O Escabelo De François Augiéras: Escritura E Pintura Do Corpo Do De-Lito (De-Leito)

PHILIPPE LACADÉE

FRANÇOIS AUGIÉRAS

O escabelo de François Augiéras: escritura e pintura do corpo do de-lito (de-leito)[1]

PHILIPPE LACADÉE

Augiéras nasceu em 1925, nos USA, e morreu em 1971 numa grande precariedade, em Domme, bem próximo de sua gruta, onde ele amava se refugiar. Ele havia escrito na nota biográfica de seu livro Viagem ao Monte Athos[2]que, tendo abandonado seus estudos aos quinze anos, “ele se volta rapidamente para uma espécie de vagabundagem”[3]. No decorrer da vagabundagem que orienta sua vida, ele escreve ter encontrado lugares determinantes para abrigar sua “solidão extrema” e “sua crueldade da vida”. Seu primeiro lugar é aquele do deserto em El-Goléa, exposto a céu aberto, depois a gruta da Montanha Santa do Monte Athos e, no final de sua vida, a gruta de Domme. São lugares fontes do Apelo e do Despertar da lógica de sua obra-vida. Como ele escreverá, desde seu primeiro livro, O velho e a criança[4], que surge no coração da Pedra do deserto, há nele uma espécie de equação a ser resolvida em relação a essa fórmula estranha – O velho e a criança. Ela se impõe para ele na escritura de sua vida fora da norma: verdadeira trajetória rimbaudiana sustentada pela frase de Artur Rimbaud no fim de sua poesia Vagabundos, “eu apressado para encontrar o lugar e a fórmula”[5].

Em maio de 1925, seu pai, Pierre, morre de apendicite aguda em três dias, no hospital de Rochester, quando sua mãe estava grávida dele. Ela jamais irá se recuperar desse traumatismo (troumatisme)[6] que veio esburacar com um real inassimilável sua vida. Os significantes Pierre e Rochester[7], enlaçados ao nome de seu pai assim como ao lugar de sua morte e de seu nascimento, foram determinantes para François, que testemunhará (ou falará) muitas vezes o impacto da ressonância dessas palavras nele próprio. Alguma coisa da Pedra (Pierre) que ele poderia ser para sua mãe e da Rocha (Roche) que o acolherá no fim de sua vida foram pontos de apoio da motérialité[8] da língua que vieram arrematar[9] eu nascimento com a escritura e com as errâncias de seu percurso na natureza.

Face à carência real de seu pai, a isso de seu pai que não foi jamais transmitido, sua solução foi a de inventar sua pai-versão[10] na fórmula de O velho e a criança, criada a partir da figura de seu tio Marcel. É a esse coronel aposentado, especialista em astrologia e criador de um museu no forte de El-Goléa, a esse velho cego que ele escreve se oferecendo como seu objeto de gozo, criança escrava. A invenção dessa relação lhe serve para estabelecer seu pacto de gozo com o Céu, via o corpo de seu tio. Ela é o que sustentará sua escrita; ele retorna a ela sem cessar, na necessidade de apreender o que ele nomeará seu “estranho jornal de artista”. “Quando um ensaio é mais verdadeiro que um relato ninguém desconfia, ou admite. Sou somente um bárbaro e vivi muito só[11]”. Como diz Lacan de Joyce, “O que ele escreve é a consequência daquilo que ele é. Mas até onde vai isso?[12]”. E “Quando se escreve, pode-se muito bem tocar o real, e não o verdadeiro[13]”.

Sua solução, a considerar em termos de um sinthoma, como disse Lacan para Joyce, foi de escrever uma obra-vida incluindo A via do real que se impunha para ele.

Ele encontrou em El-Goléa O lugar para realizar, no real de sua carne viva, a frase de Rimbaud “eu apressado para encontrar o lugar e a fórmula[14]”. O lugar é o Leito de ferro do tio colocado no alto de sua habitação, sob o céu, lugar de sua experiência de gozo, lugar do delito (dé-lit, do leito) de sua Estação no inferno. O Leito de ferro é seu pedestal, seu escabelo[15], o que lhe permite elevar sua vida, como “Arte do surgimento” à dignidade da Coisa escrita e pintada[16]. Ele se realiza como o artista delinquente, do qual ele não cessará de fazer o retrato, encontrando a sublimação de uma escritura e de uma pintura em que ele será aquele que se crê mestre de seu ser, alojado em Uma fórmula. A fórmula O velho e a criança sustentará até o fim toda sua escritura[17]. “O velho e a criança: a fórmula canta às vezes em minha cabeça, sem nada evocar de preciso; mas isso me pertence de alguma maneira, ‘isso’ me vem de uma vida”, mais precisamente “Minha mais bela obra de arte seria minha vida[18]”.

“Seu desejo de ser um artista que ocuparia todo o mundo” da literatura, e de modo provocante, “não é exatamente o compensatório do fato que, digamos seu pai não foi jamais para ele um pai?”. Seu pai morto não lhe ensinou nada, e sua mãe, de mais a mais, negligenciou aproximadamente todas as coisas.

Para Joyce, “Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado?[19]”.

No apelo imperioso da natureza, Augièras encontra a certeza do apelo de Deus. “Escuto o apelo vindo dos astros e é em mim primeiramente que suspeito que uma nova raça nasceu[20]”.

Em A via do real da natureza, Augiéras escuta em eco, no cerne do íntimo de seu ser, o apelo disso que há nele de Sagrado e de Luz Primordial.

A dimensão do apelo é “a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha”[21] de onde o surgimento de seu estranho jornal com o nome de Abdallah Chaamba, seu novo nome de escritor, é o mais perto possível da Pedra do deserto.

Augiéras se encarrega com gravidade desse apelo de Deus e da natureza, é seu Outro. “O Outro do qual se trata se manifesta em Joyce por isso que em suma ele é encarregado do pai”.

Para Augiéras, esse Outro bem além do pai, ou de seu substituto, o tio, é o Deus do universo, o Deus do Céu do qual ele sentiu o Apelo e do qual ele está encarregado. “Deus quer me ensinar alguma coisa[22]”. O Céu, esse Deus dos astros, ele deve sustentá-lo para que ele subsista. Ele vai fazê-lo por sua Arte, que é o que, desde o recôndito dos tempos, aparece-nos sempre como nascida do artesão ou do pintor primitivo da caverna – daí sua paixão pela pintura. Ele vai “ilustrar o espírito incriado de minha raça”, pela qual ele vai criar sua Arte do surgimento e se apresentar como o artista delinquente. Então, Augiéras, como também Joyce, “se dão a missão”[23], “A imaginação de ser O Redentor, pelo menos em nossa tradição, é o protótipo da pai-versão. Na medida em que há a relação de filho com pai, surge essa ideia tresloucada do redentor, e isso há muito tempo. O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho[24]”.

Seu primeiro livro, O velho e a criança, matriz original de toda sua obra, ilustra como se desembaraça de toda servidão vinda do Outro, de sua mãe ou dos padres da igreja, e ressuscita nele o estado de espírito Sagrado do homem primitivo que apareceu como um acontecimento e uma revelação na criança árabe. Ele se incarna no nascimento da escritura, segundo a ideia tresloucada do Redentor ter ele mesmo sido transformado, uma vez, em um jovem árabe selvagem. Ele cria para si um novo nome na literatura, Abdallah Chaamba, criança sagrada surgida no real de sua “escriatura” (écriature)[25]. É para ele “uma tentativa de resgate pela literatura[26]”. Mais tarde ele pensará ser O homem Novo encarnando o plano divino, seja A claridade da Luz primordial.

Depois de alguns anos, encontro nas profundezas de minha consciência uma zona de luz interna, eterna, divina. Qual nome lhe dar? Minha missão nesse Mundo, e nessa vida, é talvez ser um escritor profundamente religioso – não cristão – e, por esse fato, capaz de alcançar almas eternamente estrangeiras ao cristianismo. Estou persuadido que essa definição de meu papel nesse século é o essencial de meu esforço – e que não há nada mais para esperar de mim[27]”.

Ele procurava um regime de espírito para além das religiões que ele rejeitava. Para isso, lhe era preciso se deixar possuir, por isso que ele nomeará o real – o real da natureza, ou real mais íntimo, aquele de sua carne transbordada por um gozo do vivente caótico e fora do sentido. “Um ponto frágil de meu destino sendo quase unicamente uma sensualidade por vezes bastante pesada[28]”.

Ele nomeia a gravidade essa sensualidade fora de sentido que nele estava em jogo. Ele não cessará de entrar em relação com a potência vital e gozo da natureza, porquanto de modo extimo[29], o real da natureza era o coração dele mesmo. Ele tinha nele essa sensação de um gozo fora da norma, dado que sem limite. Ele ia até mesmo oferecer seu corpo à árvore, ou àqueles elementos naturais que ele encontrava, para aí ressuscitar em sua energia vital. Sua relação com a natureza lhe causava transportes de gozo, podendo ir até o êxtase da metamorfose, como ele a descreverá em Viagem ao Monte Athos. Ele não vai querer jamais renunciar à característica sagrada do gozo do selvagem primitivo ou de seu feliz delírio sonoro sagrado, rejeitando tudo o que a civilização ocidental vinha ocidentalizar sua verdadeira vida. Está aí A via do real como experiência do sagrado, “Eu coloquei minha alma e meu destino entre as mãos Daquele que É, lhe dizendo faça de mim o que bem lhe pareça26”. Levado por esse Deus que lhe traz um imenso deleite, ele vive, no coração de sua obra-vida incarnada, um outro regime de espírito do qual sua escritura e sua pintura foram assombradas, e do qual ele consente testemunhar para a salvação dos homens, uma vez que essa era sua Missão.

 

 


Tradução: Cristiana Pittella
Revisão: Bruna Simões de Albuquerque e Pedro Braccini Pereira
[1] NT: O autor faz uma escansão com a palavra délit (delito) – dé-lit. Faz ressoar o equívoco dé-lit (delito) com dé-lit (do leito), pois o delito de Augiéras se passa no leito do tio. Ele se nomeava ele mesmo de “Artista delinqüente”. Encontramos na ficção O velho e a criança a importância desse leito de ferro.
[2] Voyage au Mont Athos.
[3] AUGIÉRAS, F. Voyage au Mont Athos. Grasset, 1996, p. 12.
[4] Le vieillard et l’enfant.
[5] RIMBAUD, A. “Vagabonds” In: Arthur Rimbaud, Œuvre-vie. Editions du centenaire Arléa, 1991, p. 349 e Livre Lac, cf. capítulo 1, nota 6.
[6] NT: Neologismo inventado por Lacan J., cf. Le séminaire Les non-dupes errent, 19-02-1974.
[7] NA: Escolhi escrever em letra maiúscula os significantes pedra e rocha porque, para Augiéras, significam a ressonância do prenome de seu pai, bem como seu lugar de morte, o que teria para ele um valor de uma letra sobre a qual ele construirá um valor de gozo como fonte original de sua visão do real.
[8] NT: Neologismo de Lacan que evoca em sua sonoridade a materialidade da palavra (motérialité), do significante.
[9] NT: Em francês o verbo utilizado foi “capitonner”, que remete à costura clássica de estofados “capitonê”.
[10] NT: Père-version, jogo de palavras de Lacan com “perversão”.
[11] AUGIÉRAS, F. Voyage des morts. Grasset, 2000, p. 15.
[12] LACAN, J. “Le Séminaire, livre xxiii”, Le sinthome, 1975-1976, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Éditions du Seuil, mar. 2005, p. 79.
[13] Ibid, p 80.
[14] RIMBAUD, A. “Vagabonds”, Œuvre-vie. Editions du centenaire estabelecido por Alain Borer. Arléa, 1991, p. 349.
[15] LACADÉE, P. François Augiéras: l’homme solitaire et la voie du réel. Editions Michéle 2O16, Avant-propos, nota 8.
[16] cf LACADÉE, P. Op cit. Avant-propos.
[17] ibid, p. 84-85.
[18] LACADÉE, P. Op cit., 86.
[19] LACAN, J. Le sinthome, p. 89.
[20] AUGIÉRAS, F. Adolescence au temps du Maréchal, Editions de la différence, 2001, p. 160.
[21] LACAN, J. Le sinthome, p. 89.
[22] AUGIÉRAS, F. “Lettre du 14 Mars 1969, à Pierre-Charles Nivière” In: La Nouvelle Revue Française, Jan. 2OO1, nº 556, p. 90.
[23] LACAN, J. Le sinthome, op. cit. p. 22.
[24] Ibid, p. 85.
[25] NT: “escriatura” é uma invenção do autor, junção de écriture e creature.
[26] LACADÉE, P. op, cit. p. 103.
[27]AUGIÉRAS, F. “Lettre du 4 Janvier 1969 à Pierre Charles Nivière” In: La Nouvelle Revue Française, op, cit., p 84.
[28] Ibid, p. 87.
[29] LACAN, J. “Le Séminaire, livre vii” In: L’éthique de la psychanalyse, 1959-1960, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Éditions du Seuil, 1998, p. 167.
Neologismo inventado por Lacan.
26 AUGIÉRAS F. “Lettre du 14 Mars 1969, à Pierre Charles Niviére” In: La Nouvelle Revue Française, op. cit. p. 88.

PHILIPPE LACADÉE
Psicanalista em Bordeaux, AME, membro da ECF e NLS e da AMP. E-mail: phlacadee@wanadoo.fr



De Onde Vêm As Mães?

MAGDA H. B. CASAROTTI

De Onde Vêm as Mães?

Os impasses que hoje vivem as mães trazem à tona um não saber fazer com o filho. No serviço de psicologia e direção escolar de uma escola de Educação Infantil, as perguntas mais frequentes são: como devo agir com esta criança? O que devo fazer para educá-la bem? O que eu faço para ser boa mãe? Por que a criança não vem com bula?

 

1.Maternidade e Sexualidade

 

A mãe de um menino de 4 anos procurou o serviço de orientação escolar para, em suas palavras, “tirar uma dúvida, bem rápido.” Ela queria saber se deveria ou não retirar a fralda do filho, visto que o mesmo não aceitava usar o vaso sanitário ou mesmo o troninho. A mãe interroga-se sobre o comportamento da criança que apresenta-se tão bem desenvolvido em vários outros aspectos, mas não em relação à retirada da fralda. Ela não sabia como fazer, pois tinha medo de traumatizar o filho. Em função do trabalho do pai, a família morou por 2 anos no exterior, e, de volta ao Brasil, a mãe, diz estar vivenciando muitas dúvidas com relação à criação do filho, visto que não foi orientada, passo a passo, sobre a melhor forma de realizar o desfralde da criança.

Outra mãe procura a psicóloga escolar para perguntar como fazer para que o filho aceitasse a alimentação normal, pois a criança alimentava-se somente com a mamadeira. “Diga-me, você que estudou os problemas das crianças, o que eu devo fazer para que meu filho coma normalmente?”. Com três anos de idade, a criança não aceitava o prato de comida, e a mãe acabava cedendo à solicitação do filho, batendo tudo no liquidificador e oferecendo na mamadeira. Angustiada por não seguir as orientações do pediatra, tampouco regularizar a alimentação do filho, quando interrogada sobre o que achava que poderia fazer, ela responde que tinha muito medo de causar algum trauma no filho, na medida em que o contrariasse.

E, assim, cotidianamente, mães apresentam um não saber fazer com o filho. Na contemporaneidade, a maternidade, enquanto representação da feminilidade, encontra-se destituída do seu valor, pois não é a “mulher-mãe” que é valorizada, mas a mulher sedutora, extremamente erótica, objeto de desejo e de consumo. Se, antes, a função materna era bem delimitada e definida pelas normas sociais, as mães possuíam um saber fazer com o rebento, hoje, impera o não saber fazer com a criança, existem outras condições próprias do feminino que fazem demandas. Há na mulher um desejo erótico e seu narcisismo tem outras fontes de satisfação.

No texto de 1914, Freud comentava as relações entre pais e filhos, explicando o amor e o investimento libidinal dos pais nas crianças, segundo a política dos ideais. “O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (FREUD, 1014/1976, p.108)

A expressão “sua majestade o bebê” que se encontra no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) constitui uma fórmula freudiana para situar a criança, seu lugar e seu valor na estrutura familiar. A posição da criança, enquanto objeto da subjetividade materna, compensador de seu “a menos” de gozo, somada à demissão paterna, traz para a atualidade a tendência à objetalização do sujeito.

Em “Nota sobre a criança” (1969), ao articular o sintoma com a estrutura familiar, Lacan indica o efeito para a criança da queda do ideal.

“A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna o ‘objeto‘ da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto”. (LACAN, 1969/2003, p.369).

A família vela o traumatismo que está em jogo para o ser falante, ou seja, o gozo. É possível averiguar que a própria formação de uma família pode-se pautar no ideal de ser pai e de ser mãe como uma solução para a impossibilidade da relação sexual.

Diante da indagação de algumas mulheres sobre a possibilidade de ser uma boa mãe ou não, é possível pensar que o estatuto da relação mãe-criança, sob o escudo do drama edipiano e da castração, opera uma separação entre o sujeito e o objeto, e não uma pretensa relação harmoniosa entre a mãe e o filho. Não há relação de completude, pois é uma relação estruturada entre um a menos, a falta fálica, e o outro lado da moeda, o excesso, o mais de gozo. Não é possível um encontro harmonioso, sem mal-entendidos ou desencontros, pois nesta relação há o encontro com a falta, com a castração, seja do lado da mãe ou do lado da criança.

Na atualidade, ter um filho-falo não é a única forma de satisfação. Vive-se do corpo e do excesso no corpo espetacular. O corpo constitui uma fonte de prazer, de gozo inesgotável, e, paradoxalmente, de angústia e de sofrimento psíquico.

Freud introduz o desejo de ter um filho na dialética edipiana, ele não cessa de mostrar que há uma ligação entre a maternidade e castração, assim como não deixa de insistir em que a feminilidade é um enigma que resta aberto para a mulher, mesmo com a maternidade. Tal questão parece tomar outro destino para os pós-freudianos, que concebem poder a criança vir a ser o objeto capaz de reparar a falta na mãe, abrindo espaço para pensar numa completude possível, a ser reconstruída na relação mãe-criança.

Segundo Lacadée (1996, p. 74), os pós-freudianos, orientados pela relação de objeto, pela relação primária mãe-criança e pelo narcisismo primário, consideram que a relação mãe-criança é essencialmente dual. A criança é vista, por esses teóricos, como um ser em via de desenvolvimento, um objeto parcial, pronto para a satisfação com o objeto “adequado e harmonioso” que a mãe deve ser, ao aprender a interagir com a onipotência da criança.

Uma das versões que Lacan dá para a mãe é a de que ela é insaciável e ameaçadora por seu poder sem lei. Esta insaciabilidade refere-se ao modo próprio de a mulher tentar tamponar a falta, substituindo o falo pelo filho, operação que vai fracassar, pois vai sempre haver um resto irredutível de insatisfação.

É na relação com a mãe que a criança é experienciada como o que falta à mãe, ou seja, o falo. Se a mãe deseja o falo, a criança quer ser esse para satisfazê-la, colocando-se no lugar de objeto de desejo dessa mãe. É o desejo dessa que condiciona, estando o filho capturado no lugar de significante primordial do desejo (falo) permitindo à mulher sustentar o lugar de mãe.

A psicanálise nos orienta que, ao discutir a relação de uma mulher com a maternidade, deve-se considerar o caráter traumático do encontro do ser vivente com a linguagem, que vai desnaturalizar o ser mãe e transformar toda mãe em uma mãe “desnaturada”(Brousse, 1993). Desnaturada pela linguagem, pela sua divisão constitutiva, pelo seu inconsciente.

De acordo com Miller (2003), um dos efeitos da linguagem é o de separar sujeito e corpo, e esse efeito de cisão, de separação entre sujeito e corpo, só é possível pela intervenção da linguagem: é preciso fazer-se o corpo, não se nasce com um corpo. É no corpo mesmo que se faz presente o furo do sexo para as mulheres. Enquanto a mulher freudiana é situável a partir da carência fálica e de tudo o que vem compensá-la, por exemplo, a maternidade; na mulher lacaniana se enfatiza antes o que nela existe de suplemento como gozo: estar habitada por um gozo a mais. Esse gozo suplementar tem duas faces: o gozo do corpo, gozo que transborda o gozo localizado do órgão fálico, e o gozo da fala, que é o gozo que está no significante, sendo para ele exatamente o gozo erotomaníaco, um gozo sem limite, pois esse necessita que seu objeto fale.

 

A Mãe e a Metáfora Paterna

 

A mãe, na metáfora paterna, é reduzida ao desejo, que significa sua função de falta e de perda, é aquela que vai e que vem. Na medida em que a criança simboliza, depara-se com o par ausência-presença, ou seja, defronta-se com uma mãe que deseja alhures. Há um algo a mais, diz Lacan, a existência de uma simbolização primordial da mãe que vai e vem, o que permite algum acesso ao objeto do seu desejo, o falo. De acordo com o relato de Santiago 2001, o ponto nodal da “metáfora paterna” é:

“O processo de substituição do significante do desejo da mãe por um significante paterno, que faz do falo a encarnação da lei do desejo. “É do pai que depende a possessão, ou não, pelo sujeito materno, desse falo”, Essa é a condição da transmissão da lei da castração no plano simbólico: a mãe funda o pai como mediador de seu produto e diz “não” ao gozo, furtando-se a tomar seu objeto – criança – unicamente por seu valor de usufruto: “tu não reintegrarás teu produto” é a lei edípica, que se faz, então, valer.” (Santiago 2001, p.98)

A metáfora paterna tem, portanto, a função de dividir o desejo materno, ou seja, fazer com que a criança não seja tudo para a mãe. Esta metáfora será bem sucedida se for preservado o não-todo do desejo feminino, quando o ser da criança não recobre o desejo da mulher. O desejo da mãe deve se dirigir e ser atraído para um homem, o que exige que o pai seja, também, um homem (Miller, 1996).

Naveau (2001) afirma que a criança interroga sobre a sua mãe, uma mãe que ela divide, é no pensamento, no fantasma. Por outro lado, ela é sua mãe, mas não é a mulher do pai, pois, segundo Freud, na imaginação da criança, a mãe tem um amante e é considerada para o filho como essencialmente uma mulher infiel.

Laurent (1999) argumenta que, em geral, ao se pensar na relação mãe-criança, geralmente se fala da maternagem e não da sexualidade feminina. Entretanto, ele alerta, seria preciso pensar nos avatares da relação de uma mãe com seu filho e deslocar o acento da mãe para a mulher. Enquanto os homens falam das suas amantes, as mulheres se queixam dos seus rebentos. A criança parece ocupar o lugar da sexualidade das mulheres.

 

Concluindo

 

O lugar que o filho ocupará para a mãe vai depender do lugar que o inconsciente materno dará ao objeto surgido no real. Para a mãe, o desejo, que sustenta o fantasma e o gozo, tem a ver com o impossível de dizer e só é acessível pela interpretação que a criança fará do discurso, no qual está envolvida.

Miller (1998) aponta que transformar-se em mãe é uma solução pelo lado do ter. Ser mãe de seus filhos pode significar para uma mulher existir como A mulher, enquanto aquela que tem, a mulher rica.

As queixas apresentadas pelas mães na escola do filho apontam para diversos percursos trilhados por essas mulheres em busca da feminilidade, para a verdade singular de cada mãe/mulher.

 


Referências Bibliográficas
BROUSSE, M. H. (1993). Femme ou mère? La Cause Freudienne, jun, 30-3.
FREUD, S. (1931). Sexualidade feminina. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.) (Vol. 21). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.
___________ (1932). Feminilidade. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.) (Vol. 22). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.
LACADÉE, P. (1996). Duas referências essenciais de J. Lacan sobre o sintoma da criança. Opção Lacaniana, 17, 74-82.
LACAN, Jacques (1969). Duas notas sobre a criança (Ana Lydia Santiago trad.). Opção lacaniana n. 21. abr-1998, pp. 5-6.
___________(1958) “Significação do falo, A” in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LAURENT, E. O analista cidadão. Curinga: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 13, p. 12-19, 1999.
MILLER, J.-A. (1997). Lacan elucidado. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
___________ (1998). A criança entre a mulher e a mãe (Ana Lydia Santiago trad.). Opção lacaniana n. 21, abr.- 1998, pp. 7-12.
NAVEAU, Pierre. A criança entre a mãe e a mulher. A criança entre a mãe e a mulher. Belo Horizonte: Curinga, 2001.
SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra. “A mulher, a mãe sua criança e outras ficções” In: Revista Curinga – A Criança entre a mãe e a mulher. Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – MG, abr/2001, p. 94.

MAGDA H. B. CASAROTTI
Aluna do Módulo III do Curso de Psicanálise do INSTITUTO DE PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL DE MINAS GERAIS



“O Sujeito Do Gozo” Na Psicose

NÚBIA APARECIDA FERREIRA DE MELO

 

 

“O SUJEITO DO GOZO” NA PSICOSE

A foraclusão generalizada e as psicoses ordinárias, tema do quarto módulo do curso de psicanálise, realçaram os desenvolvimentos posteriores de Lacan no que concerne aos estudos e tratamento da psicose.

Se no Seminário. Livro 3: As Psicoses (1955-1956), bem como em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” ([1958] 1998, p.537-590), Lacan enfatiza o registro simbólico e a ausência de seus índices: Nome do Pai e significação fálica – recursos para representar a falta a ser e o gozo que se perde – como elementos balizadores da psicose extraordinária ou desencadeada, algo de novo se põe quando um modo diferente de entrar na psicose se apresenta.

Neste texto, o objetivo não é enveredar por toda a teorização acerca do primeiro e segundo ensino de Lacan sobre as psicoses, ainda que o elemento que nos interessa situar, o sujeito do gozo, derive da passagem de um ensino ao outro. É quando se formula que o sujeito da psicose não é o sujeito do significante, mas sim o sujeito do gozo. E que a clínica da psicose vai tratar da solução de gozo e não do significante.

Dois eventos realizados na França, entre 1996 e 1999, “A Conversação de Arcachon”, com “Os casos raros e inclassificáveis da clínica psicanalítica”, seguida da “A Convenção de Antibes”, que resultou no livro A Psicose Ordinária, são formalizadores de casos atípicos de psicose que requerem um manejo outro do gozo não localizado, que ataca o ser do sujeito. Os casos são centrados em uma experiência que devemos entender como confrontação a um gozo do Outro, que o sujeito sente como totalmente enigmático, não lhe atribuindo outro lugar senão o de objeto, colocando-o em perigo extremo.

Trata-se do real difícil de simbolizar que pode ocasionar passagens ao ato, como suicídios e assassinatos, ou formas inusitadas de tentar localizar o gozo: cortes no corpo, escarificação, tatuagem, uso de drogas e outros. Tudo são maneiras de tentar extrair o objeto que fica no corpo, num excesso, alcançando alguma pacificação do gozo desregulado – daí a formulação de que o psicótico traz seu objeto no bolso, colado ao corpo.

Miller (2011), no seu texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, menciona que esta psicose também poderia ser nomeada como comum. Trata-se apenas de um termo, um significante, e não um conceito. No entanto, por se apresentar discretamente, por desligamentos sucessivos do Outro, tornando difícil precisar o diagnóstico, requer tomar em consideração a polaridade entre “sujeito do gozo” e “sujeito do significante”, orientando a clínica pela questão do real e do aparelhamento do gozo, o que traria mais perspectivas para alguns tratamentos na atualidade. Miller afirma ainda que Lacan insiste nesta mudança de perspectiva, uma vez que passa a dar todo o lugar à clínica “borromeana”, contemporânea dos Seminários RSI e O Sinthoma, sem se desconsiderar a clínica estrutural que distingue entre neurose e psicose, em função da presença ou ausência do operador que é o Nome do Pai.

É também num outro texto, “La Verdad Mentirosa” ([2009]2011, p.146), que Miller vai mencionar que é somente quando se considera que a finalidade do aparato significante é o gozo, incluindo aí o real, que Lacan escreveu – a pedido seu, na primeira tradução francesa das Memórias do Presidente Schreber – “el sujeto del gozo”. E “si no lo repitió, fue porque no se sostenía”.

Miller segue comentando que foram necessários mais dez anos para se apresentar o parlêtre como o ser que fala de seu gozo, gozo este que é a razão última de seus ditos.

O que se encontra na “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos” (Outros Escritos, 1966/2003, p.219-223)? Lacan retoma a importância do texto de Schreber em Freud dizendo que “a liberdade que Freud se deu aí foi simplesmente aquela, (…), de introduzir o sujeito como tal…”. Ou seja, que não se trata de avaliar o louco em termos de déficit, ou de que lhe falta algo que se precisa recompor. E prossegue, sobre o mesmo texto:

“A temática que avaliamos pela paciência exigida pelo terreno em que temos de fazê-la ouvida, na polaridade – a mais recente promovida – do sujeito do gozo e do sujeito que o significante representa para um significante que é sempre outro, não estará nisso o que nos permitirá uma definição mais precisa da paranoia como identificando o gozo no lugar do Outro como tal”? (LACAN, 2003, p.221).

O que se torna elucidado, a partir do que se coloca, é que a clínica borromeana interroga o que pode manter ligados, ou fazer ficarem juntos os três registros da estrutura: Real, Simbólico e Imaginário, acolhendo outras soluções e invenções para além do Nome do Pai. Cada um pode fazer o seu sinthoma que amarra. Há psicóticos que fazem isso, e foi o que Lacan procurou demonstrar com Joyce, caso paradigmático de uma amarração do sujeito com sua escrita – não estava delirando –, levando-o à formulação de “Joyce, o sinthoma”. Schreber, sem narcisismo, faz uma construção delirante: “Ser uma mulher copulada por Deus” e tudo que vai construir, delirantemente, é para amarrar isso.

No livro A Psicose Ordinária (2012) menciona-se a posição ética do psicótico, tantas vezes ressaltada por Lacan em expressões como “escolha da liberdade”, ou “insondável decisão do ser” etc., nos seguintes termos: “o psicótico é aquele que se recusa a trocar o gozo pela significação” (MILLER, 2012, p. 56).

Daí ser necessária uma outra lógica na direção do tratamento que leve em conta a relação do sujeito psicótico com lalíngua e não com a articulação significante. As amarrações que um sujeito psicótico faz não precisam ter, necessariamente, um sentido. São construções ou produções que funcionam como um Nome do Pai para o sujeito, e o estabilizam ou religam ao Outro.

Sujeito do gozo, portanto, vem indicar a posição do sujeito como resposta do real e como escolha segundo o modo de gozo.

Para concluir, faremos um breve relato sobre o documentário “A Céu Aberto” (2014), de Mariana Otero, cineasta francesa, no que ele revela algo do sujeito tomado pelo gozo desregrado.

Otero, interessada no enigma da loucura, escolhe entre as instituições o “Le Courtil”, na fronteira entre a França e a Bélgica, um espaço que acolhe crianças autistas e psicóticas, para a sua produção. Com uma câmera amarrada ao corpo, deixando livres suas mãos para interagir com os internos, filma cento e oitenta horas, em 2012, o que foi essa experiência, lançada entre 2013 e 2014.

Comentando a respeito de seu trabalho, a cineasta dirá que não encontrou ali a loucura, mas sim o modo singular, a língua própria de cada um, diferente da língua da maioria das pessoas.

“A céu aberto” é o que Lacan formula sobre o inconsciente do psicótico, no Seminário, Livro 3, As Psicoses. O inconsciente exposto, sem nenhuma censura. “Esquisitices” ditas, sem nenhum pudor, marca do que perturba a relação do sujeito com a realidade, tal como a paciente dele que diz numa sessão: “Eu venho do salsicheiro” (LACAN, 1985, p.60).

A cineasta mesmo parece ter-se constituído, com sua presença discreta e sua câmera-olhar, um Outro ao qual as crianças podiam se enlaçar. Um objeto fora do gozo de seus corpos, algo a que se endereçar. Amina, que não utilizava as palavras com clareza, interessa-se pela câmera e por quem está por detrás dela. Pergunta: “o que é isso”? Otero responde: “a câmera”. E isto, referindo-se a Otero. “Sou eu, Amina, Mariana. Você me conhece”! A criança prossegue dizendo que vai querer uma câmera como a dela, quando crescer. Perguntada sobre o que faria, a criança responde que vai filmar lá fora, o céu, as aves…

Alysson, uma menina de 12 anos, completamente invadida pelo gozo sexual, não para quieta com suas mãos, inclusive sobre os genitais, o que se acentua quando perto de algum menino. Com um gomo de mexerica na boca, balança-se freneticamente e diz “estou chupando”. Em outro momento, chega a gritar “sexo”. No jardim começa a se interessar por minhocas e outras coisas que desenterra. Vai convocar o olhar da cineasta, mostrando para a câmera a minhoca que desliza na palma de sua mão. Em outra cena, Alysson a convoca, colocando-se em três lugares diferentes com a pergunta: “e aqui”? Ao que Mariana responde: “eu te vejo”, “também te vejo”, “vejo também”, a cada uma de suas posições. Constituição de um corpo para Alysson, cujo diagnóstico é de esquizofrenia, psicose em que o gozo retorna no próprio corpo? O documentário termina com Alysson pegando uma trilha no campo por onde corre e chama: “venha, Mariana, por aqui”, sempre convocando esse olhar para si.

Jean-Hughes, um dos mais velhos, 14-15 anos, fala, delira e pensa sem cessar. Sabemos quanto o Outro do psicótico é tomado como mau, abusador e invasivo. Otero consegue se fazer o Outro dócil que apenas acompanha o psicótico, como sugere Miller. Jean-Hughes a recebe em seu quarto e faz uma apresentação minuciosa de seus objetos. Aliás, é sempre ele que a convida com “bom-dia”, “olá”, ou até mesmo fazendo passinhos de dança em frente à sua câmera. Ela nunca o invade. Soube manter a distância que o autista estabelece do Outro insuportável para si. Como Otero pôde funcionar assim, com tanta sensibilidade, não sendo uma profissional com conhecimento do manejo delicado que requer a clínica da psicose? Operava com o mesmo cuidado de cada um dos interventores e demais profissionais do Le Courtil: Véronique Mariage, Dominique Holveoet, Marie Brémant e outros. Todos mergulhados no mundo da singularidade dessas crianças e adolescentes, propiciando e acompanhando as invenções que pudessem constituir alguma borda entre o corpo e a linguagem.

Alvarenga, em seu texto “Psicoses Freudianas e Lacanianas”, propõe que “aquele que acompanha o sujeito psicótico na sua experiência enigmática opera, ao contrário do que faz na clínica da neurose, com o mínimo de enigma possível, tentando, de alguma forma, reatar a pulsão à cadeia significante” (ALVARENGA, 2000, p.43).

Com Alysson, a direção do tratamento foi ocupar suas mãos, que já se ocupavam da terra, com as massas de bolo. Deu para observar sua hesitação quando Marie lhe disse: “Agora terá de misturar”. Era comum a menina ter dificuldade para prosseguir, queixando-se de dor na barriga, ou na cabeça, nesses momentos em que a finalidade era que o sujeito pudesse ceder um pouco da carga de gozo que afeta seu corpo.

Evanne, de 8 anos, roda até cair. Possivelmente, uma representação de suas crises epilépticas, em que cai e se debate. Numa oficina de música, Dominique propõe ao violonista que faça pausa na música e interponha algumas perguntas que a criança tenha que responder, parando-a um pouco em seu gozo de rodopiar incessantemente. A canção dizia: “vovó foi à padaria e o que comprou?” A criança para e responde: “baguete”. “Quanto custou”? Nova parada nos rodopios e um valor: “três euros”. Logo após, a brincadeira se interrompe com uma fala da criança: “fiz cocô”. Um esforço para perder, ou esvaziar o gozo que o invade.

Jean-Hughes delirava, mas também desenhava e tentava falar do gozo invasivo, na escuta atenta de Marie que se assenta com ele em seu quarto, dizendo “não posso deixá-lo assim”. Ele que gritava para os italianos o deixarem em paz, diz: “Não aguento viver desse jeito, falando sem parar e com tudo isso dentro da minha cabeça”. Marie lhe diz que vai ficar ali e que não precisa falar. Segue-se uma conversa em que o orienta sobre como pinçar e não raspar os pelos da sobrancelha que o incomodam, pois demorariam mais para crescer. Jean lembra que já fez isso com seu pai uma vez, e vai ficando visivelmente apaziguado.

O tratamento conduzido nessa instituição vai constituindo um “novo céu” para as crianças e jovens em tratamento, não as deixando à deriva do gozo em seus corpos, que expõe o inconsciente “a céu aberto”.

 

 


Referências
ALVARENGA, Elisa. “Psicoses Freudianas e Lacanianas”. Revista Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.28, 2000, p. 40-43.
BATISTA, Maria do Carmo Dias; LAIA, Sérgio (Orgs). A psicose ordinária – A Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
LACAN, Jacques. (1966). “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.219-223.
LACAN, Jacques. (1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.537-590.
LACAN, Jacques. (1955-1956). O Seminário. Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MILLER, Jacques-Alain. (2009). “La Verdad Mentirosa”. In: Sutilezas Analíticas, Buenos Aires: Paidós, 2011, p137-147.

NÚBIA APARECIDA FERREIRA DE MELO
Psicóloga graduada e pós-graduada em Psicanálise: Teoria e Prática, pela Universidade FUMEC. Aluna do curso de Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2014-2016. nubiafmelopsc@hotmail.com