O Escabelo De François Augiéras: Escritura E Pintura Do Corpo Do De-Lito (De-Leito)
PHILIPPE LACADÉE
FRANÇOIS AUGIÉRAS
O escabelo de François Augiéras: escritura e pintura do corpo do de-lito (de-leito)[1]
PHILIPPE LACADÉE
Augiéras nasceu em 1925, nos USA, e morreu em 1971 numa grande precariedade, em Domme, bem próximo de sua gruta, onde ele amava se refugiar. Ele havia escrito na nota biográfica de seu livro Viagem ao Monte Athos[2]que, tendo abandonado seus estudos aos quinze anos, “ele se volta rapidamente para uma espécie de vagabundagem”[3]. No decorrer da vagabundagem que orienta sua vida, ele escreve ter encontrado lugares determinantes para abrigar sua “solidão extrema” e “sua crueldade da vida”. Seu primeiro lugar é aquele do deserto em El-Goléa, exposto a céu aberto, depois a gruta da Montanha Santa do Monte Athos e, no final de sua vida, a gruta de Domme. São lugares fontes do Apelo e do Despertar da lógica de sua obra-vida. Como ele escreverá, desde seu primeiro livro, O velho e a criança[4], que surge no coração da Pedra do deserto, há nele uma espécie de equação a ser resolvida em relação a essa fórmula estranha – O velho e a criança. Ela se impõe para ele na escritura de sua vida fora da norma: verdadeira trajetória rimbaudiana sustentada pela frase de Artur Rimbaud no fim de sua poesia Vagabundos, “eu apressado para encontrar o lugar e a fórmula”[5].
Em maio de 1925, seu pai, Pierre, morre de apendicite aguda em três dias, no hospital de Rochester, quando sua mãe estava grávida dele. Ela jamais irá se recuperar desse traumatismo (troumatisme)[6] que veio esburacar com um real inassimilável sua vida. Os significantes Pierre e Rochester[7], enlaçados ao nome de seu pai assim como ao lugar de sua morte e de seu nascimento, foram determinantes para François, que testemunhará (ou falará) muitas vezes o impacto da ressonância dessas palavras nele próprio. Alguma coisa da Pedra (Pierre) que ele poderia ser para sua mãe e da Rocha (Roche) que o acolherá no fim de sua vida foram pontos de apoio da motérialité[8] da língua que vieram arrematar[9] eu nascimento com a escritura e com as errâncias de seu percurso na natureza.
Face à carência real de seu pai, a isso de seu pai que não foi jamais transmitido, sua solução foi a de inventar sua pai-versão[10] na fórmula de O velho e a criança, criada a partir da figura de seu tio Marcel. É a esse coronel aposentado, especialista em astrologia e criador de um museu no forte de El-Goléa, a esse velho cego que ele escreve se oferecendo como seu objeto de gozo, criança escrava. A invenção dessa relação lhe serve para estabelecer seu pacto de gozo com o Céu, via o corpo de seu tio. Ela é o que sustentará sua escrita; ele retorna a ela sem cessar, na necessidade de apreender o que ele nomeará seu “estranho jornal de artista”. “Quando um ensaio é mais verdadeiro que um relato ninguém desconfia, ou admite. Sou somente um bárbaro e vivi muito só[11]”. Como diz Lacan de Joyce, “O que ele escreve é a consequência daquilo que ele é. Mas até onde vai isso?[12]”. E “Quando se escreve, pode-se muito bem tocar o real, e não o verdadeiro[13]”.
Sua solução, a considerar em termos de um sinthoma, como disse Lacan para Joyce, foi de escrever uma obra-vida incluindo A via do real que se impunha para ele.
Ele encontrou em El-Goléa O lugar para realizar, no real de sua carne viva, a frase de Rimbaud “eu apressado para encontrar o lugar e a fórmula[14]”. O lugar é o Leito de ferro do tio colocado no alto de sua habitação, sob o céu, lugar de sua experiência de gozo, lugar do delito (dé-lit, do leito) de sua Estação no inferno. O Leito de ferro é seu pedestal, seu escabelo[15], o que lhe permite elevar sua vida, como “Arte do surgimento” à dignidade da Coisa escrita e pintada[16]. Ele se realiza como o artista delinquente, do qual ele não cessará de fazer o retrato, encontrando a sublimação de uma escritura e de uma pintura em que ele será aquele que se crê mestre de seu ser, alojado em Uma fórmula. A fórmula O velho e a criança sustentará até o fim toda sua escritura[17]. “O velho e a criança: a fórmula canta às vezes em minha cabeça, sem nada evocar de preciso; mas isso me pertence de alguma maneira, ‘isso’ me vem de uma vida”, mais precisamente “Minha mais bela obra de arte seria minha vida[18]”.
“Seu desejo de ser um artista que ocuparia todo o mundo” da literatura, e de modo provocante, “não é exatamente o compensatório do fato que, digamos seu pai não foi jamais para ele um pai?”. Seu pai morto não lhe ensinou nada, e sua mãe, de mais a mais, negligenciou aproximadamente todas as coisas.
Para Joyce, “Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado?[19]”.
No apelo imperioso da natureza, Augièras encontra a certeza do apelo de Deus. “Escuto o apelo vindo dos astros e é em mim primeiramente que suspeito que uma nova raça nasceu[20]”.
Em A via do real da natureza, Augiéras escuta em eco, no cerne do íntimo de seu ser, o apelo disso que há nele de Sagrado e de Luz Primordial.
A dimensão do apelo é “a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha”[21] de onde o surgimento de seu estranho jornal com o nome de Abdallah Chaamba, seu novo nome de escritor, é o mais perto possível da Pedra do deserto.
Augiéras se encarrega com gravidade desse apelo de Deus e da natureza, é seu Outro. “O Outro do qual se trata se manifesta em Joyce por isso que em suma ele é encarregado do pai”.
Para Augiéras, esse Outro bem além do pai, ou de seu substituto, o tio, é o Deus do universo, o Deus do Céu do qual ele sentiu o Apelo e do qual ele está encarregado. “Deus quer me ensinar alguma coisa[22]”. O Céu, esse Deus dos astros, ele deve sustentá-lo para que ele subsista. Ele vai fazê-lo por sua Arte, que é o que, desde o recôndito dos tempos, aparece-nos sempre como nascida do artesão ou do pintor primitivo da caverna – daí sua paixão pela pintura. Ele vai “ilustrar o espírito incriado de minha raça”, pela qual ele vai criar sua Arte do surgimento e se apresentar como o artista delinquente. Então, Augiéras, como também Joyce, “se dão a missão”[23], “A imaginação de ser O Redentor, pelo menos em nossa tradição, é o protótipo da pai-versão. Na medida em que há a relação de filho com pai, surge essa ideia tresloucada do redentor, e isso há muito tempo. O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho[24]”.
Seu primeiro livro, O velho e a criança, matriz original de toda sua obra, ilustra como se desembaraça de toda servidão vinda do Outro, de sua mãe ou dos padres da igreja, e ressuscita nele o estado de espírito Sagrado do homem primitivo que apareceu como um acontecimento e uma revelação na criança árabe. Ele se incarna no nascimento da escritura, segundo a ideia tresloucada do Redentor ter ele mesmo sido transformado, uma vez, em um jovem árabe selvagem. Ele cria para si um novo nome na literatura, Abdallah Chaamba, criança sagrada surgida no real de sua “escriatura” (écriature)[25]. É para ele “uma tentativa de resgate pela literatura[26]”. Mais tarde ele pensará ser O homem Novo encarnando o plano divino, seja A claridade da Luz primordial.
Depois de alguns anos, encontro nas profundezas de minha consciência uma zona de luz interna, eterna, divina. Qual nome lhe dar? Minha missão nesse Mundo, e nessa vida, é talvez ser um escritor profundamente religioso – não cristão – e, por esse fato, capaz de alcançar almas eternamente estrangeiras ao cristianismo. Estou persuadido que essa definição de meu papel nesse século é o essencial de meu esforço – e que não há nada mais para esperar de mim[27]”.
Ele procurava um regime de espírito para além das religiões que ele rejeitava. Para isso, lhe era preciso se deixar possuir, por isso que ele nomeará o real – o real da natureza, ou real mais íntimo, aquele de sua carne transbordada por um gozo do vivente caótico e fora do sentido. “Um ponto frágil de meu destino sendo quase unicamente uma sensualidade por vezes bastante pesada[28]”.
Ele nomeia a gravidade essa sensualidade fora de sentido que nele estava em jogo. Ele não cessará de entrar em relação com a potência vital e gozo da natureza, porquanto de modo extimo[29], o real da natureza era o coração dele mesmo. Ele tinha nele essa sensação de um gozo fora da norma, dado que sem limite. Ele ia até mesmo oferecer seu corpo à árvore, ou àqueles elementos naturais que ele encontrava, para aí ressuscitar em sua energia vital. Sua relação com a natureza lhe causava transportes de gozo, podendo ir até o êxtase da metamorfose, como ele a descreverá em Viagem ao Monte Athos. Ele não vai querer jamais renunciar à característica sagrada do gozo do selvagem primitivo ou de seu feliz delírio sonoro sagrado, rejeitando tudo o que a civilização ocidental vinha ocidentalizar sua verdadeira vida. Está aí A via do real como experiência do sagrado, “Eu coloquei minha alma e meu destino entre as mãos Daquele que É, lhe dizendo faça de mim o que bem lhe pareça26”. Levado por esse Deus que lhe traz um imenso deleite, ele vive, no coração de sua obra-vida incarnada, um outro regime de espírito do qual sua escritura e sua pintura foram assombradas, e do qual ele consente testemunhar para a salvação dos homens, uma vez que essa era sua Missão.