O Manejo Da Transferência Diante Da Demanda Dos Pais

MARINA S. SIMÕES

FOTO: FREDERICO BANDEIRA

 

Analisar uma criança requer ir além de acolher e escutar o sujeito. O trabalho não depende apenas do desejo desse sujeito em trabalhar e do desejo do analista, mas requer a presença dos pais. São eles que procuram o analista, demandando a análise para a criança.

Sabemos que, para que uma análise seja possível, é imprescindível que ocorra transferência. A análise de uma criança requer, também, a transferência com os pais. Nós, enquanto analistas, temos o desafio de criar um laço transferencial com os pais, senão a criança, com o seu sintoma, não chega ao tratamento.

Geralmente são os pais que procuram o analista, demandando a análise da criança por diversos motivos que causam mal-estar: algo da criança que os incomoda, demanda da escola ou, ainda, por indicação de algum médico, parente ou amigo. A primeira demanda é dos pais. Acolhemos essa demanda tomando o cuidado de escutar a singularidade que uma criança desperta no adulto que nos procura.

Cabe ao analista investigar o que levou os pais a procurá-lo e qual é a posição deles diante do sintoma da criança. O analista dá lugar ao saber dos pais, acolhendo o que eles falam, atento à diferenciação entre o sintoma do par parental, o sintoma da mãe, do pai e da criança. Abrem-se aí questões fundamentais: qual é o lugar que a criança ocupa na família, assim como qual é o sintoma que ela ocupa para esse Outro?

Podemos obter algumas dessas respostas por meio das entrevistas com os pais, identificando onde se situa seu sintoma em relação à criança. A presença do desejo dos pais molda o sujeito, e a sua ausência deixa uma marca, que reaparecerá nas formações do inconsciente, incluindo o seu sintoma, que responde a uma falha na estrutura familiar.

A impossibilidade de estabelecer laços transferenciais ocorre quando os pais “não quererem saber” sobre o sintoma do filho. Nesses casos, não há possibilidade de transferência entre pais e analista. Esses pais não questionam, mas demandam respostas, querem que o analista “cure” o seu filho, fazendo com que o sintoma que incomoda desapareça.

Nos casos em que a criança é encaminhada por um terceiro, que pode ser a escola, um médico, um amigo, os pais não questionam, não demandam e, algumas vezes, não estão incomodados com o “problema” que o filho apresenta. Apenas cumprem o papel que lhes foi solicitado. Apostamos, então, na transferência com a criança, para que o tratamento seja possível.

Já nos casos em que os pais querem saber, a transferência não é apenas possível, mas necessária para o trabalho com a criança. Nesses casos, apostamos no inconsciente do pai e/ou da mãe para fazer o laço transferencial. Escutamos cada um do par parental, com o seu sintoma e o seu desejo. Aqui, cabe interpretar, diferente do primeiro caso, em que a transferência não é possível. De acordo com Freud, podemos interpretar apenas quando a transferência já está estabelecida, pois a emergência da transferência significa que há processo inconsciente.

Na relação paciente-analista, o paciente realiza o trabalho. É ele quem produz, entregando o material ao analista, a este cabendo recebê-lo, escutá-lo e, quando possível, interpretá-lo, intervindo enquanto Outro.

De acordo com Lacan (1964), a interpretação não está aberta a todo e qualquer sentido e tampouco toda interpretação é possível. Ela funciona quando toca o inconsciente, o que é complexo e exige cautela do analista. A interpretação não visa tanto ao sentido; visa mais a reduzir os significantes ao “não-senso”.

Os pais chegam ao psicanalista supondo que este saiba algo do sintoma do seu filho e pedem uma resposta. O analista ocupa o lugar de sujeito suposto saber, que é um mecanismo da transferência fundamental para a análise. O sujeito precisa se sentir amado e supor saber ao analista no primeiro momento da transferência. Lacan acreditava que o sujeito suposto saber é o pivô da transferência, pois a análise se estabelece com essa suposição de que o Outro, analista, sabe – posição esta que o paciente consente, mas com a qual o analista não se identifica. Lacan (1964) pontua que

 

Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber (…) há transferência. (…) Ora, é bem certo, do conhecimento de todos, que nenhum psicanalista pode pretender representar, ainda que da maneira mais reduzida, um saber absoluto (LACAN, 1964, p. 226).

 

Para Lacan (1938), o sintoma da criança está relacionado com a família, com esse Outro primordial, pois responde ao sintoma da estrutura familiar, representando a verdade do par parental. O sintoma da criança pode representar o que há de sintomático na mãe, no pai ou no casal. Lacan pontua que o destino psicológico da criança depende, primeiro, da relação que as imagens parentais têm entre si. Segundo Lacan, a criança é o sintoma do par parental. E é por esse viés que apostamos na possibilidade da análise com a criança.

 

(…) o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. O sintoma – esse é o dado fundamental da experiência analítica – se define, nesse contexto, como representante da verdade do casal familiar. Esse é o caso mais complexo, mas também o mais acessível a nossas intervenções (LACAN, 1938, p. 369).

 

Os pais com que trabalhamos são os pais reais, que queixam e demandam, e não os pais da fantasia da criança, como trabalhado por Freud em Romances familiares, aqueles que constituem uma autoridade única para a criança, que carrega o conhecimento sobre tudo. Mais tarde, a criança vai compará-los a outros pais e depois rivalizar com eles. Esses, nós tratamos na análise com a criança. Já os pais com que estamos trabalhando aqui ocupam uma função muito importante no tratamento das crianças, e nós contamos com eles para o trabalho ocorrer. Porém, ressaltamos o lugar da criança enquanto analisante, afinal, a análise é o espaço para a criança, enquanto sujeito, trabalhar as suas questões, e não o lugar de análise dos pais.

Algumas vezes os pais precisam do seu espaço para falar e colocar suas questões. Esse espaço, no entanto, deve ser encontrado fora da análise do filho. Perguntamos quando e como encaminhar um pai e/ou uma mãe a um analista, para que tenham um lugar onde eles possam tratar do seu sintoma.

O analista, quando faz uma intervenção com os pais, busca orientar o nó do amor, do desejo e do gozo de ambos. Sabemos a importância de ouvir cada um dos pais para o tratamento da criança, mas questionamos quando devemos chamá-los para conversar.

Convocamos os pais para conversar quando eles nos solicitam, quando acreditamos ser necessário investigar mais sobre a criança, quando percebemos algo errado com a criança que ela não dá conta de falar, quando sentimos a necessidade de dar um retorno e quando precisamos chamar o pai para a sua função, entre outras inúmeras situações. Eles são fonte de saber sobre a criança, mas não sabem de tudo. Buscamos construir, junto à criança e aos pais, algum saber. O trabalho com os pais é um trabalho conjunto, visando ao tratamento da criança.

Alguns pais pedem que o analista os ensine como lidar com o filho, questionando se agem certo ou errado com a criança. Ao analista cabe o cuidado no manejo da transferência com os pais, sendo possível orientá-los, para o trabalho caminhar. Orientar é diferente de dar respostas e ensinar. Orientar é construir soluções possíveis, pontuando o que for importante para a continuidade do trabalho.

Os pais são a primeira fonte de saber da criança, eles são a lei e o amor. Questionamos se o pai e a mãe ocuparam as suas funções para essa criança na construção do Édipo. A estrutura do sujeito depende do Outro e dele mesmo, de como a falta se instaura. O sujeito escolhe, via desejo, qual posição vai tomar, escolhe se alienar ou não, mas para conseguir chegar ao alcance da escolha, é necessário algo antes, e é aí que os pais entram.

Primeiro, o sujeito criança se aliena, dizendo “sim” ao Outro. De acordo com Lacan, esse é o primeiro passo da operação em que se funda o sujeito, sendo essencial a criança passar por ele para chegar ao segundo momento, no qual ele se separa, respondendo “não” ao Outro, dando uma resposta enquanto sujeito desejante. Isso é possível quando o seu lugar no desejo do Outro se torna enigmático para a criança, quando ela sai do lugar de assujeitamento ao gozo do Outro para assujeitar-se a uma lei – a lei do desejo, encarnada pela função do pai. É nesse segundo momento que o campo da transferência começa a ter lugar. O trabalho da análise consiste em ajudar a criança a fazer essa separação, intervindo no lugar em que nos é dado pela transferência.

Nesse momento de impasse, pode acontecer de alguns pais suspenderem o tratamento da criança, porque dizem que ela já está bem, quando o sintoma que os incomodava apazigua, ou quando acreditam que a criança “piorou”, está “rebelde”, “agressiva”, pois está se separando, se posicionando enquanto sujeito. Acontece que, quando a análise abre a possibilidade do sujeito criança aparecer, criando certa independência em relação aos pais, estes a interrompem, com ou sem transferência com o analista. São eles que decidem o momento de interromper, e não o analista junto ao analisante.

Na experiência com a clínica, assistimos a tratamentos de crianças sendo interrompidos por várias razões: além dos citados acima, porque os pais acreditam em outra(s) forma(s) de tratamento e creem que terão mais êxito, porque estão com baixas condições financeiras, porque acreditam que a criança já está há muito tempo em tratamento e não obtiveram os resultados esperados, também por questões de mudança de horário ou inviabilidade de levar a criança ao atendimento, entre outras. Nesse momento, nós, enquanto analistas, se possível, chamamos esses pais para mais uma conversa, além de outras ocorridas durante o tratamento da criança. Ressaltamos a importância do tratamento pontuando que ele ainda não chegou ao fim, e que, portanto, não concordamos com sua interrupção. Cabe ao analista amparar também os pais nessa separação.

Uma das causas da interrupção do tratamento da criança é a resistência, que pode ser do lado da criança ou do lado de um dos pais. Há casos em que o pai ou a mãe diz que a criança não quer mais ir às consultas. Investigamos de qual lado está a resistência, para trabalharmos com ela, afinal, a resistência é uma forma de transferência. Ela aparece como um obstáculo para a cura, mas com o manejo da transferência é possível vencê-la. De acordo com Freud (1912),

 

(…) a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise – e a análise como tal – muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influencia analítica junto aos pais (FREUD, 1912, p. 146).

 

Ainda segundo Freud (1912), os fenômenos da transferência – resistência, repetição e sugestão – representam grande dificuldade para o psicanalista, mas são necessários para tornar manifesto os impulsos eróticos ocultos do paciente, ou seja, para chegarmos ao inconsciente do sujeito.

Em 1912, Freud afirma que a resistência deve ser contornada através da interpretação, que é colocada como uma arte, principalmente no que diz da identificação das resistências. Trata-se do manejo da transferência dando o devido tempo para o paciente elaborá-la, superar a resistência e abrir a possibilidade, assim, de recordar e prosseguir com o tratamento.

 

Depois que ela for vencida, a suspensão das outras partes do complexo quase não apresenta novas dificuldades. (…) assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo da transferência (…) mas o papel que a transferência desempenha no tratamento só pode ser explicado se entrarmos na consideração de suas relações com as resistências (FREUD, 1912, p. 115-116).

 

De acordo com Freud (1912), citado por Miller (1988, p. 104), a transferência se produz quando o desejo do sujeito encontra um elemento particular na pessoa do analista, ou seja, quando algo do inconsciente se liga a algum significante que remete ao analista. Ainda segundo Freud (1912), a transferência se dá devido à imago paterna, semelhante à imago materna ou à imago fraterna, sendo a transferência a própria relação da cura, o tempo da experiência e da elaboração, na medida em que tem o Outro como figura central.

A transferência, com a possibilidade de interpretação, favorece o tratamento da criança abrindo espaço para ela construir o seu próprio sintoma, separado do sintoma do pai, da mãe ou do par parental.

Ainda de acordo com Freud (1912), os sintomas podem adquirir uma nova significação a partir da análise, pois o sintoma é um elemento com uma significação que se dirige ao Outro. Sendo assim, o sintoma pode se direcionar ao lugar ocupado pelo analista na cura, lugar este de receptor do sintoma onde, devido à transferência, ele pode operar sobre aquele.

Há, então, no tratamento com crianças, a possibilidade do advir de um sujeito, o que permite a interpretação do analista. Portanto, a análise da criança é, sim, possível, com o manejo da transferência do lado do pai, da mãe e do filho. Apostamos na possibilidade de a criança construir o seu sintoma e saber sobre ele num processo transferencial junto ao analista.

 


 

Bibliografia:
FREUD, S. (1909/2006) “Romances familiares”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908) Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol.IX, p. 219-222.
FREUD, S. (1912) “Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I)”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913), Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol XII, p. 137 – 158.
LACAN, J. (2964) “Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem”, In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 224 – 236.
LACAN, J. (1938) “Nota sobre a criança”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 369-370.
LACAN, J. (1938) “Os complexos familiares”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 29-90.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (I): A alienação” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 199-210.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (II): A afânise” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 211-223.

Marina S. Simões
Psicanalista. Graduado em Psicologia pela PUC MINAS. Graduated in Psychology from PUC MINAS. E-mail :marina.s.simoes@hotmail.com https://www.instagram.com/p/aEZJKAjG8o/?taken-by=fredbandeira



Editorial Almanaque nº16

LUDMILLA FERES FARIA

Está no ar o Almanaque 16! Este número introduz algo novo: a publicação orientada pelo tema da adolescência. Para tratar desse assunto, partimos da intervenção de Jacques-Alain Miller no encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança, Rumo à adolescência, publicada em nosso portal Minas com Lacan, que tanto entusiasmou a comunidade dos analistas a seguir interrogando: “o que é a adolescência?”. Para trabalhá-lo, abrimos mão, neste número, da política de sermos uma publicação das produções advindas das várias atividades do Instituto para dar lugar aos trabalhos de colegas de diversas Escolas do Campo freudiano, dentre os quais se encontram alguns dos que foram citados no referido texto de Miller e no comentário de Ana Lydia Santiago, na Sede da EBP-MG, publicado no Correiro 77 e no CIEN-Digital 19.

Dessa forma, a maioria dos textos dessa edição foi cuidadosamente escolhida pela equipe entre os publicados na revista internacional de psicanálise Mental, nº 23, de cujo tema “Qual o futuro para a adolescência?” vocês aqui encontrarão ecos e tentativas de respostas que são abordadas de forma contundente a partir da articulação entre a prática clínica e a teoria. Nossa expectativa é de que esse número sirva de incentivo para incrementarmos nossas pesquisas em torno do tema da adolescência, que, como já foi anunciado, será também o tema da próxima jornada da EBP-MG: “jovens.com: corpos e linguagens”.

Abrimos nossa edição, em Trilhamentos, com os textos de Philippe La Sagna, “A adolescência prolongada, ontem, hoje e amanhã”, e de Domenico Consenza, “A iniciação na adolescência: entre mito e estrutura”, nos quais os autores interrogam sobre quais os efeitos advindos da mudança no estatuto do Outro sobre o tempo da adolescência. La Sagna serve-se dos estudos do antropólogo Paul Yonnet para abordar a forma como a incidência do real da ciência afeta, de forma não homogênea, a relação dos jovens com o tempo: “hoje nada mais é para sempre”. Consenza, por sua vez, evidencia a importância ética de retomarmos a questão do tempo a partir da proposta de Lacan: “de que forma os adolescentes iniciam um movimento de separação, quando o próprio Outro social lhes ordena gozar sem limite?”, pergunta que serve de mote para seu trabalho.

Em Incursões, agrupamos as questões da adolescência abordadas pelo viés do vivo da clínica. Os três autores, Laure Naveau, com “Solidão do ser falante”, Hélène Deltombe, com “Sair da adolescência” e Pierre Naveau, sob o título “O sintoma na encruzilhada dos caminhos: um caso extremo de recusa”, apresentam as manobras necessárias num tratamento analítico quando o sujeito adolescente é invadido pela recusa ao Outro, que pode apresentar-se tanto pelo uso excessivo das drogas pesadas quanto pela vontade irredutível de morte. A fineza clínica presente nesses depoimentos com certeza será de grande interesse para nossas reflexões.

Os amantes da literatura infanto-juvenil não podem deixar de ler na rubrica Encontros o texto “A adolescência como abertura do possível”, de Marco Focchi, que aborda a função dos semblantes na adolescência a partir de clássicos como A linha da sombra, de Joseph Conrad, Os indiferentes, de Albert Moravia, e O jovem Törless, de Robert Musil, entre outros. Tais leituras demostram a passagem de uma sociedade na qual a saída da adolescência estava calcada nos ritos de iniciação, com forte presença do Outro, para uma sociedade, na qual o jovem necessita saber encontrar sozinho uma solução perante os riscos, tal qual na história infantil Aventuras de Pinóquio. Nessa história, a transformação de boneco de madeira em “menino de verdade” só ocorre após Pinóquio conseguir salvar ele e o pai de serem engolidos pela imensa baleia. Vilma Coccoz também serve-se da literatura juvenil para apresentar em seu texto “A clínica dos adolescentes: entradas e saídas do túnel” a função do analista na clínica com os adolescentes e a importância do manejo da transferência com as questões apresentadas pelas famílias.

Em De uma nova geração, encontramos os textos de dois alunos do Curso de Psicanálise do IPSM-MG, “Dora e as ‘maridas’: duas tentativas de abordar o feminino a partir do amor ao pai”, de Maria Amélia Tostes, e “Da solução do sintoma ao sinthoma como solução”, de Leandro Marques Santos. Enquanto no primeiro o enfoque é colocado sobre a participação do pai na busca de resposta para eterna pergunta feminina: “o que é uma mulher?”, o segundo aborda, a partir de testemunhos do passe, os destinos do sintoma desde o início de uma análise até o seu ponto máximo, quando o sujeito se encontra com o real de seu sinthoma.

E, ainda, lembrando que o analista de orientação lacaniana mantém-se atento às questões de sua época e busca participar dos debates da cidade nos vários campos do saber, não poderíamos deixar de registrar o movimento histórico vivido pela juventude paulista nos últimos meses de 2015. Quando uma leitura convencional apostava no niilismo e na apatia juvenil, o Brasil foi sacudido, em nossa megalópole, pelo Movimento Secundarista, no qual os jovens tomaram a palavra e a cidade para reivindicar o direito a estudar. O Almanaque não poderia ficar longe desse debate e quis saber com detalhes a forma como os jovens se organizaram para barrar a reorganização das escolas estaduais de São Paulo e também se interessou por como esses jovens foram tocados por esse movimento. Essa conversa, em primeira mão, vocês podem ler na rubrica Entrevista. Verão com que vivacidade os jovens souberam não recuar perante o impasse imposto pelo Outro e como fizeram isso sem perder a alegria.

Para compor esse número do Almanaque, contamos também com a preciosa participação de alguns jovens de nossa cidade que gentilmente nos cederam fotos, desenhos e grafites e deram, assim, mais vida e cor à nossa publicação. A eles, nosso imenso agradecimento. Não deixem de conferir!

Este número, produzido pela nova equipe de publicação, marca a transição da Diretoria de publicações e temos como responsabilidade o desafio de manter o Almanaque como um veículo de transmissão da psicanálise de orientação lacaniana e do que circula no Instituto de Psicanalise e Saúde Mental de Minas Gerais. Nossa aposta é a de estarmos à altura do convite feito pela atual diretora do IPSM-MG, Ana Lydia Santiago, e do que nos foi transmitido pela diretora de publicação “sainte”, Márcia de Souza Mezêncio.

Com vocês, o Almanaque 16!

Ludmilla Feres Faria (Diretora adjunta de publicação)



Almanaque V. 9 – Nº 16 1º semestre de 2015

Está no ar o Almanaque 16! Este número introduz algo novo: a publicação orientada pelo tema da adolescência. Para tratar desse assunto, partimos da intervenção de Jacques-Alain Miller no encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança, Rumo à adolescência, publicada em nosso portal Minas com Lacan, que tanto entusiasmou a comunidade dos analistas a seguir interrogando: “o que é a adolescência?”. Para trabalhá-lo, abrimos mão, neste número, da política de sermos uma publicação das produções advindas das várias atividades do Instituto para dar lugar aos trabalhos de colegas de diversas Escolas do Campo freudiano, dentre os quais se encontram alguns dos que foram citados no referido texto de Miller e no comentário de Ana Lydia Santiago, na Sede da EBP-MG, publicado no Correiro 77 e no CIEN-Digital 19. Leia o editorial…

TRILHAMENTO
A adolescência prolongada, ontem, hoje e amanhã – Philippe La Sagna

A iniciação na adolescência: entre mito e estrutura – Domenico Consenza

ENTREVISTA
Almanaque on-line entrevista – Fernanda Freitas, Vinicius Viana, Jaqueline Luiza
INCURSÕES
Solidão do ser falante – Laure Naveau

Sair da adolescência – Hélène Deltombe

O sintoma na encruzilhada dos caminhos: um caso extremo de recusa – Pierre Naveau

ENCONTROS
A adolescência como abertura do possível – Marco Focchi

A clínica dos adolescentes: entradas e saídas do túnel – Vilma Coccoz Turinetto

DE UMA NOVA GERAÇÃO
“Dora” e as “maridas”: duas tentativas de abordar o feminino a partir do amor ao pai – Maria Amélia Tostes

Da solução do sintoma ao sinthoma como solução – Leandro Marques Santos




A Adolescência Prolongada, Ontem, Hoje E Amanhã

PHILIPPE LA SAGNA

 

FOTO: ATIVIDADE DE CHRISTINA FORNACIARI, “SE EU FOSSE FRANCIS BACON”. JOVENS DO PROGRAMA CAPUT.

No século XX, nossa percepção da vida e da vida sexual em particular mudou muito em relação àquela do século passado. Ela foi modificada em diferentes planos, e, primeiramente, no plano do real. Segundo alguns autores, em particular Paul Yonnet (2006), antropólogo, de quem vou retomar algumas teses, há uma incidência real da ciência sobre a sexualidade humana, principalmente sobre a procriação e, portanto, sobre a duração e a repartição das idades da vida. Yonnet estudou a incidência de nossa nova relação com a morte, por causa do progresso da ciência sobre a vida da família. A quantidade de vida de que dispomos nunca foi tão grande: nosso tempo de existência quase dobrou em menos de um século.

Adolescência E Idade Da Vida

É notável que esse prolongamento da vida não seja homogêneo. Assim, a idade da tenra infância e da infância parece se reduzir, se condensar cada vez mais. A idade da maturidade é, ao contrário, cada vez mais restrita. Isso significa que passamos cada vez menos tempo sendo “maduros”. A adolescência e a terceira idade não param de aumentar até se tornarem idades hegemônicas. A saída da adolescência e a entrada na idade adulta estão ligadas às convenções e parecem ser cada vez mais retardadas; é o que prolonga desmesuradamente o tempo da adolescência. Por outro lado, os homens entram na terceira idade ou se aposentam cada vez mais cedo. Atualmente, aqueles que são considerados jovens adolescentes se situam entre quatorze e vinte e cinco anos. Consideramos geralmente que uma saída da adolescência é também uma entrada na vida ativa. O fato de que os jovens ficam mais tempo na casa de seus pais está ligado a diferentes fatores, muito estudados pelos sociólogos e pelos jornalistas:

– o prolongamento dos estudos;

– a impossibilidade real de encontrar condições de estabelecimento, isto é, uma moradia e um trabalho;

– a terceira razão, mais interessante para nós, é a dita ausência de ruptura de valores entre as gerações. Os jovens não estão mais em ruptura com as ideologias e os modos de vida atribuídos aos de seus pais. Desde 1968 há uma continuidade sem ruptura de valores entre crianças e pais.

Para Yonnet, uma das razões da “sociedade dos indivíduos” é que, a partir do momento em que a duração da vida aumenta, é a vida individual que se torna um valor. Ao contrário, quando a duração da vida é curta, o valor é a família, ou seja, aquilo que, para o indivíduo, persiste depois de sua morte. Durante muito tempo, em particular na época do Iluminismo e da Revolução, quisemos nos opor ao poder das famílias. O poder das famílias sobre o indivíduo era então efetivo. Hoje, é a família que se coloca a serviço do indivíduo.

Por outro lado, o tempo de formação do indivíduo está cada vez mais prolongado. A formação nunca é suficientemente perfeita e o trabalho é raro: passamos, portanto, a vida nos preparando. Essa preparação passa por um treinamento que supõe a ação. A ação, para a psicanálise, se diferencia do ato. Os adolescentes são muito ativos, mas, por outro lado, não fazem nada no sentido do ato concebido como uma ação que tem consequências. Treinar, praticar esportes, é frequentemente uma ação sem consequências. A oposição ação/ato é um dos critérios que permitiria distinguir a adolescência da maturidade. Censuramos aqueles que estão na adolescência por fazerem demasiadas ações, isto é, por se mexerem demais. Quando não sabemos que ato fazer, é normal tentarmos todas as ações possíveis.

O herói adolescente é autoengendrado: não é alguém que dependa dos outros, como percebeu Yonnet. É alguém que utiliza seus pais e seu entorno para engendrar a si mesmo. O sujeito moderno é, portanto, um autoengendrado. Isso é importante porque o autoengendrado é sempre também um autodestruído. O avesso do autoengendramento é a autodestruição. Isso esclarece certas tendências suicidas. Pressionamos cada vez mais o adolescente a se autoengendrar, isto é, a se formar de maneira autônoma e assim, sem saber, ele é pressionado a se autodestruir.

Atualmente, cultivamos um inacabamento de nós mesmos, de nossa formação, de nossa identidade, de nosso desejo, até mesmo da realidade. Esse inacabamento cultivado caminha junto com um certo desespero: se isso nunca acaba, é porque é interminável. Será sempre melhor amanhã, e o sujeito permanece suspenso a um futuro líquido no sentido de Zigmunt Bauman (2004). O inacabamento da “Bildung” do ego em formação produz também um ego vago in progress…

A Novidade Da Idade Da Escolha?

Atualmente, não nos engajamos porque não sabemos muito bem em que nos engajar. Podemos dizer que hoje nada mais é “para sempre”. Antigamente, o “sempre” ou o “para sempre” ocorria rapidamente. Muito frequentemente, entre dezesseis e dezoito anos, o sujeito sabia com quem ele ficaria “para sempre” no amor e qual ofício ele teria “para sempre”. Hoje, supomos que o sujeito tenha várias vidas, vários ofícios e até mesmo várias famílias, famílias recompostas. Então, o problema é que o sujeito passa a vida escolhendo e não vivendo. A possibilidade de escolha é preservada mais do que tudo. E, essa maneira de preservar em tudo a escolha, de estar diante de várias hipóteses sem escolher nenhuma delas e de experimentar um pouco todas, é exatamente a posição subjetiva do adolescente.

A adolescência não está simplesmente prolongada no tempo, ela é, além disso, valorizada socialmente como prolongamento generalizado e adolescência generalizada. A sociedade propõe que sejamos eternos adolescentes, sempre prontos para qualquer coisa que vai vir e que não vem, sempre treinando para esse algo que vai vir. Freud e todos os pós-freudianos pensavam que o laço social tinha efeitos sobre a psicanálise e a psicanálise sobre o laço social. Ou seja, que aquilo que nós tratamos não era unicamente efeitos de sujeito, mas também efeitos de discurso.

A Adolescência Com Freud

No século XX, Freud pensava que seria necessária uma ação exterior, uma ação social, para separar a criança de sua família. Mesmo a famosa inibição, a barreira contra o incesto que podia reinar no seio da família, era comandada pela sociedade. Para Freud, os laços familiares eram muito fortes. Seria preciso, portanto, opor a eles uma outra força, aquela da civilização. Era importante “estabelecer unidades sociais mais elevadas” (FREUD, 1972) do que a família. A sociedade fazia, portanto, uso de todos os meios a fim de que, no adolescente, se afrouxassem os laços familiares que existiam durante a infância. O que mudou, desde Freud, é que a sociedade hoje não faz quase nada para cumprir essa tarefa. De fato, a primeira coisa a fazer seria dar aos jovens os meios para se separar da família. Ora, na maioria das vezes, não é o caso.

Para Freud, a tarefa a ser cumprida no momento da puberdade é uma reconstituição diferente da relação com o objeto. A constituição de uma relação com o objeto novo vai preparar o encontro com um objeto exterior, ou seja, o encontro com um parceiro sexual, o que quer dizer aqui um parceiro/objeto no exterior do corpo próprio. Esse parceiro não pode ser o corpo próprio, o que constituiria uma solução narcísica, e isso não pode ser apenas um encontro na fantasia. Se há adolescências prolongadas, há também síndromes de Peter Pan, sujeitos que permanecem num amor não sensual infantil e eterno, sujeitos que se designam também atualmente como “assexuais”.

Se, para Freud, a tarefa a ser cumprida na adolescência é a “reconstituição” desse objeto sexual novo, há um obstáculo. A corrente sensual pode permanecer fixada numa satisfação autoerótica, numa satisfação masturbatória na qual o sujeito se satisfaz com o corpo próprio e com a fantasia. Na adolescência, com efeito, as correntes sensuais se descarregam alimentando-se das fantasias. Freud sublinha que uma produção desenfreada de fantasias é o que caracteriza a adolescência. A fantasia não é, de fato, algo que prepara o encontro com o objeto exterior, mas algo que se opõe a ele pela criação de um desvio.

O que vai estar em jogo é produzir um estatuto novo do objeto que possa permitir ao sujeito encontrar um objeto no exterior, um objeto que não seja o objeto edipiano do passado. Os psicanalistas observaram muito cedo que a série dos objetos do passado surgia naquele momento e, em particular, os objetos pré-genitais. Isso não quer dizer que a famosa regressão dos adolescentes os traga de volta ao pré-genital. Isso quer dizer que, para fabricar um objeto novo, que lhes servirá de guia em direção a um objeto exterior, eles vão utilizar em parte os objetos parciais pré-genitais. No caminho da constituição de uma sexualidade dita madura, o adolescente estará sujeito a tempestades de gozo “parcial” totalmente “imaturo”. É por isso que os adolescentes bebem, fumam, vomitam, sujam, gritam exatamente como se fossem bebês! Isso porque eles precisam buscar no passado os materiais para fabricar algo novo. O prolongamento da adolescência leva ao prolongamento dessas manifestações. Por exemplo, a anorexia/bulimia, enquanto epidemia, é algo que vai surgir nesse momento.

A Adolescência Difícil Dos Pós-Freudianos

Um dos grandes debates entre os pós-freudianos da IPA gira em torno da questão de saber se a etapa ou a via do narcisismo é um meio necessário para permitir o encontro com um objeto exterior ou se, ao contrário, é um obstáculo. Para alguns psicanalistas, com Freud, trata-se de um obstáculo. Eles consideram, com razão, que há uma oposição entre o narcisismo e o fato de encontrar um objeto exterior a si, já que o narcisismo é o amor de si mesmo e que o objeto exterior é suposto ser diferente do si. Outros vão pensar que, para atingir o objeto exterior, é preciso um eu suficientemente forte, é preciso reforçar o ego. O narcisismo não é então o obstáculo, mas o meio de obter o objeto exterior. Isso tem consequências:

– seja que a adolescência é sobretudo um trabalho de reforço do ego, de fabricação de um eu que deve ser um eu forte para assegurar a conquista do objeto, ou mesmo suportar seu encontro;

– seja que a adolescência é um tempo no qual não se trata de reforçar o ego, mas o desejo, desejo de ir ao encontro do objeto no exterior libertando-se das fantasias e do autoerotismo.

Há, portanto, dois modos de considerar o tratamento na adolescência: ou a ênfase é dada à identificação, sempre muito frágil, do adolescente, ou a ênfase é dada ao desejo. Atualmente, o discurso contemporâneo consiste antes de tudo em dizer: “Reforce sempre sua identificação”. Ser adulto é ter terminado a “formação” desse ego forte. A partir do momento em que o sujeito é sempre inacabado, ele apresentará forçosamente um distúrbio de identidade. De fato, o eu forte exigido pela sociedade é um eu suscetível de ter uma identidade mutável. Portanto, de fora o sujeito é persuadido a aderir a tal ou tal identidade, o que o desangustia, ao mesmo tempo em que o caráter instável dessa identidade restaura a angústia!

Ou se escolhe a identificação ou se escolhe o valor da des-identificação e do desejo. O valor da des-identificação tem consequências na esfera sexual, já que ela pode colocar em questão a identificação sexual que parecia antigamente uma fonte de identificação forte. Não nos vestíamos da mesma maneira, não vivíamos da mesma maneira, não falávamos da mesma maneira, não frequentávamos os mesmos lugares, caso fôssemos uma moça ou um rapaz. Os encontros se davam de maneira regrada, segundo um cálculo social. Compreendemos que todo o discurso de Freud sobre a necessidade de identificação surge numa época em que a identificação é uma ideia forte na sociedade.

Atualmente, a identificação valorizada é aquela que é líquida (BAUMAN, 2004), muito mais do que fixada: é preciso estar pronto para tudo! Pedimos, por exemplo, às vezes, ao adolescente, que ele se identifique com empatia ao outro sexo. É um efeito recente, que data da Segunda Guerra Mundial. É a partir desse momento, em que vemos rapazes com os cabelos compridos, que as identidades sexuais são perturbadas. Começamos a fazer disso uma doutrina que é a doutrina atual da IPA na esfera sexual: para se ter uma vida sexual realizada, é preciso participar da sexualidade do outro no sentido da identificação, pelo menos mental. Se antes participar da sexualidade do outro significava ter um parceiro do Outro sexo, hoje isso significa se identificar aos desejos, até mesmo ao gozo suposto do outro. Nos pedem para sermos “bissexuais”, o que vemos claramente nas fantasias contemporâneas.

A Descoberta Do Adolescente Prolongado

O termo adolescência prolongada data de 1923. Ele foi inventado por Siegfried Bernfeld (1924), que faz o seu retrato: o adolescente é um adolescente idealista, deprimido. Esse adolescente idealista tem tendência a abrir mão da busca do objeto exterior para se perder, não em fantasias, mas em algo que parece com elas, isto é, em sublimações. Temos aí a primeira aparição de uma tese que fará sucesso: como impedir o adolescente de sublimar?

Vemos a inversão das teses, pois hoje a ideia é de que é preciso absolutamente fazê-lo sublimar! O que Bernfeld diz é que essa sublimação participa de um medo narcísico de perder o falo. Ele observa justamente que isso explica o que ele chama de regressões arcaicas. Todos esses jovens que preparam a revolução passam, de fato, seu tempo em bares, onde eles fumam e bebem.

Bernfeld deixa Berlim em 1932 para ir para a América e sua tese do adolescente idealista é retomada por sua amiga Anna Freud (1958). Esta última descreve, sobretudo, uma adolescente asceta e intelectual que é um retrato psíquico da adolescência da própria Anna Freud, com uma discreta nota homossexual e masoquista. Para a doutrina psicanalítica clássica, a adolescência não era um período determinante no nível dos sintomas. Clinicamente, quando se propõe aos pacientes falar espontaneamente e livremente, observa-se que eles falam de sua infância e raramente de sua adolescência. Isso é verdade se eles são neuróticos. Mas todos os psicanalistas que, depois da guerra trataram psicóticos ou borderlines, observaram que, de modo inverso, eles falavam muito frequentemente de suas adolescências. Anna Freud vai então dizer que a adolescência é talvez mais determinante do que se crê. A determinação do desejo é o Édipo e a infância, e a fabricação do ego é a adolescência. Ela pensa que o essencial na psicanálise é a fabricação do eu, ou seja, a Ego-psychology. A adolescência é então quase tão determinante para ela quanto a infância.

Na metade dos anos sessenta, todo mundo, e também os psicanalistas, se apaixona pela adolescência. É o nascimento dos Teen-agers. É o nascimento da adolescência como entidade definida, como grupo social. Winnicott notava isso: “Os jovens adolescentes são isolados reunidos […] um agregado de isolados” (WINNICOTT, 1969, p. 401). É exatamente o que se constata na sociabilidade moderna.

Winnicott (Ibidem, p. 398–408) retoma a questão da adolescência prolongada: “É preciso precipitar as coisas?”, “É preciso apressar o movimento da adolescência?”. Winnicott diz: “de modo algum”. E esse “de modo algum” passará por um certo número de teses entre as quais esta, célebre, de que não é preciso tentar compreender os adolescentes. Não é preciso compreender os adolescentes, porque eles não querem ser compreendidos (Ibidem, p. 398). Eles ficam furiosos quando vocês os compreendem. A partir do momento em que o seu desejo é um x para você, que você não sabe o que você quer, não há nada mais irritante do que aqueles que sabem em seu lugar. É o que os pais frequentemente fazem. O que Winnicott também diz é que, se intervimos, arriscamos o pior. Arriscamos destruir, estragar um processo natural e arriscamos terminar na doença mental (Ibidem, p. 399). Para ele, o que mais falta ao sujeito adolescente é “se sentir real” (Idibem, p. 405). Poderíamos dizer que o sujeito moderno também não se sente real. Para se sentir real, o adolescente busca criar antagonismos (Idem). Ele provoca o Outro para se sentir real através da resposta que lhe é dada. Winnicott explica assim o acting-out adolescente. Dessa forma, ele define indiretamente o que seria um adulto: um adulto seria alguém que se sente real. Portanto, prolongamos também um sujeito irreal!

Naquela época, Peter Blos publica Os adolescentes (1967), obra na qual ele precisamente estudou “a adolescência prolongada” (1954), que ele chama às vezes de “a adolescência retardada”. Para ele, a conscientização do fim irremediável da infância, das obrigações do engajamento no mundo, da impossibilidade de escapar aos limites da existência individual, essa conscientização faz nascer um sentimento de medo, de opressão e de pânico. Por isso muitos adolescentes preferem permanecer numa fase transitória, a adolescência retardada. Esse é um retrato de um adolescente angustiado que oscila entre angústia e desespero. Ele observa que isso está ligado à impossibilidade de escolher um tipo de vida. Nos anos sessenta, vemos a aparição de um fato social novo: a possibilidade de escolher um tipo de vida. Anteriormente isso não era possível, e, segundo Blos, o risco de ficar angustiado não existia. Alguns lamentam a época em que o sujeito via seu pai cultivar a terra e ficava tranquilo porque, um dia, ele também cultivaria a terra. A ideia de escolher sua vida mudou totalmente a subjetividade contemporânea como o fato moderno de ter sucessivamente várias vidas profissionais e amorosas.

Blos sublinha que, para se tornar um sujeito, o essencial do trabalho é se separar das tendências regressivas, isto é, operar um luto do objeto ao mesmo tempo edipiano e pré-edipiano. O objeto edipiano é, por exemplo, o Outro materno; o objeto pré-edipiano são todos os objetos pré-genitais que alimentam a tendência regressiva como a tendência à intoxicação e a fazer a festa. Não sentir mais uma necessidade imperiosa de festa é considerado como um guia para uma saída da adolescência, enquanto em nossa sociedade contemporânea supõe-se que todo mundo deva fazer a festa até muito tarde! A partir do momento em que a sociedade líquida (BAUMAN, 2004) é valorizada, como essa de hoje, que não tem mais nenhuma fixidez, não sabemos o que acontecerá amanhã. Se o sujeito quer um futuro, ele deve mudar de identidade rapidamente. Nesses casos, onde vai entrar a festa? Ela só pode se alojar numa festa permanente. Não há mais distinção entre a festa e a sociedade. Uma não é o avesso da outra.

A ideia de Blos é que, se escolhemos nossa vida, devemos poder escolher nossa estrutura psíquica, e então uma das angústias da adolescência recai sobre o fato de não saber que estrutura psíquica escolher. Essa perspectiva é singular. Para Lacan, ao contrário, não escolhemos nossa estrutura psíquica. Os psicanalistas da IPA pensavam que a adolescência era o tempo em que se fabricava uma estrutura, e assim tomavam distância de Freud.

Para Blos, o essencial é se separar dos objetos internos para produzir uma individuação. O perigo, segundo ele, é que se essa individuação do sujeito é muito rápida, vai-se produzir um adulto “como se”, um falso adulto. Vai ser necessário, portanto, evitar a pressa na maturação da adolescência. É o fenômeno Tanguy que se anuncia: quanto mais o adolescente fica na casa de seus pais, mais ele se torna um adulto formidável. E Blos considera que tudo o que vai no sentido inverso desse prolongamento é forçosa e necessariamente um acting-out. Por exemplo, a criança que foge de casa, a jovem que engravida, todos esses fenômenos são acting-out, quer dizer, um efeito de pressa e uma recusa da maturação lenta. Ele considera em particular que o luto do objeto não tem por objetivo permitir o acesso ao objeto exterior, mas tem por objetivo reforçar o eu e as identidades. O objeto deve servir à individuação, à constituição de uma identidade forte prévia à separação. Houve alguns protestos em relação às suas teses na IPA, aquele de Erik H. Erikson (1976), por exemplo, que diz que na realidade a adolescência não é tanto um fenômeno psíquico, mas uma moratória social. É um fenômeno que não tem sua origem no sujeito, mas na modificação do laço social na metade do século passado.

Helen Deutsch observa que o essencial da clínica da adolescência não é uma clínica do sintoma, mas frequentemente uma clínica das ações, dos acting-out (DEUTSCH, 1977). Ela acrescenta que é a razão pela qual os pacientes adultos não falam muito frequentemente de sua adolescência. Por que eles não a evocam? Porque os acting-out não deixam traço, eles deixam lembranças, mas não traços determinantes (Idem). O acting-out é uma falsa separação, sempre a ser repetida, operada por meio de um objeto mostrado. Esse objeto, em jogo nesse falso ato, serve de pseudo-separação, no sentido de que ele serve de ponto de ruptura e de diferenciação. A adolescência é, portanto, algo que desencadeia um certo número de acting-outs que são, com efeito, o avesso das separações efetivas. Numerosos jovens passam o tempo estudando e se formando. Helen Deutsch observa que a sociedade contemporânea é uma sociedade do training, da preparação, que exige uma renúncia ao objeto real muito maior do que nos séculos XVIII e XIX. Ao contrário dos acting-outs, os sintomas, nascidos na infância, deixam traços porque eles são uma escrita tendo uma consistência própria.

No final do século XX, qual é a situação a esse respeito na IPA? Richard C. Marohn, em um artigo de 1999, ataca a posição de Blos. Ele critica a ideia de que em algum momento se chegaria a um self acabado. Para ele, o self não se acaba nunca, a transferência também não, a construção de si é infinita. Não se trata de falar de separação e de individuação, mas muito mais, na adolescência, de um “período significativo de transformação do eu” sem fim. Assim, a construção de si pode durar do nascimento até a morte. Os filmes de Woody Allen o presentificam: apesar de estar numa idade avançada, o personagem do filme procede sempre na construção de seu eu. O fato de afastar para o infinito o encontro do objeto serve sempre ao narcisismo.

Lacan E A Solução Do Objeto Separador

O ponto de vista lacaniano exige ser freudiano: não é a identificação que permite o acesso ao objeto, mas é muito mais o encontro com o objeto e sua perda que produzem uma identificação. É o encontro que produz a identidade e não a identidade que permite o encontro. No horizonte do encontro há a questão do ato sexual. Não há ato sexual que permita que um sujeito se assegure que ele é homem ou mulher. Felizmente há o amor, que pode fazer suplência a essa falha de certeza do ato sexual. O amor permite ao sujeito pensar que ele é homem ou mulher, de um modo muitas vezes um pouco delirante, que passa pela imaginação e pelo discurso. A maturação que deve operar a partir do encontro sexual não é de forma alguma aquela do eu ou do narcisismo, mas aquela da relação com o próprio objeto.

O objeto é, de fato, o que vai servir à separação do sujeito e do Outro. Para Freud, não se trata tanto para o adolescente de se separar do objeto, mas de utilizar um objeto “exterior” para se separar do Outro, o objeto a, objeto que deve ser distinguido da exterioridade “realista” do objeto. A utilização desse objeto passa por um certo luto do objeto edípico, como do objeto parcial, ou seja, dos objetos tais como eles existiam anteriormente para o sujeito. Na perspectiva freudiana, existe uma exigência social que permite a separação. Na perspectiva de Lacan, a sociedade vem em segundo lugar em relação ao efeito dos modos de discurso que servem para regular o gozo. Um dos modos no qual o gozo contemporâneo se distribui é o objeto dito mais-de-gozar. A sociedade vende produtos mais-de-gozar que consomem os adolescentes. Esses objetos de consumo vão entrar em concorrência com outros objetos e outras satisfações enodando fantasias e usos regressivos do objeto e saturando, por vezes, o local e o uso possível do objeto separador para o sujeito.

Para Lacan, a adolescência é por excelência o fato de que o sujeito passa da posição infantil de desejado à posição de desejante. Como criança, o adolescente certamente foi desejado ou não desejado, mas não lhe pedimos tanto que seja desejante. A partir do momento em que ele é adolescente, ele é convocado a ser desejante ou mais ainda a se propor “como um desejante”. No seminário A Angústia, Lacan precisa: “Propor-me como desejante, eron, é propor-me como falta de a” (LACAN, 2005, p. 198). Vemos que o objeto separador não é o objeto que dá as bases ao ego, mas que ele é o que produz um desejo, a partir do momento em que “eu me aproximo como desejante”, como falta de objeto.

Por exemplo, a jovem que, no desejo do rapaz é um pequeno a, poderá suportar esse desejo sem muita angústia se ela puder verificar que ela também não é “somente isso”, isto é, que ela fez um pouco o luto de ser esse objeto. O rapaz poderá também encontrar uma jovem, que é um pequeno a, não tanto porque ela é pequeno a, mas porque ela é o pequeno a que falta a ele. Trata-se aí, para o rapaz, de se aproximar como desejante, como “menos a”.

É preciso, portanto, uma queda do gozo da fantasia onde o sujeito se percebe como objeto para que se crie um desejo eficaz. O que constitui o desejo é uma sucessão de encontros do objeto, encontros que produzem um certo número de lutos. Cada vez que o sujeito encontra o objeto e que “isso falha”, o que é frequente e quase sempre certo, produz, no luto, um desejo. O desejo está ligado ao fato de se ter perdido o objeto numa experiência de amor real e não na fantasia onde o objeto subsiste intocado. As aventuras amorosas adolescentes são, portanto, extremamente formadoras do desejo. Os adolescentes têm aventuras curtas e múltiplas e é exatamente o que é necessário para eles. Há sempre exceções. O amor produz alguma coisa. É uma grande ideia da psicanálise: o amor é produtor, produtor de desejo e produtor de um novo tipo de objeto. Assim, a transferência como amor produz uma nova relação com o objeto, mas também um novo tipo de objeto que é, para Lacan, o objeto causa do desejo. É por isso que ele coloca que o amor é o que “permite ao gozo condescender ao desejo” (LACAN, 2005, p. 197). Lacan sempre se opôs à ideia ingênua da maturação ou da evolução.

A partir daí, percebemos que os amores que valem são também frequentemente amores que acabam. É a opinião de Marguerite Duras. Como é que sabemos que um amor acaba? Sabemos que um amor acabou quando começamos a amar algum outro. É nesse momento, entre um amor que se apaga e outro que nasce que tocamos o encontro do objeto, de um objeto em posição de causa. Podemos mudar de amor também, passamos de um amor de um certo tipo para outro de um outro tipo. É o que se passa na adolescência. A adolescência é mudar de amor. É por isso que a adolescência é uma clínica do amor; a questão é saber: há um amor adulto?

No final do Seminário A Angústia, Lacan propõe que o adulto é aquele que não ignora a causa de seu desejo. Seria então, para Lacan, o produto de uma análise. Talvez a psicanálise pudesse ajudar para que saiamos hoje dessa adolescência retardada que é também uma adolescência generalizada, proposta a todos. Isso supõe que compreendamos a lógica de um objeto a que participa da erótica do tempo, tal como o mostrou Jacques-Alain Miller (2000). Isso teria também o efeito positivo de acabar com o apetite inextinguível de identidade, porque a partir do momento em que o sujeito conhece a causa de seu desejo, é ela que o autoriza; não é sua identidade, ainda que ela seja forte, que lhe dará acesso a ela.

 

Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Márcia Bandeira

 


Bibliografia
BAUMAN, Z. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. RJ: Jorge Zahar Editor, 2004.
BERNFELD, S. Über eine typische Form der Männlichen Pubertät. Wien: Imago, 1924, BD.IX, S, p. 169-188.
BLOS, P. Les adolescents. Paris: Stock, 1967, esgotado.
BLOS, P. Prolonged male adolescence: The formulation of a syndrome and its therapeutic implications, American Journal of Orthopsychiatry. XXIV, 1954.
DEUTSCH, H. Problemas psicológicos da adolescência. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
ERIKSON, E.H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FREUD, A. Adolescence, The Psycoanalytic Study of the Child. New York: International Universities press, 1958, Vol. XIII.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
LACAN, J. O Seminário. Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005
MAROHN, C. R. A re-examination of Peter Blos’s concept of prolonged adolescence, Adolescent Psychiatry. 1999. Disponível em http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3882/is_199901/ai_n8851397/
MILLER, J-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Latusa – Escola Brasileira de Psicanálise, 2000.
YONNET, P. Le recul de la mort. Paris: Gallimard, 2006.
WINNICOTT, D. W. “L’adolescence”. In: De la pédiatrie à la psychanalyse. Paris: Payot, 1969.

Philippe La Sagna
Philippe La Sagna – psicanalista, AME da ACF, NLS e AMP. E-mail: plasagna@free.fr



A Iniciação Na Adolescência: Entre Mito E Estrutura

DOMENICO CONSENZA

FOTO: DURAMADRE, “UM CORPO INEVITAVELMENTE INTERCONECTADO”. SEBASTIÁN ARPESELLA.

A Adolescência, Momento De Crise?

Atualmente, a ideia da adolescência como momento de crise estruturante na experiência do sujeito é questionada. O debate interroga tanto a dimensão de corte, de descontinuidade em relação à experiência infantil, quanto o alcance emancipador e separador para o jovem do modo de construção do laço com seus pais. Segundo diversos autores do campo da sociologia e da psicologia, é particularmente a adolescência, em nossa época, que torna problemática a noção de crise da adolescência. O modo de vida dos adolescentes de hoje colocaria em evidência um “analfabetismo introspectivo” (FRANCESCONI, 2004, p. 168), “um hedonismo moderado”, um conformismo e um pacifismo que não combinam com a imagem codificada do jovem rebelde, contestatório, da tradição. Nessa perspectiva, a leitura psicanalítica da passagem à adolescência tende a ser reconduzida a uma variante contemporânea da representação romântica do processo de formação do jovem, reduzido a um mito: a adolescência como Sturm und Drang (OFFER, D. e SHONERT-REICHL K. A, 1992), tempestade e ímpeto, cuja leitura freudiana em termos de remanejamento da economia pulsional não seria senão uma sutil reformulação no campo clínico.

Além da apreciação que podemos dar a essa leitura, o que é importante é a questão que pode resultar para os psicanalistas quanto ao estatuto da adolescência e aos efeitos da transformação que as mudanças histórico-sociais podem produzir nela.O que acontece, de fato, com a adolescência na época do Outro que não existe? Como os adolescentes de hoje regulam o encontro com o real do sexo e da morte? Isso, enquanto a operação de interdição e de véu sustentada pela função paterna, mostra, neste momento de nossa civilização, os sinais de um declínio progressivo. Como é que eles se organizam nesse encontro com o real sem poder contar, em certos casos, com a relação estruturante do Nome-do-Pai, com sua função de orientação do Ideal do eu e com sua ação de regulação humanizante do gozo? Como é que eles iniciam um movimento de separação, quando é o próprio Outro social que lhes ordena a gozar sem limite, isto é, a não se separar? Esta é, de fato, uma questão que pertence ao registro ético e clínico que o nó da adolescência contemporânea traz hoje para nós.

A Sexualidade Na Adolescência:
Da Passagem Da Puberdade À Iniciação Sexual

O problema se situa na relação do adolescente contemporâneo com a sexualidade como pedra angular de seu desenvolvimento. Com o real do sexo no auge da passagem da puberdade, Freud colocou a questão essencial à qual o sujeito adolescente procura responder. Nesse sentido, a adolescência se apresenta para a psicanálise, segundo a fórmula eficaz de Alexandre Stevens, como “sintoma da puberdade” (STEVENS, 2004, p. 28). Trata-se, para o sujeito adolescente, de situar-se numa posição desejante que lhe seja própria em relação ao despertar pulsional que atravessa o seu corpo durante a puberdade. À esta exigência responde ativamente, após a passagem da puberdade – aquela do ciclo menstrual para a menina e da ejaculação para o menino –, o tempo lógico da iniciação sexual para o adolescente. Ele é então introduzido no encontro com o gozo na relação com outro sexo, que lhe dá abertura à experiência e à questão da relação sexual.

Em seu prefácio a “O despertar da primavera”, de Wedekind, Lacan formula dois tempos essenciais desse processo, que subtraem a experiência do adolescente de um linearismo psicológico gradual, que faria da iniciação sexual o tempo de realização necessário para a passagem da puberdade à adolescência. Antes de tudo, ele introduz a eminência do inconsciente do sujeito como dimensão que, através do sonho, encena a relação sexual do adolescente com o parceiro: “sem o despertar de seus sonhos” (LACAN, 2003, p. 557), os meninos não se preocupariam com o que significa para eles fazer amor com as meninas, escreve Lacan. O enigma que constitui o inconsciente do sujeito entra assim em jogo, em pleno processo de iniciação sexual do adolescente. No fundo, é um primeiro tempo lógico desse processo: a elevação da relação sexual ao nível do inconsciente, que o faz existir para o sujeito numa representação singular, imaginária, como enigma, num quadro fantasmático ou que dá lugar à fantasia. O primeiro tempo é então aquele em que, para o adolescente, há relação sexual, que é representável numa cena que o inclui. Em segundo lugar, Lacan esclarece em que consiste o nó real que uma tal experiência iniciática revela ao adolescente, definindo-o como verdadeiro princípio da iniciação: “Que o véu levantado [sobre o mistério da sexualidade] não mostra nada” (Ibidem, p. 562). Outra maneira de dizer que “a sexualidade [faz] buraco no real” (Idem). Nós podemos situar aqui o segundo tempo lógico do processo de iniciação sexual na adolescência: aquele no qual o jovem adolescente encontra, em suas primeiras vicissitudes da vida sexual com seus parceiros, a inexistência estrutural da relação sexual como experiência que faz trauma para ele.

É esse segundo tempo durante o qual o adolescente experimenta que na relação sexual o gozo é irredutível e não faz relação. Esse tempo de “não há relação sexual” está ligado, estruturalmente, ao primeiro tempo, durante o qual, ao contrário, a relação sexual existe, é representável para o sujeito e funciona como um véu inconsciente do buraco da não relação. É exatamente nessa tensão dialética entre o que leva o adolescente a fazer existir a relação sexual (T1) e o encontro traumático com sua inexistência (T2), entre o tempo do véu e o tempo do trauma, que se estrutura a iniciação sexual do adolescente.

Há Iniciação Sexual Do Adolescente Contemporâneo?

Não há como não sentir a perda do véu em torno do enigma da sexualidade na relação do adolescente contemporâneo com o sexo. Lacan (2001) sublinha isso, apontando a dimensão pública do levantamento do véu, no mundo atual, em torno da questão da puberdade. O efeito de uma tal operação que anda junto com o declínio da função paterna pode ser identificado, tal como observou Gilles Lipovetsky (2007) – citado num artigo de Serge Cottet (2006) –, no “desencantamento do sexo” (COTTET, 2006, p. 71) pela banalização da liberdade sexual (Idem), na “indiferença” (LIPOVETSKY, 2005, p. 53) e na “apatia” (Idem) amorosa da maioria dos adolescentes contemporâneos. Essa dificuldade para que o sexo faça enigma para o adolescente contemporâneo testemunha um impasse no processo de sintomatização da própria puberdade, aposta fundamental para a psicanálise na experiência da adolescência.

Nós podemos situar, antes de tudo, uma dificuldade do adolescente contemporâneo em se colocar no tempo T1 da iniciação sexual, isto é, no encontro do sujeito com o sexo como enigma inconsciente representável numa “Outra cena”. O primeiro nível de dificuldade para o adolescente de hoje consiste em fazer existir a relação sexual, fazer existir um Outro do Outro, num mundo que se caracteriza por um fechamento substancial – quando não é uma rejeição – do inconsciente, condição que não permite ao sexo adquirir para o sujeito um valor enigmático. Mas em segundo lugar, essa ausência de estruturação do sexo como representação inconsciente traz prejuízos ao modo de encontro, para o adolescente, do tempo T2, aquele da iniciação como trauma da inexistência do Outro do Outro. De fato, como sublinha Jacques-Alain Miller (2005), sem véu, sem ideal, não há trauma subjetivável.

Como é que o adolescente pode realizar sua vida com sua própria iniciação subjetiva nas condições atuais, em que a inexistência da relação sexual, a ausência de um Outro que funcione como garantia se apresenta como um dado que se propaga socialmente como uma verdade consubstancial ao niilismo de hoje?

Os supostos distúrbios de conduta na adolescência, as práticas compulsivas caracterizadas por frequentes passagens ao ato, típicas da adolescência, e mais ainda, na adolescência contemporânea, apresentam-se, sugere Phillipe Lacadée (2011), como fracassos e alternativas ao processo de estruturação de um sintoma no sentido freudiano do termo, impasse no trabalho de nomeação do real inominável. Para o adolescente, esses distúrbios podem, entretanto, em muitos casos, se revestir de um valor paradoxal, aquele de uma tentativa desesperada de fazer existir a relação sexual para construir um Outro do Outro e encontrar uma via de acesso à sexualidade. Cabe ao analista permitir aos adolescentes colocar em palavras essa função incluída nos seus atos desregrados, condição preliminar para uma subjetivação. E de levá-los a transformar seu sintoma em elemento não generalizável, mas, ao contrário, fantasmatizável.

O problema dos adolescentes de hoje quanto ao sexo se apresenta então como invertido em relação às épocas anteriores. De fato, não se trata para eles de conseguir inicialmente levantar o véu que envolve o mistério do sexo depois de tê-lo construído inconscientemente. Mas trata-se, antes de tudo, de introduzir um véu, de permitir a realização de uma fantasmatização que limite e torne suportável a errância do jovem adolescente exposto, sem mediação alguma, ao objeto inominável que está em jogo na relação entre os sexos. É somente assim que se tornará possível, através do trabalho de nomeação, aproximar a inexistência da relação sexual como trauma subjetivável, preservando-se, assim, de recair nas derivas do sem-limite próprio da adolescência contemporânea.

Traduzido do italiano por René Fiori com a colaboração de Monique Dellius.

 


Bibliografia:
COTTET, S. “Le sexe faible des ados: sexe-machine et mythologie du coeur”. In: La Cause Freudienne, Nº 64. Paris: Navarin/Seuil, oct. 2006.
FRANCESCONI M. “Non piu non ancora. Una reflessione psicoanalitica sul perturbante del crescere in adolescenza”. In: BARONE L. (a cura di) Emozioni e disagio in adolescenza, Milão: Unicopli, 2004.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio : ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra capa, 2011.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2003.
LIPOVESTKY, G. A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, São Paulo: Manole, 2005.
LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007
MILLER, J.-A. Effets thérapeutiques rapidez em psychanalyse. La conversacion de Barcelone. Paris: Navarin, 2005.
OFFER, D. and SHONERT-REICHL K. A., “Debunking the Myths of Adolescence: Fondings from Recent Research“. In: Journal oh American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 31, 1992.
STEVENS, A. “Adolescência como sintoma da puberdade“ . Curinga, nº 20. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. Novembro de 2004.



Almanaque on-line entrevista – Fernanda Freitas, Vinicius Viana, Jaqueline Luiza

FERNANDA FREITAS, VINICIUS VIANA, JAQUELINE LUIZA

Entrevista Com Jovens Estudantes

“A rua é nossa, e eu sempre fui dela”

No final do ano de 2015, alunos das escolas estaduais de segundo grau do Estado de São Paulo iniciaram um movimento contra a reorganização da rede de ensino estadual, feita de forma autoritária pelo governo paulista, que pretendia fechar 93 unidades de ensino escolar.

Segundo o governo de São Paulo, um dos objetivos é separar as escolas para que cada unidade passe a oferecer apenas aulas de um dos ciclos da educação (ensino fundamental 1, ensino fundamental 2 ou ensino médio) a partir do ano de 2016.

A oposição à proposta do governo paulista mobilizou os jovens secundaristas, que se organizaram para buscar soluções. Inicialmente, os estudantes procuraram o diálogo com as autoridades estaduais. Sem obter resultado, os jovens iniciaram uma jornada de lutas, que incluíram passeatas, resistência à violência policial, ocupação de cerca de 190 escolas e outras formas criativas de atuação política.

O movimento recebeu amplo apoio da sociedade, tendo à frente outros estudantes de todos os níveis de vários estados brasileiros, intelectuais, artistas de todas as áreas da cultura, lideranças religiosas, movimentos sociais, jornalistas independentes, etc.

A explosão dos adolescentes paulistas pegou de surpresa todo o país, pois o cenário aparente indicava forte apatia política da juventude ou adesão às visões individualistas do mundo. O radar social não apontava nenhuma possibilidade de um movimento de massas movido pela solidariedade na cidade mais rica e com maior centro de consumo da América Latina.

O movimento secundarista apresentou sinais contrários aos da leitura convencional. Os jovens revelam que têm opiniões diferentes, muita vontade de se fazer ouvidos e pretendem fazer valer seus desejos e direitos, entre eles, o de estudar. Ao se posicionarem como “senhores” de suas escolhas, eles acabam por despertar muitos de sonhos adormecidos.

O Almanaque entrevistou, via WhatsApp (o canal de comunicação da juventude), algumas lideranças dos secundaristas paulistas que participaram do movimento que atraiu atenção mundial. O objetivo das conversas com esses jovens foi apostar que eles podem transmitir à sociedade uma forma particular (deles) de “se virar” com a violência e verificar como é possível construir soluções que indicam um novo modo de fazer política, que abre mão, inclusive, dos grandes lideres.

Qual É A História Do Movimento, De Onde Ele Parte?

Fernanda Freitas, 17 anos. Escola Estadual Diadema (Primeira a ser ocupada).

 

 

A história surge por conta do projeto de reorganização escolar, que previa fechar 94 escolas, além de demitir professores e fechar também períodos. Recebemos a noticia em setembro e, desde então, nossa mobilização começou a fim de barrar a reestruturação.

Vinicius Viana, 18 anos, Sorocaba. Conclui ensino médio na Escola Técnica Rubens de Faria e Souza e é diretor do Grêmio da União Sorocabana dos Estudantes Secundaristas.

 

 

O movimento secundarista sempre esteve ativo, sempre foi uma luta intensa dos estudantes, e a UBES mostra isso com toda sua jornada de mais de 70 anos de história… Soubemos da reorganização e logo começamos a fazer nossos atos contra esse tipo de atitude autoritária, vinda do governo estadual de São Paulo. As ocupações em Sorocaba começaram em novembro, na escola Lauro Sanchez, a primeira ocupada na cidade. As ocupações partiram dos estudantes, com apoio da USES (União Sorocabana dos Estudantes Secundaristas), entidade de representação máxima dos estudantes secundaristas de Sorocaba. Como o MC Guimé já diz em uma de suas músicas, “a rua é nossa, e eu sempre fui dela”. O movimento estudantil sempre ocupou as praças e ruas, e, dessa vez, mostramos coragem ocupando as escolas.

Jaqueline Luiza dos Santos, 17 anos, ex-aluna do terceiro ano da Escola Ezequiel Machado Nascimento, cursa hoje a Faculdade de Sorocaba

 

 

O movimento secundarista que ocorreu em São Paulo em novembro e dezembro de 2015 foi basicamente criado pela revolta dos estudantes de todas as escolas públicas de São Paulo. Em relação à reorganização mais “desorganizada” que já vimos, o governador Geraldo Alkmin mexeu numa ferida séria ao tomar tamanha decisão de uma forma nada democrática, e fez com que os estudantes se rebelassem contra isso, unindo forças para barrar a reorganização e mostrar para a sociedade que o movimento só estava adormecido.

Como o movimento se organiza e se sustenta/mantém? (como escolheram as lideranças, como elaboraram cartilhas, como convocam reuniões, qual a importância dos meio digitais)Fernanda – Durante o processo de mobilização contra a reorganização, sentimos a natural necessidade de nos unir. Dessa forma surgiu o Comando das Escolas em Luta, que consiste em um grupo autônomo de estudantes, e surgiu no período de ocupações que vem nos ajudando para que a ideia de luta seja unificada.

Esse grupo Comando das Escolas em luta é forma do por quem? Quem formou? Como foi escolhido? Quem faz parte dele? Pois você disse que fazem parte dele, então entendo que é um grupo à parte

Dentro de nosso movimento não há lideranças, definitivamente. Aliás, isso foi algo que, durante o processo, prezamos sempre em ressaltar. O que aconteceu foi que, divididas as funções, alguns ficaram responsáveis por conversar com a mídia e, devido a isso, ficaram mais expostos, o que pode ter dado a entender que lideravam o grupo, mas isso não acontece, não temos hierarquia. Ainda não temos cartilha do próprio Comando (Comando das Escolas em Luta), mas é uma ideia futura. Convocamos reuniões mensais pela nossa página do Facebook, que carrega o mesmo nome, e lá divulgamos o evento, para que possa alcançar mais estudantes. Local e horário das reuniões são sempre decididos na reunião anterior, e assim seguimos. O meio digital nos ajuda a alcançar pessoas distantes e a propagar notícias; tem ajudado muito.

Vinicius – Aqui em Sorocaba conseguimos mandar alguns alunos ocupados para as assembleias gerais de São Paulo, mas fizemos muitas reuniões com os ocupantes aqui em Sorocaba mesmo.

A adesão tão grande dos estudantes é um reflexo da insatisfação com o governo do PSDB, da insatisfação com o sucateamento da educação.

Jacqueline – O movimento é muito bem organizado, eu diria. As lideranças são escolhidas de forma democrática e bem pensadas, as cartilhas sempre são criadas por pessoas envolvidas que têm experiência com Photoshop e programas de edição, sempre procurando atingir o publico alvo, que, no caso, seriam os estudantes. As reuniões sempre são convocadas pelas bancada do movimento, ou seja, presidentes, secretários, etc. E o meio digital é extremamente importante, pois a juventude atual está sempre conectada nas redes, como Twiter, Facebook e diversas outras redes sociais. Sendo assim, a importância é enorme, pois lá podemos dar mais visibilidade ao movimento.

O Que Significa O Ato De Ocupar As Escolas, As Ruas?

Fernanda – Acredito que, quando ultrapassarmos as linhas de nossas casas e o conforto todo, mostramos que nos importamos com a causa e queremos ver mudanças. Claro que eu não gostaria que fosse necessário ir às ruas para protestar por algo que é nosso por direito, mas como infelizmente temos que fazer, acho justo.

Vinicius – Ocupar os espaços públicos é um dever de toda sociedade, seja por mais cultura, educação… O movimento sempre buscou por educação, tivemos conquistas recentes muito importantes, como a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), com 10% do PIB e 75% dos royalties do pré-sal destinados à educação.

Jacqueline – Para mim, o ato de ocupar ruas e escolas significa mostrar a força da juventude e a revolta com diversas decisões tomadas de formas nada democráticas. Também significa unificar cada vez mais pessoas que cultivam o mesmo pensamento, o mesmo sentimento de revolução e de não comodismo com a situação atual de nossa educação, saúde, etc. Vai muito além de apenas sair e fazer barulho, como uma parte da sociedade infelizmente vê. Nós estamos atrás de mudanças, focando na melhoria e no bem-estar de toda a sociedade.

O Que Pretende O Movimento E O Que Conquistou?

Fernanda – O movimento, desde o ano passado, tem conseguido alcançar muitos estudantes. Revertemos o processo de reorganização, mesmo que temporariamente, e agora nosso objetivo é continuar a formação do “Comando das escolas em luta”; lutar dentro das escolas, como grêmios, e relatar nossa luta nas outras escolas, a fim de incentivar mais jovens para a luta. Estamos também estudando a corrupção que está envolvendo as merendas. Portanto, este ano vai ser de muita luta.

Vinicius – No ano passado tivemos, talvez, uma das maiores vitórias, que foi barrar a reorganização. Conseguimos fazer com que ela não fosse realizada de imediato e que tivéssemos mais um ano para “dialogar”, como o próprio governador disse.

Queremos uma escola livre de opressões, com mais cultura, democracia, esportes, eleições diretas para diretor; queremos uma escola com a cara da juventude, que não sirva apenas para nos transformar em massa de manobra; queremos que a escola forme seres humanos pensantes e críticos, que saibam os seus direitos.

Jacqueline – O movimento pretende crescer cada vez mais e mostrar para a juventude que podemos sim fazer a diferença se nos unirmos. A conquista com as ocupações de dezembro foi incrível e emocionante, pois além de barrarmos o tamanho retrocesso que seria a reorganização, nós derrubamos o Secretário da Educação, Herman Voorwald. Em Sorocaba, também conquistamos a primeira Diretoria de Ensino ocupada no Brasil, trazendo assim ainda mais força para o movimento e para as ocupações.

O Que Está Por Vir?

Vinicius – A nossa luta é diária, é passando de sala em sala, nos reunindo em praças, convocando assembleias com os estudantes e usando das redes sociais (como a página da USES no Facebook) para alertar e conscientizar a população.

Jacqueline – Esperamos que em 2016 possamos abrir esse canal de diálogo com o governador e que o que ele falou seja de fato cumprido, para que os estudantes, pais, professores e toda a comunidade possam dizer o tipo de reorganização que querem, para criar, de forma democrática, um projeto. Os estudantes não vão aceitar atitudes ditatoriais. Nós sabemos o que queremos, e o primeiro passo é sermos ouvidos. Não vamos calar nossa voz.

Muita coisa ainda está por vir, mas isso todo mundo verá futuramente. Posso te garantir que o movimento cresce cada dia mais.

Para Além De Barrar Os Abusos De Poder E Da Burocracia Governamental, Quais As Propostas Do Movimento Para A Educação No Brasil?

Fernanda – As nossas propostas são muito amplas, na verdade. No geral, queremos uma escola com o sistema diferente, mudar a educação de dentro para fora, por isso vamos lutar, unidos, em cada escola. Queremos que mais recursos sejam investidos na educação, professores mais bem pagos e menos alunos por sala. Uma democracia maior dentro das escolas, a participação ativa de alunos e de pais. E estaremos lutando aos poucos por cada causa. Um processo longo e demorado, mas do qual veremos resultados positivos em breve.

Jacqueline – As propostas são bem abrangentes, desde melhorias na educação em sala até melhorias no formato de ensino da rede pública. Queremos trazer maior diversidade de esportes para dentro das escolas e a discussão da diversidade de gênero, que já devia estar sendo discutida em sala há muito tempo. Tudo o que mais desejamos é deixar a escola com “a cara” do estudante, um lugar agradável para se estudar e aprender.

O Que Fez Tantos Jovens Aderirem Ao Movimento?

Fernanda – Não é difícil entender a mobilização de tantos jovens desde o ano passado. O projeto de reorganização queria fechar nossas escolas, ótimas escolas, aliás, e a ameaça real motivou a luta de cada aluno. Perder além da escola, mas a chance de ver mais estudantes estudando nelas nos deu vontade de lutar cada vez mais. Muitas pessoas sairiam prejudicadas. Somos jovens diferentes, orientação sexual diferente, de cores diferentes e vidas diferentes também, mas nos unimos pela mesma causa, causa que fez esquecermos as diferenças e lutar contra o governo.

Jacqueline – Como eu havia citado acima, o que fez esses jovens aderirem ao movimento foi a revolta e a falta de voz dentro de suas escolas, dentro da sociedade, dentro do padrão em que vivemos hoje.

Quem São Esses Jovens?

Jacqueline – Esses jovens são nada mais nada menos que estudantes que achavam que não tinham voz influente nenhuma em seu meio estudantil, mas nós tratamos de mostrar para eles que eu, todos eles, temos voz SIM, e somos capazes de fazer a mudança em união.

Qual É A Sua História Nesse Movimento? Como Se Envolveu? O Que Faz Hoje Nas Ocupações? Qual A Importância Dele Para Você?

Fernanda – Minha experiência como militante começou ano passado mesmo. Eu já havia apoiado a greve dos professores, mas pude participar mais ativamente dessa luta contra a reorganização. Desde o início, quando havíamos recebido a notícia do projeto, eu já me reuni com alguns estudantes da minha escola e pensamos em o que fazer para não deixar nosso ensino médio fechar (melhor ensino médio da cidade de Diadema). Primeiro, começamos organizando pequenos atos no centro da cidade para chamar a população para essa causa, depois seguimos até a Câmara dos Vereadores de Diadema, onde pedimos o espaço para participar de uma plenária. Chegando à plenária, conseguimos o apoio dos vereadores para que eles nos representassem futuramente. Não dando resultado, pensamos em fazer um abaixo-assinado. Com muita luta, conseguimos 10 mil assinaturas contra a reorganização em Diadema. Fizemos também o abaixo assinado on-line e conseguimos quase quatro mil. Levamos essas assinaturas até a ALESP (Assembleia Legislativa de São Paulo), na última audiência que teve sobre o assunto, e conseguimos entregar nas mãos do secretário Herman (secretario de educação naquele período). Ele assinou, mas também não obtivemos resposta. Passados quase dois meses de protestos e idas à Vara da Infância e Juventude estudando o caso, vimos que nada tinha dado resultado. Daí que surgiu a ideia da ocupação. Então, minha participação vem de muito antes, tenho lutado contra esse projeto antes das ocupações. Algumas pessoas não sabiam que, antes de ocuparmos, havíamos lutado de outras formas.

Posso dizer que esse processo me fez crescer muito como pessoa, eu amadureci e aprendi muito, me sinto mais politizada e mais humana, entendo causas como o feminismo graças a várias conversas e atividades culturais que tivemos sobre isso dentro das ocupações. Submeter-me a riscos e encarar com toda a seriedade me fez perceber que não podemos julgar ninguém pela idade. Eu tive que ter muita responsabilidade, era porta-voz e mídia dentro da minha ocupação, então não podia brincar com isso, o que me fez ter ainda mais compromisso com a causa. O amadurecimento foi inevitável, carrego as lembranças e a luta eternamente. Esse fato histórico mudou minha vida.

Vinicius – Minha história no movimento estudantil completa dois anos. Conheci o movimento no Congresso da União Paulista dos Estudantes Secundaristas em 2014, e desde então venho lutando por uma nova educação. O que mais me motiva é saber que há tantas pessoas indignadas com as mesmas coisas que eu, que anseiam por uma sociedade justa, onde o professor seja valorizado e que os resquícios da ditadura militar sejam deixados para trás. Onde o estudante não leve bala de borracha ou gás lacrimogênio, onde a juventude negra e periférica possa viver sem medo da PM, possa usufruir dos espaços de sua cidade. As ocupações surgiram como algo novo para a grande maioria das pessoas que, independente da participação ou não do movimento, nunca tinham vivenciado algo do tipo.

Jacqueline – Eu nunca havia participado de nenhum movimento estudantil, me envolvi profundamente no movimento durante as ocupações, me interessei e quis fazer parte cada dia mais. A importância é extrema. Eu me sinto em casa quando estou com o pessoal do movimento estudantil e com todas as pessoas que ocuparam comigo; somos uma família. E minha vida teve diversas mudanças desde então. Tenho uma visão mais ampla de tudo: política, gênero, cultura, tudo ficou muito mais claro e nítido desde então, e eu nunca me senti tão feliz e realizada na minha vida. Meu lugar é dentro do movimento, lutando por educação, lutando pelos jovens, lutando pela união.




Solidão Do Ser Falante

LAURE NAVEAU

FOTO: ATIVIDADE DE CHRISTINA FORNACIARI, “INVISIBILIDADE SOCIAL”. JOVEM DO PROGRAMA CAPUT.

Costuma-se dizer que a adolescência é uma passagem, um momento de conflito. Freud a nomeou puberdade, e Lacan a evocou em termos de real e de sonho. O poeta a chama de delicada transição, o psicanalista fala de mal-entendido, de despertar, de exílio, tentativas de nomear o que sobressai de um real que escapa às palavras e que pode levar a perder seu caminho. Acontece de um psicanalista ser chamado de passador do real da adolescência, e dessa inscrição em um outro discurso ter consequências.

Há E Não Há

A sexualidade não embaraça apenas os adolescentes, e se as coisas do sexo se tornaram mais acessíveis, se o discurso evoluiu – pela suspensão do recalque, em que a psicanálise tem sua parte –, o encontro com o outro sexo permanece um enigma: nenhuma resposta codificada convém, ele escapa a qualquer norma. O exílio é estrutural. O que se chama sexualidade é o que, para Lacan, faz um “furo no real”, e “como ninguém escapa ileso, as pessoas não se preocupam com o assunto” (LACAN, 2003, p. 558): é uma maneira de dizer que “não há relação sexual”.

Ao incidirmos a ausência de relação sexual sobre o adolescente, colocamos o destaque sobre o tempo de incerteza identificatória que lhe é próprio, tempo em que a separação da criança ideal que ele teria sido está em jogo. O que está em causa é o que se pode dizer, ou não se dizer, do mal-entendido que habita aquele que fala. O semblante do amor é a via que, com maior frequência, torna possível esse acordo entre os sexos. Mas se a sexualidade é causa de embaraço, “o amor é um labirinto de mal-entendidos” (MILLER, 2008). A psicanálise coloca, então, em cena, um paradoxo: Não há relação entre os sexos, por um lado; por outro, há uma relação possível ao corpo, ao falo, ao sintoma, ao gozo. Esse designador da existência revela, entretanto, ao mesmo tempo, um impasse lógico, aquele da solidão. É a tese lacaniana congruente com a primeira: a relação ao gozo isola, o gozo que há sublinha a não relação ao parceiro. A solidão está em jogo.

Jacques Lacan destaca particularmente a solidão como parceira da mulher, sobre o fracasso da união entre homem e mulher, a partir do gozo: “mesmo que se satisfaça a exigência do amor, o gozo que se tem de uma mulher a divide, fazendo-a parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira” (LACAN, 2008, p. 467). No Seminário A angústia, “o gozo do homem e o da mulher não se conjugam” (LACAN, 2005, p. 290), e, em Televisão, menção especial é feita sobre a maldição sobre o sexo (LACAN, 2003, p. 531), enunciada por Freud em O mal-estar na civilização.

Não há nenhuma fórmula matemática ou científica para escrever a relação sexual, mas, na língua, fórmulas românticas como “estava escrito” ou “foi fatal” tentam cifrar o que é da ordem da contingência. Lacan dirá mesmo que essas fórmulas acentuam a dimensão de semblante, de mascarada, de parada sexual “uma mulher só tem um testemunho de sua inserção na lei [fálica], […], através do desejo do homem” (LACAN, 2009, p. 65). O artifício do desejo do Outro dá sua inscrição ao sujeito. E, para o encontro, é preciso que uma mulher “caia bem”, diz Lacan, “que ela caia sobre o homem que lhe fala segundo sua fantasia fundamental, própria a ela” (LACAN, 1980, p. 16). Saber como cada um supre essa ausência, com o amor, com a fantasia – pois, esta, pode se escrever em uma fórmula – ou com o sintoma, é um dos pontos que está em jogo em uma análise.

O Feminino E O Tabu

O encontro de que se trata, no momento da adolescência, concerne o feminino na medida em que é a falta que está em jogo no feminino, o confronto ao que falta, para cada um dos dois sexos: o encontro amoroso não completa, mas descompleta, ele introduz a falta. Nessa perspectiva, é do lugar que um psicanalista poderá vir a ocupar em relação à falta que dependerá a possibilidade de ele se tornar ou não um parceiro que valha para um adolescente.

No texto de Freud sobre o “Tabu da virgindade” (FREUD, 1987, p. 175-192), é a mulher, inteiramente, que é tabu para o homem. Originalmente, escreveu Freud, o tabu foi colocado pelo homem primitivo que teme um perigo. A mulher, outra ao homem, estrangeira, incompreensível, é percebida por ele como inimiga. O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado pela feminilidade, e tem medo de se mostrar incapaz. O tabu é uma potência que se opõe ao amor pela mulher e que provoca um exílio entre os sexos.

A psicanálise intuiu, diz Freud, que

“a atitude de rejeição narcísica, misturada de desprezo, do homem em relação à mulher, deve ser atribuído ao complexo de castração e a influência deste complexo no julgamento feito sobre a mulher” (FREUD, 1987).

 A tese permanece válida ainda hoje, quando assistimos, no mundo inteiro, a um ódio real, religioso ou não, dirigido às mulheres. A outra face do tabu é a tendência da mulher de se defender de uma ferida narcísica que lhe seria infligida pela defloração.

Ferida ou desprezo, a questão se situa por isso, entre valorização e desvalorização, entre agalma e palea, ou seja, do ponto de vista do valor. Lacan dirá também que a mulher, visto que se quer falar dela, “on la dit-femme” (LACAN, 1983, p. 114), fazendo equivocar o dizer sobre a mulher com a difamação.

Na fase fálica da infância, descrita por Freud, existe apenas um órgão sexual válido: o falo. A novidade de Lacan é radical: o falo não é tanto um órgão anatômico real, mas, sim, um significante; o significante fálico que introduz uma função simbólica e lógica no inconsciente. O significante recoloca o véu do pudor sobre o órgão fálico desvelado por Freud, Aufhebung. O pudor é o afeto próprio à operação de simbolização, uma posição subjetiva em relação à função do falo que faz com que um homem e uma mulher não demandem e não desejem da mesma maneira.

Apenas passando pelos desfiladeiros do significante, nos diz Lacan, a sexualidade se constitui. A questão é então deslocada: não se trata mais de ter ou não ter o falo, mas de ser ou não investido, falicizado, pelo Outro materno.

No desenvolvimento ulterior da lógica lacaniana, se a captura do sujeito na linguagem implica que o sujeito apenas habita seu corpo se a linguagem lhe atribuir um, logo, o osso do embaraço sexual se situa na própria lalíngua, nisso que, da linguagem não pode se dizer, nisso que, “da sexualidade, faz furo”. É desse estofo que é tecida “a infernal mordaça sobre a boca” da Princesa de Clèves, tecido desse gozo que só pode ser dito entre as palavras e que deixa cada um em exílio. “Aceitação de sua ferida”, dizia Freud, “de seu exílio próprio à linguagem” prossegue Lacan, reinventando o falasser, o que, com efeito, estará implicado em uma análise.

Elise, A Ferida E O Exílio

Há quinze anos, recebi uma menina de quatro anos que acabara de perder seu pai e que demandava “ter” um psicanalista. Ela tinha escutado falar bem da psicanálise em sua família e, por isso, o acesso lhe foi facilitado. A análise transcorreu em três ocasiões, durante sua tenra infância, até uma primeira solução do luto. Ela a retoma em sua adolescência.

Colocada precocemente no trabalho do inconsciente, Elise soube localizar, tal como uma etnóloga, o lugar de esperança que fora colocada por seus pais, bem antes de seu nascimento, e também da desaparição de seu pai, na sequência de um drama vivido pelo casal. Ela ainda ocupava esse lugar de esperança, e de uma maneira redobrada para sua mãe, que ficou sozinha após a morte de seu marido e teve muita dificuldade em suportar isso. Ela pode ver, então, que faltava algo à sua mãe em função da desaparição de seu marido: ela não ficou preenchida por seus filhos e desejava outra coisa, para além deles.

Elise constrói, então, o mito de uma vida que se tornou complicada em função da ausência de um pai amado, ferida inaugural da criança que o pai abandona. Mas ela aprendeu a dispensar isso e a se servir do que ele lhe havia transmitido – seu amor – bem como um uso inventivo e artístico do lápis, que ela pôde constituir como um ideal para atenuar os efeitos do abandono. Ela pode também, por algum tempo, mobilizar seu avô para acompanha-la às suas sessões após a escola, tornar-se a melhor aluna de sua sala e conseguir queixar-se de suas colegas, com propósitos que revigoravam cruelmente a perda paterna e, ao mesmo tempo, lhe davam um estatuto de exceção.

Uma nova etapa iniciou-se em seguida para a criança transformada em jovem, e ela pediu para rever-me, por ocasião de sua entrada na adolescência, mais uma vez apoiada por sua mãe, que fazia análise e tinha encontrado um outro homem que contava para ela. A adolescência, logicamente, confrontava Elise ao encontro amoroso e a seu cortejo de mal-entendidos, assim como à rivalidade com as outras meninas. Em função da perda precoce de seu pai, que a levava sempre a “não ter confiança em si mesma”, ela procurava, nas sessões, o suporte fálico que lhe faltava, e a fazia perder o norte e hesitar em suas escolhas.

Então, ela retoma a palavra para expor as dificuldades nas quais mergulhava em situações diversas de sua existência, que podemos resumir em três pontos:

– Junto à família de seu pai, que lhe lembrava sem cessar, e sem consideração, a perda do pai falecido, Elise não sabe como manter a distância necessária sem receio de feri-los.

– Junto a seus amigos, que, a seu ver, parecem mais leves e mais à vontade do que ela própria com os semblantes na relação entre os sexos, ela descobre que sua relação precoce com a falta, que parecia fragilizá-la, lhe deu um pequeno “mais”: essa vontade de analisar e compreender as coisas de seu inconsciente.

– Junto a seu namorado, enfim, ela descobre que mantém uma relação fundada mais sobre a fraternidade que sobre a sexualidade, o que contribuía para criar um hiato entre eles. Ela decide se separar dele.

Mais uma vez, então, Elise escolheu encontrar as palavras para tentar fazer de seu sintoma, de sua “falta de confiança”, algo que a ajudaria a crescer. Para se separar da expectativa e do olhar muito opressivo de seu entorno – o de sua mãe, que continuava a contar com ela para reparar sua perda narcísica – e para encontrar seu lugar no discurso, ela se empenhou a reencontrar o ponto onde as palavras haviam falhado em nomear a coisa nova à qual ela se encontrava confrontada, do lado do sexual. Decidindo conversar com seu namorado para retificar a relação que lhe pesava, na qual ela experimentava às vezes tédio e apreensão, Elise alivia o peso de sua angústia de decepcionar o outro, uma angústia persistente que ela reconhece como um traço de sua infância. Sua relação ao bem-dizer lhe permite suportar o olhar carregado de censura que ela percebia nesse namorado, em função de seu distanciamento dele.

Pelo poder que ela dá ao fato de não ceder de seu desejo em sua enunciação, ela sai do luto e do medo do abandono do outro. Ela encontra sua língua, eu poderia dizer, e sua inibição em fazer ouvir sua voz baixinha para nomear o mal-entendido ao qual ela estava confrontada desaparece.

Mas se ainda lhe é difícil separar-se da relação ideal que mantém com sua mãe, Elise está decidida a entrar para uma Escola de Artes aplicadas. Assim, ela espera tirar proveito de seus dons artísticos e de sua criatividade, heranças de seu pai, que lhe foram tardiamente reveladas, ao mesmo tempo em que garantia sua relação ao bem-dizer. O nome do pai é, assim, reestabelecido.

 

Tradução: Cristina Drumond
Revisão: Ana Lydia Santiago

 


Bibliografia:
FREUD, S (1917). “O tabu da virgindade”. In: Contribuições à psicologia do amor III (Vol. 11, 2ª. Ed.). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
LACAN, J. “O aturdito”. In: Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005, p. 290.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 18 : De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2009.
LACAN, Jacques. “Le seminaire: D’écolage” 11 mars 1980, Ornicar ? n. 20-21 Paris: Lyse.
MILLER, J-A. “La psychanalyse enseigne-t-elle quelque chose sur l’amour?” Psychologie magazine, n. 278, octobre 2008.

Laure Naveau
Laure Naveau – psicanalista, AME da ACF, NLS e AMP E-mail: laure.naveau@wanadoo.fr



Sair Da Adolescência

HÉLÈNE DELTOMBE

 

FOTO: Conrado Almada.FOTO: CONRADO ALMADA.

Por muito tempo não se colocou a questão da adolescência, já que nós passávamos diretamente do estado de infans ao estatuto de adulto. Atualmente, constatamos que a adolescência se inicia cada vez mais cedo e se prolonga tardiamente. Há alguns anos um novo termo apareceu, o de adulescente, para caracterizar os que não conseguem sair.

A adolescência se tornou um fenômeno social estigmatizado por suas manifestações preocupantes: oposição, recusa, rejeição, marginalização, condutas aditivas. Os médicos generalistas se dizem hoje invadidos pelos problemas que os adolescentes impõem à sua volta.

Um uso excessivo é feito do termo adolescência. Um exemplo recente: em uma consulta para seu filho de seis anos, seus pais atribuíam as perturbações do filho a uma crise de adolescência muito precoce. Essa criança estava atormentada por pensamentos indesejáveis que lhe ditavam sua conduta, o impedindo de se submeter à autoridade dos pais.

Um Fenômeno De Civilização

Franz Boas, o antropólogo teuto-americano, foi o primeiro, em 1925, a pesquisar a adolescência. Sua hipótese indicava um fenômeno moderno, ligado à emergência das sociedades industriais incapazes de acompanhar os jovens até a idade adulta, lhes integrando à vida social, e queria verificá-la antes que os contatos entre as sociedades modernas e culturas tradicionais se multiplicassem.

Em 1928, uma de suas jovens estudantes, Margaret Mead, publicou os resultados de um trabalho intitulado Coming of the age in Samoa confirmando que a adolescência não é um momento de crise de valor universal, mas uma consequência cultural da evolução das sociedades: a jovem de Samoa é bem diferente de sua irmã americana, sua adolescência “não é de maneira alguma um período de crise e de tensão, mas o melhor período da vida”, ela tem poucas responsabilidades e os encontros entre adolescentes dos dois sexos sob as palmeiras são frequentes. Essa imagem do amor livre enfeitiçou os leitores.

Metapsicologia Da Adolescência

Mead foi criticada por ceder a uma premissa culturalista, mascarando a questão de que todo adolescente é levado a resolver, como Freud sublinha nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, indicando as origens das perturbações na adolescência durante as metamorfoses da puberdade (FREUD, 1980, p. 111). Dentre esses elementos, alguns são hoje particularmente significativos, como um “excesso de carinho dos pais” na primeira infância, que gera um adolescente “insaciável”, “temporariamente incapaz de renunciar ao amor, ou de se satisfazer com um amor mais contido” (Ibidem, p. 134). A busca pelo gozo é uma situação que se torna banal quando a criança é colocada no lugar de objeto a pelos pais, nesse contexto, estigmatizado por Jacques-Alain Miller, de “subida ao zênite social do objeto pequeno a” (MILLER, 2005, p. 11). Também é o caso quando o adolescente se arrisca em uma relação sexual com um parceiro, a presença de uma “pulsão parcial, que no curso da vida infantil já produziu um prazer excessivo”, “o processo sexual não pode continuar” (FREUD, op. cit., p. 118). Além disso, o sujeito se encontra dividido entre objeto de amor e objeto sexual, entre “duas tendências, a da ternura e a da sensualidade”, escreveu Freud (Ibid., p. 112). Buscando o objeto sexual, o adolescente se depara com o desejo de reencontrar o objeto original, o primeiro objeto de satisfação sexual. Esse objeto foi perdido no ponto em que a pulsão sexual se tornou auto erótica, e o adolescente tenta “reencontrar a felicidade perdida” (Ibid., p. 133). Um projeto impossível, já que o “objeto final da pulsão sexual não é mais o objeto original, mas seu substituto” (FREUD, 1987a, p. 171).

O tratamento analítico permite ao sujeito identificar suas dificuldades e encontrar uma solução, segundo a singularidade do desejo de cada um, mas não sem reconhecer com Lacan “que não há relação sexual”. Trata-se, com efeito, para cada um, de renunciar à ideia de que a relação sexual seria a saída aos conflitos e mal-entendidos que dividem o sujeito em seu ser.

Mal-Estar Contemporâneo

A consideração de Freud pelas dificuldades de todo adolescente não impede de dar razão aos trabalhos antropológicos mais recentes, que confirmam uma parte da hipótese de Franz Boas, segundo a qual as sociedades modernas reúnem características próprias a fazer da adolescência um período de tensões e angústia.

Freud, aliás, desenvolveu ele mesmo, em 1929, no Mal-estar na civilização, considerando que uma demanda maior é endereçada ao sujeito em nossas sociedades modernas do que nas sociedades tradicionais: “durante a evolução, a relação entre o amor e a civilização deixa de ser unívoca: o primeiro combate aos interesses da segunda que, por outro lado, o ameaça com dolorosas limitações” (FREUD, 1987b, p. 171).

A tensão entre família e civilização se torna ainda mais rude: “Essa hostilidade recíproca, continua Freud, parece inviável […] o afastamento da família, para todo adolescente, se torna uma tarefa” (Idem). Nesse contexto da civilização que a psicanálise pode intervir, como sublinha J.-A. Miller, frente à “necessidade de se desfazer o laço familiar. Fazemos uma análise para concluir esse rito de passagem ainda incompleto” (MILLER, 1992).

Alguns Sintomas Do Laço Social

Quando, nos anos 30, Jacques Lacan já sublinhava em Os complexos familiares que nós somos inexoravelmente confrontados ao declínio da função paterna, de acordo com um processo inerente às sociedades modernas (LACAN, 2001), afirmávamos, ainda nos anos 60, que o adolescente buscava “matar o pai” para se libertar da dominação familiar. Entretanto, o desapego da família não se resolve na oposição. A adolescência se tornou uma classe de idade na qual todos procuram apoio em seus semelhantes, através de identificações recíprocas, criando modos de vida. Os sintomas tomam uma nova forma, a dos sintomas do laço social que, por vezes, terminam em epidemia: alcoolismo, toxicomania, bulimia, anorexia, delinquência, suicídios… Modos de vestir e do comportamento marcadas pela rejeição dos adultos, acentuando um processo de marginalização.

O adolescente se encontra, assim, preso em um fenômeno de segregação social, que pode fixá-lo em uma posição de gozo que determinará seu modo de ser: “Sou toxicômano”, “Sou bulímico”… Ele não se situa mais como um sujeito com questões que precisam ser resolvidas, pior quando não é encorajado por seus próximos, facilmente iludidos pelo discurso sociológico sobre a adolescência, ao modo: “Ele é adolescente, com a idade isso passa.” Ora, trata-se de considerar o sofrimento expresso no sintoma, um pedido singular de dizer. Tal como J.-A. Miller formulou em seu curso, o parceiro do sujeito é o sintoma, formando com o sujeito “o casal do gozo” (MILLER, 1998). Na falta de resposta de um Outro, ele convoca um sintoma para fazer o Outro existir através dos significantes que ele sustenta em seu nó. A psicanálise pode permitir ao adolescente decifrar seu sintoma desde que ele encontre os meios de resolver o seu “não quero saber de nada”, que visa proteger seu modo de gozar.

Uma Demanda De Bem-Estar

É o problema que essa adolescente, Anne, de 17 anos, trouxe com ela quando entrou em minha sala aos tropeços, durante as primeiras consultas. Ela se assentava, fixava os olhos no teto e o sorriso extasiado exprimia o gozo que lhe tomava todo o seu ser, e, assim, em minha presença, ela se ausentava. Dominada por drogas pesadas, ela permanecia imóvel e muda por uma eternidade. Ela veio ao meu encontro em consideração ao amigo de infância que não suportava mais vê-la perdida, sem rumo, e lhe falou da sua análise começada há dois anos, insistindo para que ela me procurasse. Ela era, no entanto, incapaz de atender a esperança que ele tinha por ela, pois, ao contrário, ela me confiava o orgulho que tinha da sua vida marginal, seguindo seus amigos de errância pelas ruas, onde dormia por vezes.

Em seus momentos de lucidez, no entanto, ela era tomada de angústia com a ideia de não haver mais lugar algum para ela. Foi com o passar dos encontros, aos poucos, que ela pôde descobrir a importância da presença de alguém que esteja ali e que queira ouvi-la. Contou-me de maneira fragmentada que se drogava há muitos anos. Primeiro “baseados”, drogas leves, álcool e, posteriormente, drogas pesadas. Indicou-me sua preocupação com a necessidade de aumentar as doses e diminuir os intervalos entre o uso dos tóxicos; pois a sensação de falta era insuportável. Eu a escutava sendo cuidadosa e discreta, sem emitir julgamento. Corajosamente, Anne arriscou uma demanda: que eu a ajudasse a encontrar um bem-estar.

Não havia alternativa que a de deixar-me guiar por essa demanda paradoxal, insistindo para que me explicasse o que ela queria dizer com isso – encontrar o bem-estar –, confiando na palavra que permitiria aos significantes tomar a frente sobre sua vontade de gozo. O desejo do analista só pode encontrar seu caminho se articulando a essa busca, trata-se “de fazer do gozo uma função e de lhe dar sua estrutura lógica” (MILLER, 2007, p. 26). O menor sinal que ela me dava era uma ocasião para lhe interpelar, mas no início expressava apenas a vontade de “atingir o nirvana”. Essa demanda estava na lógica da sua fantasia, que ela colocava acima de tudo, inclusive do nosso encontro.

De onde lhe vinha essa vontade desenfreada de gozo? Ela tomou essa questão para si e, pouco a pouco, evocou lembranças, fornecendo, assim, a prova de que “antes de tudo o sintoma é o mutismo no sujeito supostamente falante” e que “é propriamente no movimento de falar que a histérica constitui seu desejo” (LACAN, 1973, p. 16). O intervalo do uso de tóxicos foi aumentando, a relação transferencial se estabeleceu.

A Busca Por Gozo Absoluto

Quando criança, ela observava a relação de seus pais, suas brigas, e não suportava nem a violência do seu pai sobre sua mãe nem a conformidade desta. Esse era o acordo sintomático de seus pais. A discórdia, portanto, representava para ela uma objeção à relação sexual; ela se perguntava o que os mantinha juntos. Ela os espiava à noite pela porta aberta do quarto deles, se deixando cativar pela cena primitiva. Da qual ela deduziu que o gozo sexual era o que fazia a relação sexual, desenvolvendo em excesso seu imaginário sobre esse plano. Ela se deu conta de que suas divagações infantis foram exacerbadas pelo ciúme, em sua posição de filha única, remoída de solidão perante seus pais.

Anne pensava que iria conhecer a “vida de verdade” quando tivesse relações sexuais. Ela não se esforçava e era boa aluna, mas a escola não parecia despertar nela o menor interesse, já que não esclarecia o que lhe era importante. Ela se empenhou desde muito jovem a conquistar rapazes, para dar forma a sua idealização da pulsão sexual (LACAN, 2006). Aos doze anos ela fugia de casa e matava aula. Apesar de tudo, ela passava de ano, mas deixou a escola durante o final do segundo grau para romper com os hábitos de encontros e adições e estudar para o vestibular em um local isolado, o que lhe permitiu ser aprovada, por pouco. Ou seja, ela se protege do pior, mantendo uma certa vigilância, para não perder-se completamente.

Insatisfeita, Anne multiplicava seus encontros, pois ela ainda acreditava “no Um da relação, relação sexual” (LACAN, 1975, p. 13), não querendo reconhecer que o gozo sexual é marcado pela sua impossibilidade. Essa fantasia, no entanto, se enfraquecia a cada novo encontro ruim, colocando-a em perigo. Mas, ela guardava a esperança de ser preenchida, atestando sua recusa em assumir que toda relação se amarra na dimensão do fracasso e que sempre é “o encontro, no parceiro, de sintomas, de afetos, de tudo que em cada um marca o traço de seu exílio […] da relação sexual” (Ibid., p. 132).

O período de sua adolescência se fechou no fracasso de sua busca e suas decepções repetidas a levaram a rapazes que consumiam álcool, drogas leves e, depois, drogas pesadas. O consumo de substâncias tóxicas com um parceiro sexual lhe deu por um momento a ilusão de realizar seu fantasma de gozo absoluto, mas bem cedo não teve mais relações sexuais, o falo, deixou de estar nos encontros. Ela e seus companheiros de miséria mergulharam em um mortífero gozo autoerótico, desertando de sua própria existência.

O Romance Familiar

Um dos primeiros efeitos da palavra no dispositivo analítico foi o de dar status de sintoma à adição da qual Anne começou a se queixar e sentir como um sofrimento. Ela revelou ter tentado várias vezes se suicidar, testemunhando assim que o “hedonismo é um sonho” e que “o gozo além do princípio do prazer, […] indica o horizonte da pulsão de morte” (LAURENT, 2007, p. 18). Mas se separar do objeto de gozo criou um vazio, a angústia decorrente a levou a elaborar seu romance familiar no dispositivo analítico que “se encontra no lugar da falta de relação sexual” (LACAN, 1975, p. 187), o que permite a emergência de um novo saber.

A experiência analítica lhe permitiu exumar lembranças de sua primeira infância. Ela se lembrou de que era tratada como uma pequena rainha pelos seus pais, situação da qual ela se aproveitava exageradamente. Objeto de uma ternura excessiva do seu pai, ela era insaciável e provocava inveja em sua mãe. Ela não suportava frustrações nem as obrigações e afastava agressivamente tudo o que a incomodava em seu caminho. Ela submetia seu cachorro aos piores e mais humilhantes tratamentos, e ele permanecia dócil. Ela se lembrou de situações em que se sentiu transportada em um transe, como aconteceu em uma festa em torno de uma fogueira que a mergulhou em um estado hipnótico do qual que seus pais não conseguiam lhe arrancar.

Ela reuniu o que sabia sobre seu pai e interrogou-o sobre o que ainda ignorava: filho único, origem judia, ficou escondido em Paris com seus pais quando ainda era uma criancinha, durante a guerra 39-45. Perdeu sua mãe ao final da guerra, morta de frio e de fome. Durante essa época, assim que pôde, saía sozinho às ruas à procura de comida e informações. Físico, homem erudito, descrito por ela como um leitor assíduo, buscava informações constantemente e se apoiava nesse saber para se confortar na ideia de que a humanidade iria se perder. Isso causava horror em Anne, e a admiração pelo seu pai se desdobrava assim em hostilidade, já que ela atribuía o cinismo e a violência do seu pai a essa lucidez. Ela observava também que a cultura da sua mãe era inócua, dada sua posição masoquista perante o marido. Ela passou a sentir repulsa pelo saber e se sentia, assim, justificada a viver a vida segundo seus impulsos.

Tratava-se de fazê-la perceber que se seus motivos de recuo face ao saber eram sérios, ela, no entanto, os utilizava de abrigo para encontrar conforto em um modo de vida. A falta de eficácia do saber de seus pais não a dispensava de se aventurar na direção do que poderia lhe esclarecer e orientar. A consideração pelas identificações a seus pais –masoquista como sua mãe, violenta como seu pai – abria o caminho para um novo saber, o saber inconsciente. Ela, que acordava à noite sem saber porque gritava, e dizia nunca sonhar, um dia veio correndo contar um sonho em uma sessão. “Meu pai me perseguia. Eu queria me suicidar e cortava a garganta do meu pai.” Ela descobre, por esse sonho, o traumatismo que constitui para ela a relação a seu pai. Ela interpreta sua deriva aditiva e suicida e se extrai do que ela é como “sintoma […] do casal familiar” (LACAN, 2001, p. 373). Ela quer resolver a angústia que suscita o amor mortífero de seu pai. Ela percebe em seguida que o verdadeiro conflito não está entre seus parentes e ela, mas sim entre ela e si mesma, entre seus impulsos e sua razão, entre gozo e saber.

Do Significante Ao Indizível

Sua morbidez se reduzia, e Anne começava a levar a sério a questão do saber, considerando sua escolha do estudo com um outro olhar. Ela havia se inscrito em belas artes supondo que esse seria o curso que a dispensaria da necessidade de fazer apelo ao saber. Acreditava que bastaria deixar-se levar pela sua livre expressão. Mas, impedida de seguir qualquer curso por conta de seu estado, ela começou seu curso apenas no ano seguinte, depois de fazer uma nova inscrição; só então ela começou a explorar a dimensão inconsciente da sua relação com a arte. Adolescente, ela modelava personagens fazendo caretas, expressando diferentes lados da dor, mas ela os destruía nos momentos de crises de cólera com seus pais, ou, quando se sentia muito solitária, os quebrava jogando contra muros ou espelhos, como se fosse, assim, exorcizar seu sofrimento. Esforçando-se para seguir os cursos na universidade, ela começou a pintar também. Ela me disse não suportar a arte contemporânea porque as deformações lhe angustiavam, e, apesar disso, suas telas eram muito sombrias, não figurativas. Eu lhe fiz reparar que ela passou de modelagens figurativas a uma pintura abstrata. A experiência analítica, lhe colocando na trilha significante de sua existência, lhe abria a via de uma expressão pela pintura ligada ao seu gozo.

No decorrer da análise, seu pai adoece gravemente. Enfraquecido, ele não conseguia mais se debater com os horrores da sua infância, deixando a angústia emergir, o que tinha efeitos deletérios sobre a subjetividade de Anne. Esse quadro era aprofundado nas sessões de análise, mas a parte indizível era passada para sua pintura em modo não figurativo testemunhando o “irrepresentável” (WAJGMAN, 2000, p. 35) que seu pai fazia pesar sobre ela, sabendo que “o acontecido não pode ser figurado, nem dito” (Idem). Se o quadro, tradicionalmente, é uma janela sobre o mundo assim como o quadro da fantasia, a pintura abstrata “faz quadro de um fora da história” (Ibid., p. 42), consiste no projeto de fazer quadro da ausência de objeto (Ibid., p. 44). Assim, Anne participa da “arte não como um lugar de consolação, de esquecimento, ou de uma traição, mas ao contrário como esse lugar onde o irrepresentável viria se mostrar” (Ibid., p. 48). Ela encontra uma forma de expressão que inventou e que faz suplência à relação sexual que não existe. Sua pintura, que não tem sentido algum, tem “efeito de sentido”, o de considerar um período da história e seus efeitos subjetivos – “um efeito de gozo” –, apaixonada por sua experiência artística, ela expõe suas telas – e “um efeito de não relação sexual” –, ela fala de arte com seus companheiros, ela está com eles em uma conquista de saber e não mais em “uma demanda de felicidade” segundo a lógica de sua fantasia.

 

Tradução: Renato Sarieddine
Revisão: Márcia Mezêncio

 


Bibliografia
FREUD, S. (1912). “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” (Vol. 11, 2ª Ed). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987a.
FREUD, S. (1930). “O mal-estar na civilização”. (Vol. 21, 2ª Ed.). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987b.
FREUD, S. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. (Vol. 7, 2ª Ed). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
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LAURENT, É. “Les enjeux du congrès 2008”, Lettre mensuelle, nº261, septembre/octobre 2007.
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MILLER, J.-A. Uma leitura do Seminário: de um Outro ao outro. In Opção lacaniana, 49. Agosto de 2007.
WAJGMAN, G. “A arte, a psicanálise, o século”, Lacn, l’écrit, l’image, Paris: Flammarion, 2000.

Hélène Deltombe
Hélène Deltombe – psicanalista, ECF e AMP. E-mail: helenedeltombe@gmail.com



O Sintoma Na Encruzilhada Dos Caminhos: Um Caso Extremo De Recusa

PIERRE NAVEAU

 

 

Propomos aqui apresentar o caso de um jovem de 15 anos, Adrien, que decidiu persistir numa posição de recusa radical. Seu sintoma é ser, inteiramente, recusa. Ele faz de si mesmo o signo de que há algo que não funciona neste mundo, que o mundo vai mal.

I Joyce O Sintoma

A fim de abordar esse caso extremo utilizando um vocabulário renovado, escolhemos tomar como referência o ultimíssimo ensino de Lacan e passar pela leitura e comentário de dois de seus textos que foram publicados por Jacques-Alain Miller com o mesmo título: “Joyce o sintoma”. De fato, esses dois textos evidenciam mais particularmente duas noções inéditas: portemanteau[1] e escabeau[2]. Parece-me ainda mais importante utilizá-las na medida em que esses dois termos do discurso corrente nos remetem a dois instrumentos que têm, cada um, sua utilidade.

O Portemanteau

Tomemos como ponto de partida a definição de sintoma dada por Lacan em seu Seminário RSI, por ocasião de sua aula de 18 de fevereiro de 1975. Lacan destaca que “o sintoma reflete no real, o fato de que algo não funciona, onde? – não no real certamente, ele esclarece, mas no campo do real” (1975, p. 105). Lacan faz alusão, me parece, à distinção que ele introduziu entre os três campos do real, do simbólico e do imaginário, que se entrecruzam em um nó específico – o nó borromeano. Ele indica, então, que há “coerência” (Ibid., p. 106), como ele diz, entre o sintoma e o inconsciente. A esse respeito, ele argumenta que o sintoma se define pela “maneira como cada um goza do inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina” (Idem). É, portanto, notável que Lacan, em sua conferência de 16 de junho de 1975, venha a afirmar que, paradoxalmente, Joyce, o sintoma, é também Joyce enquanto “desabonado do inconsciente” (LACAN, 1975, p. 1610). Joyce é um sintoma, na medida em que o vínculo entre o sintoma e o inconsciente é rompido. O sintoma está, no caso de Joyce, desconectado do inconsciente. Portanto, uma questão se coloca: do que Joyce goza? Para responder a essa questão, Lacan não nos remete ao início da vida de Joyce, isto é, ao seu livro inaugural, no qual ele narra sua vida, Retrato do artista. Ele convida seus ouvintes a ler a sua última obra, Finnegans Wake. Cada palavra, ou quase, ele insiste, é um pun[3]. Um pun muito particular, ele esclarece. Muitas palavras não são jokes, chistes, mas o que Lewis Carroll chama em inglês de portmanteau, isto é, “mots-valises[4]” ou “palavras-portemanteaux”. O termo portmanteau aparece, na escrita de Lewis Carroll, no capitulo VI de Through the Looking–Glass, quando Alice pede a Humpty Dumpty que ele lhe explique o poema que ela não entende, e que se intitula Jabberwocky (CARROLL, 2010, p. 246). Humpty Dumpty ensina a Alice que uma palavra-portemanteau é uma palavra que contém várias significações, de fato várias palavras. Por exemplo, slictueux significa “flexível, ativo e untuoso” e flivoreux quer dizer “frívolo e infeliz” (Ibid., p. 247-248). Nesse fragmento de frase, que se encontra no início do sétimo capítulo de Finnegans Wake e que concerne o personagem de Shem: “também Shem em pessoa, Doctateur, pegou a recompensa” (JOYCE, 1997, p. 269), fica claro que a palavra doctateur contém, ao mesmo tempo, as palavras “docte, docteur e dictateur”[5]. Podemos, portanto, dizer do poema de Lewis Carroll o que Lacan diz de Finnegans Wake: “leiam as páginas de Finnegans Wake, sem tentar entender. Pode-se ler isso. Se pode-se ler isso (…) é porque sentimos a presença do gozo daquele que escreveu isso” (LACAN, 2007, p. 160). Segundo Lacan, o gozo de Joyce deve ser relacionado, portanto, não ao duplo sentido do joke (chiste), mas às múltiplas significações do pun. Joyce goza do uso que ele faz da palavra-portemanteau. É, quando ele escreve, sua maneira de gozar da linguagem. Joyce recusa o equívoco da língua que ataria, como no chiste, o laço com o Outro. Joyce diz Lacan “se proíbe de jogar com os equívocos que mexeriam com o inconsciente de qualquer um” (Ibid., 162). Apesar de seus dois nomes fazerem ressoar o riso da alegria, há um abismo entre Joyce e Freud. Desse ponto de vista, Joyce é sintoma, se faz sintoma, porque o que ele escreve não se endereça ao inconsciente do Outro, “não… Concerne em nada”, esclarece Lacan (Ibid., 161), o leitor. “Não há qualquer chance”, acrescenta Lacan, de que o que ele escreve “retenha algo do nosso inconsciente” (Ibid). O laço com o Outro se desfaz. Não se trata de criar um sentido, mas de destruí-lo, de aniquilá-lo. A língua inglesa, como observa Lacan, é, para Joyce, “a língua dos invasores, dos opressores” (Ibid., 162). É uma língua imposta. É por isso que há, para ele, esse gozo destrutivo que consiste em despedaçar a carne de uma língua. O que conta não é o sentido e sim o gozo, esse gozo, diz Lacan, “é a única coisa de seu texto que nós podemos alcançar” (Ibid, p. 163). É, de fato, o que toca o leitor de Finnegans Wake. Ele fica estupefato. O sintoma que Joyce constitui na cultura é rebelde ao sentido. Ele encarna a opacidade, essa estrutura de linguagem que apresenta a particularidade de ser, segundo a definição de Lacan, um real que exclui o sentido (LACAN, 1975-76, p. 20 e p. 34). É por isso que um tal sintoma se situa nesse limite, que é o de um caso extremo. Lacan faz, então, entrar em cena o termo escabelo, quando ele diz que Joyce “reservou (para Finnegans Wake) a função de ser o seu escabelo” (LACAN, 2007, p. 160-161). Assim, Finnegans Wake é o escabelo no qual Joyce se empoleirou mantendo-se à beira do ininteligível! Nessa perspectiva, que se abriu para ele do alto de seu escabelo, seu nome, como ele havia predito, lhe sobreviveu. Como diz Lacan em seu Seminário sobre Joyce, este quebrou o Nome-do-Pai e escolheu o Nome contra o Pai. Ele rejeitou o Pai e preferiu o Nome ao Pai (LACAN, 2007). Ele recusou ser tolo do pai (être la dupe du père).

O Escabelo

No texto publicado em Outros escritos, que tem igualmente o título de “Joyce o sintoma”, Lacan (2003) destaca o termo escabelo. A palavra escabelo aparece no Retrato do artista, quando Joyce conta que seu pai falou com ele de uma maneira incompreensível no momento em que, precisamente, ele estava assentado em um escabelo: “Stephen estava assentado em um escabelo, ao lado de seu pai, prestando atenção ao seu longo e incoerente monólogo” (JOYCE, 1992, p. 118, tradução nossa). Lacan indica que a arte de Joyce é o resultado, o efeito do orgulho que o levou a subir em seu escabelo de artista e a escrever como ele escreveu. É nesse sentido que Joyce não é um santo. Pois, diz Lacan, só há santo se quisermos escapar dessa posição extrema (LACAN, 2003, p. 562). O santo é, ele esclarece, aquele que escolhe a escapada (to escape quer dizer, em inglês, “escapar a”) e que se castra de seu escabelo, do escabelo de seu orgulho (Idem). Lacan evoca, a esse respeito, “a castração do escabelo”, o que ele chama a “escabeaustration[6]” (Ibidem, p. 563). O pecado de Joyce, o sin que Lacan acentuou, não é a concupiscência, como o próprio Joyce tende a dizê-lo em seu Retrato do artista, mas o orgulho. Joyce quis se tornar o mestre da língua inglesa com o intuito de destruí-la. O dizer de Joyce, que rejeitou a psicanálise, se diferencia do dizer de Freud e do dizer de Lacan, que se viram, um e outro, às voltas com o desejo do analista. Lacan evoca o dizer de Joyce quando ele afirma que “Joyce queria não ter nada, exceto o escabelo do dizer magistral” (Idem), isto é, de um dizer de mestre. Lá onde o histérico é escravo da linguagem que, tal como uma cisalha, recorta seu corpo, Joyce escolheu ser o mestre dela, para torcê-la a ponto de quebrá-la. Ele não quis que o que ele escrevesse fosse compreendido, ele se manteve à beira do incompreensível. Como Lacan destaca, “à beira do incompreensível é (nesse caso extremo) o escabelo do qual nos mostramos mestre” (Ibidem, p. 566). Para caracterizar a posição de “não-santo” de Joyce, Lacan inventa, assim, a palavra-portemanteau artgueilleusement[7]. Joyce, diz Lacan, escabote[8] através de sua arte. Ele escamoteia a castração do escabelo. Como? Graças a seu savoir faire. Ele tem um saber fazer com a matéria sonora das palavras que o singulariza. Lacan inventa o verbo escaboter: ele “é o primeiro, ele chega até mesmo a dizer, a saber escaboter[9] muito bem por ter levado o escabelo a um grau de consistência lógica onde ele o mantém” (Ibidem, p. 565). Finalmente, a tese de Lacan é a de que um certo gozo da opacidade desperta: “Só há despertar, de Wake, afirma ele, através desse gozo” (Ibidem, 566). Desse ponto de vista, Lacan, aliás, faz uma aproximação entre Joyce e ele mesmo (Idem).

A Vontade De Morrer De Um Jovem

O jovem, cujo caso eu proponho evocar aqui, é, como Joyce, um sintoma. Como é que esse sintoma se manifesta? É a essa questão que temos de responder, nos apoiando nas noções inéditas que acabaram de ser expostas.

A Dita “Tentativa De Suicídio”

Adrien tem quinze anos. Ele ficou hospitalizado por um ano, em um hospital psiquiátrico, porque fez o que ele chama de “uma tentativa de suicídio”. Eu o encontrei, uma única vez, por ocasião de uma apresentação de enfermos que aconteceu em um hospital-dia para adolescentes. O que Adrien chama de “sua tentativa de suicídio” é, na verdade, algo singular. Ele tinha estocado os medicamentos no armário de seu quarto. Soulian e Prozac. Sua mãe percebeu isso quando o ajudava a arrumar o quarto. Ele os tinha escondido na caixa onde sua mãe guardava sua flauta transversa. Ele tinha decidido se suicidar. Sua mãe descobriu os medicamentos estocados dois dias antes da data que ele tinha escolhido para passar ao ato. A caixa onde sua mãe guarda a flauta tem um fundo falso. Ela teve a ideia de levantar o fundo. Se ela não tivesse pensado nisso, não teria encontrado os medicamentos que ele tinha escondido. Faltou pouco para que ela não tivesse feito isso. Adrien insistiu sobre o caráter contingente do incidente. Se sua mãe não tivesse descoberto os medicamentos, dois dias depois ele teria tomado uma garrafa de água e os teria engolido. Ele pensou em suicidar-se dessa forma quando esteve em um hospital psiquiátrico. Uma adolescente tinha tomado medicamentos. Vinte e cinco, ela contou. Foi por isso que ele escolheu dobrar a dose e estocar cinquenta. Assim, acrescentou, ele tinha certeza de que morreria. Ele pensava ter chegado a esse ponto extremo, que é o da certeza de morrer. Ele apostava, portanto, nessa certeza. Ele tinha feito disso uma aposta. Certamente, como Lacan chegou a dizer, a única coisa de que temos certeza é de que vamos morrer. Mas Adrien queria ser o mestre da certeza de morrer. Estocar os medicamentos em quantidade suficiente significava para ele tornar-se mestre dessa certeza.

A Rivalidade Com O Irmão

Adrien tem um irmão mais velho, Damien. Ele não se dá bem com seu irmão. Este é um ótimo aluno, bem sucedido. A pior nota do irmão é sua melhor nota. É por isso que Adrien se considera um fracassado. Eu pergunto se ele reconhece em si uma qualidade. Ele responde que não tem nenhuma. Eu arrisco então e digo que, ouvindo-o dizer o que se passa com ele, percebe-se imediatamente que ele é um rapaz inteligente. Ele retruca rapidamente: “De jeito nenhum, eu não sou inteligente”. Mostro, então, que ele não aceita que as pessoas reconheçam nele alguma qualidade. Ele diz que se ele faz um julgamento tão severo de si mesmo é porque ele se compara com seu irmão. Aliás, um colega um dia lhe disse: “Você é realmente um idiota!” Ele viu pelo seu olhar e pelo tom de sua voz que esse colega realmente pensava o que dizia. De fato, Adrien pensa que ele é um cretino. Ele poderia ter dito: Eu sou um tolo ou Eu sou um imbecil, ou ainda Eu sou um idiota. Mas Adrien gosta de dizer Eu sou um cretino (Je suis um crétin), porque, como ele mesmo explica, Adrien rima com crétin (“Adrien le crétin, ça consonne”).

Seu Pai E Sua Mãe Não Gostam Dele

Seu pai é engenheiro. Sua mãe é jurista. Adrien diz, de forma surpreendente, que eles são cool. Eu pergunto: “Seu pai gosta de você?” “Não!”, ele me responde. Seu pai e ele nunca se beijam, nem para se cumprimentar nem para se despedir. Eu pergunto se alguma vez seu pai o abraçou. Ele também responde que não. Ele não conversa muito com o pai. Se ele faz uma pergunta, o pai logo se irrita. Adrien diz que não gosta de sua mãe. Eu pergunto se ela fica preocupada com o que acontece com ele. Ele me responde que não. “Ela fica transtornada?” “Não!” “Ela fica assustada?” “Não!” “Sua mãe lia histórias quando você era pequeno?” Qual não foi minha surpresa quando ele me respondeu que ela lia para ele e para o irmão o Código Civil! Foi então que Adrien disse uma coisa impressionante. Sua mãe, que é jurista, lhe disse: “Quando você tiver dezoito anos, você será livre para se matar.” Em outros termos, ela lhe dá a entender que, quando ele tiver dezoito anos, será responsável por seus atos. Sua mãe estará livre dessa responsabilidade. Estupefato, saiu do fundo do meu coração e eu gritei: “Sua mãe é completamente louca!”. Mas Adrien, no auge da entrevista, perde a paciência. Ele diz: “Eu não estou nem aí, nem para a minha mãe nem para o meu pai. Eu sou obcecado pela morte. Eu só penso nisso!”. Ao tomar como axioma a escolha de identificação com a certeza da morte, Adrien é então levado a evocar o pensamento da morte. Há para ele uma relação entre o eixo de sua existência, que é aquele da vontade de morrer, e o pensamento da morte. A única coisa que o separa da passagem ao ato é o pensamento. Seus pais lhe são indiferentes, ele afirmou, porque ele pensa constantemente não neles, mas na morte. É essa indiferença que ele projeta neles ao pronunciar essas palavras desiludidas: “Eles me ignoram completamente. Eles não estão nem aí para o que está acontecendo comigo”. Ele chegou até mesmo a dizer que pensou em matá-los, que tem esse poder. Uma noite, ele se levantou e foi até a cozinha, pegou uma faca na gaveta e a colocou de volta. “Eu pensei, naquele momento, declarou ele, que poderia degolá-los.”

Ser O Mestre

Esse jogo com Adrien exige muita prudência e habilidade. Ele diz: “Eu quero morrer”. Eu lhe mostro que temos o direito de não concordar com ele. Ele responde que, se temos o direito de não concordar, não temos, entretanto, o direito de impedi-lo de se matar. Eu tomo partido e digo que isso pode ser discutido. “Se não nos opusermos a essa intenção, podemos ser acusados de não-assistência à pessoa em perigo. Que ele seja maior ou menor pouco importa. O que importa é que a responsabilidade de cada um é colocada em questão, a partir do momento em que ele declara sua recusa de viver e sua vontade de morrer. Quando ele afirma: ’Eu tenho o direito de me matar se eu quiser’ e insiste no que ele considera como seu direito mais íntimo, ele dá a entender que ele é o mestre de sua vida e de sua morte, que ele tem, de um certo modo, um direito soberano de vida e morte sobre ele, e, portanto, sobre seu próprio corpo.” Meu sentimento é, de fato, que é através de sua vontade de morrer que Adrien quer vencer o obstáculo, que pode fazer dele um mestre. Ele diz ser o mestre de sua vida e de sua morte, mas ele parece acreditar que só será o mestre se ousar enfrentar a morte, se ele se matar. Ele será, então, o assassinado, o morto, o cadáver. Ele terá se tornado, portanto, equivalente ao Um do traço que se conta. Adrien, com essa vontade, se identifica, então, à certeza do traço, da marca irredutível que se escreve. É, precisamente, a definição que Lacan dá do mestre, segundo Hegel, em seu Seminário 16 (LACAN, 2008). O mestre é aquele que se identifica ao traço do Um. Ser o mestre é se imobilizar, é se fazer um. Ele dá a impressão de que, se ele não se mantiver nessa posição extrema, nesse lugar de uma experiência limite, então nada se sustenta, nada é certo, nada vale.

O Escabelo Do Orgulho

Eu lhe pergunto se, de vez em quando, ele tem o sentimento de que alguém o aprecia, gosta dele. Ele responde que não. Visivelmente, o desejo do Outro lhe causa horror. A única coisa que ele pôde dizer a esse respeito foi que, nesse hospital-dia, ele é um “paciente especial”. Não poderíamos argumentar que nesse “eu sou um paciente especial” aparece uma ponta de orgulho? Não poderíamos arriscar em dizer que Adrien se empoleirou no alto do escabelo de seu “Eu quero morrer e nada pode me impedir”? Adrien, com o seu Eu quero morrer, para retomar a palavra de Lacan, escabote, pois ele não demonstra nenhuma aflição, nenhum pesar, nenhum desespero, nenhum abandono. Ele privilegia uma intenção, uma decisão, uma vontade pura. Ele escolheu o nada ao invés do ser. Ele tropeça no ato. O que lhe falta é o ato. Em seu caso, não se trata da morte como ato falho, mas da morte como ato faltante. Se podemos dizer dessa forma, isso lhe falta terrivelmente. É, aliás, nessa perspectiva do ato a ser realizado que ele encontra seu único ponto de apoio. Não sem uma ponta de desafio, como se ele quisesse me dar uma rasteira, ele não pôde deixar de dizer, no fim da entrevista, que ele sabia agora como proceder para se matar.

O Desinteresse Pela Língua

O Eu quero morrer é, então, para Adrien, uma ideia fixa. Ela está parafusada em sua mente. Eu arrisquei tudo e lhe perguntei se ele não gostaria de mudar essa ideia fixa. Esta, triste, poderia ser desparafusada, e uma outra, mais alegre, poderia ser parafusada no seu lugar. Esse meu modo de falar não o fez rir. O tom de comédia não lhe convém, destoa, é dissonante. Eu então lhe perguntei se ele se sentia deprimido. Ele ficou com raiva. Ele não está deprimido, explicou ele, ele é um suicida, não é a mesma coisa. Ele colocou os pontos nos is: a única coisa que o interessa é o suicídio. Ele decidiu se matar, é tudo. Ele é fascinado pelo vazio, é assim. Quando ele tinha sete anos, pensou em se jogar pela janela. No momento de concluir a entrevista, eu perguntei: “Você escreve?”. Ele me respondeu que, uma vez, ele escreveu uma história, um esboço de um romance, ele explicou. Uma mulher é estuprada. Uma criança nasce desse estupro. Um menino, talvez. Quando cresce, essa criança mata sua mãe. Esse foi o cenário que ele conseguiu articular. A relação sexual é um estupro. E a relação entre a criança e sua mãe só pode passar por um assassinato. Que significação dar a essa sequência trágica? A única coisa que pode ser dita é que essa história curta dá a entender que é somente na morte que a criança não é separada da mãe. Essa ficção, reduzida a sua expressão mais curta, não seria uma tentativa desesperada e vã de escrever o que não pode se escrever – a relação sexual? Em todo caso, o que se escuta no que Adrien conta do que ele escreveu é que ele não tem nenhum gosto pela língua enquanto tal. Ser o Mestre, para Adrien, é não ser, como Humpty Dumpty acredita ter-se tornado, o mestre das palavras. As palavras não são nada e nada fazem por ele. As histórias não lhe dizem nada. Adrien está longe, muito longe do jogo das palavras. Cada criança tem seu mundo. Adrien tem o seu. Nesse mundo, a palavra-portemanteau, que intriga tanto Alice e apaixona Deleuze (2011), não convém. Mas se fosse preciso arriscar a inventar uma nova palavra-portemanteau para caracterizar a posição subjetiva de Adrien, talvez possamos propor a seguinte: horsgueilleusement, que faria ressoar o orgulho de estar fora de, isto é, ao mesmo tempo, o orgulho e o fora de, o fora do mundo, do discurso, do laço social. A esse respeito, Adrien está só. O grito de Adrien, se pudermos falar assim, é: “Acabou a tagarelice!”. Já se falou muito, Humpty Dumpty significa isso com uma palavra insólita: Impenetrabilidade. É desse ponto extremo do muro da impenetrabilidade que Adrien se aproxima. A única saída possível é então a passagem ao ato.

Para Concluir

O sintoma ao qual Adrien então se identificou é um: Eu quero morrer. Esse Eu quero morrer é a fórmula geral da pulsão de morte e nos remete à posição que Aristóteles dá como exemplo da Proposição Universal Afirmativa (PUA): “Todo homem é mortal”. Lacan (2003, p. 450) observa – essa PUA joga todo homem nas contas da morte, inscreve todo homem sob o traço da mortificação. Como Lacan indica, então, a morte é, desde então, possível. Para Adrien, trata-se exatamente de fazê-la passar da modalidade do possível à modalidade do necessário. Podemos dizer de Adrien o que Lacan diz de Moritz no seu prefácio do Despertar da primavera, de Wedekind: ele é “um não-tolo” (Ibidem, p. 559). Adrien aspira, de fato, como Moritz, levar a cabo o ato que barra o significante, que recusa a vida, nega a palavra e faz objeção ao laço social. Ele prioriza o ser-para-a-morte ao invés do ser-para-o-sexo (LACAN, 2003, p. 362–363). A fantasia é impossível. O desejo se esvanece. O sintoma de Adrien, em sua radicalidade, está assim desconectado do inconsciente. Afinal, podemos falar de Adrien como Lacan fala de Joyce – ele é desabonado do inconsciente. E encontramos em Adrien o que encontramos em Joyce – a recusa do inconsciente e a recusa desse pesadelo que é a história. O ponto comum entre Adrien e Joyce, guardadas as devidas proporções, é o fato de se situar num ponto extremo. Desse ponto de vista, o sintoma de Adrien é inanalisável. Adrien quer se fazer ilegível. Trata-se, para ele, de escapar a toda leitura possível, e, para sempre, apagar-se totalmente.

 

 

[1] NT: peça de madeira ou de metal fixada na parede, que serve para pendurar roupas, casacos e outros objetos.
[2] NT: pequena escada com poucos degraus. Em português “escabelo”, que tem o mesmo sentido, mas tem um uso restrito em nossa cultura.
[3] NT: Pun: do inglês, trocadilho, jogo de palavras
[4] NT: Mot-valise: palavra composta por pedaços não significantes de duas ou várias palavras.
[5] NT: douto, doutor e ditador.
[6] NT: Palavra formada por escabeau + castração.
[7] Palavra formada por “art” (arte) + “orgueilleusement”, (orgulhosamente). Traduzido em “Outros escritos” como “orgulhartosamente”.
[8] Aqui Lacan joga com “escamoter” e “escabeau” e faz um novo “mot-valise”.
[9] Traduzido em “Outros escritos” para “escabelotar”

 


Tradução: Cristina Vidigal e Maria Bernadete Carvalho
Revisão: Márcia Bandeira

Bibliografia
CARROLL, L. Através do espelho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
DELEUZE G. Lógica do sentido. São Paulo: Ed.Perspectiva, 2011.
LACAN, J. Le Seminaire, livre XXII, “RSI” in Ornicar? N. 4. Paris: Lyse, 1975.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007 (Seminário proferido em 1975-1976).
LACAN, J. “Joyce o sintoma”. In: O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007 (Conferência proferida em 16 de junho de 1975).
LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. “Joyce, o sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar de primavera”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.



A Adolescência Como Abertura Do Possível

MARCO FOCCHI

FOTO: Jesse Barbosa , Sr. Ka.FOTO: JESSE BARBOSA , SR. KA.

A adolescência não é um conceito clássico da psicanálise, mas uma referência de Freud (1976a) pode, no entanto, ajudar-nos a nos orientar nessa questão. Trata-se de seu artigo de 1889 sobre as lembranças encobridoras. Freud esclarece seu caráter híbrido, dizendo que elas utilizam ao mesmo tempo um material infantil e reformulações sucessivas a fim de responder a questões que são colocadas numa idade mais tardia.

Tal como sabemos, as lembranças encobridoras não refletem, ou refletem apenas em parte, episódios pertencentes à infância; elas são mais do que tudo (não são mais que) montagens tardias realizadas com um efeito (de) a posteriori. A idade na qual a maioria dessas lembranças se forma se deduz facilmente das necessidades às quais elas vêm responder. São aquelas, shilerianas (FREUD, 1976b) a partir das quais Freud forjou o primeiro modelo da noção de pulsão: fome e amor (1976a).

A partir do momento em que o sujeito sai do enquadre simbólico da família para se abrir para o espaço do mundo, se impõem a ele as primeiras escolhas concernentes à direção a dar à sua existência, seu lugar na sociedade e na orientação de seus sentimentos para novos objetos de amor. Para enfrentar o inédito e o desconhecido, o sujeito se serve do que tem à sua disposição. Os traços e as experiências infantis são então retomados nesse contexto modificado; misturados com temas atuais, eles traçam as pistas ao longo das quais buscar uma satisfação adequada a essas novas exigências.

As lembranças encobridoras, com sua natureza composta, constituem assim um limiar, uma fronteira temporal entre a infância e o horizonte transformado da vida. As questões fundamentais às quais elas devem responder são aquelas do sentido da vida e da morte, que se colocam na adolescência num plano diferente daquele da infância. Devemos acrescentar a isso aquelas do amor a partir do momento em que o sujeito abandona seus antigos objetos para se abrir a novas possibilidades.

Maturação E Adaptação?

A concepção da adolescência definida por nós a partir do limiar que são as lembranças encobridoras difere daquela de Erik Erikson (1976), que a apresenta como uma fase do desenvolvimento na qual a identidade se constrói numa perspectiva de adaptação, ou ainda daquela de Peter Blos (1967), que interpreta a adolescência subdividindo-a em diferentes fases: uma primeira fase de pré-adolescência, caracterizada pelo crescimento da pressão pulsional, uma segunda fase comportando um processo de separação dos pais e a construção dos ideais, uma terceira na qual o sujeito é pressionado pela busca de um objeto de amor, e enfim uma fase tardia em que o sujeito atinge uma posição sexual e genital definitiva.

Depois do estudo clássico de Stanley Hall, a adolescência, que se tornou um capítulo da psicologia evolutiva, é considerada como uma condição particular da passagem entre a idade infantil e a idade adulta, isto é, a maturidade realizada. Mas, precisamente, essa definição formulada como um simples truísmo nos parece problemática. Tomar a adolescência como uma fase de transição de um estado para outro significa que se considera como adquirida a definição de um início e de um fim, de um ponto de partida e de um objetivo a se atingir. A ideia de uma consecução que definiria a idade adulta não se sustenta a não ser se se raciocina em termos de normalidade, isto é, de adaptação, e não é por acaso que são os autores da ego psychology os que mais se consagraram a esse tipo de estudo.

Os autores kleinianos adotaram uma perspectiva diferente. Donald Meltzer (1991) centra o problema, sobretudo, sobre o saber. A queda do ideal que toca as figuras parentais concerne principalmente à pretensa onisciência deles, e, no desencantamento que se segue, o espirito se põe à busca da verdade como o corpo busca o alimento, encontrando diversas vias possíveis. Uma primeira via consiste na eventual regressão à posição infantil, o retorno à família, a recusa de andar para frente ou se afastar do ninho completamente. A segunda compete a se juntar ao grupo de pares, mas pode derivar em direção ao bando ou à horda. A terceira é aquela do isolamento. Resta, enfim, aquela da abertura ao mundo social, a mais próxima da normalidade, que permite a maturação e o acesso ao mundo adulto. Aí também, apesar de tudo, a argumentação é desenvolvida em termos de normalidade e de maturação, o que parece um escudo difícil de evitar quando se fala de adolescência.

Doldrums[1]

A leitura de Winnicott (1969) é mais pessoal apesar de ele não abandonar os temas clássicos sobre a adolescência: a desconfiança diante do quadro familiar, a necessidade de provocar, a busca da verdade e o evitar das falsas soluções. Mas ele nota também que o adolescente, no fundo, não quer ser compreendido, ele vê, por assim dizer, uma antítese entre a adolescência e a busca de compreensão. Na adolescência trata-se, sobretudo, de um tempo no qual o sujeito deve se compreender a si mesmo mais do que ser compreendido, e para isso ele deve se subtrair à compreensão prévia do Outro. Esse tempo é aquele dos doldrums, melancolias, depressões ou tristezas que dominam os humores nascentes, ou ainda um sentimento de mar cinzento ou ainda a alternância da calma plena e de tempestades súbitas como aquelas que se encontram sob alguns céus oceânicos.

Os doldrums do adolescente winnicottiano parecem refletir os versos de A música[2], da coletânea de As flores do mal. Depois de ter descrito a música tomando como um mar o poeta que, com o peito saliente, luta contra as torrentes na convulsão da tempestade das paixões, o poema se conclui com um contraste brutal: “— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrível me exaspera!”.

São esses versos que Joseph Conrad coloca exergo em A linha de sombra: uma confissão, um dos mais belos romances sobre a iniciação na vida. Eles reenviam à parte central do romance, a esmagadora calma planície no seio da qual o jovem oficial, em seu primeiro comando, vê colocada à prova sua tenacidade e sua coragem. Sobre a linha de sombra, sobre o limiar que se trata de atravessar, há, entretanto, dois obstáculos a ultrapassar. Um é os doldrums: enquanto o segundo oficial é tomado pelo delírio e a tripulação colocada fora de ação pela febre tropical, o jovem capitão deverá sair da imobilidade da calma planície por meio de suas próprias forças.

Mas antes ainda, para chegar ao navio, ele não deve deixar escapar a oportunidade de assumir o comando, ele deve tê-la e perceber que o pobre e miserável capitão Hamilton busca surrupiá-la dele. É então que o capitão Giles, velho lobo do mar com expertise no comando dos navios, mas também na arte de navegar na vida, vem ajudá-lo. O protagonista não percebe imediatamente a sabedoria do discurso de Giles, tomando-o por um simples idiota. O diálogo entre o protagonista e o capitão Giles é formidavelmente construído, as palavras deste último parecem nunca chegar ao ponto central, pois ele sabe muito bem que o que é crucial não pode ser dito diretamente; ele sabe que a oportunidade não pode ser explicada, mas apenas indicada, tal como uma interpretação analítica. O capitão Giles é o modelo por excelência daquele que sabe falar a quem ainda não conhece o que está em questão. Ele não acredita que suas palavras possam ser escutadas pelo neófito da mesma maneira que pelo homem de experiência. É o estatuto do saber que está em jogo em A linha de sombra, é a demonstração de sua essencial intransmissibilidade: o que Giles compreendeu não pode ser comunicado ao jovem, que simplesmente o refutaria, mas Giles, com o que sabe, pode levar o jovem a se aperceber e, assim, a poder captar o que se passa diante dele sem que ele veja.

Um Mundo Atrás Do Mundo?

O clássico romance de formação, em suas diversas expressões, tem também como fio condutor o tema do reconhecimento: o protagonista deve aprender a ver o que tem diante dos olhos, mas que inicialmente não se desvela de forma alguma a ele. David Copperfield (DICKENS, 2014) luta para fazer um caminho na vida e se casa com Dora, filha de Mr. Spanlow, o titular do curso de advogado em que fez seu aprendizado. Quando Dora morre, Agnes, a filha do advogado Wickfield, com o qual David tinha morado durante seus estudos universitários, está ao seu lado. David vai levar um tempo para perceber aquilo que Dora, morrendo, tinha percebido imediatamente com clareza: o fato de que Agnes estava apaixonada por ele, que secretamente ela sempre o havia sido, e que é junto dela que se realizaria seu destino sentimental.

O quadro da iniciação feminina é bem diferente. Não é de seu próprio amor que Jane Eyre (BRONTË, 2011) deve se aperceber – as mulheres nesse ponto têm uma certeza incomparavelmente superior à dos homens –, mas ela deve descobrir o mistério de um homem. Mr. Rochester, se dando conta de que sua paixão secreta por Jane é compartilhada, a pede em casamento, mas a faustuosa residência de Thornfield Hall guarda um terrível segredo que Jane deverá dolorosamente descobrir no momento mesmo em que se casa: Mr. Rochester já é o marido de uma mulher louca, isolada numa torre, escondida do olhar de todos. O incêndio da propriedade contribuirá para retirar o obstáculo e para oferecer a Jane um Mr. Rochester viúvo, mas a partir de então cego e desprovido do fausto que a havia deslumbrado. O que Jane deve reconhecer, acolher e fazer seu, é o cofre de chumbo de um homem privado da suntuosidade dos semblantes fálicos.

O amor não é o único tema da descoberta adolescente. O jovem Törless (MUSIL, 1996) é aluno do colégio militar muitíssimo exclusivo ao qual o destinou a fortuna de uma família burguesa próspera. Bozena, a prostituta, o faz descobrir a sexualidade sob um aspecto degradado, lhe revelando o que há de obscuro, de confuso, de dissoluto, de destrutivo atrás do mundo diurno, racional e burguês. O que Törless deve descobrir, com dor e sentimento de abandono, é a ausência de qualidade do mundo no qual ele vive. Isso se tornará para Ulrich, o protagonista de O homem sem qualidades (MUSIL, 2015), recusa radical de valores esvaziados de sentido. Depois de ter participado com dois colegas, Reiting e Beineberg, dos serviços infligidos ao fraco Basini, Törless conhece com ele uma experiência erótica. O que ele deve deixar é o mundo burguês ao qual pertence sem perceber sua vacuidade.

Num clima inteiramente diferente, Os indiferentes (MORAVIA, 1988) conta a revelação de um mundo atrás do mundo. Um jovem e sua irmã, Michele e Carla Ardengo são passivos diante da vida, incapazes de experimentar outros sentimentos além do tédio. Eles fingem não ver a ligação que Leo Merumeci tem com a mãe deles, Mariagrazia. Leo, cansado da mãe, busca seduzir a filha, enquanto Michele sofre passivamente os avanços de Lisa, uma amiga de sua mãe. Leo tenta embebedar Carla no dia de seu aniversário de vinte e quatro anos com o objetivo de se aproveitar dela, mas esse propósito fracassa porque a jovem, que não é habituada ao álcool, se sente mal e vomita. Tudo isso se passa num clima de torpor moral no qual Lisa se encarrega de acordar Michele lhe mostrando a relação entre Leo e sua irmã. Michele tenta vingar a honra da família: ele atira em Leo com uma arma que se esqueceu de carregar, se condenando a um destino de perdedor. Trata-se aqui, também, de ver a duplicidade e a hipocrisia do mundo convencional no qual os jovens estão aprisionados. Entretanto, nesse caso, os protagonistas não conseguem ultrapassar a prova e atravessar o limiar: a pistola do irmão emperra e sua irmã aceita se casar com Leo, um casamento sem amor que lhe assegurará a continuidade e o bem estar de sua vida burguesa.

Os Ritos De Iniciação Tribal

A descoberta de um mundo atrás do mundo – além da descoberta da sexualidade e seu lugar na sociedade – constitui também a substância dos ritos de iniciação que assinam a saída da infância nas sociedades primitivas, com a diferença que implica a dimensão do sagrado. Os ritos de iniciação tribal introduzem de maneira estritamente codificada o jovem na experiência, o que o romance de formação deixa para contingências mais diversas.

Com uma diferença importante nas formas, vemos que a problemática é análoga: é necessário atravessar o limiar das aparências para ir em direção a uma verdade que não se mostra imediatamente. Nos ritos de iniciação tribal, trata-se de aceder ao conhecimento das relações místicas entre a tribo e os seres sobrenaturais que estão na origem da criação (ELIADE, 1976). Isso passa pela aprendizagem de comportamentos, de técnicas e de instituições que pertencem ao mundo adulto, ao mesmo tempo em que o acesso ao conhecimento dos mitos, das tradições sagradas da tribo, dos nomes dos deuses, da história e das façanhas deles. Sair da infância significa aprender como as coisas vieram ao ser, e ao mesmo tempo o que funda os comportamentos humanos, as instituições sociais e culturais. Aceder ao fundamento significa remontar às origens onde tudo começou, num tempo mítico.

A presença do ritual nas sociedades tribais e sua ausência em nosso mundo tem uma significação precisa. No mundo moderno, não haveria lugar para um ritual porque a descoberta do mundo atrás do mundo se faz de maneira progressiva, numa época em que o homem se considera autorizado a continuar e aperfeiçoar indefinidamente o dado inicial, em busca do novo. Nas sociedades arcaicas prevalece muito mais o contrário: projetar o novo num tempo primordial fazia retorno ao horizonte atemporal das origens.

No romance de J. Conrad, o contraste entre o antigo e o novo é particularmente evidente. Aí a iniciação concerne à tomada de responsabilidades que implica o comando e o comando deve ser disputado com o velho capitão Hamilton. O jovem se opõe ao antigo, o antigo é apresentado como sem recursos – ele nunca consegue pagar seu aluguel – e reivindica os aspectos sobre os quais o autor faz incidir um sopro de ironia, nos sugerindo que suas pretensões são, se não abusivas, pelo menos fora de propósito. O início do diálogo com o capitão Giles parece creditar a suspeita do jovem de que aquele que nós consideraremos, na sequência, como um velho sábio, poderia bem ser, ao contrário, um velho parvo.

No mundo dessacralizado, o que é velho ou mesmo antigo não prevalece de forma alguma sobre o que é atual; ele está, pelo contrário, submetido a um imperativo de renovação. Nas sociedades arcaicas, o acesso à responsabilidade e o fim da ignorância supõem, ao contrário, a morte iniciática da criança para que um homem novo seja forjado no molde do tempo original, um homem que terá tomado sobre si o peso da tradição. O velho mundo é aniquilado por um retorno simbólico ao caos primordial, não para avançar em direção a um mundo novo, mas para restabelecer o mundo ao seu começo, ali onde as coisas chegaram pela primeira vez. Os gestos e as operações que se desenrolam no curso da iniciação são de fato a repetição de modelos exemplares, são os mesmos gestos e as mesmas operações que aquelas realizadas pelos pais fundadores.

Num outro plano, a sexualidade que para Törless se revela na decadência e se apresenta como uma força empurrando-o para recusar o mundo no qual nasceu, participa, ao contrário, nas sociedades arcaicas, da espera do sagrado. Mircea Eliade destaca a aparente contradição presente nas culturas nas quais a virgindade é particularmente valorizada ao mesmo tempo que os pais da jovem não apenas toleram, mas encorajam os encontros com os rapazes. Não se trata, no entanto, simplesmente de liberdade pré-matrimonial ou de costumes dissolutos, mas da revelação de uma sacralidade da mulher que toca às fontes da vida e da fecundidade. Os encontros pré-conjugais das jovens não têm em si um caráter errático, mas acima de tudo ritual: elas participam mais de um mistério sagrado do que são fonte de prazeres terrestres.

Desencantamento

Em sua intervenção no congresso de Nápoles em junho de 2009 sobre o tema Variações sexuais e realidade do inconsciente, Domenico Cosenza (2009) se pergunta muito justamente como, na época contemporânea, se realiza o encontro com esse mundo atrás do mundo quando faltam os ideais reguladores fortes, permitindo estruturar o momento de atravessamento do limiar da adolescência à luz da verdade desalojada de seu lugar central.

Nos romances dos séculos XIX e XX, a descoberta da verdade é acompanhada de efeitos de desidealização, de queda das aparências, atrás das quais se revela uma realidade degradada, ou imoral, ou uma melancolia devoradora, como em A ilha de Arturo (MORANTE, 2003), uma das obras primas insuperáveis do gênero.

Wilhelm – o pai de Arturo, um mito para seu filho, que sempre imaginou suas ausências como maravilhosas viagens pelo mundo, lhe dando aos olhos do filho a dimensão de um herói sem igual – se revela no final do romance não ser nada além de um pobre homem, bode expiatório de todos, e cujas grandes viagens nunca foram mais longe do que os arredores de Nápoles. Arturo embarca então e se afasta de Procida sem nunca se virar para trás: enquanto a ilha se torna cada vez menor na medida em que o navio se afasta, ele deixa sua infância para trás com decepção e uma nostalgia infinita.

A separação adolescente coincide, nesse caso, com o desvelamento, com uma verdade dolorosa ou despojada, com um desencantamento que é o contrário da descoberta do sagrado e da dimensão espiritual da vida que acontece nas sociedades arcaicas. Devemos então nos resignar a esse empobrecimento dos sonhos, a essa degradação dos ideais, a essa perda de imaginação como preço a ser pago e porta de entrada na idade adulta, um empobrecimento nostálgico que deixa como única alternativa um conformismo assentado nos imperativos pragmáticos da riqueza material?

A Queda Dos Semblantes

A literatura moderna propõe outra abordagem do atravessamento do limiar conduzindo da leveza aturdida da infância à responsabilidade adulta: é a imagem da inversão que se encontra na conclusão de um dos textos mais ricos e densos da literatura do século XIX, um livro que certamente não falta na biblioteca de nenhuma criança e que vale a pena ser percorrido, mesmo na idade adulta: As aventuras de Pinóquio (COLLODI, 2002). Saído do País dos Brinquedos, Pinóquio é devorado pelo Tubarão (na versão de Walt Disney é uma baleia particularmente agressiva, talvez uma evocação da potência sugestiva que Moby Dick, encarnação da essência do mal, exerce sobre o imaginário americano). Na barriga do Tubarão, Pinóquio encontra Gepeto, aliás muito frágil para conduzir seus projetos de fuga. Pinóquio sobrevive levando Gepeto em seus ombros e, com a ajuda de um atum, nada até a margem. Essa inversão de posição, na qual o filho carrega o pai – tendo como pano de fundo Eneias carregando Anquises – equivale a salvar o pai. A criança que foi sustentada por seu pai, agora o ajuda. É apenas depois dessa inversão entre o acima e o abaixo, entre o salvador e o salvo, que o boneco se transforma em criatura de carne e osso. Aí nada de desilusão nem de nostalgia, mas muito mais uma reconciliação. Não é a revelação da verdade de um mundo atrás do mundo, mas um encontro com o real, com o risco de ser engolido – o tubarão é uma representação genial disso – e com a necessidade de encontrar uma solução.

Pinóquio, como exemplo de passagem do limiar da adolescência, segue sem dúvida uma via mais próxima daquela que Lacan sugere em seu comentário de O despertar da primavera (WEDEKIND, 2008), texto banhado numa sexualidade mais crua, e que nos dá elementos para captar as coisas nessa perspectiva. Lacan (2003) indica que o que se trata de desvelar não é um mundo atrás do mundo, mas o real da ausência de relação sexual. O que se revela com a queda dos semblantes é que não há relação sexual, e com o real não se trata de buscar uma via de adaptação. Não nos adaptamos ao real, diz Lacan (2005), no máximo nos habituamos com ele. Os adolescentes representados por Wedekind em O despertar da primavera, Wendla, Moritz, Melchior, descobrem a brutalidade do sexo, a hipocrisia burguesa dos adultos, o fracasso, a vergonha. Nisso eles são como os adolescentes do romance de formação e devem rasgar o véu de uma responsabilidade fictícia e intolerante. Os dois primeiros sucumbem. Wendla morre logo depois de um aborto mal praticado. Moritz se suicida para não revelar a seus pais seu fracasso escolar. Melchior é salvo, ele que, tendo encontrado seu amigo suicidado no cemitério e depois que buscou levá-lo consigo para a tumba, escolhe seguir uma enigmática figura de Homem Mascarado, no qual Lacan reconhece a expressão do semblante por excelência.

 

Melchior: Qui êtes-vous? Qui êtes-vous? Je ne peux me confier à un homme que je ne connais pas.

L’homme masqué: Tu n’apprendras pas à me connaître à moins de te confier à moi.

Melchior: Croyez-vous?

L’homme masqué: C’est ainsi! D’ailleurs tu n’as plus de choix.

Melchior: Je peux encore à tout moment tendre la main à mon ami.

L’homme masqué: Ton ami est um charlatan. Nul ne sourit qui n’a plus qu’un sou vaillant em poche. L’humoriste sublime est de toute la création la créature la plus pitoyable, la plus déplorable[3].

 

As aparências burguesas caíram, sua duplicidade, sua afetação, suas imposturas são desmascaradas e, até aí, o percurso é o mesmo que em Törless ou em Os indiferentes. Mas não há o gesto de recusa virando as costas à dissimulação, como em Törless, ou o compromisso conformista, como em Os indiferentes. É a escolha de seguir apesar de tudo o semblante, que aqui o Homem Mascarado encarna. Em outros termos: não há necessidade de acreditar no semblante para segui-lo. O que Carlo Collodi representa com sua fábula burlesca, Wedekind mostra de maneira dramática, mas, em um caso como no outro, trata-se de dizer sim ao pai, de salvá-lo da queda à qual ele seria condenado se ele retirasse sua máscara, refutando toda fé nos semblantes.

Reunamos Para Concluir Os Pontos Que Examinamos:

1 – A adolescência, que na tradição psicanalítica pós-freudiana foi considerada uma fase, um tempo de maturação visando à adaptação, pode ser considerada mais como um momento de escansão quando se apoia no texto freudiano: ela é o limiar entre uma situação estática e a abertura do possível. Isso faz da adolescência o caso particular de uma eventualidade mais geral. Ficar apaixonado, por exemplo, em qualquer idade que seja, sempre tem no fundo um caráter adolescente, a partir do momento em que esse novo amor reabre um campo de possibilidades que a rotina da vida se encarrega em geral de fechar.

2 – Essa passagem do estático ao possível é codificada de maneira ritual nas sociedades arcaicas como movimento, conduzindo de uma vida por natureza irresponsável – assim é considerada a infância – a uma vida que assume a cultura da tribo e, portanto, a uma vida que tem um sentido. O acesso ao sentido vem da participação no tempo dos começos, a revelação do original sagrado, a iniciação em um mundo mítico escondido atrás do mundo de todos os dias. O mundo tem sentido porque há um mundo invisível atrás do visível, que constitui seu fundamento e seu princípio. O limiar da adolescência desemboca, portanto, na obtenção de uma vida espiritual como suplemento da vida natural que permite a integração responsável do indivíduo na comunidade da qual, a partir de então, ele conhece e compartilha os valores.

3 – Num mundo dessacralizado, a revelação iniciática abre, ao contrário, para o vazio, a pobreza, a degradação, a enganação que se mantém atrás da aparência do mundo visível. Quando o sagrado não tem mais função de organizar a vida da comunidade, fazer cair o véu das aparências leva a desmascarar a mentira, a desmistificar. O romance de formação apresenta assim a experiência da adolescência como desencantamento, isto é, como o contrário do que ela é nas sociedades arcaicas. Abrir os olhos pode também querer dizer descobrir o amor, como para David Copperfield, mas isso ocorre depois de uma travessia que despoja a infância de todo encanto, fazendo-a passar pelo embrutecimento de um trabalho que é pura exploração e por inumeráveis intimidações que mostram a realidade de um mundo atrás do mundo que é sua pura negação. David deve, além disso, desmascarar a hipocrisia repugnante de Uriah Heep, sua falsa humildade, sua obsequiosidade traiçoeira, seus desejos ignóbeis que são o equivalente da perversidade mórbida presente em Törless. Atravessar o limiar da adolescência num mundo dessacralizado significa despojar a infância de sua magia e de sua inocência e vê-la desaparecer com nostalgia como Procida em A ilha de Arturo.

4 – Na perspectiva que podemos destacar a partir de Lacan, a queda dos semblantes não corresponde à revelação de um mundo atrás do mundo, ao florescer de uma verdade escondida que faz decair o que é manifesto. O véu cai deixando captar o real, que não é um mundo porque ele não é todo. Não se entra assim numa lógica que opõe o verdadeiro e o falso, porque o semblante não é reduzido ao reino da mentira e pode guardar uma função. A queda do semblante, da qual advém o encontro com o real, é, sobretudo, o tempo em que pode se verificar uma inversão do que não cessa de não se escrever ao que cessa de não se escrever – se pensamos nisso, é a mesma inversão que se realiza para Pinóquio quando a fuga impossível se torna possível – e é a abertura sobre o possível que advém com a adolescência.

É interessante observar também que frequentemente, na clínica, quando se procura encontrar o momento constitutivo dos sintomas ou do mal-estar do qual o paciente se queixa, se não fatores traumáticos ou solução de continuidade em sua vida, remonta-se sempre ao tempo da adolescência. O momento constitutivo do sintoma é a adolescência porque é um tempo no qual o encontro com o real como abertura do possível deixa um traço. É à luz disso que devemos considerar o fato de que as lembranças encobridoras são o equivalente freudiano do sintoma, o traço do atravessamento do limiar, com o qual o sujeito poderá ou não se identificar. Em outros termos: ele poderá gozar ou sofrer dele.

 

 

Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Lilany Pacheco

 


Bibliografia:
BAUDELAIRE, C. A música. In: As Flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BLOS, P. Les adolescentes: essai de psychanalyse, Paris : Stock, 1967, esgotado.
BRONTË C. Jane Eyre. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.
COLLODI, C. Les aventures de Pinocchio, Paris : Mille et Une Nuits, 1998.
CONRAD, J. A linha de sombra: uma confissão. Porto Alegre: L&PM, 2010.
COSENZA, D. “L’initiation dans l’adolescence: entre mythe et structure”, Mental, n.23, FEEP, dezembro de 2009.
DICKENS, C. David Copperfield. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.
ÉLIADE M. Initiation, rites, sociétés secrètes. Naissances mystiques. Essai sur quelques types d’initiation, Paris: Gallimard, 1976.
ERIKSON, E. Identidade: Juventude e crise, Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FREUD, S. “Lembranças encobridoras”, In: Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1976a.
FREUD, S. “O mal-estar na civilização”, In: Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1976b.
LACAN, J. Prefácio a “O despertar da primavera”, Outros Escritos, RJ: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. Le triomphe de La religion, Paris: Seuil, 2005.
MELTZER, D. “Psicopatologia dell’adolescenza”, in Quaderni di psicoterapia infantil, n. 1, 1991.
MORANTE, E. A ilha de Arturo. São Paulo: Berlendis e Vertecchia, 2003.
MORAVIA A. Os indiferentes. Rio de Janeiro: Bertrand Braisl, 1988.
MUSIL, R. O jovem Törless. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
MUSIL, R. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
WEDEKIND, F. L’eveil du printemps. Paris: Gallimard, 1974.
WINNICOTT, D.W. “L’adolescence”. In: De la pédiatrie à la psychanalyse. Paris, Payot, 1969.
[1]Termo de navegação marinha ou aérea indicando o momento em que não se sabe de que lado o vento vai virar ou se vai haver vento. To be in the doldrums: estar num marasmo, na fossa, estagnar.
[2] BAUDELAIRE C., “A música”, As Flores do mal
A música p’ra mim tem seduções de oceano!
Quantas vezes procuro navegar,
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano,
Minha pálida estrela a demandar!
O peito saliente, os pulmões distendidos
Como o rijo velame d’um navio,
Intento desvendar os reinos escondidos
Sob o manto da noite escuro e frio;
Sinto vibrar em mim todas as comoções
D’um navio que sulca o vasto mar;
Chuvas temporais, ciclones, convulsões
Conseguem a minh’alma acalentar.
— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrível me exaspera!
Tradução de Delfim Guimarães
[3] Melchior: Quem é você? Eu não posso confiar num homem que não conheço.
O homem mascarado: Você não aprenderá a me conhecer a não ser confiando em mim.
Melchior: Você acha?
O homem mascarado: É assim! Aliás, você não tem mais escolha.
Melchior: Eu ainda posso a qualquer momento estender a mão ao meu amigo.
O homem mascarado: Seu amigo é um charlatão. Ninguém sorri sem ter um tostão válido no bolso. O humorista sublime é de toda a criação a criatura mais patética, a mais deplorável
(WEDEKIND, 1974, p. 95, tradução nossa).

Marco Focchi
Marco Focchi- psicanalista, AME da SLP e AMP. E-mail: marcofocchi52@gmail.com