar lugar à guerra pulsional de cada um.

 

[1] Texto elaborado a partir da conversação realizada no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) de Minas Gerais. O tema foi “a favela pede paz, mas a guerra nunca vai acabar: o que fazer com os jovens que enunciam essa frase?”.

 


 

BILBIOGRAFIA
FARIA, L. F. Tribos urbanas: os efeitos do abalo do Nome do Pai no contexto da violência juvenil (2013). Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG.
FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996
______. Por que a guerra? (1932) In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. O poeta e o fantasiar (1908). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud, Arte, Literatura e os Artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
LACADÉE, P. A passagem ao ato nos adolescentes. In: Asephallus. Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. Volume 2, número 4, maio a outubro de 2007.
LACAN, J. Prefácio a “O despertar da primavera” (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 20 mai. 2016.

Raquel Guimarães E Virginia Carvalho
Raquel Guimarães Lara. Psicanalista, graduada em psicologia pela PUC-Minas, especialista em Psicanálise pela Universidade FUMEC. Atua com políticas públicas de prevenção à violência e criminalidade. E-mail: raquelguima@yahoo.com.br – Virginia Carvalho. Psicanalista, coordenadora do CIEN Minas, doutoranda e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, especialista em Psicologia Clínica pela PUC-MG. Professora do curso de Psicologia da Educação da PUC-MG e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (FAE/UFMG). E-mail: vivscarvalho@yahoo.com.br.



Histeria: Do Matema Da Fantasia Ao Discurso

GERMANA PIMENTA BONFIOLI

 

As estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão – são decorrentes de três modos distintos de defesa contra a castração. Na neurose, o modo em questão é o recalque. Forma de negação da castração no Outro, que supõe o atravessamento do Édipo e a consequente inscrição do Nome do Pai. Como efeito, os sujeitos neuróticos, de posse da significação fálica, podem se inscrever de um dos lados na partilha do sexo. Dois tipos clínicos são característicos dessa estrutura: histeria e neurose obsessiva. A histeria tomada como a neurose de base e a neurose obsessiva como seu dialeto.

A histeria é, portanto, um modo particular do sujeito subjetivar a falta imposta pela castração, que poderá se manifestar nas maneiras sintomáticas variadas, mas preservando uma maneira típica de lidar com o desejo, estabelecer identificações e se relacionar com o Outro. Um modo do sujeito se defender dessa falta que coloca em marcha algumas estratégias fundamentais.

Destacaremos aqui dois momentos distintos ao longo da obra de Lacan em que ele irá trabalhar a histeria: nos anos 50, quando o matema da fantasia histérica aparece pela única vez, e em 1969/1970, no Seminário 17, em que a histeria é tomada como discurso.

No Seminário 8, ao se deter sobre os “efeitos sintomáticos do complexo de castração” (LACAN, 1960/1961, p. 242), analisando o caso Dora, Lacan enuncia, através do matema da fantasia histérica, uma estratégia fundamental de defesa histérica.

Objeto (a), sobre a sua castração imaginária, em sua relação com o Outro. Oferece, desse modo, sua própria castração ao Outro, como forma de garantir sua existência.

O sujeito histérico, mais que qualquer um, orienta-se pelo desejo do Outro. Interroga-se a todo tempo pelo desejo do Outro para a partir daí se colocar, como objeto, nesse lugar. De olho no que falta ao Outro, está sempre pronto a se posicionar, de modos diversos, como quem irá preencher essa falta. Essa versatilidade histérica pode ser facilmente observada na clínica, por exemplo, através dos variados estilos que uma histérica pode assumir diante de diferentes parcerias, fazendo-se a mulher sob medida para cada homem. Ao mesmo tempo, para manter esse outro desejante, é condição também se subtrair como objeto, não satisfazê-lo inteiramente, esquivando-se em tornar-se objeto de gozo. E aqui outro modo típico de funcionamento da mulher histérica aparece: ela segue em direção ao desejo do Outro, provoca-o e, na sequência, se esquiva dele como meio de resistir a ser tomada como objeto de gozo.

No matema da fantasia histérica, é como objeto a que a histérica se identifica, mas o que está por baixo da barra, aquilo que ela se esforça em ocultar, através dessa estratégia de oferecer-se como objeto de desejo do Outro, é sua própria castração. Do lado direito do matema, o que aparece como resultado dessa oferta é um Outro sem barra, o Outro não castrado. Ao apostar que pode completar o outro, fazendo-o passar de um Outro barrado para um Outro sem barra, o que está em jogo é a sua relação com a falta. A aposta é, em última instância, na sua própria existência, como toda. Se a barra não incide sobre o outro, não incide também sobre si mesma.

É a propósito de Dora, célebre caso de Freud (FREUD, 1905, p. 12-115), que Lacan irá nos esclarecer a respeito das regras desse jogo complicado. O pai de Dora, sabidamente impotente, é incapaz de copular com sua amante, a Sra. K. Mas isso não importa se é ela, seguindo o molde da fantasia histérica, quem irá sustentar a relação dos dois, fornecendo ao pai o signo fálico que lhe falta.

Pois tudo o que está em questão para Dora, como para toda histérica, é se fornecedora desse signo sob a forma imaginária. O devotamento da histérica, sua paixão por se identificar com todos os dramas sentimentais, de estar ali, de sustentar nos bastidores tudo que possa acontecer de apaixonante e que, no entanto, não é da sua conta, é aí que está a mola, o recurso do que vegeta e prolifera todo o seu comportamento (LACAN, 1960/1961, p. 243).

Tudo vai bem até o ponto em que estão todos insatisfeitos em seus desejos. Pois faz parte dos artifícios desse jogo que, para seguir desejando, o Outro seja mantido insatisfeito. Mesmo ao preço da insatisfação do seu próprio desejo, o que vai se tornar a marca registrada de uma histeria. Mais importante do que a satisfação do seu desejo é que o Outro mantenha o enigma como garantia da sua existência.

É ao seu pai que Dora demanda amor. Ao pai do terceiro tempo do Édipo, descrito por Lacan (LACAN, 1957/1958, p. 200), como aquele que estaria em condição de fornecer-lhe simbolicamente o que lhe falta. Nos dois tempos antecedentes, o sujeito, primeiramente, se identifica imaginariamente ao objeto de desejo da mãe. A seguir, a mãe de Dora, que mal aparece na história, é privada de seu falo imaginário e permanecerá aí ausente da situação. A lei paterna incide, a interdição é consumada, e assim estamos diante de um sujeito neurótico. Os dois primeiros tempos lógicos são atravessados e chega-se então à terceira etapa do Édipo, que guarda uma grande importância, pois “é dela que depende a saída do Complexo de Édipo” (LACAN, 1957/1958, p. 200).

O terceiro tempo do Édipo, destacado por Lacan, é aquele em que o pai tem que dar provas de possuir o objeto fálico, podendo dá-lo ou recusá-lo. No caso de Dora ele não o dá, porque não o tem, isso a mantém presa no complexo de Édipo, incapaz de atravessá-lo. Seu pai fracassa em fornecer-lhe o dom viril. Como boa histérica, Dora sofre de amor ao pai e segue ligada a ele. O tributo de amor ao pai, facilmente identificável em Dora, impede a histérica de atravessar o Édipo, deduzindo que o pai pode lhe dar o que lhe falta mantendo o seu ponto de castração intacto.

A Sra. K é, na medida em que é o desejo do pai, o objeto de desejo de Dora. Mas seu pai é impotente, e ”seu desejo pela Sra. K é um desejo barrado” (LACAN, 1957/1958, P380). Assim tem-se um desejo que não se satisfaz nem para Dora nem para seu pai. E isso é o que mantém as coisas equilibradas. Mas, para a manutenção desse equilíbrio, é necessário que Dora encontre um ponto de identificação que lhe permita sustentar seu pai em um lugar potente. Nesse caso, o Sr. K é que funciona como o outro imaginário portador das insígnias fálicas necessárias à identificação de Dora. É por intermédio dele, “é na medida que ela é o Sr. K, é no ponto imaginário constituído pela personalidade do Sr. K que Dora está ligada ao personagem da Sra. K” (LACAN, 1956-1957, p. 141).

Pelo seu apego homossexual à Sra. K, Dora irá se esforçar em dar suporte à sua relação com seu pai, deixando-se tomar como cúmplice. Nota-se a presença das indicações de Lacan (LACAN, 1956-1957) a respeito da histeria: a histérica ama por procuração, seu objeto é homossexual e ela o aborda por identificação a alguém do outro sexo.

Em Intervenção sobre a transferência (LACAN, 1951, p. 214-225), Lacan esconde do caso Dora três desenvolvimentos da verdade mediados por três inversões dialéticas. No primeiro desenvolvimento trazido por Dora a Freud, seu pai e a Sra. K são amantes há anos, e ela é oferecida como moeda de troca ao Sr. K. Numa primeira inversão dialética, Freud questiona: ”Qual é a sua própria parte na desordem de que você se queixa?”. Surge um novo desenvolvimento da verdade: a relação dos amantes perdura graças à sua cumplicidade. Na segunda inversão dialética, Freud observa que o ciúme de Dora pelo pai mascara seu interesse pela Sra. K. No terceiro desenvolvimento tem-se, assim, o fascínio de Dora pela Sra. K, que culminaria na última inversão dialética, em que a Sra. K é aquela quem guardaria a chave do mistério sobre a feminilidade. É ela quem pode responder à Dora a questão fundamental de toda histérica: o que é ser uma mulher?

Retomando o matema da fantasia na histeria, temos aqui um outro modo de lê-lo: do lado esquerdo, teríamos a identificação viril de Dora ao Sr. K, que recobre sua castração para, através dessa posição, poder fazer a pergunta à Sra. K, que encarna o outro sem barra e poderia, desse modo, responder a pergunta sobre A mulher.

Essa interrogação primordial, ”O que é ser uma mulher?”, pode ser tomada como algo que define a histeria. É isso que interessa saber à histérica. A despeito de toda a querelância em que um sujeito histérico pode incidir, de toda a sorte de queixumes típicos da insatisfação histérica que, para preservar seu desejo, mantém a falta recusando-se à satisfação, a queixa fundamental na histeria refere-se à falta de identidade, falta de um significante que possa definir o seu ser. Essa é, então, a questão crucial endereçada ao Outro, no caso de Dora, representado pela Sra. K. Esse endereçamento ao Outro de uma questão sobre o feminino é descrito também através do discurso histérico.

No seminário 17, Lacan nos oferece uma nova leitura da histeria, calcada na lógica discursiva. Institui o discurso histérico como um dos quatro modos de se estabelecer laço social, arranjando os elementos significantes, o sujeito e o gozo da seguinte forma:

 

 

Na parte superior do discurso da histeria, tem-se $® S1. A posição dominante desse discurso é ocupada pelo sujeito barrado, muito bem representado na histeria, sujeito dividido por excelência, que evidencia sua divisão através de seus enigmas. Quem ocupa o lugar do outro é um S1, somente a um mestre sua pergunta poderia ser confiada. Na parte inferior do matema, sob o sujeito barrado, o que aparece em posição de verdade é o objeto a, causa de desejo, como aquilo que o sujeito desconhece ao se endereçar ao mestre interrogando-o em busca de um S2. O saber instalado no lugar da produção deve responder a questão sobre o que é uma mulher para, de posse dele, poder sustentar a relação sexual. Em última instância, esse é o saber que a histérica espera ver produzido, e, para Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 98), é aí que reside o mérito desse discurso, por manter de pé em sua estrutura a pergunta sobre a relação sexual. Porém, o S2 que o mestre produz é, por estrutura, insuficiente para lhe dizer sobre o seu gozo de mulher, pois não há o significante que possa definir o que é uma mulher.

Ao eleger alguém para ocupar esse lugar S1 e endereçar-lhe sua questão, pressupondo que este pode produzir um saber a seu respeito, ela se aliena ao mestre deixando-se definir pelos sentidos vindos dele. A histérica interessa-se tanto por um mestre, esforça-se tanto por sustentá-lo que, como nos diz Lacan, é preciso indagar se não foi ela quem o inventou. Porém, é preciso que esse mestre tenha seus limites. É o que se vê na ambiguidade histérica, que está sempre colocando o senhor em cheque e destituindo-o.

Ela quer um mestre. Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa (LACAN, 1969-1970, pg. 136).

Se por um lado o sujeito histérico se endereça a um mestre, supondo-lhe uma potência em relação ao saber, por outro ele aliena-se do mestre, resistindo a ser dividido pelo S1, ao recusar que seu corpo obedeça a ele. É pela via do corpo que escapa a alienação ao mestre: isso que Freud chamava de complacência somática, Lacan nomeou por recusa do corpo na histeria.

No caso Dora, a impotência de seu pai perpassa toda a trama e ainda assim é no lugar do senhor que ele vai estar para ela, levando Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 100) a reafirmar a constituição do pai por avaliação simbólica. Por mais moribundo que possa estar, há uma ”potência de criação” implicada na palavra pai que faz com que ele desempenhe ”esse papel-mestre no discurso da histérica”. O pai colocado no lugar de S1, puro significante, é dotado de uma potência criadora sobre o real do seu gozo, sob a forma de um saber. Assim, na fantasia de que o pai é potente para fornecer-lhe o significante da relação sexual, ela o salva. Salvar o pai comporta, conforme Alvarenga (ALVARENGA, p. 19), o paradoxo de conferir a ele uma potência para, a seguir, jogá-lo na impotência, pois o saber que produz será sempre insuficiente para responder-lhe sobre o papel da mulher na relação sexual, deixando o próprio sujeito histérico na impotência. Mas isso não faz com que Dora desista de se dirigir ao mestre, pelo contrário: condena-a a insistir na questão. Fato que se observa muitas vezes na clínica sob a forma de uma demanda infinita ao pai ou a qualquer outro que venha a ocupar esse lugar de S1.

Uma saída seria através do que Lacan chamou, ainda no Seminário XVII, de ”terceiro homem”. Que a histérica possa se endereçar a um terceiro homem, que assim é chamado por ter o órgão, e que possa permitir dividir-se por ele, deixando-se tomar por objeto de seu gozo. É aquele que conjuga o ideal do pai universal abstrato com o desejo particular de um homem concreto (ALVARENGA, p. 20). O Sr. K convém a Dora como terceiro homem, por estar claro desde muito cedo, quando ele lhe assedia, ser possuidor do órgão. Mas Dora não se interessa por fazer do seu atributo fálico meio de gozo, por ”fazer dele sua felicidade” (LACAN, 1969-1970, p. 100). Quando o Sr. K diz à Dora: ”Minha mulher não é nada pra mim. (…) nesse momento o gozo do Outro se oferece ela, e ela não o quer, porque o que quer é o saber como meio de gozo…” (LACAN, 1969-1970, pg. 101). Assim, pode-se dizer que o Sr. K não cumpre sua função de terceiro homem para Dora, uma vez que ela não se deixa interpelar por ele, não consente como desejo dele.

Seguindo o caso Dora, através do matema da fantasia e do discurso histérico, em busca das estratégias de defesa na histeria, vê-se que sua pergunta fundamental, ”O que é uma mulher?”, é sua paradoxal defesa. Insistir na questão, apostando que outro tem a reposta, é seguir acreditando que A mulher existe. Ao escamotear à castração, através do seu enigma, ela não bascula para a posição feminina, que supõe que o sujeito possa se orientar pela lógica do não-todo, consentindo com algo da castração.

 

 


 

Bilbliografia
ALVARENGA, E. “Variedades do sintoma, unicidade do tipo clínico”, Correio. EBP, n. 58, p. 13-22.
FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. VII, p. 12-115.
LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1951. pp. 214-225.
LACAN, J. (1956-57). O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

Germana Pimenta Bonfioli.
Analista praticante. Psicóloga da rede de saúde mental de Mariana/MG. Email : germanabonfioli@hotmail.com