A Transparência Do Gozo Da Mãe E O Delírio Como Segredo

LAURA FÉLIX REIS MACIEL / MÁRCIA ROSA

 

Victor Brauner Surrealist painter

 

VICTOR BRAUNER SURREALIST PAINTER

Ao formular as estruturas de parentesco, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1947/2009)[1] evidenciou a presença de um conjunto de regras muito restritas que comportam uma primeira lei, a exogamia. Partindo daí, traçou as condições algébricas da escolha de objeto: as estruturas de parentesco são elementares quando se fundam em regras que não apenas proíbem, mas também prescrevem os objetos com os quais laços são permitidos, tornam-se complexas quando há proibição, mas não prescrição. Nesse caso, respeitada a interdição do incesto, o sujeito é livre para estabelecer suas alianças.

 

Fundamentado em suas extensas pesquisas sobre o parentesco, Lévi-Strauss (1970/2015)[2] listou as suas propriedades invariantes ou traços distintivos, aqueles que permaneceriam imutáveis através da diversidade das raças, culturas, línguas, etc. Para ele, a família tem sua origem no matrimônio, inclui o marido, a mulher, os filhos nascidos de sua união; os membros estão unidos entre si por laços jurídicos, por uma rede precisa de direitos e obrigações sexuais e sentimentos tais como o amor, o afeto, o respeito, o temor, etc. (1970/2015, p. 60)[3]. Para definir a família Lévi-Strauss se serviu da linguística de Saussure, de modo que a família levistraussiana é um sistema fundado no poder ordenador das diferenças, diferença nas funções do pai e da mãe e diferença sexual.

 

O declínio da potência simbólica do pai faz vacilar os fundamentos lingüísticos da família e sua sustentação nas diferenças. Tal como afirma a psicanalista Marie-Hélène Brousse (2010)[4], na medida em que a diferença homem-mulher, organizadora das leis de aliança e de parentesco, é tocada, todo o sistema se reformula. Passa a existir um intercâmbio de autoridade e de cuidado e ele institui uma equivalência ali aonde antes operava uma diferença, institui um valor comum, gerando o que vem sendo denominado parentalidade.

 

Esse valor comum intercambiável se sustenta na aposta de que pai e mãe são funções simbólicas e que podem ser exercidas por um homem e uma mulher, por dois homens, duas mulheres, etc. Em que pese isso, Lacan não deixa de levar em conta que “não é a mesma coisa ter tido sua mãe e não a mãe do vizinho, o mesmo para o seu pai”. (LACAN, 1975-1976, p.45)[5] Com isso, assinala a presença do real na constituição e na manutenção da família. Essa dimensão apresenta-se na definição de família proposta por Jacques-Alain Miller, em resposta aos invariantes antropológicos de Lévi-Strauss: “(…) a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. (…) é essencialmente unida por um segredo, pelo não-dito. (…) É um desejo não-dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe? (…)”. (MILLER, 2007, s.p.)[6] Esse excesso, esse real trazido pelo modo de gozo dos pais mantido secreto introduz uma configuração familiar fundada na contingência ou em afinidades eletivas, eleições aleatórias e, muitas vezes, transitórias.

 

Em vista disso, interessa-nos pesquisar a presença estruturante do postulado milleriano —a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais—, bem como as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. Ao considerarmos que ele não deixa de estar relacionado ao Édipo, indagamos: e quando o recalque não opera?

 

O Segredo De C

 

C., 37 anos, foi internada em um hospital psiquiátrico da Rede Pública pela força policial, após ter agredido fisicamente sua vizinha, ameaçando-a de morte. Diz não ter privacidade em casa, “os vizinhos fazem a maior putaria lá”, querem roubar seu barracão e matá-la.

 

Natural de uma cidade no interior do estado de Minas Gerais, a paciente mora com seu atual companheiro, J, há oito anos em Belo Horizonte. Ela tem três filhos (de 20, 19 e 18 anos), frutos de um relacionamento anterior.

 

Segundo o prontuário, o quadro clínico foi desencadeado durante a gravidez do primeiro filho. Embora não se saiba muito sobre essa gravidez, C diz que em sua segunda gravidez deu à luz filhas gêmeas, mas que a médica responsável “roubou” uma das crianças: “é, a médica loira pegou a outra neném, porque eram gêmeas, né? Mas ela só me deu uma, que é a P.”

 

Quanto à sua própria mãe, C afirma que esta morreu há quatorze anos. Afirma também que não conheceu o pai, uma vez que “não era só um que deitava com sua mãe”. Ela se refere a ele como um “pai invisível”, não tendo o nome do mesmo em sua certidão de nascimento. Tem irmãos, mas não sabe ao certo quantos, sabe apenas que são filhos de pais diferentes.

 

No decorrer da entrevista, depois de falar abertamente, e sem qualquer incomodo, sobre a desorientação do gozo materno —de como à noite a mãe colocava lingerie preta e recebia homens em casa—, espontaneamente, e com um tom de cumplicidade, ela pergunta a entrevistadora: “posso lhe contar um segredo?” E, então, confidencialmente, afirma ser dona de uma frota do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Diz ter sido aconselhada por um guarda do Hospital G. V. a comprar ambulâncias como forma de investimento. Em função disso, não pode se casar, uma vez que, ao se enlaçar matrimonialmente, seus filhos deixariam de ganhar a parte que lhes é devida da renda gerada por essa frota da qual ela é dona.

 

A Família E O Inconsciente

 

Em O seminário, livro 5, As formações do inconsciente Lacan escreve a estrutura familiar com a formula de Metáfora Paterna. Nela, o pai entra como um nome, o Nome-do–Pai, como lei de interdição do incesto, e a mãe com o desejo (D), como um significante que obedece à lei de estar lá ou não. Os restos produzidos por essa relação metafórica, que atestam que o sujeito é apenas efeito de linguagem, Lacan os promove como objeto a. Eles mostram que algo foge da compreensão e clama por sentido, é onde prolifera um emaranhado de interpretações sobre o desejo do Outro. As soluções desses enigmas se encontram nos laços familiares e nos segredos neles presentes.

 

Miller (1997)[7] em “Los padres dans la direction de la cure”, diz que a forma como o sujeito foi separado de seu objeto primordial, como foi afetado, o fantasma que surge e o gozo recuperado dessa catástrofe, é o que aparece nas histórias de família que o sujeito conta. A família, então, é tida como uma resposta simbólica ao efeito do real, que tem como princípio a impossibilidade de se escrever a relação sexual.

 

Lacan reduz a ordem familiar à disjunção pai/genitor, em que “o pai não é o genitor” (LACAN apud COTTET, 2007, p.14)[8]. “É, de fato, o recalque desta oposição significante que preside a criação da família conjugal.” (COTTET, 2007, p.15)[9]. Entretanto, nem todas as famílias são edipianas, visto que não são todas que se ordenam pela metáfora paterna e que colocam em jogo o desejo enigmático da mãe. É possível que se desenhem famílias que não respondem à metáfora paterna, que não coloquem em jogo o desejo enigmático da mãe nem a lei de interdição ao gozo. Na falta da metáfora paterna, o que prevalece é um desejo errante, um desejo anônimo. Carmem Galano, em “Família e Inconsciente” define o desejo anônimo como “um desejo indeterminado, errante na metonímia das derivas significantes, um desejo que não se sabe de quem, não encarnado em um vivente particular, um desejo pelo qual nada, nem ninguém, responde.” (GALANO, 2007, p.17)[10].

 

Se o que prevalece é um vazio enigmático e um desejo anônimo, o sujeito pode acabar à mercê de uma ditadura do mais-de-gozar e de uma cultura da permissividade. Essa última, “bem como a crise da autoridade que acompanha o declínio do pai, exige uma transparência que abole os segredos da família, denuncia as hipocrisias, subverte as barreiras das gerações.” (COTTET, 2007, p.2)[11]. No entanto, a inexistência do segredo no romance familiar não é sem consequências para o sujeito. “Compreendemos bem porque o cristianismo inventou a Santa Família, pois é preciso nada menos que Deus para normalizar, normatizar, o gozo materno. O princípio de unidade, da Santa Família do inconsciente, é o segredo.” (MILLER, 2007, p.82)[12].

 

E Quando O Recalque Não Opera?

 

Na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, Lacan afirma que o Édipo, sendo ectópico, apresenta um problema: “abri-lo permitiria restaurar ou mesmo relativizar sua radicalidade na experiência” (LACAN, 1967/2003, p.261)[13]. Sendo a instância paterna, no primeiro ensino de Lacan, reduzida ao simbólico, o que ocorre quando esse significante é foracluído?

 

Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose”, Lacan trabalha a foraclusão do Nome-do-Pai, a qual, “pela carência do efeito metafórico, provoca um furo correspondente no lugar da significação fálica”. (LACAN, 1957-1958/1999, p.564)[14]. A carência dessa significação acarreta uma dificuldade para o sujeito em apreender o desejo do Outro e em circunscrever o gozo. Frente a isso, o que é foracluído no simbólico retorna no real, “retorna no real como gozo do Outro”. (MILLER, 1983/1996, p. 168)[15]. Na ausência do falo para significar o gozo, o que se observa é a invasão de um gozo outro, inédito e supremo.

 

Acrescido à falha no simbólico, a foraclusão do Nome-do-Pai “ressoa sobre a estrutura imaginária, ela a dissolve, a conduz à estrutura elementar chamada estádio do espelho”. (MILLER, 1983/1996, p.122)[16]. Essa regressão especular desnuda o objeto a, deixando o sujeito reduzido à sua miséria. Sobre essa dejeção e o valor extremo de gozo, que se condensa no mais-de-gozar, Miller aponta a exigência do mais-de-gozar como bússola para aqueles que carecem do significante mestre. Isso faz com que a liberdade do gozo prevaleça, embora, continua ele, a relação sexual se torne ainda mais impossível, uma vez que “para fazer existir a relação sexual, é preciso refrear, inibir, recalcar o gozo.” (MILLER, 2005, 13.)[17].

 

Como possibilidade de apaziguamento do gozo, no momento em que Um-pai é convocado, frente ao furo no simbólico surge a metáfora delirante. Passado o momento da perplexidade, no qual o sujeito se depara com fenômenos incompreensíveis para ele próprio, há a certeza que vem com o delírio.

 

Diante da falta do significante mestre, da transparência do gozo materno e da identificação ao objeto, prevalece um-dito que, aparentemente, não guarda qualquer segredo. Frente a ele, o sujeito não tem outra saída, senão utilizar suas próprias invenções. No caso clínico de C, acrescido à inoperância paterna, “um pai invisível”, encontra-se uma cultura da permissividade, avessa à privacidade. Ela começa pela mãe, mas não excetua os vizinhos que “fazem a maior putaria lá”.

 

A prevalência ditatorial do mais-de-gozar “devasta a natureza, faz romper os casamentos, dispersa a família, remaneja o corpo” (MILLER, 2005, p. 13)[18]. No caso de C, a transparência do gozo materno e a invasão desmedida que isso gera, a deixa privada de recursos simbólicos. Diante desse embaraço, restam suas invenções delirantes como tentativas de limitar o gozo.

Diferentemente da neurose, em que o não-dito cabe ao segredo, nesse caso, em que o recalque não opera e, com isso, o gozo da mãe não está ordenado pelo significante fálico, a dimensão de não-dito incide sobre a forma delirante com a qual C trata o real de gozo. Curiosamente, são as suas construções delirantes, tentativas de cifrar esse real de gozo, que ela, de algum modo, mantém em silêncio. Paradoxalmente, aí também um segredo organiza as relações familiares.

 

 

 

 

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] LÉVI-STRAUSS, Claude. (1947) As estruturas elementares do parentesco. Petropólis:Ed. Vozes, 2009.
[2] ———————————-. (1970) “La familia”. In:——. La mirada distante. Buenos Aires, El cuenco de plata, 2015.
[3] Ibdem.
[4] BROUSSE, Marie-Helene. “Um neologismo de actualidad: La parentalidad”; In: TORRES, Monica E. Uniones Del mismo sexo: diferencia, invención y sexuación. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010.
[5] JACQUES, L. (1975) “Conférences et entretiens: Columbia University. Le symptôme”.Scilicet, n.6-7, Seuil, Paris, 1976.
[6] MILLER, J-A., (2007) “Assuntos de família no inconsciente”. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007.
[7] MILLER, Jacques-Alain. (1997) “Los padres dans la direction de la cure”. Quarto, Revue de psychanalyse, n.63, Automne 1997.
[8] COTTET, Serge “O avesso das famílias: o romance familiar parental. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007. Acesso em julho de 2016.
[9] Ibdem.
[10] GALANO, Carmen. “Familia e Inconsciente”. Revista de Psicanálise Stylus: Familia e Inconsciente. N.º15, p.11-24. Associação Fóruns do campo Lacaniano. Novembro de 2007.
[11] COTTET, Serge “O avesso das famílias: o romance familiar parental. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007. Acesso em julho de 2016.
[12] MILLER, J-A., (2007) “Assuntos de família no inconsciente”. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007.
[13] JACQUES, L. (1967) “Proposição de 09 de outubro para o psicanalista da Escola”. In: —————–. Outros Escritos. Rio de Janeiro:JZE, 2003.
[14] JACQUES, L. (1957-1958) O Seminário, livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro:JZE, 1999.
[15] MILLER, Jacques-Alain. (1983) “Suplemento Topológico a ‘De uma questão preliminar…’. In:———-. Matemas I. Rio de Janeiro:JZE, 1996. p.119-137.
[16] Ibdem.
[17] —————————-. “Uma fantasia”. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Fevereiro 2005, n.42. São Paulo: Edições Eolia, 2005.
[18] Ibdem.
LACAN, Jacques. ————————. (1968) “Nota sobre a criança”. In:—–. Outros Escritos. Rio de Janeiro:JZE, 2003.
———————-. (1983) “Des-sentido para a psicose!”. In:———-. Matemas I. Rio de Janeiro: JZE, 1996. p. 162-170.
———————–. “Leitura crítica dos “Complexos familiares”,de Jacques Lacan”. In: Opção Lacaniana on line. Acessado em novembro de 2016 em: www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/jamleitura.pdf
———————-. “A invenção do delírio”. In: Opção Lacaniana on line. Acessado em novembro de 2016 em: ww.opcaolacaniana.com.br/antigos/pdf/artigos/JAMDelir.pdf
MALEVAL. Jean Claude. “Lógica del delírio”. Acessado em novembro de 2016 em: https://drive.google.com/drive/folders/0B1xRnCyxqy5ndU11N05tTlV0aGs

Laura Félix Reis Maciel / Márcia Rosa
Laura Félix Reis Maciel. Graduada em Psicologia pela UFMG em 2017. Pesquisadora de Iniciação Cientifica com bolsa da FAPEMIG (2014-2015). Rua São Roque 676 apto 401. Sagrada Família. Belo Horizonte. MG. Fone 996712242. laurafelixreis@gmail.com
Márcia Rosa. Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Doutorado em Literatura Comparada (UFMG). Professora na Pós-Graduação em Psicologia (UFMG). Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Rua Xingu 115. Alto Santa Lúcia. Belo Horizonte. MG. CEP 30360690. Fone (31)996176443. marcia.rosa@globo.com



Esse X – PATRICK MONRIBOT

PATRICK MONRIBOT

 

Ela se lembra de um detalhe que considera “divertido”. Ela designa sistematicamente seu analista pelo apelido de “Senhor X”, um hábito que faz rir seus amigos. De que se trata, de uma descrição indispensável, ou de um mistério intrigante? O status desse anonimato é revisto quando seu analista lhe pergunta “Mas enfim, quem é esse X?” (Qui est sous ce X). Inesperadamente, suas lágrimas correm. Mas ela entendeu “Qui est-ce sous X” (“Quem não foi registrado e dado anonimamente à adoção?”)[i]. Atônito, ouço, depois de vários anos de análise, o que foi até então um segredo absoluto, ela pariu um bebê sem registrá-lo (“sous X”) e entregou-lhe para adoção. Ela disfarçou sua gravidez engordando, ninguém viu nem percebeu nada, nem mesmo o homem com quem então dividia sua vida. Ela se justificou com vários argumentos, como o da sua pouca idade, o conhecimento tardio da gravidez, a provável agressividade do parceiro violento, a certeza de que seria desaprovada por sua família argelina, que não aceita gravidez antes do casamento… Em suma, foram muitas explicações relevantes que não esclareciam o enigma de sua escolha, ainda mais porque, posteriormente, solteira, ela teve duas crianças de parceiros diferentes, sem ter se preocupado demais. Duas crianças que, por sinal, não se traduziam na presença de um laço: “É difícil ser mãe”, dizia ela, “sou uma sem-família.”

 

Vie perdue 

 

O segredo revelado, a confrontação da palavra precipita sua divisão. “Não é um abandono”, disse ela. “Aliás, como poderia abandonar uma criança que não reconheci?” A observação é justa – o procedimento do abandono não é esse do “sous X” – mas ela não se ilude com seu enunciado, pois foi ela quem introduziu o significante “abandono” em sua análise. A palavra desvela o pensamento e, o que ela falou, fica falado. Uma certa versão significante do caso a captura em seu caminho. Posteriormente, é ela quem aparece – no plano da fantasia – como a criança abandonada! No entanto, há mais do que a ficção para se coser. Ela desenha os contornos de uma outra dimensão, a do objeto. Com as sessões, essa criança se constitui menos um objeto abandonado do que um objeto perdido. Perdido no sentido freudiano do termo, pois essa menina – da qual se conhecia apenas o sexo – lhe foi “roubada”, “extraída de seu corpo”, dentro do procedimento clássico, anestesiada, antes mesmo de tê-la tido como sua, antes mesmo de tê-la visto, conhecido e reconhecido. Na fórmula apresentada originalmente, “elle est perdue de vie” [ii], perdida à vida, cuja tradução “ela não está na minha vida, eu não estou na sua.” A temporalidade é um elemento notável dessa análise, visto que a criança se torna uma perda dezoito anos depois e não na ocasião do nascimento. Sessão por sessão, ela passa de um fato inicialmente chamado pudicamente de “a coisa” – se referindo à gravidez e ao parto escondidos –, um objeto perdido, mas perdido après-coup. É o início de um luto estranho que se resume em uma frase: “Posso perder o que nunca tive?”.

 

tchau [au revoir] 

 

Essa perbolação necessita de análise. A construção de seu romance familiar supõe uma versão do pai. Ela não fala quase nada de sua mãe – que hoje vive na França separada do marido –, apenas em termos de devastação, assim como dos seus irmãos, apresentados como metonímia do ódio materno. Desde seu nascimento, a mãe decepcionada briga com ela por conta da cor de sua pele, que julga muito escura, pois mais para negra, ela manchava a família. O pai aposentado voltou para a Argélia, onde refez sua vida. Ela se lembra de algo essencial, quando criança e ainda estava no Magrebe: ela acreditou que seu pai tinha lhe abandonado, um traço selado, digamos, no fantasma. Numa certa manhã, ele já não estava mais no vilarejo. Sua mãe era um túmulo, nunca lhe deu qualquer explicação, vivia essa forma opaca de gozo. Na verdade, o pai decidiu emigrar para sustentar sua família, não para a destruir, o que ela só soube depois, quando foi à França para se juntar a ele. Assim era a pintura historicizada. Ela me anunciou uma descoberta, que o traumatismo é menos da partida do pai que do seu silêncio. “Ele foi sem me dizer tchau”. Interrupção imediata da seção, curta, nesse dia, para pontuar o dito silêncio paterno, mas com um ato preciso, eu lhe disse “tchau” insistentemente. A sessão seguinte será ainda mais curta, pois antes mesmo de entrar na sala, ela se confunde e me diz “tchau” no lugar de bom dia. O lapso me obriga, eu a tomo ao pé da letra, a conduzo à saída, ela ri, ela chora e consente em pagar. A primeira sessão é uma pontuação sobre o significante “tchau” – ela lhe dá consistência –, a segunda é um corte no significante – ela o desconstrói –, indicando a continuação. Como continua?

 

Perdu de vue 

 

O significante “tchau” [au revoir] se difrata e toca o real. Primeiramente, ela decide contactar o pai depois de muitos anos, “perdu de vue”. Eu aprovo. Ela vai revê-lo [revoir] num canto perdido da Argélia, pouco antes da morte do velho, e lhe apresenta suas duas crianças. Quando ela volta, comenta: “É a primeira vez que minhas crianças vêm um pai.” Não será a última, pois ela tece um laço inédito entre elas e seus pais respectivos, que eram até então simples genitores afastados pelas brigas. Mais ainda, ela passa a guarda do caçula ao pai, que já a tinha pedido. “Esse arranjo não é um abandono”, diz ela, “não sou menos mãe por isso, pelo contrário!” Ela tem razão: não fala mais de sua impotência “de ser mãe” e constitui pela primeira vez uma família, mesmo que decomposta. Uma família ao avesso, de certa maneira…

 

Outro efeito das duas sessões curtas: a questão do pai “perdue de vue” se encadeia a essa da menina “perdue de vie”. Ela a encontrará também? Aliás, ela realmente quer?

 

Interrogar assim seu desejo – ela realmente quer? a divide e faz surgir o objeto pulsional no princípio de sua divisão. Um dia na televisão, ela acredita “reconhecer” [sic!] essa menina nunca vista, por conta do olhar particular de uma jovem figurante mestiça sobre o palco. É o mesmo olhar inesquecível que esse de seu próprio pai. Nenhuma certeza, mas… e se for ela? Desde então, o objeto escópico invade a cena analítica e dará à transferência seu gosto especial. É o momento escolhido para que ela deite no divã.

 

O objeto a – o olhar – surge de trás da criança desconhecida e não é o objeto perdido freudiano. Através do pai morto que ela não verá novamente, através da menina nunca vista, pelo analista agora subtraído do seu campo de visão, um olhar aparece, com todo seu peso, colorindo a transferência: “Não vejo se você me vê”, diz ela deitada no divã, exacerbada.

 

Bricolage [iii] 

 

Refazendo os laços com a série dos pais, ela abre mão do gozo de ser uma sem-família. Certamente a partir de onde ela estabelece um laço mínimo com sua mãe, que aceita, enfim, receber seus netos… Viável por uma devastação temperada. Sim, uma família torna-se possível para ela, mas sob fundo da perda do pai, do caçula que se vai e da criança sous X, que não voltará jamais. A possibilidade de fazer família existe então a partir de um objeto perdido – a criança – e a partir de um objeto de gozo reencontrado o olhar. “Essa família”, diz ela, “é feita com o que se encontra pela frente, é puro bricolage!” Assim seja. Mas haveria, para quem quer que seja, uma família que não seja bricolada? De fato, a composição não é realmente edipiana, apesar do reencontro do amor pelo pai morto. Não que essa jovem esteja em uma foraclusão psicótica do Édipo, mas a família que ela está recompondo não obedece a uma lógica edípica clássica. O declínio da função paterna próprio à nossa época se destaca nessa família desenraizada e devastada. O único arranjo lhe permitindo tecer um possível laço se obtém a partir do gozo. Saber lidar com os modos de gozo de cada um foi o grande progresso de sua análise, percebido no seu “reatamento” familiar tão pouco tradicional. Daí a dúvida dessa formação composta que se chama família. Uma família claudicante que constrói atualmente a fundação de sua queixa: está sempre ruim! Em outras palavras, ela construiu um sintoma.

 

Qual é a alquimia desse enlaçamento? O primeiro ingrediente é a criança impossível. “Sous X” lhe aparece como nome do real. “Não conheço seu nome nem seu sobrenome”, disse, “não imagino como ela é. Um dia eu disse ‘minha filha’, mas soou falso. Não tenho as palavras pra falar dela. É isso mesmo, o ‘sous X’!” Sobra apenas um olhar efêmero e suposto, efetivamente um verdadeiro resto, em um oceano de perdas. Esse é o outro ingrediente do caso, a pulsão escópica emergindo no contexto da análise.

 

O que nos ensinam as medidas dessa análise ainda em curso? Uma sequência lógica está se desenhando. Partimos de um puro gozo silencioso, ligado a esse da mãe. A confissão “da coisa” leva a forjar um objeto perdido sobre um fundo do qual aparece um mais-de-gozar, o olhar. Ela pode então se proclamar mãe e constituir uma família hoje sintomatizada. Para se produzir cada etapa, precisou de uma intervenção, um ato do analista – isso não acontece por si só. Observamos, enfim, o seguinte deslocamento: a opacidade do gozo materno deu lugar a um gozo pulsional, escópico, no caso. Apenas os desfiles transferenciais da demanda permitem pacientemente aferir tal objeto. Como resultado, a devastação e a errância do “sem-família” se atenua em proveito de uma vida sintomática “em família”.

 

Esperança 

 

Então, esperança no epílogo? Questão recente e dolorosa: ela colocará uma carta na pasta DDASS[iv] dessa menina, quando, segundo suas palavras, a lei lhe permitiria acesso à menina até que ela completasse seus 18 anos? Depois disso, ela supõe, sua escolha será irreversível, e o prazo termina em cinco semanas. Suspense… Me informei e ela se enganou, a criança pode consultar seu arquivo depois de seus 18 anos, mas não há prazo para que a mãe possa deixar um traço que lhe identifique. Esse engano grosseiro – e que engano! – indica bem um impossível, verdadeiro ponto de exclusão de onde se inicia um novo círculo não muito redondo de uma família recauchutada. Essa criança nascida sous X não pode ser reavida. Oh! Ela não renuncia ao arquivo de sua filha, é verdade, mas atarda a possibilidade de dar um sinal, apesar da pressão dos amigos, agora informados da existência de sua filha.

 

“Devo ou não fazer?” Não é assim que ela se coloca a questão. Ela não cede às pressões do supereu e aposta na análise para esclarecer seu desejo, ainda opaco, para tomar a decisão na hora certa. Por enquanto, ela mantém o X. O caso continua…

 

 

[i] A expressão francesa sous X designa o parto onde o recém-nascido não é registrado pelos seus pais e entregue a uma instituição para adoção. Os pais têm o direito de permanecer anônimos. A criança não guarda laços de filiação com seus genitores e não recebe o sobrenome deles. Ver mais a respeito no serviço de informação do governo francês: https://www.service-public.fr/particuliers/vosdroits/F3136 (acesso em 13/12/2016)
[ii] Perdue de vue, com um “u” est a fórmula francesa corrente que literalmente se traduz por “perdido de vista”, ou sem contato visual, de tão longínquo. A expressão “Perdue de vie” é construída pela paciente e se traduz literalmente por “perdida de vida”.
[iii] Termo francês que designa trabalhos realizados sem um projeto previamente estabelecido, com ferramentas limitadas, e que não são fabricadas especialmente para as funções específicas de um projeto. Foi introduzido como conceito na história das ciências humanas por Claude Lévi-Strauss, (La pensée sauvage, Plon, 1962, Paris). Essas condições fazem Lévi-Strauss opor o bricoleur ao engenheiro.
[iv] Direction départementale des affaires sanitaires et sociales é a extinta instituição à qual se atribuía a função social do cuidado com as crianças.

 

 


PATRICK MONRIBOT
Tradução: Renato Sarieddine
Revisão: Márcia Bandeira
Patrick Monribot: ECF/NLS/AMA: monribot@wanadoo.fr



Grandeza E Miséria De Um Nome

YVES DEPELSENAIRE

 

O patronímico desse sujeito condensa toda sua neurose. Alguma coisa como uma “falsa ascensão”[i], a combinação de um nome plebeu e um aristocrático, ao mesmo tempo, como é nos célebres (Giscard D’Estaing e Galouzeaus de Villepin).

 

Marca de uma distorção da verdade, índice de um erro no registro do bem-dizer, o memorial de uma infâmia, aos olhos da história. Fonte de vergonha, por longo tempo ele foi reduzido pelo sujeito a sua primeira parte, tipo de letra encarnada, não consentida, contrastante, estranha, com sua distinção de linguagem e costumes.

 

Sobriamente elegante, pensativo, cortês, culto, trata-se de um homem na casa dos quarenta, oficial sênior em uma instituição internacional. Ele decide empreender uma análise por arrastar um rancor amargo após uma ruptura sentimental que retorna depois de muitos anos e, porque em sua função, era confrontado por conflitos difíceis com seu país de origem, que o incomodavam.

 

O sucesso profissional desse único homem, entre os irmãos, pela dolorosa exigência parental de estar à altura de seu nome o exclui precocemente das brincadeiras com sua três irmãs para permanecer em sua mesa de estudos. Ele conserva, entretanto, as lembranças alegres de seus primeiros anos passados em um país africano no qual seu pai, diplomata, recebeu o título de administrador colonial após a repressão sangrenta de revoltas. Onde ele foi frequentemente confiado a uma babá cuja afeição contrastava com a frieza maternal. Agora, ele verifica que a história colonial não é sem relação à origem da fortuna da família, que remonta ao tempo do comércio trilateral dos mercadores de escravos entre a França, a África e as Antilhas.

 

Ao se conscientizar de tudo isso durante a adolescência, o sujeito, habitado por uma nostalgia da África, entra em conflito com seu pai e toma horror das aclamações contínuas da nobreza de seu nome próprio, adquirido alhures. Por um longo tempo ele se apresentará usando somente a parte plebeia de seu nome, em que o paradoxo faz ressoar, de modo poderoso, a dimensão de cruz e de impostura. Não escapa, de modo algum, a esse analisante, que seu pai não é mais que um elo, na cadeia de um discurso, como sugere Lacan, quando evoca, no Seminário 2[ii], a herança do pai, como seus pecados:

 

Estou condenado a reproduzi-los porque é preciso que eu retome o discurso que ele me legou, não só porque sou filho dele, mas porque não se para a cadeia do discurso, e porque estou justamente encarregado de transmiti-lo em sua forma aberrante a outrem. Tenho de colocar a outrem o problema de uma situação vital onde existem todas as probabilidades que ele também venha a tropeçar, de forma que este discurso efetua um pequeno circuito no qual se acham presos uma família inteira, um bando inteiro, uma nação inteira ou a metade do globo (p. 118).

 

O sujeito, de fato, acusa menos seu pai de sua participação na administração colonial de que sua falta de reflexão sobre isso e do estilo de enunciação de suas certezas. É desse discurso que ele tenta se separar, esse de seu pai, certamente, mas também o de um bando – a aristocracia, um campo –, a contrarrevolução da Vendée[iii], uma nação que possui um passado colonial mal assumido. Presumivelmente, uma culpa do pai mais diretamente em relação ao prazer sexual está correlacionado a essas condições. Pois é ao preço de sintomas que tornam complicada e até condenam ao fracasso sua vida amorosa.

 

A mulher amada é para ele como Mary Poppins voando com seu guarda-chuva, cena que o levou às lágrimas durante sua primeira ida ao cinema. Nos compromissos arrastados por muitos anos, e, de repente, a quebra das promessas, escolhidas no modelo austero da mãe, que culminaram em relações, pelo contrário, ele se sente obrigado a terminar logo que a mulher esboça sua demanda ou que um compromisso pudesse se estabelecer, isto é, logo que se aproxima a perspectiva de se tornar pai. Ser o último de uma “falsa ascensão” é a maneira como paga a dívida que herdou com seu próprio nome, a neurose por meio da qual ele protesta, como Lacan diz sobre o Homem dos Ratos. Sem pagamento em direito comercial, o protesto é também o ato por meio do qual essa falha é contatada pelas autoridades judiciais. Daí o simulacro de reedição da dívida que constitui para esse analisante o sacrifício de seu desejo de paternidade.

 

Tendo rapidamente desenvolvido em sua análise as coordenadas de sua história, ele sonha, então, em se desvencilhar dela para obter o direito de um outro sobrenome. Ele se vale, para tal, da figura de um antigo vinicultor da linhagem materna – que era uma fonte de vergonha por um momento em que ainda isso era socialmente uma desonra –, que cometeu suicídio, o que não trouxe muitas contribuições.

 

Uma sepultura lhe foi negada no cemitério da cidade, de modo que foi enterrado em um bosque de uma comunidade vizinha. Em sua infância, o analisante acompanhava, às vezes, seu avô materno em uma caminhada melancólica, durante a qual arrancava as ervas daninhas que invadiam o túmulo. É o nome da comunidade onde se situa esse túmulo anônimo, marcado por uma simples cruz, que ele sonha carregar.

 

Em apoio a um desejo do qual ele se sente despossuído, ele faz um Nome do Pai surpreendente, nome do pai deserdado, a imagem do túmulo do ancestral arruinado, exilado, sem carregar culpa de qualquer má conduta. A vinha de que derivou seu sustento tinha sido destruída pela filoxera.

 

O que dizer dessa nova Nominação? Processo de inocência? Mortificação decidida? Ele não trabalhava em análise essa solução imaginária e, a princípio, eu, erroneamente, me preocupei um pouco. Se ele renuncia a ela, é, de fato, que através dela, ele pode perceber de um novo modo seu nome odiado. A parte aristocrática do nome designa um lugar chamado exatamente como o pseudônimo que ele visava. Ele é reduzido a um nome comum, de uma comunidade qualquer, precisamente. Em seu sobrenome reduzido a qualquer significante, de repente deixa então de ressoar o pecado que a herança pesou sobre os seus ombros. O alívio dos sintomas advém; a tensão que viveu em suas relações com a família, e também em sua vida profissional, se dissolve e se descola de seu ressentimento tenaz em relação às mulheres. Em relação à paternidade, é um desejo que não parece proibido; a questão, em todo caso, agora está aberta para ele.

 

 

 

[i] Tradução livre da expressão original “Faux de la Haute Levée”.

[ii] LACAN, J. (1954–55) O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

[iii] Relativa a região francesa Vedée.

 

 

 

 


YVES DEPELSENAIRE

Tradução: Lilany Pacheco Revisão: Juliana Sander




Avatares E Atualidade Do “Complexo De Intrusão”

JEAN-DANIEL MATET

 

O destino do Complexo de Édipo e o que está para além dele selam o destino da família pela estrutura fora da natureza da transmissão humana que eles condicionam. Nesse ponto, a família lacaniana é, numa primeira abordagem, bem semelhante à família freudiana. Será que poderíamos dizer que a diferença entre “neurose familiar” e “psicose de tema familiar”, introduzida por Lacan nos Complexos Familiares[1] para declinar as variedades patológicas da família, teria sido reduzida posteriormente no seu ensino pelo lugar dado ao Nome-do-Pai e suas modalidades? Essa diferença indicava a falha do laço social nas psicoses e fazia do sintoma neurótico o sintoma familiar por excelência, na melhor inspiração freudiana.

 

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud sublinha a solidariedade existente entre o que ele chama então de psicologia individual e psicologia coletiva. Lacan dará importância a essa fonte freudiana durante todo o seu ensino: o outro “[…] está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um auxiliar, um oponente […]” (FREUD, 1921/1976, p. 91)[2].

 

A irmandade: uma pequena multidão freudiana

 

Os irmãos e irmãs são muitas vezes a primeira multidão com a qual o sujeito é confrontado, condicionando, em parte, o estilo das suas futuras relações sociais. As famílias se revestem de formas diferentes, segundo as tradições que as organizam; a etnologia nos deu as mais precisas descrições sobre isso. A “contração” da instituição familiar descrita por Lacan (1938/2003, p. 32), reduzida ao casal parental e a um ou dois filhos, não deixa de ser ainda hoje muito atual. O que mudou, como observou Éric Laurent, foi a importância do casamento e se o filho único não desapareceu – é comum hoje que a família se amplie pela recomposição, tendo em vista que o contrato de duração determinada substituiu o “para sempre” das coabitações parentais. A família não é mais somente o lugar da transmissão filial, distribuindo entre os irmãos e irmãs um estatuto suscetível de variar e de marcar, assim, a vida social. Havia antes os irmãos de sangue e os irmãos de leite, há hoje os meios-irmãos e irmãs que não tem, às vezes, nenhuma ligação de sangue, caso a recomposição da família já tenha conhecido várias etapas.

 

O psicanalista poderia ficar tentado a abandonar ao sociólogo, ao etnólogo ou ao sistemista essas considerações sobre a família, preferindo se ocupar somente dos destinos sintomáticos do sujeito, qualquer que fosse seu modo de existência social. Freud, que passava longe do risco de dizer uma banalidade, justificava essas considerações sobre os irmãos e irmãs pela distância que ele constatava existir entre o ideal social da família e a realidade das relações fraternas, citando, para esse propósito, Bernard Shaw: “Via de regra, só existe uma pessoa que uma menina inglesa odeia mais do que a sua mãe; é a sua irmã mais velha” (FREUD, 1915-16/1976, p. 246)[3]. A concorrência e a rivalidade entre irmãos e irmãs são, portanto, inerentes à irmandade e corroboram, assim, a observação feita por Freud (Ibidem), segundo a qual não poderia haver uma nursery sem conflito entre seus habitantes, sendo o desejo de monopolizar, em seu proveito, o amor dos pais, a possessão dos objetos e do espaço disponível ao seu motor.

 

Enodamentos singulares

 

Um sujeito dispensa todos os seus esforços para assegurar a legitimidade de seus meios-irmãos e irmãs. Durante toda a sua vida, os pais não fizeram nada para abolir a distinção entre os filhos nascidos fora do casamento e aqueles que tinham chegado depois. Com um desejo apaixonado de reparação familiar, esse sujeito vai tentar abolir o que é percebido como uma injustiça na distribuição do amor parental. Essa determinação fantasmática toma consistência no contexto de uma família recomposta, que coloca o filho em posição de adotar ou rejeitar um ou outro recém-chegado. Essa tentativa de impor a seus irmãos e irmãs uma justiça erigida como dogma, que viria corrigir as falhas dos pais, presentifica, para esse sujeito, seu esforço para assumir o erro paterno, mas ele não encontra, entretanto, a aprovação que esperava.

 

Quem, senão os pais, decide que se é irmão ou irmã numa família recomposta? Entretanto, o estatuto contratual ou legal não basta mais para definir os lugares ocupados por cada um numa família. Assim, filhos que não têm nenhum laço de consanguinidade, pois são enteados de uniões precedentes, poderão se reconhecer como irmãos e irmãs. Meios-irmãos e irmãs quererão, ao contrário, ignorar a fraternidade deles. O esforço dos pais para fazer existir esses laços familiares é certamente determinante, mas deixa uma parte da decisão a cargo do filho, que a legitimidade vela em uma irmandade consanguínea. Ora, apesar de não interrogar objetivamente a legitimidade do lugar de cada um, a irmandade tradicional é, entretanto, a balança do valor de cada um.

 

O sujeito interpreta, persegue eventualmente o objeto que ele foi para sua mãe e sua conjuntura de nascimento no desejo de seu pai. Caçula ou primogênito, o lugar ocupado na irmandade não é indiferente: ao contrário, ele constitui a especificidade da conjuntura do nascimento de um filho numa irmandade e dos traços que vão alimentar seu romance familiar. Houve um tempo em que, nas irmandades numerosas, além das mortes dos filhos pequenos, determinadas pelo estado sanitário da época, o papel de cada um era predeterminado. As filhas mais velhas ajudavam a mãe com os mais novos quando não estavam destinadas a alguma união. Quanto aos rapazes, estes encontravam um lugar em função da posição e da fortuna familiar; numa fazenda, no exército ou na igreja eles asseguravam o funcionamento patrimonial ou estavam condenados a vender sua força de trabalho à melhor oferta. Hoje, os traços de uma tal determinação são visíveis unicamente nas famílias reais que fazem a alegria dos tabloides especializados.

 

No império da subjetividade, libertação de uma mulher, entre irmã e filha

 

Na família contemporânea, os irmãos e as irmãs dependem do arbitrário de sua subjetividade. Assim, uma caçula de dois filhos deduzia sua própria inutilidade do seu lugar no discurso parental e do papel exercido por sua irmã mais velha: por um lado, ela podia dizer que se parecia com seu pai e que era a preferida da mãe, por outro, ela atribuía seus sintomas aos efeitos da devastação materna e à vontade que ela tinha de ser a eleita do pai.

 

Para um sujeito masculino, tratava-se de perceber, durante uma longa análise, a partir da morte de um irmão e do aparecimento de uma fobia dos meios de transporte, o que foi interpretado por ele como irreparável, ao passo que, para um outro sujeito, que veio fazer tardiamente uma análise, era a supervalorização da qual ele foi objeto por parte do pai, que era problemática.

 

Ora, tanto para um quanto para o outro, a morte de um irmão sancionara uma vida malsucedida, apesar de um grande investimento materno. O sucesso social fora favorável aos dois, sem que isso abalasse sua parceria sintomática com uma irmã um pouco mais velha do que eles. Quanto ao primeiro sujeito, a lembrança de uma brincadeira com sua irmã, na qual ele negava ao caçula de sete anos sua qualidade de irmão, atribuindo-lhe outros pais, diz muito sobre sua intenção segregativa. A seu modo, esses dois sujeitos são herdeiros, herdeiros do pai e da culpa que o acompanha, herdeiros do Édipo como sintoma.

 

Ao contrário, uma distribuição justa aparentemente aconteceu com um sujeito feminino, verdadeiro herdeiro, assim como seus numerosos irmãos e irmãs, da fortuna de uma avó. Ela decidiu começar então uma análise para suportar não ser mais uma assalariada do setor social e imaginar um futuro de far niente. Aconteceu que, para gozar da herança, ela deveria renunciar a um outro gozo que a depreciava e que a deixava no nível de uma medíocre desocupada com sonhos de artista “bricoleur”. Um sintoma acompanhava suas aspirações a uma vida religiosa, a uma vida de oferenda de sua própria vida, que lhe fazia endossar o apelido de uma santa: as relações com os homens às quais, entretanto, ela aspirava, causavam-lhe um grande pavor. Ela se queixava de uma castidade inevitável e persistente que lançava numa atividade fantasmática toda prática sexual. A fraternidade era seu principal modo de se relacionar, assegurando seus apoios ao sintoma, depois de ter-se refugiado numa coletividade religiosa, não sem que suas relações intensas com seus irmãos e irmãs persistisse. Admiração e irritação pelos irmãos mais velhos, especialmente pelas irmãs, desprezo pela mais nova e por seu sucesso universitário fácil demais, constituíam a sua trama. Tinha uma relação privilegiada com a irmã um ano mais nova e com a qual dizia compartilhar aspirações artísticas e também sintomas, o que constituía a base de sua conivência. Colocar à prova na análise o que ela concebia como uma nova relação fraterna, a valorização pelo analista de todos os seus projetos “egoístas”, para retomar a expressão de Freud (1915-16), tiveram como efeito a decisão de retomar seus estudos e uma atividade assalariada à altura de seus novos diplomas, cultivando um modo de satisfação que até então ela negava a si mesma. O avesso da conivência com sua irmã caçula, feito de rivalidade e de aversão odiosa, surgiu então; ele permanece, aliás, alguns anos depois, sob a forma de uma irritação. O modo fraterno foi interpretado pouco a pouco como algo que encobria o conjunto das relações desse sujeito com o mundo, incluindo os pais, o pai procurando sempre imperativamente a cumplicidade de suas filhas para compartilhar seus prazeres musicais ou literários. Foi para ela uma revelação tomar conhecimento da intensidade carnal da relação de seus pais. Um sonho recente faz intervir o pai como sedutor. Numa atitude erótica sem equívoco com a paciente, o pai a chama pelo apelido de uma tia materna considerada um ícone de beleza e explicitamente rival da mãe. Esse sonho só vinha confirmar o que já tinha acontecido muitos anos antes, quando ela tinha enfim decidido aceitar as investidas de um sedutor muito mais velho do que ela, que inaugurou sua nova e tardia vida amorosa. Fazer parte da série das mulheres desejadas por esse homem não era um obstáculo, mas, ao contrário, uma condição sine qua non. Nenhum ciúme, nenhuma reivindicação de exclusividade apareceu em uma relação que deveria ser efêmera, mas que durou, apesar de tudo, durante vários anos, revelando ao sujeito os benefícios da atuação de um desejo sexual. Quando percebeu que sua satisfação não estava à altura do que ela mostrava diante das exigências do amante, sentiu esse quiproquó como uma mentira e pôs um fim nessa relação. Temendo, além disso, que a conjuntura específica dessa ligação a tornasse única, ela tentou se colocar à prova com outros parceiros. Esse sujeito atribui explicitamente seu sucesso profissional e a atuação do mal-entendido amoroso ao sucesso terapêutico de sua análise. Ela descreve o seu tratamento como uma operação de abandono de vestimentas sucessivas: a santa, a neta preferida da avó paterna, a irmã generalizada, fazendo com que ela se reaproximasse do que considera o campo dos gozadores em detrimento do campo dos deprimidos, no qual ela coloca vários dos seus irmãos e irmãs, dentre eles sua irmã mais nova, que continua a irritá-la. Essa evolução aconteceu ao preço de um abandono da questão do filho que ela não pode esperar do pai, segundo a tradição freudiana, introduzindo, assim, na análise, um limite na borda do que a determina como objeto para o outro, já que o poder do “semelhante ao mesmo” da grande irmandade se impôs.

 

Atualidade política do complexo de intrusão

 

Lacan constata, a respeito do seu “complexo de intrusão” nos Complexos Familiares, que a observação experimental da criança e as investigações psicanalíticas, ao demonstrarem a estrutura do ciúme infantil, colocaram em evidência seu papel na gênese da sociabilidade e do conhecimento humano. O ciúme, na sua essência, representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental, acrescenta ele. A doutrina da psicanálise faz do irmão o objeto eletivo das exigências da libido homossexual, insistindo na confusão desse objeto de duas relações afetivas, amor e identificação, cuja oposição será fundamental para o estágio ulterior.

 

Encontramos no adulto essa ambiguidade original na paixão do ciúme amoroso – poderoso interesse que o sujeito demonstra pela imagem do rival (apesar de ele ser afirmado como ódio) ou em ser motivado pelo pretenso objeto do amor. Esse sentimento amoroso o domina tanto que ele pode ser interpretado como interesse essencial e positivo da paixão. A agressividade máxima encontrada nas formas psicóticas da paixão está constituída pela negação desse interesse particular, mais do que pela rivalidade que parece justificá-la.

 

Em seu ensino, Lacan faz frequentes referências às irmandades, retomando os casos freudianos do pequeno Hans, de Dora ou da jovem homossexual, comentando os casos de fobias de Anelise Schnurmann ou de Hélène Deutsch, a psicose das irmãs Papin, colocando a invidia agostiniana como uma referência maior e, sobretudo, dando todo o peso à tragédia de Antígona no Seminário VII, A ética da psicanálise.

 

Em 1972, na via de seu “Há Um”, no Seminário inédito …Ou pior, Lacan faz o elogio do Parmênides de Platão, que antecipa a dialética do mestre e do escravo de Hegel. Ele supõe o mito histórico no qual, para além das relações do mestre e do escravo, somos todos irmãos, enquanto filhos do discurso. Uma fraternidade que traz certamente as “armas e bagagens familiares”, diz ele, e que faz do analista o irmão do analisante, enquanto o analista tiver que suportar a abjeção à qual pode se agarrar o que vai nascer do dizer, não sem o bem-dizer da interpretação à qual o analista é convidado. “Nosso irmão transfigurado, é isso que nasce da conjuração analítica e é o que nos liga àquele que impropriamente chamamos de nosso paciente” (LACAN, 1972)[4]. Mas, não é sem medo de um retorno violento que Lacan evoca a noção de irmão nesse contexto da visada da análise. A essa nota universalizante, que ele nos lembra ser regulada pela exceção paterna, aquela que diz não à castração para melhor assegurar o seu alcance, ele opõe o aumento dos perigos. Retornando “à raiz do corpo”, na fraternidade do corpo, é a verdade do racismo que se anuncia e cujas últimas consequências ainda não vimos.

 

A nova aposta de Pascal

 

Antecipação luminosa quando, trinta anos depois, um telefilme intitulado Pascal e o irmão mais velho tem um sucesso de audiência em um momento em que há um aumento das segregações comunitárias. Trata-se de um educador nomeado para cuidar de uma adolescente com dificuldades, que mantém uma relação apocalíptica com sua mãe, que quer colocá-la numa instituição. O milagre opera e o educador, que soube fazer valer os argumentos de autoridade sob a máscara da fraternidade, tem sucesso na operação. É, aliás, a isso que a ideia do “irmão mais velho” se refere, herdeiro do antigo direito de primogenitura. É ele que suscita a confiança de todos os irmãos, que é amado como um irmão ao mesmo tempo em que ameaça e exerce a sua autoridade.

 

Pode-se observar que, além das caricaturas de políticos, o termo “irmão mais velho” era atribuído, na época da Guerra Fria, a uma potência estrangeira que, compartilhando seus valores, oferecia também sua proteção. É assim que hoje as periferias reivindicam seu irmão mais velho, aquele do qual suportamos os desvios de conduta e ao qual concedemos um direito de gozo, como contrapartida da autoridade que ele exerce sobre o grupo.

 

As irmandades são para a psicanálise o lugar da atualidade do que restou do Édipo. Aliás, a clínica dos sujeitos psicóticos testemunha isso, o que é também confirmado pelo êxito dos casos de algumas terapias familiares como reguladora da distância ideal entre os membros do grupo. Existem irmandades com sucesso e são, sem dúvida, aquelas nas quais o sujeito está convencido de que é sempre possível conviver com os seus piores inimigos quando as hostilidades não existem mais. O que resta no cerne da experiência analítica é a maneira pela qual o sujeito terá negociado sua parceria sintomática; assim, o irmão ou a irmã encarna, em um dado momento, um resto do desejo dos pais, deixando sua marca na sociabilidade do tempo. Dessa forma, a fraternidade à qual a nossa época nos convida sempre um pouco mais, até o clone, para uma melhor igualdade, deve suscitar a vigilância do psicanalista formado para uma clínica que o impulsiona a não apostar no grupo para o tratamento do gozo e a estar atento à segregação que essas fraternidades carregam.

 

[1] LACAN, J. (1938). Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90.
[2] FREUD, S. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, vol. 18, p. 91-179. Edição Standard das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud.
[3] FREUD, S. (1916-17) Aspectos arcaicos e infantilismo dos sonhos. In: Conferências introdutórias à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, vol. 15, p. 239-254. Edição Standard das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud.
[4] LACAN, J.(1972). O Seminário Livro XIX …Ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

 

 


JEAN-DANIEL MATET
Tradução: Márcia Bandeira Revisão da tradução: Márcia Mezêncio



Mentira E Ficção: O Discurso Da Histérica, A Cura Pela Fala E O Indizível Do Sinthoma

ANA HELENA SOUZA

 

O texto de Beckett ao qual recorro aqui é considerado o auge da depuração de sua escrita. Chama-se Worstward Ho, literalmente, “em direção ao pior, vamos”. Traduzi-o como Pra frente o pior (Beckett, 2012)[1]. Essa prosa é construída com extrema desconfiança e cautela. As palavras introduzidas repetem-se, transformam-se, assumem diferentes categorias sintáticas, são recombinadas, produzem ecos, num jogo de permutações que, aos poucos, compõe imagens e uma tênue narrativa.

 

Beckett disse ter encontrado sua própria voz, ao começar a escrever diretamente em francês depois da Segunda Guerra. Compreendeu que em sua obra devia trabalhar com a falha, a impotência, a ignorância. Radicalizou a experiência de abandono dos recursos literários: reduziu ou praticamente eliminou enredo, personagens, nexos temporais, recursos à verossimilhança e à plausibilidade. Worstward Ho, de 1983, começa assim: “On. Say on. Be said on. Somehow on. Till nohow on. Said nohow on.” (Beckett, 2009, p. 81)[2]. Em português: “Adiante. Dizer adiante. Ser dito adiante. De algum modo adiante. Até que de nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Idem, 2012, p. 65). Citá-lo em inglês é importante para marcar os significantes básicos que se fazem presentes ao longo de todo o texto: on e o seu inverso espelhado no, que comparece nesse primeiro trecho em nohow. Os verbos do dizer, no presente e no passado, say e said, incitados pelo on, são ao mesmo tempo relativizados pelos advérbios somehow e nohow. A narrativa constitui-se basicamente do que se tem a dizer e, desde o início, é posta à prova. É preciso dizer “de algum modo” até chegar ao dito que não pode “de nenhum modo” prosseguir. O que o texto faz surgir é algo que se forma dentro de um crânio. Adquirem contorno um lugar, um corpo, um olho, uma penumbra e algumas imagens. Escreve-se, assim, o empenho em tornar tanto essas imagens como o dizer que as cria mais precisos, embora a tarefa, nos é dito, esteja fadada ao fracasso.

 

Para a primeira aproximação desse texto com a psicanálise, cito uma observação de J-A Miller sobre o modo possível de nos referirmos ao real, com os instrumentos do simbólico:

 

“O fato de o real ser inassimilável faz com que seja sempre introduzido por um ‘não’. É uma positividade que só pode ser abordada pelo negativo – pelo menos no que depende do simbólico –, ou seja, em sua face de impossível. É preciso haver uma articulação simbólica para podermos dizer que alguma coisa é impossível.” (2011, p. 24)[3].

 

Em Pra frente o pior, o texto se compõe, ao mesmo tempo, sob o signo do ON e do NO – do imperativo de continuar e da impossibilidade. Por isso, permeiam-no referências a um dizer que é sempre qualificado como “mal dito”, como “pior”. Paradoxalmente aqui o pior, definido no texto, implica o que se pode fazer de melhor. É possível entrever, no esforço de ter de valer-se do simbólico, aquilo que no simbólico não se deixa apreender, nem dizer: “Tentar de novo. Falhar de novo. Melhor de novo. Ou melhor pior.” (Beckett, 2012, p. 66)

 

Vimos que o texto começa com “on”. À medida que a leitura avança, percebe-se que este “on” não apenas iniciou um discurso, mas incluiu nele enunciador e destinatário, bem como lhe deu uma direção de sentido que orienta a ficção. Numa segunda aproximação, relaciono esse começo à observação de Miller sobre a entrada em análise:

 

“Uma análise começa sob o modo de formalização. O amorfo se vê dotado de uma morfologia. (…) Ao longo das primeiras sessões, a massa mental do amorfo se reparte em elementos de discurso. Só o fato de você convidar a falar aquele que está diante de você faz com que o amorfo mental dele adote uma estrutura de linguagem. (…) O desenho que surge, então, é condicionado, pelo menos em parte, pelo endereçamento, pelo destinatário.” (Miller, 2011, p. 101)

 

O início de uma análise institui um ordenamento, convida à construção de uma narrativa. Gostaria de destacar na citação de Miller o “endereçamento” e ampliá-lo para não apenas incluir um destinatário, mas um direcionamento temporal. Tal direcionamento é dado por uma expectativa de resolução, de um fim, à medida que toda análise iniciante propõe uma pergunta e deseja chegar à resposta.

 

No seu livro The sense of an ending, o crítico literário Frank Kermode[4] aborda os sentidos que a presença do fim imprime às ficções. Parte da sua argumentação encontra-se resumida na discussão de como dotamos de sentido o som que um relógio emite:

 

“Perguntamo-nos o que ele diz: e concordamos que diz tique–taque. Por meio dessa ficção, nós o humanizamos, fazemos com que fale nossa língua. (…) Tomo o tique-taque do relógio como modelo do que chamamos de enredo, uma organização que humaniza o tempo ao dar-lhe forma; e o intervalo entre o taque e o tique representa o tempo meramente sucessivo, desorganizado, do tipo que precisamos humanizar.” (Kermode, 2000, p.44-45)

 

Segundo Kermode, com o tempo nossas ficções também mudam as formas de dar sentido ao fim. Quando, por exemplo, a ficcionalização linear do tique-taque já nos parece muito fácil, partimos para algo do tipo taque-tique, num enredo como o do Ulysses de Joyce (Idem, 2000, p. 45). De algum modo, parece-me que a entrada em análise, com suas correspondentes formalização e histerização do discurso, e as revelações que ensejam (Miller, 2011, p. 104), equivale em ficção a um enredo ordenado mais em conformidade com o tique-taque simbólico. Esse tipo de ordenamento, que faz com que os eventos se encaixem numa sequência regular de antes e depois, pode ser percebido no desvendamento dos casos de histeria mais simples relatados por Freud.

 

O caso de Miss Lucy R. ilustra bem um suposto não-saber da histérica que, antes de Freud[5], era muitas vezes encarado como uma mentira, uma ficção. Miss Lucy, inglesa, 30 anos, governanta das filhas de um diretor de fábrica viúvo e morador dos arredores de Viena, procura Freud com sintomas olfativos subjetivos. Sente com frequência um cheiro de torta queimada, além de apresentar um desânimo e uma irritabilidade constantes.

 

Freud soluciona o caso em etapas temporalmente invertidas. O primeiro sintoma com que Miss Lucy a ele se dirige foi desencadeado pelo evento ocorrido mais recentemente. Brincava de cozinhar com as crianças, quando chega uma carta de sua mãe. A carta lembra-lhe que pedira demissão, e isso a levaria a voltar à casa materna e deixar as crianças, que ela amava e das quais prometera cuidar. Neste momento, a torta que faziam queima.

 

Com a solução desse primeiro sintoma aparece um outro: o cheiro de fumaça de charuto. Este corresponde ao evento intermediário, ainda não propriamente ao acontecimento traumático. O patrão de Lucy grita com um velho amigo da família que se despedira das crianças com beijos, algo que o pai não tolera. É depois do jantar, e os homens fumam. Daí o incômodo cheiro de fumaça de charuto.

 

Ao evento traumático propriamente dito não se liga uma conversão histérica. Freud apenas especula que ele tenha gerado o “abatimento de ânimo” da paciente. Os acontecimentos posteriores têm a função de encobrir o acontecimento traumático, de modo que fica claro que o trauma nem sempre dá origem ao sintoma. Freud relaciona os acontecimentos “auxiliares” (2016, p. 179), que produzem o sintoma, a “um intervalo de incubação” e menciona que Charcot a isso se referia como “o tempo de elaboração psíquica”. (2016, p. 193)

 

A cena traumática, a que Freud chega depois de desvendar as auxiliares, é a acusação e ameaça de demissão do patrão a Lucy, porque uma senhora em visita à casa beijou as crianças, algo que ele abominava, e que ela deveria impedir de acontecer. Sua ira e rispidez levam-na a compreender que não existe nenhum sentimento amoroso da parte dele para com ela. O primeiro dos sintomas, que corresponde ao evento intermediário, sobrevém apenas quando ela presencia cena semelhante, na qual o patrão grita com o velho amigo da família que também beijara as crianças. Já o segundo sintoma, que encobre o primeiro, surge por ocasião do recebimento da carta da sua mãe, lembrando-lhe da intenção de abandonar o emprego e as crianças.

 

Todos os eventos remetem ao amor despertado em Lucy pelo patrão, quando este, numa conversa mais afável sobre a educação das filhas, dirige-lhe um olhar terno. Freud sugere o sentimento à paciente, por não se convencer que os eventos auxiliares eram bastante significativos para gerar o sintoma. Ela concorda de imediato. Perguntada por que lhe ocultara isso, diz: “Não o sabia de fato, ou melhor, não queria sabê-lo, queria tirar isso da minha cabeça, nunca mais pensar a respeito (…)”(Freud, 2016, p. 170). Numa nota, Freud comenta: “Jamais pude obter descrição melhor do singular estado em que ao mesmo tempo sabemos e não sabemos alguma coisa.” (Idem, ibidem, n.30)

 

A respeito do esquecimento dos eventos, Freud afirma: “…esse esquecimento é com frequência intencional, desejado. E é sempre bem-sucedido apenas de forma aparente.” (Freud, 2016, p.162) Há, no relato de Miss Lucy, um apego a um não-saber que está longe de ser efetivo, mas que se vale de certos recursos psíquicos para encobrir as lembranças traumáticas. Tais recursos estão presentes também em várias ficções, o que torna possível aproximá-las, neste caso, do desvendamento dos sintomas.

 

No Seminário 10, Lacan define a angústia como um afeto (o afeto que não engana) e, esclarece que se pode “encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram.” (Lacan, 1992, p. 23)[6] Ora, Miss Lucy sabe que ama o patrão. Mas percebeu que seu sentimento não era correspondido, quando ocorreu a cena entre os dois depois de uma convidada ter beijado as crianças. A reiteração desse saber na segunda cena, desta vez diretamente com outro convidado, produziu o sintoma do cheiro de fumaça de charuto, depois encoberto pelo de cheiro de torta queimada. Aqui há inversão temporal, o último sintoma prevalece sobre o primeiro, na tentativa de empurrar o afeto a que se liga para o esquecimento, e há deslocamento, da raiva do patrão dirigida a ela à raiva dele dirigida ao convidado. Aparece uma estrutura de ficção, no que a ficção pode apresentar como suspense, encobrimento para posterior descoberta, paralelismos, reviravoltas, em suma, no que com frequência se reconhece como mentiras, truques ficcionais. No caso de Lucy, as soluções seguem o tiquetaquear simbólico de um desvelamento linear – mesmo que de trás para a frente. Ainda era o século XIX, as histéricas ainda eram acusadas de mentirosas. Freud lhes dá um direito de defesa:

 

“Assim, por um lado, o mecanismo que produz a histeria corresponde a um ato de hesitação moral; por outro, apresenta-se como um dispositivo de proteção que se acha às ordens do Eu. Há não poucos casos em que é preciso admitir que a defesa contra o crescimento de excitação, pela produção de histeria, foi mesmo, então, a coisa mais apropriada (…).” (Freud, 2016, p. 178 – grifo meu)

 

Quando Freud no final pergunta à paciente: “E você ainda ama o diretor?” Ela responde: “Amo-o seguramente, mas isso já não me perturba. Posso pensar e sentir comigo mesma o que quiser.” (Freud, 2016, p. 176) Com os poucos elementos fornecidos, pode-se arriscar dizer que a satisfação de Lucy com a resolução do seu sintoma se sustenta no gozo de um amor não correspondido. Sua análise interrompe-se ainda naquela fase inicial que J-A Miller diz se desenvolver “sob o signo da revelação” (Miller, 2011, p. 104). Esse caso, a meu ver, é bem típico da “talking cure” em seu começos. Começos da psicanálise: o começo freudiano, com o método psicanalítico propriamente dito; mas também o começo lacaniano[7], com a prevalência do simbólico sobre o real. Em ambos, buscava-se chegar à cura pela fala.

 

Mas quando Freud elabora em Além do princípio do prazer o conceito de repetição, Lacan diz que aí entra em jogo o gozo (Lacan, 1998b, p. 43)[8]. Trata-se aqui de um “gozo opaco”, esse gozo que Miller caracteriza como “insubmisso, rebelde, incompatível aos olhos da estrutura da linguagem e que não se deixa significar” (2011, 190). A existência do real se impõe, sem que a linguagem possa verdadeiramente apreendê-lo, no sentido de fazer com que faça sentido. Lacan coloca as coisas assim: “Porém, o que é verdadeiro? Meu Deus, é aquilo que é dito. E o que é dito? É a frase. Mas a frase, não há meios de fazê-la se sustentar em outra coisa senão no significante, na medida em que este não concerne ao objeto.” (Lacan, 1998b, p. 53) Chega-se assim ao sinthoma como “o elemento que não pode desaparecer, que é constante” (Miller, 2011, p. 11), a um final que pode se presentificar no “passe do falasser, que não é o testemunho de um sucesso, mas de um certo modo de ratear.” (Miller, 2011, p. 124)

 

Numa ficção, mesmo que não haja nenhuma revelação a ser feita, há de qualquer forma sempre um fim. De volta a Beckett, esse fim diz de si mesmo e, ao fazê-lo, expõe o esgotamento do texto: “De nenhum modo menos. De nenhum modo pior. De nenhum modo nada. De nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Beckett, 2012, p. 87) Com isso quero dizer que a ficção de Beckett também esbarra no irredutível, de onde revela tanto o fracasso como o sucesso do seu dito, ao expor a falha da linguagem.

 

[1] BECKETT, S. “Pra frente o pior”, Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2012.
[2] BECKETT, S. “Worstward Ho”, Company etc. Faber & Faber: London, 2009.
[3] MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio De Janeiro: Zahar, 2011.
[4] KERMODE, F. The sense of an ending: studies in the theory of fiction. Oxford: Oxford University Press, 2000.
[5] FREUD, S. Obras Completas (1893-1895), v. 2: Estudos sobre a Histeria, em coautoria com Josef Breuer. Trad. Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[6] LACAN, J. (1962-1963) O Seminário. Livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[7] LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a, p. 591-652.
[8] LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b.

 


Ana Helena Souza
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG. Tradutora, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP) e autora do livro A tradução como um outro original. Email: ahelenasouza@gmail.com



O Amor Pelo Pai Na Histeria

RAQUEL MARTINS DE ASSIS

 

 

Quem, como eu, invoca os mais maléficos e maldomadosdemônios que habitam o peito humano, com eles travando combate,deve estar preparado para não sair ileso desta luta.(Freud, 1905, Caso Dora, p. 75)

Em 1977, Lacan finaliza Considerações sobre a histeria pelo tópico “O amor” que possui apenas uma frase: “O que nossa prática revela, é que o saber, saber inconsciente, tem uma relação com o amor” (Opção Lacaniana, 2004, p. 22). A frase aparece quase como que jogada ao vento, mas colocando em trabalho aquele que tenta compreender os meandros da histeria. Nesse trabalho, diversas perguntas podem ser colocadas: Por que Lacan conclui sua exposição de maneira tão “interminada”? Por que justamente o amor, esse tema tão caro à histeria, foi deixado em duas linhas quase como um anúncio a ser retomado pelo ouvinte/leitor? Um anúncio importante que fica em suspenso[1].

Nessa pequena frase deixada em suspenso, Lacan faz uma afirmação essencial: para compreendermos algo da histeria precisamos atentar-nos para as relações entre o saber inconsciente e o amor. Há um saber sobre o amor presente na histérica, mas por ela desconhecido. Assim, conforme Lacan, a histérica não sabe o que diz, mesmo que diga algo com as palavras que lhe faltam (Lacan, 2007)[2]. Do que se trata, então, esse não saber da histérica? O que ela não sabe de si?

O paradigmático caso Dora, publicado pela primeira vez em 1905, apresenta a análise de um caso de histeria. Trata-se de uma jovem de dezoito anos que apresentava sintomas de tosse nervosa e afonia, sendo seu quadro definido como uma “petite hystérie”. Nesse caso, Freud[3] adverte que desde que lançara “Estudos sobre a histeria” em 1895, seus métodos já haviam se modificado:

“Naquela época, o trabalho [de análise] partia dos sintomas e visava esclarecê-los um após o outro. Desde então, abandonei essa técnica por achá-la totalmente inadequada para lidar com a estrutura mais fina da neurose. Agora deixo que o próprio paciente determine o tema do trabalho cotidiano” (Freud, 1996, s.p.).

Desse modo, o caso Dora não é apenas uma discussão sobre a histeria, mas descortina um momento no qual Freud adota a perspectiva de deixar que o paciente determine o rumo do que é dito. Nesse sentido, Dora poderá dizer, pelas palavras que lhe faltam, aquilo que não sabe sobre si. Nesse espaço deixado por Freud emerge a trama amorosa da histérica.

A trama amorosa, nesse caso, possui três personagens: o casal Sr. e Sra. K, amigos da família da jovem, e seu pai. A cena que se desenrolava nas palavras de Dora era a seguinte: seu pai havia feito uma íntima amizade com o casal K. Nesse desenrolar, a Sra. K tornou-se muito próxima do pai, cuidando dele em seus momentos de enfermidade. Enquanto isso, o Sr. K aproximou-se de Dora, levando-a para passear e presenteando-a com pequenos objetos. Após uma estadia na residência dos K, da qual a jovem retornara abruptamente, Dora conta à sua mãe que o Sr. K fizera-lhe uma proposta amorosa quando se encontraram a sós na margem do lago de Garda. Pede à mãe que transmitisse sua história ao pai. A partir daí, a jovem começa a insistir para que seu pai rompa relações com a família de amigos, especialmente com a Sra. K. O pai, entretanto, assim como o Sr. K, diante da revelação feita por Dora, a acusam de ter imaginado a cena do lago. Na família, começam a pairar suspeitas sobre a lascívia da jovem que, na época, lera A fisiologia do amor do sexólogo darwinista Paolo Mantegazza[4] (Roudinesco e Plon, 1998).

É no calor desses acontecimentos que Dora é levada a Freud por seu pai. Inicia-se o tratamento. No trabalho de análise, persistiam as certezas alimentadas pela moça a respeito do caso amoroso paterno. Também surgiam as suposições sobre as possíveis relações sexuais orais entre a Sra K e o pai de Dora, já que este era impotente. Freud afirma a impossibilidade de tratar a histeria sem mencionar temas sexuais, pois os sintomas histéricos estão fortemente ligados à sexualidade. Nas Considerações sobre a histeria, Lacan amplia essa fórmula ao afirmar: “o essencial do que disse Freud é que existe a maior relação entre o uso das palavras em uma espécie que tem as palavras à sua disposição e a sexualidade que reina nesta espécie” (Lacan, 2007, p. 20). Da narração de Dora, Freud conclui que os sintomas de enfermidade da jovem visavam seu pai: “como as acusações contra o pai se repetiam com cansativa monotonia e ao mesmo tempo sua tosse continuava, fui levado a achar que esse sintoma poderia ter algum significado relacionado com o pai.” (Freud, 1996, s.p). Possuindo uma finalidade na trama amorosa, os sintomas de Dora eram de difícil remoção, já que ela necessitava e tirava vantagem deles a fim de sensibilizar seu pai e separá-lo da Sra. K. De acordo com Freud, o sentimento de Dora em relação ao pai era como o de uma esposa ciumenta, sentindo-se preterida por outra mulher. Mas por que esse enamoramento pelo pai, resquício inativo do Édipo[5], tornava a se reavivar? Conclui que o amor pelo pai consistia em uma forma de resistência à atração de Dora pelo Sr. K.

Freud estabelece um diálogo com a jovem em que evidencia suas conclusões sobre o amor que Dora nutria pelo Sr. K. Depois disso, ela não retornaria mais, dando fim à analise. Freud se perturba com a interrupção do tratamento e questiona seu manejo da transferência:

“Será que eu poderia ter conservado a moça em tratamento, se tivesse eu mesmo representado um papel […] e lhe mostrasse um interesse caloroso que, mesmo atenuado por minha posição de médico, teria equivalido a um substituto da ternura que ela ansiava?” (Freud, 1996, p. 75).

Considerando as relações entre a transferência e os anseios de ternura de Dora, Freud escreve um posfácio ao caso no qual a dimensão transferencial da análise é o ponto central em que ele se vê falhando:

“Não consegui dominar a tempo a transferência […]esqueci a precaução de estar atento aos primeiros sinais de transferência que se preparava com outra parte do mesmo material, ainda ignorada por mim. Desde o início ficou claro que em sua fantasia eu substituía seu pai.” (Freud, 1996, s.p.)

Ao ter sido surpreendido pela transferência no tratamento da jovem, ocorre um x incompreensível para Freud. Em notas posteriores (1923), reconhece que havia sido incapaz de compreender a natureza da ligação homossexual que unia Dora e a Sra. K (Roudinesco e Plon, 1998)[6]. Lacan, no Seminário 3[7], sobre a questão histérica, comenta que Freud cometeu um erro: ao colocar o imperativo do amor ao pai como foco principal da trama amorosa histérica, Freud não pôde visar o objeto realmente desejado por Dora, isto é, a Sra K. Durante a análise, entretanto, emergia repetitivamente a outra mulher: Dora, de diversos modos, falava sobre as mulheres que ela supunha amadas por seu pai. Primeiro sua mãe, com quem se identificara por suas enfermidades. Depois, com a Sra. K por meio da tosse excessiva, metáfora do prazer sexual que ela imaginava entre o pai e a amante. Lacan, em Intervenção sobre a transferência, denomina a atração de Dora pela Sra K. como um fascinado apego. Nesse fascínio se encerra aquilo que é um mistério para a histérica: aceitar-se como objeto de amor de um homem. Essas operações ligadas ao encantamento pela mulher objeto de amor, entretanto, são desconhecidas pela histérica. Daí que ela coloque em palavras o seu não saber sobre si, palavra do sintoma (Lacan, 1978)[8].

Assim, para Lacan, a histeria é marcada pela pergunta “o que é ser uma mulher”. Diante dessa questão e no movimento que lhe é possível, a histérica identifica-se com um homem enquanto cede sua posição feminina a alguma outra mulher que encarna o mistério da feminilidade (Schejtman e Godoy, s.d). Desse modo, a histérica recebe um dom fálico (Gody, Mazzuca e Schejtman, 2012), como aponta Lacan: “É a prevalência da Gestalt fálica que, na realização do complexo edípico, força a mulher a tomar emprestado um desvio através da identificação com o pai, e portanto a seguir durante um tempo os mesmos caminhos que um menino” (Lacan, 1997, p. 201). No modelo Dora, a identificação viril ao pai vem carregada do signo da impotência. Disso resulta que a histeria esteja colocada na posição masculina, mas em situação de virilidade decaída, isto é, marcada por algo que lhe falta. Assim, na formulação lacaniana, a histérica é não toda. Ela não se toma por uma mulher, mas pergunta sobre a mulher. Essa posição insatisfeita, expressa por uma pergunta que não se sabe responder, é própria do gozo histérico, isto é, o gozo da privação e da impotência. Para Godoy, Mazzuca e Schetjman (2012)[9], a identificação com o pai é uma saída neurótica que permite ao sujeito histérico construir para si uma definição que lhe escapa. Dessa forma, surge uma possibilidade de lidar com o problema do feminino.

Sendo o pai impotente, a histérica o ama pelo que ele não pode dar, isto é, pelo que não tem. Mas se a histérica e seu pai são marcados pelo não ter, imagina-se que em algum lugar, algo tem isso que lhes falta. O gozo da privação, portanto, implica supor a existência de um gozo absoluto e consistente (todo) – o gozo do Outro – frente ao qual a histérica pressente a si mesma como uma quimera, leve sombra, um sopro sem consistência. Esse algo absoluto e consistente é geralmente localizado, pela histérica, no pai ideal ou na outra mulher adorada que possui aquilo que ela não tem. Para Freud, a Sra K. tinha o pai de Dora, daí a identificação da jovem com essa outra mulher. Para Lacan, ao ter o pai, a outra mulher tem, para a histérica, a resposta da feminilidade. A histeria supõe, portanto, a identificação amorosa ao pai.

Enfim, na narrativa histérica é possível emergir a armadura do amor ao pai. Essa armadura outorga consistência e estabilidade ao sujeito histérico como possibilidade de defesa frente ao real do gozo feminino que coloca em questão a identidade e a unidade da histérica (Schejtman e Godoy,s.d)[10]. Devido a tal consistência, a histérica tem dificuldade de renunciar ao falo paterno:

“resulta importante ressaltar el concepto de renuncia porque justamente el sostén que encuentra la histeria en esse amor marca la dificultad de hacer um despegue de la posición en la cual se espera de recibir um don del padre que resuelva su relación con lo feminino.” (Schjetman e Godoy, 2012, p. 266).

Ao não conseguir renunciar ao falo paterno, à espera do dom que se pode receber do pai (marcado, entretanto, pelo que não se dá), a histérica não consegue conceber nada que possa receber de outros, seja um homem, um grupo de pessoas, uma relação de trabalho. Sendo o amor definido por Lacan, no Seminário 8, pelo dar o que não se tem, o amor histérico é engendrado pela armadura do amor ao pai, na qual se estreitam os laços entre amor-impotência-saber.

 

 

[1] No texto Intervenção sobre a transferência, Lacan se remete ao efeito Zeiganirk adotado por Lagache ao tratar da transferência no caso Dora. O efeito Zeiganirk é assim explicado: “trata-se do efeito psicológico que se produz por uma tarefa inacabada, quando ela deixa uma Gestalt em suspenso; por exemplo, pela necessidade geralmente sentida de dar a uma frase musical seu acorde resolutivo.” (Lacan, 1978, p. 214).
[2] LACAN, Jacques. Considerações sobre a histeria. Opção lacaniana, n.50. p. 17-22. Dezembro de 2007.
[3] FREUD, Sigmund. (1905 [1901]). Fragmento de análise de um caso de histeria. Acessado em 10.10.2016 e retirado de http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-07-1901-1905.pdf
[4] Durante o século XIX e boa parte do século XX, era recomendado um cuidado especial com os livros apresentados às jovens, pois as leituras, principalmente de romances, podiam incliná-las à dissipação e desordenamento amoroso. Assim, no caso de Dora, é significativo, para a cultura da época, que a leitura de a Fisiologia do amor tenha sido utilizada como um sinal para sua “desordem psicológica”, ou seja, para o fato de que ela poderia imaginar algo que realmente não havia acontecido.
[5] No Complexo de Édipo, Freud introduziu o terceiro masculino: o pai. A criança, no declínio do Édipo, se volta para um pai concebido como ideal, onipotente, possuidor do falo e por isso digno de ser amado. O sujeito histérico, entretanto, supõe não a onipotência, mas a impotência no pai. A histérica, portanto, sabe que não tem o pai ideal (KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar editora, 1996).
[6] ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1998.
[7] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[8] LACAN, Jacques. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
[9] GODOY, Cláudio; MAZZUCA, Roberto; SCHEJTMAN, Fabián. El amor al padre y la estabilidade histérica em la primera ensenanza de Lacan. Em: SCHEJTMAN, Fabián (Org.). Elaboraciones lacanianas sobre las neuroses. Buenos Aires: Grama editora, 2012, p. 263-268.
[10] GODOY, Cláudio; SCHEJTMAN, Fabián. La hysteria en el último período de la ensenanza de J. Lacan. Anuário de Investigaciones. Vol. XV, p. 121-125, s.d.

 


Raquel Martins De Assis
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (NIPSE) – Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. Email: rmassis.ufmg@gmail.com