Almanaque V. 11 – Nº 19 1º semestre de 2017

Eis aqui o Almanaque, o 19º de nossa série. Nossos textos foram cuidadosamente selecionados pelos integrantes da equipe de publicação desta revista eletrônica do IPSM-MG, a partir dos movimentos do Campo Freudiano. Neste número, você, leitor, encontrará material sobre o tema do XI Congresso Mundial de Psicanálise, “As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência”, e sobre o tema do VIII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL) “Assuntos de família, seus enredos na prática”. Acreditamos que a fluidez da internet possibilite que essas discussões reverberem e provoquem a participação de vários. Leia o editorial…

TRILHAMENTO

Psicoses, ordenadas sob transferência – MIQUEL BASSOLS

Clínica lacaniana da psicose – ANGELINA HARARI

Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos – YVES VANDERVEKEN

Catálogo de textos: Sobre as psicoses ordinárias e as outras – Almanaque

ENTREVISTA

Entrevista com Juliana Mota (Instituto Raul Soares – FHEMIG) Do confinamento ao manejo clínico – ALMANAQUE ON-LINE

INCURSÕES

A família contemporânea e o real do sexo – SUZANA FALEIRO BARROSO

O real na família contemporânea – Questões sobre o incesto – LUCIA MELLO

Os Filhos dos toxicômanos – MARIANA FURTADO VIDIGAL

The wolfpack: entre filmes e lobos – GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR

ENCONTROS

Assuntos de família no discurso toxicomaníaco: impasses – CASSANDRA DIAS FARIAS

O escabelo de François Augiéras: escritura e pintura do corpo do de-lito (de-leito) – PHILIPPE LACADÉ

DE UMA NOVA GERAÇÃO

De onde vêm as mães? – MAGDA H. B. CASAROTTI

“O Sujeito do gozo” na psicose – NÚBIA APARECIDA FERREIRA DE MELO




Psicoses, Ordenadas Sob Transferência

MIQUEL BASSOLS

 

LYGIA CLARK

 

Psicoses, ordenadas sob transferência

 

MIQUEL BASSOLS

 

A solidez de um conceito clínico se mede pela efetividade de seu uso, especialmente quando dá conta de um campo de fenômenos para os quais não existia antes um mapa estabelecido[1]. A partir dessa perspectiva, podemos dizer, sem dúvida, que o conceito de “psicoses ordinárias”, cunhado por Jacques-Alain Miller no final dos anos noventa, chegou a ser um conceito clínico já estabelecido, um conceito de enorme efetividade, dado ao seu uso ampliado desde então no campo freudiano… e mais além. As psicoses ordinárias dão conta, assim, de uma série de fenômenos que, às vezes, passam despercebidos por sua aparente normalidade mas que, escutados desde o ensino de Lacan, indicam as condições de estrutura que temos aprendido a localizar no campo das psicoses. Discretos acontecimentos de corpo, sutis obturações de sentidos no deslizamento da significação, velados fenômenos de alusão, suplências minimalistas nas quais o sujeito sustenta a frágil estabilidade de sua realidade. Esses fenômenos estavam aí, à vista de todos, mas se confundiam frequentemente com a paisagem da normalidade. Tal como indicava o próprio Jacques-Alain Miller na hoje conhecida Convenção Antibes, “Passamos da surpresa à raridade, e da raridade à frequência” (MILLER, 2012, p. 241). Quer dizer, passamos da surpresa de encontrar o excepcional e o extraordinário a reparar em fenômenos com que, por sua frequência, já estávamos familiarizados.

 

Mas ali onde opera o preconceito da normalidade, esse fantasma que adquire em nossos dias categoria de verdade estatística, se trata sempre de encontrar a estranheza do traço clínico em seu detalhe mais singular. Assim, as psicoses ordinárias nos revelam agora um tipo de carta roubada de nossa clínica: estavam tão à vista de todos que se escondiam de cada um. Bastava um ligeiro deslocamento de foco clínico para fazer aparecer, nesses fenômenos, a estrutura das psicoses em suas diversas formas de amarração e revelar, com essa mudança de perspectiva, que o mais estranho habitava o mais familiar da clínica. As psicoses ordinárias são assim também o Unheimlich (o sinistro, o estranhamente familiar) de nossa clínica. E não é raro obter esse afeto vinculado ao Unheimlich no psicanalista praticante quando se assinala a dimensão do estranhamente familiar desses fenômenos.

 

Então, se o conceito de psicoses ordinárias veio delimitar o mapa do que antes era uma “terrra incógnita” de nossa clínica, é também porque mostra que a topografia de seu terreno está presente em cada um dos continentes previamente definidos pela cartografia clássica, a cartografia repartida segundo as categorias de psicoses, neuroses e perversão. Dito de outra maneira, o mapa cria mais o terreno do que o representa, até confundir-se com ele. O que quer dizer também que a linguagem, incluída a da clínica, em vez de ter uma função de representação da realidade, está vinculada na mesma operação da construção e da percepção dessa realidade. É algo tão estranho como familiar para alguém formado na orientação lacaniana clássica: a percepção eclipsa a estrutura ali onde essa estrutura revela o modo em que se constrói essa percepção.

 

Vamos agora considerar a natureza do terreno que hoje conhecemos como o termo “psicoses ordinárias”. Imaginemos um tipo de Google Earth da clínica em que podemos visualizar o terreno e as localizações geográficas com seus nomes e fronteiras. Encontramos aí, segundo nossa clinica clássica, claramente estabelecidos os dois grandes territórios das neuroses e das psicoses, com suas fronteiras e subfronteiras, com a histeria e a obsessão de um lado, com a paranóia e a esquizofrenia por outro. Podemos localizar também a melancolia, também as perversões, ainda que às vezes se confundem um pouco mais em algumas de suas fronteiras para revelar sua condição de traços que podem compartilhar diferentes países. Existem, com efeito, traços melancólicos em vários lugares dos continentes delimitados, assim como traços de perversão, para retomar a tema de um encontro internacional do Campo Freudiano de algumas décadas atrás.

 

Se escrevermos agora “psicoses ordinárias” nesse localizador imaginário da clínica no Google Earth para ver como os zooms sucessivos nos conduzem a uma localização precisa, oh, surpresa!, a lista de lugares que aparecem na pequena janela de busca se alarga mais e mais, até fazer-se presumivelmente infinita. Até o ponto que pareceria que as “psicoses ordinárias” podem estar hoje em qualquer parte do mapa sem que se possa reduzir sua descrição a um traço, tampouco constituir-se em um continente em si mesmo. Se clicamos em qualquer um desses nomes, somos conduzidos, sem dúvida, a lugares já conhecidos. E se continuarmos a verificar a lista, talvez poderíamos concluir, então, que a psicose ordinária é, na realidade, o próprio Google Earth como um todo, o próprio sistema de representação com o qual buscamos localizar os lugares da nossa clínica clássica. É uma clínica feita de traços discretos, que valem pela diferença que existe entre uns e outros, ao estilo do sistema estrutural da língua que conhecemos desde a lingüística de Saussure. Mas aqui os traços são tão discretos – permitam-me o equívoco dessa palavra –, tão sutis, que desaparecem à visão geral e só aparecem na singularidade de cada caso, e cada vez de maneira distinta. Difícil construir um mapa geral e um buscador preciso com essas condições de representação, a não ser, como dizemos, que o lugar em questão que buscamos não seja senão o próprio sistema de representação com o operamos.

 

Digamos de imediato que esse paradoxo não nos parece de todo estranho aos leitores de Jacques Lacan. Está presente desde muito cedo em seu ensino. Ele mesmo leu sua própria entrada na psicanálise, a que leva o título de sua famosa tese de 1932, On Paranoiac Psychosis in its Relations to the Personality, dizendo, alguns anos depois, que a personalidade é a paranóia, e que é por essa razão que não há, de fato, relações entre uma e outra. Nada mais normal que a personalidade, nada menos discreto também – tome-se o termo “discreto” com o equívoco que temos assinalado.

 

Mas, então, será que a categoria de “psicoses ordinárias”, que nos parecia tão efetiva no seu uso, se evapora agora precisamente pela extensão e efetividade deste uso? Não estará ocorrendo o mesmo que assinalava Lacan nos anos cinquenta, quando estudava o uso da interpretação no meio analítico a partir das observações de Edward Glover? Recordo-lhes sua indicação a respeito em seu escrito sobre “The direction of the treatment and the principles of its power”: Edward Glover, na falta da noção de significante para operar na experiência analítica – escreve Lacan – “finds interpretation everywhere, being unable to stop it anywhere, even in the banality of a medical prescription[2]”(LACAN, 1998, p. 585.).

 

Sem dúvida, tal estravio seria, seguramente, a nossa confusão de línguas, confusão que se acrescentaria à Babel atual da clínica, uma clínica que parece desaparecer ela mesma no mundo das nosografias cada vez mais desordenadas e hoje alimentadas pela crise do sistema DSM. É sabido que a crise desse sistema, em suas novas versões, estendeu de tal modo as descrições do patológico na vida cotidiana que não há um só canto que não seja diagnosticado como uma possível “desordem”. Até o ponto de que, se alguém não se encontra descrito em alguma das páginas do manual, é porque realmente deve ter uma séria “disorder“.

 

Trata-se, em realidade, de um erro de perspectiva homólogo ao que descrevíamos com o modelo do Google Earth. Com a introdução das categorias das “psicoses ordinárias” na clínica, nos encontramos – como assinalva Jacques-Alain Miller no momento mesmo de introduzir o termo – “divididos entre dois pontos de vista contrastantes, mas que não são excludentes um do outro” (MILLER, 2012, p. 242.). Desde a primeira perspectiva, aqui podemos ordenar, a partir do primeiro ensino de Lacan, que há descontinuidade entre neurose e psicose; há fronteiras mais ou menos precisas; há elementos discretos e diferenciais, tributários da lógica em que funcionam os nomes do Pai e a lógica do significante que opera de modo discricional, pelas diferenças relativas entre os elementos. Quando há uma fronteira no mapa, há diferenças discricionais entre os territórios, há também possível reciprocidade entre eles para definir o que um é e não é em relação ao outro. Desde a segunda perspectiva, a que podemos ordenar a partir do último ensino de Lacan, coloca-se mais a ênfase na continuidade entre territórios, aquela que os torna contíguos, como dois modos de responder a um mesmo real, como dois modos de gozo diante de uma mesma dificuldade de ser. Não se trata mais, nessa segunda perspectiva de estabelecer fronteiras, senão de constatar amarrações e desamarrações entre fios que estão em continuidade.

 

Assim, podemos dizer que não há propriamente uma descrição clínica das psicoses ordinárias segundo o modelo clássico que ordena suas categorias a partir de uma série de traços presentes no interior de um conjunto mais ou menos delimitado. Resultaria impossível então incluir uma categoria assim na lógica do DSM ou dos manuais de diagnósticos habituais, em que se enumeram os traços que devem estar presentes para cada categoria clínica. Desde o ponto de vista descritivo poderiam definir-se melhor por uma traço que falta, nunca o mesmo, por aquele que sentimos faltar em relação às psicoses clássicas, mas também pelo que percebemos faltar em relação as neuroses clássicas. Nos vemos então obrigados a defini-las, mais do que nunca, caso a caso, e sempre segundo com o contexto em que encontramos esta falta.

 

Se me permitem assim dizer, a categoria “psicoses ordinárias” inclui então as categorias que não se incluem a si mesmas: parece uma histeria mas não é uma histeria, não inclui os traços que conhecemos da histeria; parece uma obsessão mas não inclui os traços da obsessão; parece a paranóia mas não inclui os traços da paranóia… O que converte as psicoses ordinárias em um tipo de paradoxo de Russell, o paradoxo bem conhecido daquele conjunto que inclui os conjuntos que não se incluem a si mesmos. Há várias maneiras de ilustrar o paradoxo de Russell, e uma é o catálogo que inclui todos os catálogos que não se incluem a si mesmos, sem poder concluir finalmente sobre a pergunta se o primeiro catálogo se inclui ou não a si mesmo.

 

Desse modo, a categoria das psicoses ordinárias faz explodir o sistema diagnóstico da clínica estrutural. Ocorre com elas algo parecido ao que ocorria na primeira clínica freudiana, com a introdução das chamadas “neuroses atuais”, as neuroses que Freud distinguia das psiconeuroses clássicas e que se definiam por sua falta de história infantil e pela falta de sobredeterminação simbólica dos sintomas. Toda neurose era uma neurose atual até que não se encontrasse esses dois elementos estruturais que não cessavam de não se escrever… até o encontro contingente que decantava sua significação.

 

Digamos que o único modo de verificar esse fato, o único modo de pôr a prova esse real que não cessa de não se escrever em cada caso, é a própria estrutura da experiência analítica, a estrutura que se põe à luz do dia no fenômeno da transferência.

 

Dito de outro modo, e para concluir, as psicoses ordinárias só se ordenam clinicamente quando seus fenômenos se precipitam, se ordenam, na lógica da transferência. Só ali se revelam as psicoses ordinárias como ordenadas sob transferência.

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Maria das Graças Sena

 


Referências
LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (RIBEIRO, V. Trad.) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998, p. 585. 
MILLER, J-A. A psicose ordinária. (Batista, M. C.; LAIA, S. Orgs.). Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012. 
[1] Texto apresentado no Congresso NLS – Dublin, julho de 2016.
[2] “Encontra interpretação em todo lugar, tornando-se incapaz de para-la em qualquer lugar, mesmo na banalidade da prescrição médica”. Tradução nossa.

MIQUEL BASSOLS
Psicanalista em Barcelona, membro da ELP, presidente da AMP.



Clínica Lacaniana Da Psicose

ANGELINA HARARI

 

YVES KLEIN

 

Clínica lacaniana da psicose

ANGELINA HARARI

 

Tema abordado em dissertação em que se interessou mostrar o percurso de Lacan no tocante à psicose, isto é, o que se passou entre a marca estruturalista recebida de Clérambault e a clínica universal do delírio. Adotamos como fio condutor o conceito não deficitário da psicose. Nessa ótica, a retirada do índice negativo da psicose une o percurso de Lacan dos anos 1930, em que sua abordagem encontra eco no meio surrealista, à inversão ocorrida nos anos 1970, quando propõe a foraclusão generalizada como modelo do núcleo real de todo sintoma, servindo-lhe a topologia do nó borromeano para reformular o conceito de estrutura (HARARI, 2006). Para dar conta de entendermos o último ensino de Lacan, James Joyce, eleito como o paradigma de sua última clínica, nos obriga a nos debruçarmos ainda mais sobre a psicose. O conceito de sinthome coincide com a definição estabelecida para o sintoma psicótico: interseção entre simbólico e real por fora do imaginário, na qual um elemento do simbólico, sozinho, não encadeado, desloca-se para o registro do real como letra.

 

Quando abandona a clínica mecanicista, privilegiando a abordagem não deficitária da psicose, enfatizando a clínica universal do delírio, Lacan visaria a uma prática da psicanálise sem a ficção dos universais conforme o “ultimíssimo ensino em que a universalização do significante é o que impede que a singularidade de um sujeito seja circunscrita na fala” (VORUZ, 2017).

 

Nessa vertente, introduzir o tema do XI Congresso da AMP e abordar a psicose ordinária, não sem as outras, tem como objetivo somar-se ao esforço contínuo de elucidação da prática lacaniana que, quando não se trata de abordagem via casuística ou via discussão de uma apresentação de pacientes, ou, ainda, via o Ensino do passe, exige demonstração de fundamentos.

 

Partiremos da Conferência no Rio, de Jacques-Alain Miller, “Habeas corpus”, isolando as seguintes referências: o objeto a – como aporte e solução encontrada por Lacan durante muitos anos; o objeto a – degradê, como uma modelagem do gozo no modelo significante, e o parlêtre por natureza. Do percurso que vai do objeto a como o aporte lacaniano, por excelência, sua degradação para abrir a via ao parlêtre por natureza (MILLER, 2016).

 

A clínica lacaniana da psicose contribui igualmente para o tema do fim de análise, e a psicose ordinária veio relançar através de uma das soluções assinaladas por Jacques-Alain Miller: a psicose em análise (ANSERMET, 2017).

 

Às questões “como enlaçar o simbólico, caracterizado pelo efeito de sentido, com o real sem sentido?” e “como enfocar a disjunção radical entre o real como impossível e o sentido?”, Lacan responde que “o efeito de sentido a ser exigido do discurso analítico não é imaginário ou simbólico; é preciso, portanto, que seja real” (LACAN, 1974-5).

 

O efeito de sentido ex-siste, e nisso ele é real

 

Nessa frase de Lacan, o ponto notável é que o discurso analítico exige um efeito de sentido que seja real. De um lado, a experiência analítica se inicia ao dar sentido ao sintoma; o pivô da ação analítica é a oferta de sentido. O sujeito do inconsciente surge da experiência como sujeito representado no entre dois significantes de uma cadeia. De outro lado, pouco a pouco isso dá lugar ao parlêtre/falasser, e não se trata mais “de sentido, mas de gozo-sentido” (LACAN, [1973] 2003).

 

Um efeito de sentido que seja real não é simples nem automático de se obter, e nesse ponto podemos partir do trabalho de J.-A. Miller, o de elucidação do ensino de Lacan e, mais precisamente, seus comentários em “L’Être et l’Un” (MILLER, 2011), ao evocar o esvaecimento do sujeito suposto saber como correlativo do des-ser. Segundo ele, há o desvelamento da negação da essência e do sentido do sujeito suposto saber. É a ideia de um nó que se constrói efetivamente ao formar cadeia da matéria significante, pois essas cadeias não são de sentido, mas de gozo-sentido, que se encontra em “Televisão” (LACAN, [1973] 2003). Isso explica por que o termo “sujeito” é substituído por parlêtre/falasser, que inclui o corpo, o que é mais coerente com a noção de gozo: “não há sentido sem gozo, não há desejo sem pulsão, e a raiz do Outro é o Um” (MILLER, 2011). Isso não é acompanhado de um novo sentido para o que diz respeito à castração – o que faz cessar as embrulhadas do sentido –, pois o sintoma não se abranda com sentido. É próprio do gozo resistir ao sentido. É preciso um uso lógico capaz de secar o sentido.

 

Para Lacan, a relação do efeito de sentido com o real só é de exterioridade inicialmente, pois essa exterioridade supõe o nó projetado em uma superfície plana; se se serve dele (do nó), é para nos introduzir à noção de ex-sistência e deduzir que o efeito de sentido ex-siste, e nisso ele é real. A cisão do ser e da existência leva Lacan a fundar o Um que ex-siste face ao Outro (A) que não existe, sendo que o nó é plano, acrescenta ele, porque pensamos só horizontalmente. Pode ser que exista uma construção cuja consistência não seja imaginária, e isso implica que haja um furo, o que, por sua vez, nos conduz à topologia do toro. No derradeiro ensino de Lacan, a exaltação do furo tem por função dar existência ao puro “não existe”, o que nos ajuda a situar-nos no espaço do ultrapasse (MILLER, 2011).

 

Quais são as incidências disso na prática? Por essa perspectiva, o esvaziamento de sentido deve ser obtido como um saber haver-se [ou no coloquial: saber se virar, savoir y faire] com os restos sintomáticos. Retomo aqui a proposição de JAM a respeito dos dois regimes do passe: o da verdade e o do saber. O passe do sinthome como “extensão conceitual do fantasma” coloca o acento na verdade mentirosa. Então, a verdade é mentirosa ao se confrontar com a irredutibilidade do sinthome e fracassar na absorção desses restos sintomáticos. Nesse sentido, o passe-saber destaca mais claramente os limites do simbólico.

 

Falar da praxis lacaniana do passe deve necessariamente incluir o ultrapasse, tal como foi nomeado por Miller. Isso está relacionado ao acontecimento de corpo: é precisamente o gozo que se mantém para além da resolução do desejo (MILLER, 2011). Os restos sintomáticos provenientes da assunção do interdito são da ordem da existência, diferentemente do desejo, que está no âmbito do ser.

 

A renúncia à ontologia no passe foi inicialmente concebida por Lacan como deflação do desejo. Em seguida, ele ultrapassou esse limite ao articular seu “Há o Um”. Desse modo, ele inaugura o primado do Um em detrimento do primado do Outro da fala, que é necessária para o reconhecimento do sentido. A partir de então, o corpo aparece como Outro do significante (MILLER, 2011).

 

Com o sinthome, pendemos para o campo existencial; é para ele que Lacan nos conduz quando renuncia à sua ontologia, que era regida pela noção de ser e de “falta-para-ser”; topar com os limites do simbólico levou Lacan a considerar de outro modo o real em jogo na experiência analítica.

 

O passe, conforme o regime da verdade, “evoca antes que uma demonstração de saber, uma satisfação, uma experiência de satisfação” (MILLER, 2011). De todo modo, para além da nomeação ao título de AE, é a relação ao furo, conforme aponta Miller, que se situa no âmbito do real. É, portanto, no espaço do ultrapasse, no qual o sujeito fala para si mesmo, sem comunicação possível, que se faz da práxis lacaniana do passe um real existencial.

 

Retomaremos um ponto do texto Habeas corpus (MILLER, 2016), no último parágrafo do apartado virada (tournant) lacaniana, em que se afirma que essa virada só será concluída no “Seminário 20”, (LACAN, [1972/3] 1985) momento que Lacan arromba a fechadura para degradar o objeto a, colocando-o como falso semblante.

 

Uma modelagem do gozo no modelo do significante

 

Para Miller, o saber sobre o gozo talvez seja o único saber psicanalítico que temos sobre a vida, sobre o que é o ser vivo. E acrescenta que ‘gozar’ do corpo vivo seria tudo o que podemos saber (MILLER, 2004). Apoia-se, para tanto, em Lacan, quando formula que “(…) não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso goza” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

É distinta a relação do significante com o corpo no início do ensino de Lacan, com a tese segundo a qual linguagem é corpo; corpo aí fica entendido como materialidade da fala e da linguagem.

 

O corpo como substância gozante, que é introduzido na década de 1970, diz respeito ao corpo vivo, à substância do corpo na medida em que há gozo do corpo: “Isso só se goza por corporificá-lo de maneira significante” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

Só podemos afirmar ter havido uma conversão de perspectiva quando Lacan passa a situar o significante no nível da substância gozante: “O significante á a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo?” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

Inicialmente, em Lacan, a materialidade do significante é inanimada, materialidade da linguagem, e até a satisfação é própria do simbólico: a elaboração de uma satisfação semântica. Um gozo, sem o corpo vivo, tem uma satisfação significante: a satisfação pelo reconhecimento, emprestado da fenomenologia de Hegel (MILLER, 2004).

 

Entender que seria possível uma satisfação significante da pulsão é o modo como Lacan torna simbólica a pulsão freudiana, solidária da noção de corpo mortificado. Mas não é o significante, da sustância gozante, tornando-se o corpo, recortando o corpo até fazer surgir o gozo.

 

São duas vertentes que Lacan introduz: a do corpo vivo e a do sujeito do inconsciente. Da reunião dessas vertentes, desse binário, surge o falasser (parlêtre) (MILLER, 2004), o que o faz postulando ‘sua’ hipótese: “Minha hipótese é a de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

O objeto a “natural”

 

Até o “Seminário 10: a angústia”, conhecia-se somente o corpo como essencialmente implicado na formação do eu, o corpo visual. Podemos afirmar que o corpo que faz sua entrada, sob o modo do objeto a, na constituição do próprio sujeito do inconsciente, é o corpo erógeno, o corpo das zonas erógenas, das zonas de borda, sem limite, que se sobrepõe ao corpo do Outro (MILLER, 2005).

 

Para Lacan, o sinal, termo que Freud designou para a angústia, é distinto da situação traumática. A originalidade de seu aporte reside no fato de ter enunciado com maior exatidão que o que Freud refere como o perigo que a angústia sinaliza e está ligada ao caráter cedível do momento constitutivo do objeto a, a angústia-sinal.

 

Se, por um lado, o perigo sinaliza o objeto caracteristicamente cedível, por outro, sinaliza que a angústia não é mensagem. Essa separação do objeto incide sobre o corpo libidinal, que não é o corpo visual, que implica o corpo do Outro.

 

O caráter cedível caracteriza o objeto a e Lacan faz da angústia um operador da separação, por isso ela não é mensagem, é um afeto único.

 

E, por sua vez, em entrevista a uma revista italiana, quando responde à questão do que é a angústia para a psicanálise, vai dizer que “é algo que se situa fora do corpo, um medo, mas nada que o corpo, espírito incluído, possa motivar. É o medo do medo, em suma” (LACAN, 1974).

 

De 1963 a 1974, do “Seminário 10” à entrevista, há um percurso do objeto a no ensino de Lacan, desde sua emergência como pura extração corporal até sua sofisticada forma de pura consistência lógica. E, para entendermos esse avanço, J-A Miller (MILLER, 2005) aponta que, mesmo sendo pura extração corporal, a fisiologia do objeto a se desenvolve, ou seja, o objeto a tem sob o significante da topologia uma consistência topológica, desde quando emerge (MILLER, 2005).

 

O intuito é tensionar as vertentes topológicas e de extração corporal do objeto a no “Seminário 10”, uma vez que as posições da angústia e do que é o objeto a são intercambiáveis (LACAN, [1962-63] 2005). Para tanto, é importante localizar, no “Seminário 10” [1962/63], qual é o lugar de corte do qual emerge o objeto a.

 

No capítulo IX, temos:

 

O corte que nos interessa, o que deixa seu traço, num certo número de fenômenos clinicamente reconhecíveis, e que, portanto, não podemos evitar, é um corte que, graças a Deus, é muito mais satisfatório para a nossa concepção do que a cisão da criança que nasce, no momento em que ela vem ao mundo.

 

Cisão de quê? Dos envoltórios embrionários.

 

Basta-me remetê-los a qualquer livrinho de embriologia datado de menos de cem anos para que vocês percebam que, para terem uma ideia completa do conjunto pré-especular que é o a, deverão considerar os envoltórios como um elemento do corpo da criança. É a partir do óvulo que os envoltórios se diferenciam, e vocês verão com que formas o fazem, de maneira muito curiosa – deposito bastante confiança em vocês, depois de nossos trabalhos do ano passado em torno do cross-cap (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Embora a referência aí seja o corpo, mais exatamente uma referência do corpo da embriologia, o corte, ou o momento cedível, não se confunde com nenhuma substância. Os envoltórios a partir do óvulo, que se diferenciam com formas curiosas, aproximam-se mais da topologia, ou seja, de uma forma mais oca.

 

No último capítulo, Lacan retorna a isso ao se referir à marca do a, quanto ao momento de sua constituição, e propõe o grito como algo que o lactante cede: “Ele cede alguma coisa, e nada mais o liga a isso” (LACAN, [1962-63] 2005). Grito que coincide com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser o sujeito. Lacan chega até a afirmar que o grito é o próprio âmago do grande Outro, o ponto de partida do primeiro efeito cedível.

 

Se a angústia foi escolhida por Freud como sinal de algo, Lacan fala da própria aspiração do lactante como um momento de perigo: “Foi a isso que se deu o nome de trauma do nascimento – não existe outro – o trauma do nascimento, que não é a separação da mãe, mas a própria aspiração de um meio intrinsecamente Outro” (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Tanto a cisão dos envoltórios quanto o grito são exemplos dos momentos cedíveis na constituição do objeto a, exemplos que promovem a desnaturalização e dessubstancialização do objeto a. Não é por acaso que o exemplo dado do objeto a e de sua separação seja o prepúcio na circuncisão, exemplo de uma prática claramente cultural. O pequeno a se faz assim, quando se produz o corte, seja qual for, quer o do cordão umbilical, quer o da circuncisão (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Desunir a função do objeto e sua substância permite vislumbrar a estrutura do mais de gozar sob a forma do objeto que a pulsão contorna, presença de um oco, de uma vacuidade a ser ocupada por qualquer objeto.

 

Para Miller, “o Seminário 10 é a via de acesso ao objeto a como nada. É o objeto nada que pode se tornar a causa do ato, ato que comporta sempre um momento de suicídio, um momento de morte do sujeito” (MILLER, 2004). É o objeto a desnaturalizado, topológico, que permitirá ao próprio analista inscrever-se na mesma série que o objeto a nada.

 

Apesar de afirmar a desnaturalização do objeto a topológico, verificamos que Lacan ainda está preso à separação entre inconsciente e pulsão, presente no início de seu ensino. Na Conferência do Rio, Miller afirma que

 

O objeto a, ao mesmo tempo faz parte da armadura da fantasia, está no âmago da pulsão e tem certas propriedades significantes. Notadamente, ele se apresenta por meio de unidades, é contável e enumerável, já é, portanto, um gozo. Se ele é mais-de-gozar, é um mais-de-gozar que já é um degradê (dégradé) do gozo, uma modelagem do gozo no modelo do significante. (MILLER, 2016)

 

“Parlêtre/falasser por natureza”

 

O último ensino contrapõe o corpo vivo ao corpo morto, coloca em questão o próprio termo sujeito, como falta-a-ser, substituindo-o por parlêtre/falasser, o sujeito mais o corpo. Assim também o conceito de Outro é posto em questão. O Outro está aí representado por um corpo vivo.

 

Há um paradoxo inevitável do corpo humano: ser vivo e, ao mesmo tempo, falante. Por mais corporal que seja o homem, ele é também feito sujeito pelo significante, feito da falta-a-ser. Para o homem não se pode fazer equivaler ser e corpo, enquanto para o animal isso é possível. Razão pela qual Lacan afirma que o homem ‘tem um corpo’, o que vale por sua diferença com relação a ‘ser um corpo’. A falta-a-ser divide seu ser e seu corpo, reduzindo este último ao estatuto do ter (MILLER, 2004).

 

É no contexto de 1975 que Lacan, ao se “dedicar um montão” à leitura dos livros de Joyce e de outros sobre ele, retoma a noção do corpo imaginário extraído dos nós borromeanos: “Ao fazer assim, introduzo alguma coisa de novo, que dá conta não somente da limitação do sintoma, mas do que faz com que, por se enodar ao corpo, isto é, ao imaginário, por se enodar também ao real e, como terceiro, ao inconsciente, o sintoma tenha seus limites” (LACAN, [1975-6] 2007).

 

Ao retomar a grafia antiga de sinthome, em francês, Lacan caracteriza o parlêtre/falasser, dizendo que ao mesmo tempo em que “é preciso sustentar que o homem tem um corpo, isto é, que fala com seu corpo, ou em outras palavras, que é parlêtre/falasser (…)”, e definir o sintoma como um acontecimento de corpo (LACAN, [1975] 2003).

 

No curso do seu ensino, Lacan corporifica as principais funções significantes por ele isoladas e, nesse sentido, duvida da consistência puramente lógica da função do Outro (MILLER, 2004). Ao corporificar o grande Outro, introduz o corpo do parceiro falante dizendo que “Uma mulher, por exemplo, é sintoma de um outro corpo” (LACAN, [1975] 2003).

 

Aqui vemos que o conceito de parlêtre/falasser (MILLER, 2016) “se sustenta na equivalência originária inconsciente-pulsão”. Na vertente do puro gozo do inconsciente, Lacan forjou tal neologismo.

 

Éric Laurent, por sua vez, em seu livro “ O avesso da Biopolítica” faz uma leitura de Joyce e pontua a frase na qual Lacan propõe o acesso a seu parlêtre/falasser por natureza. Entendendo que a equivalência entre “ter um corpo” e “falar com o corpo” acarreta a seguinte dedução: ter um corpo equivale a falar com o corpo a tal ponto que o homem parlêtre/falasser. E acrescentando que o homem tenha um corpo, então tem corolários exigentes que convertem o dispositivo instalado por Joyce no centro da tensão entre arte e natureza.

 

A tensão arte-natureza caracteriza Joyce; seu projeto de arte não passa pelo naturalismo, nem pelo o simbolismo, temas que nutrem o debate do final do século XX. Opor natural a arte tem como intuito reconciliá-los no parlêtre/falasser por natureza (LAURENT, 2016).

 


Bibliografia
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ANGELINA HARARI
Psicanalista em São Paulo, AME, membro da EBP e da AMP. E-mail: angelina.harari@terra.com.br



Em Direção A Uma Generalização Da Clínica Dos Signos Discretos

YVES VANDERVEKEN

 

Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos[1]

YVES VANDERVEKEN

 

“A psicanálise muda. É um fato” (MILLER, 2016, p. 26). Essa é a constatação que Jacques- Alain Miller faz, em seu texto de apresentação do tema do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que aconteceu no Rio de Janeiro em abril de 2016.

 

De uma transformação do inconsciente…

 

Essa constatação traz, ou mesmo se deduz, de uma transformação do inconsciente. Jacques Lacan a havia antecipado em seu ensino. Ele acabou por abandonar o termo inconsciente para substitui-lo pelo neologismo falasser – em condições melhores de representá-lo. Essa transformação tem sua origem na mudança de época e daquilo que decorre como mutação da estrutura do Outro. Ora, é justamente no Outro que o sujeito encontra as coordenadas de seu inconsciente.

 

É a questão do recalque que se encontra no cerne mesmo dessa mutação. Nascida na época vitoriana, em um contexto de quintessência da repressão sexual, a psicanálise se pratica hoje em um contexto de liberação dos costumes, do direito ao gozo e de um acesso generalizado à pornografia. Para além do complexo de Édipo, que ele não deixará de desconstruir ao longo de seu ensino, não é à toa que Lacan isolará a estrutura mitológica de Hamlet na medida em que ela se distingue daquele. A distinção entre o Édipo e Hamlet diz respeito justamente à questão do recalque. Lacan insiste: lá onde o Édipo não sabia, onde as coordenadas de seu crime eram recalcadas e não sabidas, Hamlet, ele sabe. É nesse ponto de distinção que Hamlet aparece como sendo mais propício do que o Édipo a incarnar a estrutura da questão neurótica de hoje. O importante é perceber a que se refere esse saber revelado, essa é a questão a ser delimitada. Eu usarei esta conferência[2] para isolar essa resposta, como ponto final.

 

Mas digam-me: inconsciente, recalque, complexo de Édipo, não são justamente nessas referências que se fundamentam as distinções entre nossas grandes estruturas clínicas – e a partir das quais situamos a orientação do tratamento?

 

Sem dúvida, nossa prática se orienta, a partir de hoje, menos pela questão do recalque e de sua suspensão em termos de verdade revelada do que pelo impacto do significante sobre o gozo do corpo enquanto tal.

 

…E de seu impacto

 

O que acontece, nesse contexto remanejado, com as nossas referências e categorias clínicas? As coisas devem ser novamente definidas, os contornos devem ser constantemente redesenhados. Isso é tudo, menos simples. É nesse contexto que orientarei esta conferência de abertura do ano de trabalho da London Society da New Lacanian School.

 

Trataremos aqui de questões clínicas e das dificuldades que podemos encontrar nessa clínica a partir de nossas referências clássicas. Através do que se apresenta como questões diagnósticas, colocam-se também questões muito concretas.

 

Em psicanálise, além do diagnóstico enquanto tal, apoiamo-nos em referências clínicas diferenciais. Por que? Justamente porque elas são determinantes para orientar nosso ato e a direção do tratamento.

 

Somos classicamente formados para saber que o tratamento de um sujeito psicótico não se orienta como o de um sujeito neurótico. É por isso que nossas referências diagnósticas importam, mesmo que, ao desenharmos grandes linhas estruturais, configurações precisas das coordenadas subjetivas, elas não digam nada sobre o que representa a singularidade de um sujeito.

 

É um paradoxo lógico que sustentamos, diante do qual não recuamos: duas verdades opostas podendo ser verdadeiras ao mesmo tempo. Tudo depende do ângulo pelo qual abordamos o real em jogo. Foi apoiando-se em um tal paradoxo que Lacan pôde dizer que nada se parece menos com um neurótico obsessivo – uma categoria geral e universal – do que um outro neurótico obsessivo – uma singularidade absoluta. É o que torna a relação entre o singular e o universal ao mesmo tempo tão necessária, mas também tão precária.

 

A abordagem do real clínico por um viés pode ser radicalmente diferente de sua abordagem por um outro, sem que um anule, no entanto, o outro – assim como a segunda tópica freudiana não anula em nada a primeira, ou, ainda, o último ensino de Lacan não põe um fim ao seu primeiro.

 

J.-A. Miller não hesita em nos convidar a fazer “remendos” a partir dos diferentes tempos dos ensinos freudianos e lacanianos porque eles nos permitem tomar conhecimento, visto que são verdadeiros, de um real que a verdade só consegue alcançar por partes.

 

Nessa perspectiva, nós nos permitimos, por exemplo, apoiar-nos, ao mesmo tempo, em uma clínica binária, descontinuísta, e em uma clínica continuísta, tomada por um outro ângulo. Fazemos as duas; às vezes até as duas ao mesmo tempo. As duas são importantes, cabe a nós precisá-las.

 

O binário neurose clássica ou psicose desencadeada: sua eficácia, um limite

 

Por um lado, apoiamo-nos em uma clínica diferencial que se baseia no binário neurose/psicose. Podemos reduzi-la a esse binário, pois a categoria de perversão está sujeita à contestação. Ela está caindo em desuso, devido ao fato de que as coordenadas da nossa época são, enquanto tais, perversas, e sem contar, voltaremos a isso, com a natureza perversa em si da sexualidade do falasser.

 

Esse binário clínico oferece uma base inestimável. Mas ele é também rígido e restrito. Ele repousa sobre “um ‘ou isso, ou aquilo’ absoluto” (MILLER, 2015, p. 3). Foi preciso que constatássemos que toda uma parte da clínica não entra nessa dicotomia neurose clássica/psicose desencadeada, se radicalizamos as coisas. Nem sempre é fácil decidir a partir dessa referência diagnóstica, e isso, às vezes, depois de vários anos de análise.

 

Essa dimensão não satisfatória, não discriminante do binário clínico neurose/psicose, é abordada há vários anos em nosso Campo Freudiano, através do que podemos chamar de um verdadeiro programa de pesquisa. O sintagma “psicose ordinária” encontra sua origem nessa dificuldade. Ele encontra aí sua origem, para ultrapassá-la. Ele é oriundo – ou melhor, construído – por J. -A. Miller a partir do último ensino de Lacan.

 

O impasse borderline

 

A “psicose ordinária” é uma resposta à categoria borderline, tão desenvolvida no mundo anglo-saxão, essa categoria borderline sendo, ela mesma, uma tentativa de resposta a essa mesma dificuldade clínica. Entretanto, lá onde a categoria borderline supõe uma terceira estrutura clínica (nem neurose, nem psicose) – o que só faz multiplicar os impasses das estruturas clínicas –, o sintagma “psicose ordinária” insiste em fazer fundo ao binário neurose e psicose – para finalmente subvertê-lo, ou mesmo ultrapassá-lo. Um pouco sob a modalidade de um “prescindir dele, servindo-se dele” (LACAN, 2007, p.132), é precisamente o que Lacan acabará por dizer do Nome-do-Pai.

 

Classicamente, J.-A. Miller indica que havia uma certa diferenciação “supostamente absoluta entre a neurose e a psicose” (2015, p. 4). Se não fosse uma, seria a outra, e vice-versa. Essa dimensão de diferenciação absoluta apoiava-se em um verdadeiro “credo lacaniano” [dixit também J.-A. Miller]: aquele da foraclusão do Nome-do-Pai.

 

A função do Nome-do-Pai se apoia naquilo que hoje é comumente definido sob o sintagma ordem simbólica. Os padres da Igreja, assim como todos os tipos de conservadores, retiveram apenas essa dimensão do ensino de Lacan, a ponto de se referirem a ela para tudo. Ora, é importante compreender o que esse Nome-do-Pai recobre no ensino de Lacan.

 

Lacan percebeu sua carência, precisamente na psicose desencadeada. Foi a partir daí que ele elaborou o conceito da foraclusão. Do que se trata? J.-A. Miller situa novamente a hipótese que conduz a ela em seu texto “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária” (MILLER, 2015) que pode constituir em si um argumento para nosso próximo congresso da New Lacanian School.

 

A hipótese do Nome-do-Pai

 

Lacan parte da experiência de que, nos primeiros tempos da chegada do infans ao mundo, há uma vivência de um sujeito às voltas com um espaço desorganizado, movente, não estruturado, onde predomina a experiência subjetiva do corpo fragmentado, inteiramente submetido às forças pulsionais e às significações fora de sentido. É um mundo em que o eu do sujeito e o Outro estão indistintos. Lacan não desistirá nunca dessa hipótese de partida da subjetividade humana. Ele situa a prematuridade do filhote do homem como sua causa.

 

Nessa configuração e no classicismo do mundo à moda antiga, a mãe, ou seu substituto, vinha sustentar essas características, já que ela era supostamente a figura do primeiro representante encarnado desse Outro. O desejo da mãe era a manifestação primária, para o infans, dessa força pulsional e da figura desse Outro desorganizado, pulverulento, ilegível e fora de sentido. Um mundo, uma experiência de gozo fora de sentido e enigmática habitavam a figura do Outro materno. É uma experiência subjetiva precisamente idêntica àquela encontrada pelo sujeito psicótico depois de seu momento de desencadeamento.

 

No segundo tempo desse desenvolvimento, Lacan situa a entrada do simbólico nesse mundo, como vindo para organizá-lo, para colocar ordem nesse imaginário e nesse gozo sem rédeas. O simbólico vem regulá-los, pelo menos para definir suas leis e seus interditos. Essa figura supostamente natural, que surge como terceiro entre este, o infans e esse Outro desregulado, e que nessa construção supunha-se organizar o que está desorganizado por natureza, quem mais poderia ser, nesse caso, senão o pai, enquanto representante da lei e de sua suposta ordem simbólica?

 

É a ideia de que há um Outro desse Outro primeiro, que tem como função vir dominá-lo, limitá-lo, definir sua organização e, principalmente, dar-lhe um sentido, torná-lo legível. Trata-se da função ordenadora do Nome-do-Pai, sob a condição de que ele venha nomear e organizar o desejo supostamente desorganizado da mãe. Ele se faz de destinatário, isto é, ele vem se definir como o que causa o desejo materno, e desde então lhe dá sentido. É uma operação de metáfora, que Lacan chamará de paterna. É uma operação metafórica, a partir do momento em que ela vem dar sentido a um x, uma incógnita situada no cerne do desejo, enquanto gozo. Essa é a formalização que Lacan dá ao complexo de Édipo freudiano.

NP

DM

Essa operação produz um efeito. A operação do simbólico, ao organizá-lo, estanca o desencadeamento pulsional. Supõe-se que essa operação o limite. Nesse sentido, ela produz um efeito de perda, tanto quanto de localização. É o que quer dizer “a castração”, ou, ainda, “o menos phi”, “uma subtração de gozo” (MILLER, 2015, p. 6), lá onde, na psicose, ela se apresenta como não localizável, não limitada, e desde sempre “em excesso”. O órgão peniano se faz o depositário e o representante desse gozo a partir daí regulado por uma lógica fálica. Ele é o órgão precisamente apto a encarnar esse gozo marcado por um mais ou um menos. Ele tem seu significante: o falo.

 

É uma construção, se nós a separarmos – a modernidade obriga – dos atores que são a mãe e o pai, extremamente robusta e clinicamente pertinente, pelo menos enquanto função e estrutura. Uma parte do gozo é interdito, passa sob a barra, instalando o recalque, uma perda e a limitação do gozo.

 

É precisamente essa função que o Presidente Schreber tenta restabelecer, depois de seu desencadeamento que desorganiza todas as significações do mundo e sua relação com o corpo. Ele tenta restabelecê-la de um outro modo, que nós diremos delirante, a fim de tecer novamente e dar um outro sentido aos fenômenos que o assaltam, no ponto em que a significação paterna se mostra foracluída. A causa desses fenômenos é, daí em diante, Deus (nova figura de um pai), ele próprio tornando-se o objeto de gozo desse Deus. Toda uma nova construção complexa elabora e determina as vias em condições de explicar, e legíveis para ele, o que ele experimenta como fenômenos de gozo desenfreado e não localizável falicamente. É seu trabalho de elaboração, assim como de interpretação. É por isso que Lacan qualifica essa operação de metáfora delirante, na medida em que ela vem suprir a foraclusão da metáfora paterna, e isso precisamente na linha freudiana, que já compreendia o delírio como uma tentativa de cura.

 

A carência paterna neurótica

 

Eu dizia que essa construção era robusta. No entanto, ela não conduzirá Lacan a uma religião do pai. E isso por várias razões.

 

Lacan só constrói a lógica da metáfora paterna na medida em que ela se revela, digamos, a céu aberto, sem recalque, como faltante, ou mesmo carente, na psicose desencadeada. Mas, logo depois que sua construção é feita como não operando na psicose, Lacan se encarrega de demonstrar, pela clínica, a generalização da carência da metáfora paterna em relação ao gozo, e isso para todo o campo da clínica: a saber, que nem tudo do gozo passa pelo crivo fálico e pela lógica da metáfora paterna, que nem tudo do gozo se deixa negativar.

 

É o que demonstra o neurótico Pequeno Hans. Em seu próprio corpo, em relação à vida de seu órgão peniano, a significação paterna e fálica, não consegue explicar o Krawall que aí se manifesta. Ele também tem que recorrer a uma construção paliativa: o significante fóbico, na medida em que ele vem em seu socorro para poder significá-lo.

 

É também nessa falha que se situa o que produz o encontro traumático de Hamlet. Bem além da morte real de seu pai, é justamente com a parte do desejo de sua mãe que não responde, ou melhor, que excede e transgride a lei do pai, que ele se debate. É o traumatismo eletivo do neurótico obsessivo: o encontro da mãe com sua feminilidade que não se reduz ao materno, se articula com a relação ao pai. Lacan zomba do esforço de Hamlet, que ele considera patético, em querer fazer entrar o desejo de sua mãe não referido ao pai no nível da decência. É o encontro com esse ponto que mergulha Hamlet no luto do pai, bem além de sua morte, e precisa do apelo de todo o jogo simbólico – o trabalho dito de luto – para fazer face à sua carência encontrada no buraco que perfura, no limite fálico, o gozo feminino. Ele construirá para si uma fantasia pessoal, em condições de responder sua própria versão da coisa: a saber, que nenhuma palavra vale e que há, desde então, “algo de podre” (SHAKESPEARE, 1995, p. 547) no mundo – eu acrescento: no mundo suposto da ordem simbólica. É o grande segredo que Lacan acabará por revelar aos próprios psicanalistas: a saber, que “não há Outro do Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 322) em posição de normalizar o gozo, de conseguir dar-lhe um sentido.

 

A compensação generalizada

 

Em uma outra vertente, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose, que só se revela por seu desencadeamento, conduz à dedução lógica de que outra coisa, antes, ficava no lugar, como uma bengala, uma compensação; assim como a metáfora delirante indica ao mesmo tempo que alguma outra coisa pode exercer essa função depois.

 

A metáfora delirante, a psicose compensada e não desencadeada, assim como a fobia de Hans ou a fantasia de Hamlet, demonstram seu caráter de construção ou de tentativa de construção simbólica sobre o real, que faz objeção a eles. Nesse contexto, toda construção simbólica, na medida em que visa a dar sentido a alguma coisa profundamente fora de sentido, tem a estrutura do delírio e do religioso. Para dizê-lo de maneira mais leve, isso relega a significação paterna e fálica do gozo a uma significação possível, dentre outras. Ela perde então sua primazia. É o que a clínica demonstra.

 

O fim do ordinário neurótico?

 

Isso interroga a neurose. Em setembro de 2015, o Kring voor Psychoanalyse van de NLS iniciava em Gand um ciclo de conferências sob o título “A neurose de hoje é assim tão ordinária?”[3]

 

A neurose tinha, no início do ensino de Lacan, uma conexão com a normalidade; pelo menos a psicose derivava dela. Essa última era uma variação, pelo modo da carência, da estrutura considerada como fundamental da neurose, da normalidade e maturação que encarnava o complexo de Édipo. No tempo da potência dos grandes discursos da tradição – o pai é isso –, que são finalmente tantas prescrições ensinadas e transmitidas para saber como fazer com o gozo, com a sexualidade, com o ser homem e mulher, etc., a neurose era considerada como a normalidade. Nesse sentido, ela era o ordinário. Certamente, a neurose era o preço a pagar pela lei do pai e pela tradição, com toda a série de sintomas que tornaram necessárias e conduziram à invenção da psicanálise. Mas nós tínhamos então prescrições para saber fazer com o gozo, que retiravam mais ainda sua força do fato de que eles imitavam o dito e o suposto natural. Por seu próprio desvio, em nossas referências clínicas, dizia-se que a psicose não enganava. A psicose era clara: na medida em que não era “normal”, não era “ordinária”, ou ainda não era “típica”.

 

Desde o início da sequência do ensino de Lacan, a perspectiva mudou radicalmente.

 

Inicialmente foi a clínica que levou a demonstrar a natureza essencialmente perversa, sempre não ordinária, sua dimensão “nunca a boa” e “nunca a necessária” da sexualidade humana. É o que o retorno do recalcado do sintoma neurótico dizia, significava, ou mesmo gritava, de algum modo.

 

Hoje, a desconstrução dos grandes discursos, sob o efeito conjugado da ciência, do capitalismo, da democracia – e ousemos acrescentar, da psicanálise – acabou por desnudar sua natureza de semblantes. Foi justamente sua única natureza de tradição que foi revelada, em relação a uma sexualidade que, no ser humano, não é de forma alguma natural ao passar pela linguagem. O grande edifício falocrático da lei do pai, que é tudo, menos igualitário e democrático, foi contestado e rejeitado por toda parte. Ora, a rejeição ao pai é precisamente o que constituía o elemento determinante da psicose (MILLER, 1987).

 

A lei do pai, que dá acesso ao gozo num contexto de interdição, aparece desde então como uma modalidade, dentre outras, de tratamento do gozo. Digamos ainda: um modo de gozar, particular, onde isso se goza da interdição, outros modos podendo ser possíveis.

 

O ordinário da foraclusão generalizada

 

A psicose ordinária é um sintagma que nasceu dessa mudança de perspectiva. Ele faz da neurose um caso inteiramente particular sobre um pano de fundo, em que a estrutura da psicose domina e é primeira. O ordinário se traduz em termos de foraclusão generalizada na medida em que falta no Outro o significante que venha significar o gozo, e isso, para todo ser falante.

 

Mesmo que ela continue a se fundamentar no binário neurose/psicose, entramos aqui para nos orientar numa abordagem clinica mais continuísta.

 

Poderíamos representar essa nova perspectiva clínica como uma curva de Gauss. Em uma de suas extremidades, está a psicose desencadeada com todos os seus fenômenos de desconexão, fenômenos de corpo e do significante. De acordo com as nossas primeiras referências clinicas, é uma dimensão que, quando a encontramos, não nos engana. Mas, na outra extremidade dessa hipotética curva de Gauss, temos também alguma coisa que, particularmente na atualidade, não engana: a neurose. É o que me ensina minha experiência de psicanalista. O ordinário, se vocês quiserem, torna-se de algum modo um “entre-dois”. Nas duas extremidades do campo clinico, vocês estão no extraordinário, vocês estão no claro, no binário. O ordinário diz respeito a um registro mais difícil: o da tonalidade, dos indícios, em que as oposições são menos formais.

 

O que não engana na neurose

 

O efeito da mudança nos discursos nos obriga a uma afinação do conceito de neurose. Em “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária”, J.-A. Miller (2015) é claro. A neurose é algo preciso, muito construído. Ela traz nela algo que não engana. É nesse sentido que ela traz, como ele diz, uma assinatura. Ele utiliza outros termos: é uma formação que apresenta uma estabilidade, uma constância. Há uma repetição da neurose. Em termos estruturais, de arquitetura geral se vocês quiserem. J.-A. Miller precisa o que é necessário ter para estar na presença desta construção tão singular que é uma neurose: ele fala mesmo de “critérios”. Eu o cito:

 

Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: de uma relação ao Nome-do-Pai — não um Nome-do-Pai — vocês devem encontrar algumas provas da existência do menos fi, da relação à castração, à impotência e à impossibilidade; é preciso ter — para utilizar os termos freudianos da segunda tópica — uma diferenciação nítida entre o Eu e o Id, entre os significantes e as pulsões, um Supereu claramente traçado. Se não há tudo isso e outros sinais, então não se trata de uma neurose, é outra coisa (MILLER, 2015, p. 13-14).

 

Isso é forte! É preciso se curvar a isso, a essa disciplina e a essa precisão. Não estou certo se tiramos sempre todas as consequências clínicas disso.

 

Aliás, a imagem da curva de Gauss não é aqui satisfatória. O “entre-dois”, nessa lógica, deve ser situado ao mesmo tempo, de um lado. Se não for uma neurose, é uma psicose – a compreender, já que isso se apoia no binário, que não é uma neurose.

 

Sob o efeito da desconstrução dos discursos da tradição – o Nome-do-Pai sendo colocado na categoria de um dos semblantes dentre outros –, tende-se a generalizar a dimensão encontrada na clínica de um semblante compensatório que possa funcionar.

 

A categoria epistêmica da psicose ordinária…

 

Retornemos ao campo clínico. No registro da psicose ordinária, como a psicose não está desencadeada, já que ela não é nítida e não é uma neurose, é preciso supor que alguma coisa faz função ou serve como Nome-do-Pai, na medida em que ele estabiliza e enlaça os diferentes registros – do corpo e do significante – sem que seja o Nome-do-Pai. Um outro elemento, não típico, exerce essa função.

 

J.-A Miller constata que

 

Isso introduz uma mudança de estatuto para o Nome-do-Pai. Nos textos clássicos de Lacan, utiliza-se o Nome-do-Pai enquanto nome próprio. Quando se pergunta: “O sujeito tem o Nome-do-Pai ou há a foraclusão do Nome-do-Pai?”, utiliza-se logicamente o Nome-do-Pai como nome próprio, o nome próprio de um elemento particular que é chamado o Nome-do-Pai.

Seguindo a ideia da ordem simbólica delirante, pode-se dizer que o Nome-do-Pai, não é mais um nome próprio, mas um predicado definido na lógica simbólica.

Um tal elemento funciona como um Nome-do-Pai para o sujeito. Esse elemento é o princípio que ordena seu mundo. Isso não é o Nome-do-Pai, mas tem essa qualidade, essa propriedade (MILLER, 2015, p. 8).

 

Podemos então ter um quadro clínico que pode se assemelhar a uma neurose, apesar de não ser uma. É precisamente nesse singular entre-dois – que não é, portanto, um – que é convocada e deve ser desenvolvida toda uma fineza e uma riqueza clínica. Longe de se constituir como uma zona indefinida, de um não-saber, isso obriga e produz um apelo na direção de um refinamento cada vez maior de nossas referências clínicas. Inversamente ao que não está nítido, ou de uma zona onde tudo cabe, há uma convocação a um maior rigor. É precisamente aí que todo o saber da distinção clínica é convocado.

 

…E seu apelo a um saber clínico renovado

 

É um programa de pesquisa, um work in progress. As indicações de clínicas diferenciais que J.-A. Miller abre em seu texto são um recurso muito precioso. Nesse registro em que a clareza dos traços do grande binário clássico psicose desencadeada/neurose está ausente, somos confrontados com a necessidade de produzir distinções que não pertencem ao registro dos grandes traços, mas do detalhe, da distinção fina. J.-A. Miller utiliza ainda outros termos que tentam descrever o que é exigido aqui: é uma clínica dos “pequenos indícios variados” (MILLER, 2015, p. 5). Não estamos, nesse campo circunscrito pelo sintagma “psicose ordinária”, no registro de uma “definição rígida” (MILLER, 2015, p. 2). Não é uma clínica da categoria “objetiva” (MILLER, 2015, p. 4), é uma clínica da “categoria epistêmica” (MILLER, 2015, p. 5) que está à procura de uma “sinalização[4]”. Resumindo, é uma clínica do registro dos “signos discretos”! Anuncio aqui o que está em jogo e a envergadura do título do próximo congresso da New Lacanian Scholl: “Signos discretos nas psicoses ordinárias. Clínica e tratamento”. Ele acontecerá este ano, no começo de julho e também pela primeira vez em Dublin – cidade cujo laço com a psicanalise lacaniana é evidente através de James Joyce, cuja figura está precisamente na origem de uma nova abordagem da clínica e do sintoma para a psicanálise lacaniana.

 

É interessante notar que, em francês, o termo “discreto” (discret) comporta uma dupla significação das mais interessantes, que não “passa” pelo inglês. Ele significa o que não se mostra facilmente, o que é pequeno, o que não é evidente – quase escondido -, mas ele comporta também a significação, em outros registros, daquilo que determina, aquilo que dá a assinatura e decide.

 

Partir da não-relação

 

Resultado de uma necessidade clínica que o sintagma “psicose ordinária” tenta delimitar, essa lógica clínica dos signos discretos, das “tonalidades” a encontrar e precisar se inscreve em uma lógica que nos cabe ampliar. Por causa da mutação da estrutura dos grandes discursos, é uma lógica que acaba por concernir o conjunto do campo da clínica. Situo aí a envergadura do próximo congresso da NLS.

 

Nós escorregamos, oscilamos, entramos em um contexto de binaridade, em uma clínica que se inscreve também, pouco a pouco, em um registro continuísta.

 

É um registro de distinção clínica que acompanhada de um traço geral, comum a todo ser falante, que é experimentado por todos. Em seu texto, J.-A. Miller aponta esse traço comum como uma discordância. Uma discordância experimentada por todos, no registro ou na relação com o ser, com o sentimento de ser. Para se referir a esse traço, ele lança mão de uma expressão originada nos primeiros tempos do ensino de Lacan, que diz respeito precisamente à psicose desencadeada: “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565). Trata-se de um sentimento de alguma coisa que não vai bem, que não se encaixa, não anda como deveria. De fato, se fizermos referência aos termos mais tardios de seu ensino, veremos que se trata de uma “não-relação”. Essa não-relação resulta da conjunção ou do encontro do registro do corpo, portanto, do imaginário, e o registro do significante, o simbólico. Esse encontro estrutural provoca uma “desordem”, que produz uma não-relação – nos deparamos com o encontro dos registros imaginário e simbólico que serviam de base para a construção edipiana, tomada aqui de outra maneira. Sim, mas se a não-relação é experimentada por todos, em que modalidade ou tonalidade ela se declina? Em que registro, por exemplo, ela se manifesta mais eletivamente?

 

Essa última questão permite situar uma primeira distinção: entre histeria e obsessão. J.-A. Miller (2015, p. 9-10) precisa: o sujeito histérico experimenta essa desordem, mais precisamente, na relação com seu corpo, e o sujeito obsessivo mais eletivamente na sua relação com as ideias.

 

Sim, mas – precisão suplementar necessária – quando essa discórdia se inscreve prioritariamente no registro da relação identificatória narcísica com o corpo próprio, quando essa relação não é ”suficientemente boa” (MILLER, 2015, p. 4), quando ela se manifesta pelo sentimento de não ter corpo, quando a relação com o corpo se inscreve em uma dimensão de “derrota” (MILLER, 2015, p. 4), isso tudo faria parte do campo histérico e do sentimento de vazio que os sujeitos podem experimentar em si, ou isso denotaria uma relação com o “buraco psicótico” (MILLER, 2015, p. 4)? O que, nesse último caso, revela que nenhuma marca da identificação simbólica grampeia o corpo, e denota, dito de outro modo, uma disjunção total dos dois registros do corpo e do significante.

 

Do mesmo modo, quando nos situamos no registro da relação discordante com o pensamento, podemos nos perguntar se o sujeito mantém uma relação muito erotizada com o pensamento, se ele está sobrecarregado por seus pensamentos de forma obsessiva – o que J.-A. Miller lembrava recentemente (Bosquin-Caroz, 2015), que ele apresentava então uma estrutura extremamente construída, decorrente de um edifício muito complexo, como para o Homem dos ratos e a análise estrutural que Lacan (2008) desenvolve sobre ele em O mito individual do neurótico? Ou, ainda, podemos nos perguntar se isso vai até o sentimento de que seu pensamento, de uma forma ou de outra, é influenciado, por exemplo? Ou se ele acontece de maneira autônoma, nas modalidades do automatismo mental? Ou ainda se ele é habitado pelo sentimento de ser manipulado por um Outro exterior ao sujeito – o que faz parte então precisamente do registro psicótico?

 

O prescindir, se servir do binário clínico – Da tonalidade nos registros clínicos

 

Mesmo em relação ao fato de que ainda resta uma grande oposição entre o corpo e o significante, tudo isso exige uma localização mais precisa. Nem sempre é simples decidir, exatamente quando isso não se apresenta de uma forma nítida, quando, por exemplo, uma amarração não típica dos registros evocados “vela” (MILLER, 2015, p. 4), “dissimula” (MILLER, 2015, p. 9) ou compensa os efeitos potencialmente maiores e excessivos.

 

Quando é esse o caso, é então a dimensão da “tonalidade”, da “intensidade” (MILLER, 2015, p. 9) que é exigida. É um manejo muito delicado. J.-A. Miller situa alguns registros onde ela pode ser delimitada. Eles são apaixonantes. Sua delicadeza exige que eles sejam desdobrados, refinados. O que produz, em contrapartida, um novo enriquecimento das distinções clínicas.

 

Um primeiro registro útil deve ser situado no nível da inscrição e do laço social do sujeito. Por esse registro, não se trata de promover a inserção social, do mesmo modo que também não se trata de erigir sua rejeição como ideal. Mas, com relação a esse registro, o que poderia ser lido nele de particular em um dado sujeito? Mais precisamente, que indícios poderiam ser lidos na maneira como ele se identifica com sua função social? Mais precisamente ainda, que tipo de “relação negativa” o sujeito manteria com ela? Aqui também há um desacordo para todos. Mas de que tipo seria ele? Seria na modalidade de uma rebelião – toque histérico? Seria na modalidade “autônomo”, do tipo “não tenho nada a ver com isso, não pense que eu acredito nisso, isso não me interessa nem um pouco, mas tudo bem…” – assinatura mais obsessiva? Ou ainda, a não inserção seria mais forte? A impossibilidade de se inscrever seria mais forte e de que tipo? Sob que coordenadas? A dificuldade de se inscrever em um laço social seria impossível, ou ela seria necessária e iria de ruptura em ruptura, até o extremo de ter que romper todo laço com o outro – assinatura esquizofrênica? Uma dificuldade relacional conduziria à necessidade de tomar distância a cada vez, até, às vezes, de maneira vital, ter que colocar vários quilômetros entre as coisas – esse número de quilômetros sendo, literalmente, proporcional à distância subjetiva que o sujeito precisa para não ser capturado pelo Outro? Que facilidade teria o sujeito com a ruptura, lá onde certos neuróticos se fixam por anos, e têm uma angústia diante da ideia de qualquer mudança? Ou, ainda, no outro extremo da tonalidade identificatória, esta seria completamente fora da dialética? Ela apresentaria uma inserção imediata sem discordância, ou ainda uma identificação completa e total com a função – o que poderia não produzir um déficit, mas justamente uma competência multiplicada nessa ocasião? Essa identificação com a posição social seria justamente a amarração atípica que permitiria ao sujeito psicótico dar a si mesmo um ser, uma posição no social, um eu e uma imagem, da qual só perceberíamos a medida “compensatória” quando a perda desse apoio real não fosse superável pelo sujeito e pudesse conduzir ao desencadeamento ou ao desligamento psicótico?

 

Temos aqui variedades que somente o binário neurose/psicose no quadro da presença ou não do Nome-do-Pai, nem sempre pode ser identificado. Antes de tudo, a ausência da função Nome-do-Pai somente se deduz a partir desses traços e da dimensão de intensidade que apresentam.

 

A mesma fineza do detalhe deve se mostrar necessária na relação com o corpo, com o sentimento de estranheza que se pode manter com ele. Nós já o evocamos brevemente. Como o sujeito habitaria, sempre de maneira mais ou menos ruim, seu corpo? Quanto a esse corpo, essa discordância apresentaria uma dimensão acabada, localizada, bordejada? Seria uma parte do corpo – o pênis, por exemplo – que escaparia ao controle e ao comando e seria objeto de todas as disfunções? Ou então ele não seria jamais atingido por elas e, portanto, não estaria submetido ao vai e vem do desejo? Essa discordância se deveria a um sentimento de impotência localizada, com relação, por exemplo, a um funcionamento ideal e idealizado? Ela seria então marcada por essa função própria do menos, do menos-phi em que se situa o registro do binário neurótico da impotência e do impossível? Ou então seria todo o corpo que escaparia? A localização seria mais fluida? As lágrimas, por exemplo, estariam ligadas a um acontecimento, fosse ele acompanhado de um sentimento de vacuidade, ou então tivesse ele um caráter radicalmente imotivado? Em resumo, J.-A. Miller diz isso de uma maneira muito bonita: é uma discordância submetida a uma imposição, no limite que impõe o menos-phi da estrutura exigida pela neurose, ou então a falha é não marcada por esse limite e apresenta uma característica muito mais insondável?

 

Os detalhes podem se multiplicar e se entrecruzar ou podem ainda se acumular. J.-A. Miller toma o exemplo da marca real no corpo, que pode constituir uma compensação à não-inscrição, à falta de marca simbólica, à não-amarração do simbólico na relação com o corpo. Não é simples elucidar o alcance disso, ainda mais com a mudança de época e o enfraquecimento justamente da força de marca de inscrição dos discursos da tradição. Alguns rituais tradicionais, por exemplo, constituíam as marcas do corpo inscrevendo-as em um registro social e dando-lhes função, eu diria, de corpo. Vemos, hoje, na era da queda desses grandes marcadores, a utilização generalizada, “democratizada”, das marcas reais no corpo: piercings, tatuagens, etc., às vezes, mesmo que raramente, nos lugares mais sensíveis deste. De que eles seriam marca? Lá onde – certamente de maneira errada – elas eram consideradas muito rapidamente como signos de psicose, não faz ainda muito tempo. Lá também é a tonalidade que informa. Seria em um registro do limitado? Ou então carregaria uma outra característica, que dá corpo ao sujeito psicótico, lá onde ele não dispõe de nenhum outro grampo para ele?

 

A questão da dialética, ou ao contrário, de uma fixidez ou insistência estranha, se coloca igualmente no nível da identificação com o objeto dejeto. Seria a relação com a falta ou com a falta da falta? A autodesvalorização, por exemplo, seria a máscara de um narcisismo e de um ideal bem enraizados, em relação aos quais o sujeito teria um jogo dialético – o que não o impediria de sofrer por isso – isso se inscreveria novamente em uma dimensão de falta, de limitação? Ou então o sujeito estaria, sem dialética, inteiramente identificado com essa falta que ele encarna? Ele chegaria até mesmo a ser, realmente, na relação com o corpo e com sua forma de se vestir, um verdadeiro dejeto? Isso aconteceria em um registro onde a tonalidade é menos marcada? Além disso, como essa identificação não dialética se manifestaria? Como tal ela conseguiria se velar-desvelar por uma afetação, uma higiene, uma forma de se vestir específica que carregaria essa marca?

 

O que aconteceria ainda, por exemplo, no registro da culpa? De que ordem e intensidade seria ela em relação a suas manifestações extremas? De tipo neurótico, ou ainda insondável, identificando-se com falta e com o objeto que acabo de evocar? Como no caso de Franz Kafka, por exemplo, na medida em que a culpa acontece, entretanto, e precisamente com ele em sua relação com o pai. Com que tipo de figura de pai o sujeito teria que se haver?

 

O que dizer da relação com a linguagem? Em sua clínica generalista, Lacan terminará por dizer que ela é um parasita para todos. Sim, mas de que forma e em quais modalidades para cada um, no singular?

 

A lista não termina. O continente é imenso. Tanto para os registros como também particularmente no seio mesmo da cada entidade clínica. J.-A. Miller toma o exemplo na psicose:

 

Vejam a diferença entre um bom paranoico, fino e musculoso, que se construiu verdadeiramente um mundo para ele e para outros, e o esquizofrênico que não pode sair de seu quarto. Nós nomeamos tudo isso psicose.

Quando se trata de uma paranoia, o make-believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido. […] Mas, há algumas, como o gênero paranoia sensitiva, que mencionei anteriormente, que não são claras, desde o início. Foi apenas após três anos de análise que o analista percebeu que alguma coisa não estava certa, que o sujeito construía, cada dia, sua paranoia. Há também os esquizofrênicos socialmente desconectados, enquanto os paranoicos são socialmente, totalmente conectados. Algumas grandes organizações são frequentemente dirigidas por psicóticos em potencial, cuja identificação é super social. O campo das psicoses é, portanto, imenso (MILLER, 2015, p. 16).

 

Sem dúvida, não é à toa que ele toma o exemplo da amplitude do campo clínico no registro da psicose, a neurose sendo provavelmente mais específica, mais “extraordinária” e, portanto, mais precisa e circunscrita.

 

O que não se distingue

 

A lista é infinita. Eu a fecharei – e isso é crucial – somente por um contraexemplo. Um registro a propósito do qual J.-A. Miller insiste que justamente ele não é pertinente, que ele não é “discreto”, no sentido de determinante, com relação às distinções clínicas: a saber, o registro da sexualidade. Não se pode basear um diagnóstico clínico apoiado nas práticas sexuais enquanto tais precisamente porque é o lugar eletivo da não-relação, em que a normalidade, o ordinário, não existem no ser falante. O ordinário, o natural, em termos de sexualidade, é o instinto. Ele é, por natureza, desregulado no ser falante. Não há “vida sexual típica” (MILLER, 2015, p. 19). É um ponto para se recordar sempre: se as práticas sexuais podem revelar, ou mesmo permitir refinar, as distinções clínicas, estando colocadas em relação aos elementos dos outros registros percorridos (relação ao corpo, etc), elas não o podem per se (por elas mesmas).

 

O ensino com o qual rompemos

 

As “pequenas chaves” (MILLER, 2015, p. 13), outro nome dos signos discretos, devem ser precisados a cada vez naquilo que podemos ler deles da relação própria para cada sujeito, tomado em sua singularidade.

 

Essa estreita fineza exigida, levada ao extremo de sua lógica, nos conduz a um mais-além da clínica binária, hierarquizada. Ela não a anula enquanto tal, mas pode fazê-la passar para segundo plano; ou mesmo, ela desloca o ângulo do modo pelo qual podemos considerá-la.

 

A clínica se orienta, assim, mais na direção da lógica dos nós borromeanos, que interessou Lacan em seu ensino tardio, a partir precisamente de J. Joyce. É uma lógica que tira todas as consequências da desorganização inicial dos campos da subjetividade humana que nós havíamos evocado como estando na base da concepção lacaniana da psicose. Lacan é levado pela clínica a generalizá-los. A mudança de estatuto no Nome-do-Pai que evocamos, de se encontrar “reduzido” a uma modalidade dentre outras, de amarrar os três registros com os quais Lacan dividiu, desde o início de seu ensino, o campo da subjetividade humana, é o que leva a isso. A lógica é invertida. É o campo da psicose extraordinária que revela o estatuto inicialmente solto e independente dos registros. Eles certamente encontraram uma modalidade típica, socialmente compartilhada, decorrente da tradição, de se atar: o modo neurótico e edipiano. Pelo fato de ser típico, ele poderia ser pensado como ordinário, e mesmo “natural”. Essa tipicidade foi diminuída e contestada até o osso.

 

O campo imenso que não diz respeito a isso, o vasto campo que nós tentamos capturar pelo registro da psicose ordinária, a psicose dita compensada e não desencadeada, o registro no qual outras amarrações se revelam eficazes, constitui o ensino de uma outra lógica com a qual devemos abrir um espaço.

 

A abordagem não é mais tanto a de se identificar o que é deficiente em relação a um standard e a uma norma suposta – de fato inexistentes. Deve-se tentar apreender e delimitar o modo flexível e em movimento pelo qual cada sujeito, em sua singularidade, se vira ou não para enodar e ligar o real que constitui a não-relação sexual, com o corpo – o imaginário – e o significante – o simbólico –, como nós começamos a fazer nas declinações dos registros clínicos. Essa amarração é, por exemplo, típica, singular ou inexistente?

 

Para dizer de outra maneira, citando J.-A. Miller, nosso trabalho é, antes de isolar e “de captar sua maneira particular, insólita, [no sentido próprio de cada um e a nenhum outro semelhante] de dar sentido às coisas, de dar sempre o mesmo sentido às coisas, de dar sentido à repetição em sua vida” (MILLER, 2015, p. 8). Isso significa, se quiserem, delimitar seu “delírio privado”, o que, em uma época, foi isolado por Lacan pelo termo fantasia fundamental, na medida em que daria o algoritmo do ser do sujeito.

 

O fenômeno clínico, ou o anti-DSM

 

Nessa lógica, o diagnóstico, particularmente o binário neurose/psicose, é grosseiro, no sentido de que ele é uma ofensa precisamente à fineza exigida. Ele é demasiado espesso, é muito abrangente. Essa lógica nos conduz menos às classificações do que ao isolamento do “fenômeno clínico” enquanto tal. Retornamos, assim, aos “signos discretos” do congresso da NLS, no ponto que podemos considerar que ele só é estreito na medida em que ele escapa às classificações conhecidas e toca na singularidade absoluta.

 

J.-A. Miller precisava, durante a última reunião da FIPA em Paris (BOSQUIN-CAROZ, 2015, p. 4-5), que os relatos clínicos de G. de Clérambault são os modelos: a saber, uma precisão rica de todos os recursos da língua, em sua dimensão literária, no ajuste do fenômeno clínico, até poder tentar dizer, e reduzir, em uma ou duas frases, o que faz o osso e a depuração para cada sujeito. É uma abordagem em que o diagnóstico não é mais dito. Ele se deduz em cada oportunidade, sem mais.

 

Observemos que são os recursos de que a psiquiatria clássica dispunha e sobre os quais ela se apoiava. Ela os perdeu em sua biologização desenfreada. A psicanálise se tornou sua depositária. Ela também tem a tarefa de reinventá-los a partir de suas próprias referências.

 

A captura por um dizer aproximado do fenômeno clínico, na medida em que ele é próprio a um sujeito, é o avesso mesmo, radicalmente, da referência do DSM. Aqui, é a singularidade absoluta que está em questão. No DSM, trata-se de um corte e de um corte e de um desfiar, por um recenseamento estatístico acéfalo de sintomatologias standards e quantificáveis.

 

Em direção a uma nova orientação do tratamento

 

Concluirei por destacar a ponta do que J.-A. Miller disse a respeito em sua apresentação do congresso da Associação Mundial de Psicanálise – referência com a qual fiz a abertura dessa conferência.

 

Uma nova inflexão de ângulo está aí ainda presente, a partir do ultimíssimo ensino de Lacan, aquele que antecipava as consequências clínicas das figuras do Outro de hoje.

 

Se a psicanálise muda, diz J.-A. Miller, é porque ela “deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera” (MILLER, 2016, p. 26). Ele precisa: não é que a ordem simbólica tenha vacilado, mas que a verdadeira mutação que ela sofreu foi o desvelamento de que ela não passa de uma articulação de semblantes, de simples construções sociais, cada dia mais votadas à desconstrução.

 

É precisamente isso, como para o ser falante de hoje, que Hamlet sabe, lá onde para Édipo era não sabido. É a natureza da dimensão de semblante do pai e de sua própria ordem que lhe é des-velada. Doravante, tudo é apenas semblante. É o que faz a errância – a época e seus errantes – do ser falante de hoje e faz também dele, fundamentalmente, um não-tolo.

 

Foi a psicanálise que veio recolocar que tudo é apenas semblante. Que existe um real, fora de sentido: aquele da não-relação, a respeito do qual o ser falante se encontra em uma posição de debilidade que o destina, em sua busca de sentido, ao delírio.

 

A esse respeito, J.-A. Miller prossegue – eu o cito brevemente, isso merece evidentemente ser desdobrado –

 

Enquanto a ordem simbólica era concebida como um saber regulando o real e lhe impondo sua lei, a clínica era dominada pela oposição entre neurose e psicose. Agora, a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas lhe é subordinada. […]

Disso resulta, se assim posso dizer, uma declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres (MILLER, 2016, p. 31).

 

Aquele que fez uma análise sabe que a respeito do real, não há nenhuma normalidade que valha – nenhum “ordinário” não é conveniente.

 

J.-A. MILLER isola um ternário que “repercute”, ele diz, aquele clássico dos registros real, simbólico, imaginário: delírio, debilidade, tapeação (duperie).

 

A única via que se abre mais além é, para o falasser, fazer-se tolo [dupe] de um real, quer dizer, montar um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crê sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é. A debilidade é, ao contrário, a tapeação [duperie] do possível. Ser tolo, tapeado por um real – que ostento – é a única lucidez aberta ao corpo falante para se orientar (MILLER, 2016, p. 31).

 

Eu acrescento: é o que se chama se fazer tolo de seu inconsciente. Uma nova definição de uma orientação do tratamento resulta disso. Ela é, contrariamente àquela que se fundamentava em nossas referências clínicas binárias, transestrutural: “Analisar o falasser demanda jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio [a decifração do inconsciente no tratamento] de maneira que sua debilidade ceda à tapeação do real” (MILLER, 2016, p. 31-32). É a esta escola que nós devemos tentar nos situar.

 

Tradução e revisão: Márcia Bandeira e Márcia Mezêncio

 


Referências
BOSQUIN-CAROZ, P. “Compte rendu de la Journée casuistique du 28 mars 2015”, Après-midi casuistique-Dossier des textes des CPCT et associations apparentées (FIPA). Paris, documente interne, abr. 2015.
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LACAN, J. (1975-1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1978) O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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MILLER, J.-A. “Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016 – O inconsciente e o corpo falante”. In: AMP, Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo, EBP, 2016. p. 19-32.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1995, vol. I, p. 529-619.
YVES VANDERVEKEN – Psicanalista em Bruxelas, AME, membro da ECF e da AMP. Foi presidente da NLS. E-mail: yves.vanderveken@skynet.be
[1]Tradução da versão publicada na Revista Mental n. 35, Paris, jan/2017, p. 13-33. Uma primeira versão deste texto foi publicada no Quarto, Revista de Psicanálise publicada na Bélgica, no 112/113.
[2]Um primeiro esboço desta conferência foi feito em Gand, em 24 de setembro de 2015, sob o título, A clínica binaria e seu além. Ela se deu na abertura de um ciclo de conferências do Kring voor Psychoanalyse van da NLS sobre o tema: “é a neurose de hoje sempre tão ordinária?” Ela foi retrabalhada em sua versão aqui publicada, para a conferência de abertura do ano de trabalho da London Society da NLS, que aconteceu em Londres, em 10 de outubro de 2015.
[3]Cf. Programme de l’ACF-Belgique 2015-2016 en ligne, p. 30-31. http://www.ch.freudien-be.org/WordPress/wp/content/programme-adf-belgique-2015-2016.pdf
[4]NT: Em francês “signalétique” de acordo com o Petit Robert, significa “conjunto dos elementos de uma sinalização”, ou seja, uma referência, um descritivo, um identificador.

YVES VANDERVEKEN
Psicanalista em Bruxelas, AME, membro da ECF e da AMP. Foi presidente da NLS.



Catálogo De Textos: Sobre As Psicoses Ordinárias E As Outras

ALMANAQUE

Catálogo de textos: Sobre as psicoses ordinárias e as outras

 

A Equipe do Almanaque elaborou uma seleção de referências sobre o tema do próximo Congresso AMP – “A psicose ordinária e as outras, sob transferência” -, que se realizará em Barcelona em abril de 2018.

A fim de orientar os estudos e produções acerca do tema, esta bibliografia percorre textos clássicos de Freud, escritos e seminários de Jacques Lacan, bem como a produção de autores contemporâneos de orientação lacaniana como Jacques-Alain Miller, Éric Laurent, Jean Claude Maleval, e outros.

Boa leitura!

 

Associação Mundial de Psicanálise-Comitê da Escola Una. (2017). PAPERS 7.7.7 Rumo à Barcelona 2018: As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência. Disponível em: https://congresoamp2018.com/wp-content/uploads/2017/05/PAPERS-7.7.7.-N%C2%B01-Portugu%C3%AAs.pdf

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Entrevista Com Juliana Mota (Instituto Raul Soares – FHEMIG) Do Confinamento Ao Manejo Clínico

ALMANAQUE ON-LINE

 

STONE

ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA JULIANA MOTA[1] (INSTITUTO RAUL SOARES-FHEMIG)

 

Almanaque (A): Agradecemos, em nome do Almanaque, a sua disponibilidade e gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre a história do Instituto Raul Soares e de seu trabalho aqui.

 

JULIANA MOTA

Juliana Mota (J.M.): Atualmente ocupo a gerência tecno-assistencial do Instituto Raul Soares, o que equivale à direção clínica desse hospital – um hospital que tem quase cem anos.

O Raul Soares foi criado em 1922 para ser especificamente um lugar de formação na psiquiatria – por isso não se chama hospital, mas Instituto. O Raul tem uma tradição, uma importância fundamental nos anos 60 e 70. A partir de 1970, com os ventos que vieram da Itália – da Reforma Psiquiátrica, da Reforma Sanitária do país –, começa a criação de um projeto sanitário, ou seja, a Reforma Psiquiátrica é fruto da Reforma Sanitária porque ela tem como eixo fundador a questão do pensamento do SUS, a lógica do SUS. É nesse cenário que um grupo de psiquiatras, fundamentais na história da psiquiatria no Brasil, como Francisco Paes Barreto[2], Antônio Beneti[3], Antônio Simoni[4] – falecido ano passado –, João Batista Magro[5] e Célio Garcia[6] – que não era psiquiatra, mas estava junto nesse trabalho –, começaram a discutir, a partir das denúncias de Hiram Firmino[7], a situação dos hospitais psiquiátricos de Minas Gerais. Esse grupo faz um movimento capital no Estado de Minas Gerais para se pensar os rumos da formação dos jovens psiquiatras. Nesse momento também começa a discussão sobre o perfil do trabalhador de saúde mental, sendo a Saúde Mental criada nessa época. O hospital fundou a primeira residência de psiquiatria no Brasil – que completa 50 anos em 2018. Com todas as suas oscilações e problemas, ele se torna um lugar de formação clínica.

É também nesse momento que começam a surgir as instituições de psicanálise em Belo Horizonte – o Círculo Psicanalítico[8], o Colégio[9]. Esse grupo de analistas e psiquiatras são também os preceptores de residências. Então, o Raul tem essa história na formação de psiquiatras, em que analistas ministram cursos desde a sua fundação. Depois tivemos uma segunda geração de psiquiatras, Ana Marta Lobosque[10] e Miriam Abou-Yd[11] que, transferidas com o texto analítico e com o texto da reforma psiquiátrica, continuam a propor uma transformação no sentido da formação desses trabalhadores de saúde mental. Nesse sentido, o discurso analítico é acolhido no Raul e passa a ter espaço em nossas discussões, assim como o discurso da clínica psiquiátrica e da reforma psiquiátrica.

Há seis anos, criamos a primeira residência multidisciplinar em saúde mental da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG). Essa segunda residência possui uma vaga para cada categoria: psicologia, terapia ocupacional, enfermagem e assistência social. Trata-se de uma residência do Instituto Raul Soares, da rede FHEMIG[12], mas chancelada, atualmente, pela Faculdade de Ciências Médicas, sendo o Instituto Raul Soares o executor.

 

A: Nesse percurso, como foi a deshospitalização no Instituto Raul Soares?

 

J.M.: Tínhamos, como todos os hospícios criados em 1920 – e que atravessaram os anos 30 e 40 –, moradores. Durante um tempo, ficamos com 17 moradores. Em 2015 conseguimos deshospitalizar dez pessoas. Alguns moravam aqui há dezessete, outros há treze, outros há cinco, seis anos. Fora as internações judiciais, em que tínhamos pacientes aguardando há mais de três anos. Pois, pegamos o contexto da reforma, mas também uma época em que as pessoas ficavam aqui por internação compulsória judiciária[13]. Em alguns casos, o juiz não dava definição do caso e o paciente ia ficando. Em outros, o juiz estipulava o tempo, determinava “vai ficar três anos”, e a pessoa permanecia por três anos. Mas, enfim, hoje temos cinco moradores no hospital, todos eles em processo de saída para as residências terapêuticas[14].

E, ainda, sobre as internações compulsórias, que não acontecem só no Instituto Raul Soares, mas também no Hospital João XXIII[15], entre outras instituições, o procurador da FHEMIG e a coordenação de Saúde Mental do Estado de Minas Gerais iniciaram uma discussão com os juízes e os promotores das comarcas explicando as dificuldades causadas por esse tipo de internação, que não é clínica, e temos tentado encontrar outras soluções. Atualmente, as sentenças começam a vir sem tempo, e a decisão do tempo de permanência passa a ser apenas clínica. É claro que temos ainda problemas em algumas comarcas.

Devemos lembrar que o Instituto Raul soares recebe pacientes de todos os lugares do Estado. Esses pacientes podem chegar sozinhos, vir encaminhados pelo Centro de Saúde. Quando o paciente chega, o trabalho da equipe é verificar a possibilidade de encaminhá-lo para rede de saúde. Estamos trabalhando na dimensão do ato, isto é, a equipe escuta, acolhe, maneja, conversa com a rede e, se possível, encaminha. Mas a diferença é que operamos a partir de um encaminhamento clínico, respeitando o território geográfico, mas, sobretudo, tendo como ponto norteador a clínica. Esse é o orientador da direção clínica atual. Sem o argumento clínico, o paciente não sai do Raul. A equipe precisa sustentar seus encaminhamentos para além da lógica da rede administrativa da saúde mental. Ela deve criar uma rede clínica para cada um desses sujeitos, que serão encaminhados. E é bom constatar que a rede funciona, a rede acolhe. Temos dados estatísticos que sustentam essa orientação.

 

Urgências subjetivas: novas formas de sintoma

 

A: Qual é o perfil hoje do Instituto Raul Soares? Como funciona? O que funciona aqui, já que não é mais internação?

 

J.M.: Não somos mais o lugar de confinamento. Se ainda tem um ou outro paciente que fica um tempo a mais, é porque ainda está no processo de discussão com as localidades a que pertencem. Hoje o Raul é um local de passagem, um lugar breve, de urgência. Nesse sentido, um dos nossos indicadores de eficiência é reduzir as internações para sete a onze dias, no máximo, numa crise. É claro que isso funciona melhor na cidade de Belo Horizonte. A Grande BH e algumas regiões do Estado, por serem mais desamparadas de dispositivos para acolher, ainda internam muito.

 

A: O fato de as internações serem curtas – você disse de sete a onze dias –aumenta o número de retorno?

 

J.M.: Não. Acontece às vezes, mas acho que a instituição, o corpo clínico, tem trabalhado e manejado melhor o caso na porta de entrada. Tentamos não deixar entrar mais. Fechamos uma enfermaria e a transformamos em Centro de Acolhimento à Crise. Hoje a urgência se transformou; colocamos uma equipe de acolhimento e uma equipe horizontal, ou seja, uma equipe que acolhe e uma equipe que acompanha os pacientes que estão na observação, todos os dias. E, mais ainda, essas equipes se reúnem diariamente, às dez horas, para discutir os casos que chegaram nas últimas 24 horas e os manejos que vão se fazendo com a rede. Estamos equipando essa porta de entrada para esse pensamento de urgência.

 

A: Como é essa crise? Essa urgência?

 

J.M.: Temos dois pontos. Um é uma urgência subjetiva, quando o sujeito chega com um sintoma muito embaçado. Poderíamos dizer que são essas novas formas de corpo, de muito uso de substância, uma posição muito pouco discursiva, em que é necessário introduzir o tempo. Então, o Centro de Acolhimento à Crise vem para introduzir uma hiância, para que seja possível algo do sujeito aparecer, para que alguma intervenção possa ser feita. Esses encaminhamentos devem ser clínicos e não de triagem. Essa é uma diferença fundamental.

Temos também o outro tipo de caso, aqueles que chegam principalmente do interior, de lugares mais desamparados, apresentando os sintomas clássicos da descrição psiquiátrica, de manual de psiquiatria – os que deliram, que têm essa configuração nosológica, psicopatológica, muito clássica da história dos manuais. Essas pessoas, quando chegam, muitas vezes, já estão catatônicas, o que não vemos mais na nossa cidade. São sujeitos que vão se afastando e a família vai deixando, vai dando um jeito, acostumando com aquilo. Esses casos, as catatonias, as anorexias psicóticas – que chegam e que já têm um tempo de evolução –, são do interior, não são da cidade. A não ser que venha direto do Laboratório de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas, que nos encaminha por uma questão de segurança. Mas esses quadros de lenta evolução, essas esquizofrenias clássicas, não posso dizer que são de Belo Horizonte, salvo exceções.

Temos também as internações compulsórias, que já falamos, e que não se encaixam nessa prática. Elas vêm a partir de uma demanda da família ao judiciário. Em alguns casos, o juiz interpreta que há um perigo e encaminha para o Raul. Atualmente também recebemos muita demanda do sistema prisional, visando a retirar os presos dos presídios – aqueles portadores de sofrimento mental – e trazer para o hospital. Essa é uma conversa delicada. Primeiro, pelas medidas de segurança a serem seguidas pelo sistema prisional, que são incompatíveis com o trabalho de uma equipe de saúde de um hospital. Segundo, porque acreditamos que alguns casos possam ser tratados dentro do próprio sistema prisional, desde que bem articulado com a rede de saúde mental do município. Esse é um ponto que também estamos trabalhando com as diretorias das unidades prisionais.

 

A: Você chegou a falar de casos como “casos embaçados”. Podemos pensar nesses casos como casos de psicoses ordinárias[16], tal qual proposto por Jacques-Alain Miller? É claro que é um diagnóstico difícil de ser dado, porque o sujeito apresenta uma loucura discreta, de pequenos índices de foraclusão, mas você poderia dizer que chegam casos com esse diagnóstico?

 

J.M.: Nas nossas discussões e nas supervisões de casos temos aqueles que são apresentados como impasses nas discussões clínicas para vários profissionais da instituição. São casos de sujeitos que chegam desenlaçados. Pessoas muito solitárias, que já moram sozinhas, com muitas passagens ao ato, com situações de isolamento preocupantes e/ou andarilhos de população de rua silenciosos.

 

A: Como que esses casos chegam, uma vez que não têm o desencadeamento, ou seja, não têm a urgência que levaria a buscar um hospital psiquiátrico?

 

J.M.: Eles chegam pela urgência da tentativa de suicídio, por um ato ou por alguém que nota algum perigo a acontecer. Na verdade, são casos em que não ocorreu um desencadeamento no sentido clássico ou casos em que não temos uma abundância do sintoma, mas uma presença do ato, do isolamento ou de um laço tênue com o Outro. São, por exemplo, quase sempre devastados pelo alcoolismo, pelas drogas, por um retraimento social radical percebido pelas pessoas mais próximas. Ou mulheres que moram sozinhas, que já tiveram uma projeção na cidade, trabalharam com a moda, com arte ou com a escrita. Essas pessoas têm se internado aqui com frequência, o que nos preocupa. Parece-me que se trata de uma “perda da habilidade” de lidar com o outro. Trata-se de um desligamento gradual. Tem uma dimensão da errância muito presente, como tentativas de entrar nesses campos do Outro. Eu não sei se essa é uma boa palavra, mas ela sempre me ocorre quando discutimos isso: “perda da habilidade” para lidar com o outro. Pois é necessário ter uma habilidade para lidar com o significante que vem do Outro. Os tempos mudaram, os significantes da contemporaneidade são outros. A mesma coisa ocorre com os jovens que chegam aqui, também há uma falta dessa habilidade. São sujeitos solitários que chegam nas urgências psiquiátricas.

Eu me lembrei de um caso em que trabalhei, o caso da Mademoiselle B., um caso de parafrenia que Lacan entrevistou na apresentação de paciente de Saint-Anne, que tem esse ponto da errância. Não digo que são parafrênicos, mas acho que a errância é um acontecimento da pós-modernidade. Essas pessoas que vão utilizando das portas de entrada dos serviços de saúde para tentar algum laço, experimentar uma possível inscrição. É uma errância, que mais parece ser uma tentativa de se enlaçar ao Outro, mas que não se sustenta. Podemos dizer que hoje é essa a clínica com a qual trabalhamos no Raul.

Mas, retomando o ponto da psicose ordinária como uma possibilidade de pensar os casos em que o diagnóstico não fica muito esclarecido, lembro-me de escutar as pessoas dizendo que havia uma loucura que era uma loucura neurótica. Casos que chegavam ao hospital como uma loucura extraordinária, de certo enlouquecimento do sujeito, mas que não eram quadros de psicoses. Chama à atenção a questão diagnóstica, discutida por Miller nesse texto[17] sobre a psicose ordinária, ou seja, o que se torna ordinário é a psicose. A neurose, por ser extraordinária, tem que ser diagnosticada. E no campo da psicose, se assim foi definido, é preciso estabelecer um diagnóstico. Pode até ser uma parafrenia, mas há a necessidade de se fazer uma referência diagnóstica de que psicose se trata.

O ponto fundamental é essa configuração nova da clínica, que é uma psicose que não vem mais tão bem apresentada nos fenômenos elementares. Mas que tem uma posição no campo do Outro que interroga e não nos tranquiliza para liberar o sujeito. É a gravidade do desligamento. Para mim, essa é a gravidade do desligamento, essa capacidade do sujeito se desligar do Outro.

 

A: Nos casos de toxicomania, você disse que, quando esses casos chegam, os profissionais do Raul estão preferindo reencaminhar. Mas podemos pensar num link entre a droga e a psicose ordinária? Falar da função da droga nesses casos?

 

J.M.: Sem dúvida. Acho que a droga, como a melancolia – não a melancolia, mas uma posição melancólica –, como uma crise exacerbada de alguma coisa que não se sabe o que é, isso tudo é uma apresentação. O que precisamos é ter um tempo para poder localizar onde é que o sujeito está ali. Quando eu falo da toxicomania, não é “chegou craqueiro”, “chegou toxicômano”, e mandamos embora para o Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) ou para o Centro Mineiro de Toxicomania (CMT-FHEMIG). É no sentido de que, ao se localizar essa forma de gozo, nos interrogamos se é um caso para permanecer no Raul, já que existem outros dispositivos operando com outros tipos de estratégias muito mais refinadas que a nossa para esses casos – por exemplo, o CMT, que também recebe os sujeitos em crise. Mas eles não funcionam 24 horas como o Raul e o Galba Velloso. Então, se é um caso de uso devastador da droga, que coloca o sujeito em risco, eles ficam; não tem jeito. Nós somos o local da crise.

 

Ação lacaniana: uma parceria FHEMIG e IPSM

 

A: Hoje temos uma parceria entre o Instituto Raul Soares e o Instituto de Saúde Mental de Minas Gerais, instituição do Campo Freudiano. Qual o objetivo dessa parceria para o Raul? De que forma ela acontece, na prática?

 

J.M.: Eu assisti à apresentação da dissertação de mestrado, na qual Renato Diniz[18] fazia parte da banca, na Faculdade de Medicina, sobre a história do Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), mais especificamente sobre a participação do CMT no movimento da Reforma Psiquiátrica. Ele foi muito preciso ao destacar que não é possível separar, em Minas, a reforma psiquiátrica e a presença dos psicanalistas. Ele afirma que só foi possível fazer essa reforma porque tinha psicanalistas no protagonismo, e, por outro lado, que os psicanalistas só puderam entrar nas instituições operando com o discurso analítico, porque tinha uma reforma que acolhia o discurso analítico. Então, esse ponto é fundamental: a relação histórica entre a Reforma Psiquiátrica, a mudança no trabalho e também a mudança política com o portador de sofrimento mental e a inserção da psicanálise na cidade, o que Miller chama de ação lacaniana[19].

Nesse sentido, a parceria entre o Instituto Raul Soares e o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental (IPSMMG), assim como a Escola Brasileira de Psicanálise, já é antiga. Sempre estivemos presentes nas discussões do Núcleo de Psicose. E, agora, tornamos essa parceria institucional, através de um termo de parceria, inclusive. Começamos a conversa com o IPSM-MG sobre a importância do trabalho clínico e sobre a formação tanto dos alunos do instituto quanto dos profissionais da rede estadual, pois é o objeto nosso cotidiano. Essa clínica tem mudado e é necessário pensar novas formas de manejo. Assim, essa parceria estendeu-se para outras instituições da rede estadual FHEMIG: Centro Psíquico da Infância e Adolescência – CEPAI, Centro Mineiro de Toxomania – CMT, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena e Hospital Galba Velloso. Queremos que essa parceria se estreite, porque ela produz boas coisas. É um casamento que produz textos e artigos, produz seminários, produz fóruns clínicos, produz trabalhos para as Jornadas. Vejam esta entrevista! É uma em que posso explicar o projeto da urgência, pensar a psicose ordinária nas portas de entrada. Essa parceria possibilita, entre outras atividades, a presença de psicanalistas, docentes do IPSM, nas discussões de casos clínicos e nas apresentações de pacientes – estas, sempre conduzidas por um psicanalista de fora da Unidade Hospitalar –, assim como no planejamento de seminários teórico-clínicos. Destacamos que essas práticas promovem um avanço na condução do tratamento e na formação dos jovens analistas do IPSMMG.

Gostaria de concluir ressaltando a disposição para o trabalho clinico institucional das equipes atuais do IRS, que acolhem e trabalham a partir do caso e de seu caminho pela Rede. É o caso que orienta, e a atual Direção Clínica do Instituto Raul Soares obedece à direção indicada pelo caso e organiza, a partir dele, seu projeto clinico assistencial.

 


[1] Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise, Gerente Assistencial do Instituto Raul Soares.
[2] Francisco Paes Barreto. Psiquiatra, psicanalista, membro da EBP e da AME. Pertenceu ao quadro de preceptores da Residência de Psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[3] Antonio Benetti. Psiquiatra, psicanalista. Pertenceu ao quadro de preceptores da Residência de Psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[4] Antonio Simoni. Psiquiatra, psicanalista. Pertenceu ao quadro de preceptores da residência de psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[5] João Batista Magro. Médico e psicanalista.
[6] Célio Garcia. Psicanalista, membro da EBP, professor aposentado da UFMG.
[7] Autor de “Nos porões da loucura”, obra que denunciou a situação trágica dos hospitais psiquiátricos em Minas Gerais.
[8] Instituição Psicanalítica de Belo Horizonte
[9] Instituição Psicanalítica de Belo Horizonte Fundada nos anos 80.
[10] Ana Marta Lobosque. Psiquiatra, pertenceu ao quadro de preceptores da residência de psiquiatra do IRS-FHEMIG.
[11] Miriam Abou-Yd. Psiquiatra, pertenceu ao quadro de preceptores da residência de psiquiatria do ISR-FHEMIG. Foi coordenadora de Saúde Mental das secretarias municipal e estadual de MG.
[12] FHEMIG – Fundação Hospitalar de Minas Gerais.
[13] Internações ordenadas por ordens judiciais.
[14] Residências terapêuticas, serviços residenciais que recebem usuários de os serviços de saúde mental para moradia.
[15] Hospital João XXIII. Hospital de urgência da rede FHEMIG.
[16] Psicoses ordinárias – termo introduzido por Jacques Alain Miller no final dos anos 90.
[17] MILLER, J.-A. Lições sobre a apresentação de doentes. In: ______. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p.138-149.
[18] Renato Diniz. Psiquiatra, psicanalista e preceptor da residência de psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[19] MILLER, J-A. Conclusão do PIPOL V. Site Enapol: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento/Conclusion-de-PIPOL-V_Jacques-Alain-Miller.html



A Família Contemporânea E O Real Do Sexo

SUZANA FALEIRO BARROSO

Introdução

 

A constituição da posição sexual do sujeito, sua inscrição na sexuação – operação que se inicia de modo decisivo na infância –, parece estar cada vez mais desamparada da estrutura familiar do Outro. Da escuta dos pais na clínica, tenho recolhido uma posição de defesa decidida dessa igualdade e da liberdade suprema da escolha do sexo, deixada a cargo da criança. É o que se verifica no vídeo de uma entrevista com uma criança, Brinsen, e seus pais, apresentada no programa Fantástico da Rede Globo em 2015 e que podemos tomar como ilustrativa do que seria uma “educação sem gênero”[i]. Nesta família, que vive em Portland, no Oregon, EUA, são as crianças que escolhem se querem ser meninas ou meninos, não importa o gênero do nascimento. A mãe de Brinsen defende uma educação unissex, educação de gênero neutro e propõe deixar aos filhos a escolha da identidade sexual. Depois de ver nos livros o quanto pode ser difícil para uma criança ser um menino que se sente menina, essa mãe decidiu não dizer qual o sexo de seus filhos. Sua justificativa não deixa de indicar impasses próprios na subjetivação dessa diferença.

Diante da falha do saber sobre o enigma da diferença de sexos, visto que não há a priori uma fórmula que os defina, a mãe de Brinsen age em nome da liberdade da criança de se fazer sozinha no processo de sexuação. O pai do menino não deixa de mencionar sua preocupação com os efeitos da segregação que poderão atingir seu filho.

“Quando as pessoas perguntam se você é menino ou menina, o que você diz?”, pergunta a repórter a Brinsen, e ele responde: “eu sou principalmente menino, mas um pouco menina”. Essa suposta definição, segundo a mãe de Brinsen, se deu por volta dos três anos de idade, acontecimento que foi seguido de uma mudança no temperamento da criança e das ressonâncias sociais de sua posição – a saber, o menino passa a ser “zoado” pelos colegas. Chamou-me a atenção a resposta de Brinsen à entrevistadora, quando ela quis saber como ele descobriu que era principalmente menino e um pouco menina. Ele disse: “eu descobri sozinho, meu corpo me disse e eu aceitei”. O que quer dizer esse “meu corpo me disse” da resposta de Brinsen?

Qual a repercussão sobre o “ser-para-o-sexo” (LACAN, 1968/2003, p.363) dessa extrema liberdade concedida às crianças quanto à escolha do sexo? Se o ser para o sexo se define a partir da castração, ou seja, a subtração de gozo acarretada pela incidência do significante sobre o corpo, que liberdade se pode ter quanto à escolha do sexo?

Na Nota sobre a criança (1969), texto sobre a criança, seu sintoma e a família, Lacan tomou posição ao abordar a família para além dos ideais, definindo-a como agente da transmissão da verdade e como espaço no qual se coloca em jogo a estrutura da linguagem e o gozo. O psicanalista enfatizou a dimensão sintomática da família humana por reconhecer sua tendência ao recobrimento da verdade, a saber, aquela que implica o encontro sexual, que concerne ao gozo e ao desejo em jogo nas parcerias familiares. Trata-se, de fato, da verdade do dizer sobre o sexo, que encontra sempre um impossível. A família é uma resposta simbólica ao real do sexo, ao fato de que não se pode escrever a relação do sexo entre um homem e uma mulher. No lugar disso, tradicionalmente, a família escreveu a relação pai-mãe tal como se evidencia na fórmula da metáfora paterna. É o ponto de real da família que pretendo considerar aqui e ao qual a criança responde, no melhor dos casos, sintomatizando esse impossível.

 

Incidência da ciência na transmissão familiar

 

Segundo a “Nota sobre a criança”, uma especificidade da família, preservada, a despeito da evolução da sociedade e necessária à constituição do sujeito, diz respeito ao campo da transmissão, que implica a língua, o desejo e a relação falo-castração. Essa última se dá, particularmente, a partir da interdição do pai ao gozo supremo com a mãe. A transmissão familiar ganhou modulações na psicanálise em cada um dos tempos da obra de Lacan, dentre os quais podemos recortar três momentos. O primeiro momento, na década de cinquenta, correspondente à leitura da estrutura tradicional da instituição familiar, cuja transmissão dos significantes ideais do pai e da mãe, Desejo da Mãe e Nome do Pai, constitui o simbólico da família. O segundo tempo, no final dos anos sessenta, corresponde à leitura das transformações familiares à luz do resíduo da instância do Outro simbólico, que se condensa no objeto do fantasma e sua transmissão. E o terceiro tempo, a partir do final da década de setenta, destaca a função do mal-entendido na transmissão familiar e supõe a conjunção entre significante e gozo sob a forma da lalangue de família.

A família organizada pelo Nome do Pai e pelo falo estabelecia a correlação entre gozo e sexualidade, entre corpo e gozo, isto é, sustentava um modo de gozo localizado fora do corpo através da própria operação do recalque. Dessa maneira, a travessia do Édipo e a elaboração do complexo de castração possibilita ao ser falante sua inscrição numa posição sexuada referida à função fálica. A incidência da função fálica na subjetividade traduz a questão da intrusão do significante no gozo, significando-o como castrado. A introdução do sujeito na dialética do falo, seja menino, seja menina, supõe a lógica que se desenrola no inconsciente das diversas etapas da identificação, através da relação primitiva com a mãe e a entrada em jogo do Édipo e da lei. É pela via do desejo que a mãe tem para com o filho que este é confrontado com o significante falo na sua polaridade imaginária e simbólica.

A família designa um lugar de enlaçamento do Um e do Outro. De acordo com essa estrutura clássica, era impensável uma família que não fosse marcada pela oposição entre um homem e uma mulher, masculino e feminino. Essa diferença se apoiava na conjunção entre reprodução e sexuação. Dessa maneira, os signos imaginários da posição sexuada e os significantes mestres do masculino e do feminino tinham o propósito de domesticar o gozo sexual conectado à transmissão da vida. De acordo com Marie-Hélène Brousse, o discurso da ciência introduziu uma modificação profunda nessa estrutura familiar quando tocou o real da reprodução da vida e desencadeou uma separação entre reprodução e sexuação, entre reprodução e diferença sexual. A ciência hoje se incumbe do real da transmissão da vida mais além das imagens do corpo e dos sujeitos e suas identificações. Diferentemente da ciência contemporânea, para a psicanálise, “não tem marcadores claros da diferença de sexos, do lado genético, cromossômico, endócrino, cerebral, morfológico, ou de gênero. Nenhum deles permite saber algo sobre a questão do masculino ou do feminino” (ANSERMET, 2014, p. 16).

Na conferência “Fuera do sexo: extensión del império materno”, Brousse discute o desenlaçamento da reprodução da estrutura simbólica da família, que promoveu uma redefinição dos pais em termos de cuidados e não mais em termos da diferença sexual. São cuidados unissex, isto é, fora-do-sexo. A entrevista com Brinsen e sua família mostra essa nova configuração, a saber, a mãe e o pai em posições muito similares, ambos cuidando de seus filhos, penteando e trançando seus cabelos. É um cenário típico do discurso do mestre contemporâneo, que faz declinar toda a hierarquia dos lugares simbolicamente constituídos, seja o do pai, isto é, aquele que interdita e limita o gozo, seja o da mãe, aquela que exerce os cuidados da criança a partir de suas próprias faltas. A extensão do império materno fica também patente na entrevista, visto que a opção pela “educação sem gênero” é predominantemente um direcionamento da mãe, acatado pelo pai, não sem algumas reservas.

Na atualidade, portanto, a família não é mais necessariamente edipiana, o que repercute no tratamento do real do sexo. A articulação entre gozo e sexualidade característica da estrutura simbólica da família edipiana se torna cada vez mais precária. É o destino do gozo que fica em questão. Os corpos podem gozar de práticas que não têm necessariamente nada a ver com o gozo sexual, demonstrando a errância do gozo quando o Nome do Pai já não orienta a articulação entre o corpo e o gozo. O gozo se mostra cada vez mais deslocalizado em decorrência da falta de conexão com o Outro. Estamos, portanto, segundo as palavras de Lacan na “Nota sobre o pai” (1968), diante da “evaporação do pai” e de suas consequências.

 

A escolha do sexo

 

Falar de escolha do sexo implica o campo das sutilezas, isto é, da linguagem. É uma escolha que se orienta pelo labirinto da linguagem.

A linguagem está sulcada de canaizinhos, de sutilezas, de obstáculos criados para embolar as coisas e conduzir a lugares onde nos perdemos. A escolha do sexo, pega neste labirinto, nos deixa sem saída, falando como tontos, inventando sentidos, sempre se pode agregar um significante a mais. (LACAN, 1973-74).

A esse labirinto subjetivo podemos acrescentar os discursos sobre o sexo de cada época.

A sexuação, termo que vem acompanhado em Lacan da noção de escolha, definida como escolha de gozo, é diferente da identificação sexual. Esta última, embora implique a sexualidade, advém da transmissão familiar, mas não determina o sexo para o sujeito. A sexuação implica a escolha real do modo de gozo entre dois modos distintos de uso do falo no laço com o outro sexo. O encontro com o heteros, palavra grega que se refere ao outro, introduz uma descontinuidade, um antes e um depois, na questão do sexo. Ultrapassar a solução unissex significa passar de uma lógica cuja norma é que todos são iguais, isto é, uma lógica universalizante, para outra que sustente a alteridade. A teoria lacaniana da sexuação surge no início dos anos setenta e supõe o conceito de não-toda.

Na primeira etapa da sexuação está em jogo a diferença anatômica natural, assinalada desde o momento do nascimento. O segundo tempo desse processo é o do discurso sexual, no qual a diferença anatômica é simbolizada e recebe uma significação. A posição sexual, ser homem ou ser mulher, depende então do discurso do Outro, da significação particular atribuída a cada sexo. A terceira etapa da sexuação é aquela da escolha do sujeito, que, em última instância, é uma escolha forçada. Trata-se do que cada um faz com aquilo que lhe foi transmitido pelo discurso do Outro; mas não só. Porque nem tudo é possível de ser dito sobre o sexual. Nem tudo se resolve através da transmissão familiar. Há a dimensão real do sexo, que escapa à simbolização, à inscrição simbólica. Há algo relativo ao sexual que permanece enigmático, o real do sexo, que confere a essa questão seu estatuto de trauma. Lacan vai nos apontar uma orientação do real para o sexo, que ultrapassa a polêmica do binarismo do gênero.

O gozo sexual coloca em jogo o corpo a partir das primeiras marcas de gozo nele depositadas pela língua do Outro. “Na escolha do sexo sempre se enodam a invariante de um gozo primeiro e as variáveis que intervêm na resposta do sujeito” (TÁBOAS, 2011). A invariante do gozo diz respeito à pulsão enquanto eco de um dizer no corpo. As respostas do sujeito dependem dos encontros contingentes com o gozo do corpo escrito precocemente.

 

Conclusão

 

Vários aspectos da entrevista divulgada pela Rede Globo podem ser comentados a propósito da questão da escolha do sexo. De uma parte, o testemunho do menino Brinsen comprova o que a psicanálise desde sempre sustentou, ou seja, que a posição sexual do sujeito não se reduz jamais ao seu sexo biológico, tampouco às normas e convenções sociais e culturais. De outra parte, as respostas de Brinsen são respostas de um sujeito desamparado do ponto de vista da transmissão familiar das identificações sexuais, um sujeito sem o Outro. Sua fala evoca uma disjunção, uma dissociação entre o sujeito e seu corpo. Sua posição parece mais aquela do “fora-do-sexo” do que propriamente uma posição do ser sexuado. É preciso considerar que a escolha do sexo implica o assentimento ou a recusa do sujeito. Por isso Lacan nos diz que o ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo.

Embora a matéria divulgada pela Rede Globo tenha destacado a irreverência da educação do gênero neutro, para a psicanálise, os efeitos da não transmissão da significação fálica do desejo, dos traços de identificação sexual, não parecem trazer nenhuma ajuda à questão da escolha do sexo para cada sujeito. Aliada às demais transformações da família, deixa a criança muito mais exposta ao gozo do Um sozinho desenlaçado do Outro. Esse desenlaçamento parece evidente na resposta de Brinsen à entrevistadora ao dizer que foi seu corpo que lhe disse sobre ser principalmente menino e um pouco menina. Seus pais se abdicaram da transmissão quanto à identificação sexual do menino, demonstrando uma retirada do Outro familiar do assunto do sexo. É nesse contexto que o corpo vai ganhando sua soberania, contrariando a localização da sexualidade fora-do-corpo.

 

 


Referências
AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012.
ANSERMET, F. “Procreación médicamente assistida”. In: Registros, Madres e Padres. 2014, Colección Diálogos, p. 16.
BROUSSE, M. H. “Fuera do sexo: extensión del império materno”. In: Videoteca de Psicoanalisis. http://marioelkin.com/videoteca-de-psicoanalisis/. Acesso em 25/06/2017.
LACAN, J. “Alocução sobre as psicoses da criança”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969, p. 361.
LACAN, J. “Nota sobre o pai”. In: Opção Lacaniana, n. 71. São Paulo: Eólia, 2015, p. 7.
LACAN, J. “Le séminaire, livre 21: les non dupes errent”. Seminário inédito, aula de 12 de fevereiro de 1974.
TÁBOAS, C. G. “Século XXI: a escolha do sexo no labirinto”. In: Opção Lacaniana on line, n. 5, 2011.
[i] http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/10/familia-cria-filhos-sem-genero-definido-nos-estados-unidos.html. Acesso em abr. 2017.

SUZANA FALEIRO BARROSO
Psicanalista em Belo Horizonte, Membro da EBP e da AMP. E-mail : suzanafaleirobarroso@gmail.com



O Real Na Família Contemporânea – Questões Sobre O Incesto

LUCIA MELLO

 

 

O real na família contemporânea comporta pesquisas sobre os vários sentidos desse nome para Lacan, de desde seu texto inicial, da década de 50, até as mudanças operadas em seu último ensino. Neste, o real surge enquanto dimensão contingente que concerne a cada um, sem sentido, acarreta ruptura tanto com o saber quanto com a causalidade, separado que está da dimensão ficcional do inconsciente estruturado como linguagem, e modifica o próprio conceito de inconsciente.

A pergunta que orienta essa investigação diz respeito às transformações culturais e sociais que incidiram sobre os discursos e atingiram o que Freud formulou como uma lei primordial da humanidade – advinda de pesquisas sociológicas e resultado da incidência do pai e inscrita como mito, fantasia e tabu do incesto – ou seja, a como se apresenta o tabu do incesto no tempo do real sem lei.

O comentário feito por Lacan sobre a ficção do pai primeiro, construída por Freud, assinala a importância da família na transmissão da cultura, por vários meios, quando destaca o medo, protótipo da repressão edipiana, inspirado pela castração real promovida pela versão do pai gozador de Totem e tabu. A proibição do incesto construída no mito freudiano incide sobre a mãe e “tem um caráter universal, através de relações de parentesco infinitamente diversificadas… essa proibição é sempre expressamente formulada e sua transgressão é marcada por uma reprovação constante” (LACAN, 1938/2003, p. 29). Na ficção, o tabu decorre da orgia sacrificial seguida do banquete totêmico e da rivalidade entre os membros do clã, de quem resultam tradições morais e culturais.

Essas tradições se veem abaladas como consequência da disjunção entre sexualidade, procriação e filiação ocorrida no século XX. O nascimento de uma criança não depende mais do encontro de um homem com uma mulher. Os enigmas da sexualidade são deslocados do campo do desejo para as demandas de mercado. A família contemporânea definida por Lacan no texto de 1938, os “Complexos familiares”, como instituição, fato social, mito em que se inscreviam em triplo registro a reprodução da espécie, função organizadora da filiação e os fundamentos de transmissão entre gerações, exacerba sua dupla face entre interdição e permissão do gozo. A família parece perder progressivamente sua função de transmissora da cultura, das relações de parentesco.

As mutações na civilização apontadas por Lacan desde os anos 70 produzem efeitos e transtornos decorrentes das transformações no discurso do mestre, repercutem sobre a lei da castração e afetam profundamente a família contemporânea. Passa-se da autoridade paterna para a autoridade parental. Marie-Hélène Brousse considera a parentalidade um neologismo utilizado pelo novo discurso da ciência para apagar os termos tradicionais de pai e mãe e homem e mulher, modificando o sistema de parentesco e a transmissão da lei e pretendendo recobrir a impossibilidade de escrever a relação sexual.

Em seu artigo sobre o tema, Brousse (2005) comenta que, onde havia o drama de uma relação entre termos diferentes, funções diferentes, se impõe a equivalência, a similaridade e a permuta, movidas pelas vontades de gozo, pelo apagamento das funções alteradas para termos iguais que se repetem em série: “Confiado à ciência, o real da reprodução se encontra separado do simbólico da filiação.” (p. 121). O circuito do desejo que necessariamente implica a diferença sexual também é apagado pela parentalidade, que se impõe como um sintoma da sociedade pós-moderna. Na condição de significante único, a parentalidade transmuta os lugares de pai e mãe para a série de Uns esparsos e disjuntos, sem o Outro como parceiro de mito e ficção.

Essa transformação da família afeta a criança recebida, escolhida ou produzida como objeto a, que, na condição de objeto mais-de-gozo, torna-se passível de consumo pela via da parentalidade – vítima de vigilâncias, permutas e abusos diversos. Indaga-se, portanto, sobre as mutações no estatuto das interdições e seus efeitos para o que Freud conceituava como economia psíquica. Indaga-se ainda se a parentalidade, promotora de equivalências na série de Uns esparsos, apagaria a diferença dos nomes e do desejo como impossível.

A esse respeito, Laurent (2005) evoca a contribuição freudiana, situada no decorrer de sua obra, sobre o lugar do pai como portador da interdição do incesto na economia psíquica. Em suas quatro versões do pai, Totem e tabu, Édipo, Hamlet, Moisés e o monoteísmo, o pai freudiano traz sua marca na angústia, na sociedade, nas religiões. A passagem do pai legislador para versões tirânicas e totalitárias assinala a transformação e a dispersão em versões do pai, perversões não inscritas nas fantasias mas distribuídas entre parceiros de sexos mutantes.

Lacan, relendo Freud, modifica e interroga o estatuto da família lembrando que pai e mãe são nomes que marcam uma particularidade do desejo de criança em todas as sociedades. Isso porque a ordem familiar, em vez de base da história, torna-se resíduo, produto da história. Lembra ainda que o pai como nome é vetor de uma encarnação da Lei sobre o desejo, portanto não é apenas o pai que interdita, mas o que reúne contradições entre interdição, desejo e gozo. Enquanto o pai freudiano abriga-se no universal entre ideal e utopia, o pai lacaniano inscreve-se pelo amor – se ele faz causa de desejo uma mulher objeto a, assim como seus filhos.

Os múltiplos usos dos sistemas de nomes encontrados no caso a caso da clínica levam em consideração um real, próprio à psicanálise, que opera sobre um resíduo irredutível, o impossível em jogo tanto na família quanto na sociedade e que comparece na experiência de uma análise. Esse real do sintoma será sempre reinterpretado, isto é, lido – leitura que marca percursos diversos da relação do sujeito com seu inconsciente.

Segundo Lacan, em outro texto, a psicanálise constata que a criança contemporânea revela o que é de estrutura para todos, pois é o sujeito que se encarrega de constituir sua família, quando institui uma distribuição dos nomes de pai e de mãe. Esse ato de nomeação não é sem consequência tanto para o lugar ocupado pela criança que faz uma família quanto para a realização de sua presença como objeto na fantasia materna.

 

Questões sobre o incesto

 

Com o título de “O inferno das famílias”, Alain Merlet (2007, p. 63) traz uma contribuição interessante sobre o tema do incesto. Inicialmente, o autor assinala uma diferença importante entre o semblante incestuoso aparelhado às fantasias e a passagem ao ato incestuoso como um real do gozo e seus efeitos, por vezes profundamente devastadores e destrutivos e sem retorno para um sujeito. Essa diferenciação parece importante na medida em que se verificam, na clínica, com alguma frequência, os semblantes incestuosos constitutivos de fantasias diversas, descortinando os paradoxos do desejo enquanto as passagens ao ato incestuoso ocorrem em situações mais graves em alguns casos de psicose, cujas consequências, em alguns casos, se mostram refratárias ao tratamento. O autor propõe a separação entre o dito e o dizer demarcando a incidência do trabalho clínico sobre as enunciações.

Dos casos clínicos examinados sobre os quais a experiência analítica incidiu, ele extrai três propostas muito pertinentes que constituem, por si próprias, vias de enfrentamento de um tabu que passou ao ato sem as consequências culturais de sua proibição contidas no mito freudiano, ou seja, incesto em sua versão século XXI, que tem o mérito de causar horror, surpresa, mas, por outro lado, de instigar novas premissas:

  1. Não se deve recuar diante do horror do incesto, sob o risco de sacralizá-lo, ignorar sua diversidade clínica e suas coordenadas.
  2. A incongruência de tal ato transpira sempre alguma coisa do objeto com o qual o ser falante tenta responder e se constituir como sintoma.
  3. A disciplina do dizer quando pode cumprir-se é, em si, um tratamento do gozo incestuoso e, portanto, uma realização da proibição do incesto.

A diversidade clínica apontada pelo ser falante mergulhado em um ato que saiu da esfera mítica para o campo do real desvela a inadequação do simbólico para operá-lo e mostra-se atingido por inibições diversas. O convite feito por Miller para outro modo de leitura e interpretação e a busca pelo auxílio da letra sem perder de vista a falta irremediável no campo do Outro parecem mais adequados para abordar o paradoxo de uma proibição no tempo de mutações extremas sem o apoio da relação de causalidade.

Dois paradoxos contemporâneos 

No capítulo dos paradoxos atuais verifica-se, do lado da ciência, a ação desenfreada promovida por um discurso que trabalha no campo da genética e da reprodução, inventando um saber em que todos são animais, combinando, sem cessar, óvulos, espermatozoides, doadores, provetas e úteros que, ao sabor dos caprichos, produzem humanos resultados de combinatórias incestuosas. Os integrantes do avesso das procriações aguardam sem críticas as crianças produtos desses experimentos e sem considerar o impossível situado na origem, o real dos laços familiares.

No campo da educação brasileira, colhe-se, no site Uol Educação[i], de 8 de junho deste ano, a notícia de que o MEC vai recolher das escolas públicas o livro infantil Enquanto o sono não vem, de José Mauro Brant. Um dos contos, “A triste história de Eredegalda”, narra a saga de um rei que queria se casar com a mais bonita das próprias filhas. Quando ela se nega ao casamento, é castigada e acaba morrendo de sede. Destinado a crianças de seis a oito anos, o livro faz parte do Programa de Alfabetização e, antes de ser enviado às escolas públicas, contou com a avaliação e a indicação de órgãos do Ministério da Educação.

A reportagem informa que o recolhimento do conto decorreu de críticas feitas pelos pais, mas, sem situar o teor dessas observações, acrescenta que, segundo a Secretaria de Educação Básica do MEC,

As crianças do ciclo de alfabetização, por serem leitores em formação e com vivências limitadas, ainda não adquiriram autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas com alta densidade, como é o caso da história em questão[ii].

Recoberto por nomes diversos, práticas científicas, literaturas, bullying, abusos, atos imotivados, compulsões e adições, o tabu do incesto comporta a advertência feita por Lacan nos seus trabalhos iniciais sobre o tratamento da psicose e retomado por Merlet no artigo citado anteriormente: não recuar diante do trabalho clínico instigado pelo horror de um ato que parece, na atualidade, situar-se entre loucura e debilidade.

 


Referências
BROUSSE, M. H. “Un néologisme d’actualité: la parentalité” In: La cause freudienne. Paris: Navarin, 2005, nº 60.117.
LACAN, J. “Os complexos familiares na formação do indivíduo” (1938) In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LAURENT, É. “Le Nom-du-Père entre réalisme e nominalisme”. In: La cause freudienne. Paris: Navarin, 2005, nº 60. 131.
MERLET, A. “L’enfer des familles” In: La cause freuienne. Paris: Navarin, 2007, nº 65, p. 63.
[i] UOL educação, disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/06/08/mec-diz-que-vai-recolher-livro-infantil-de-escolas-por-falar-de-incesto.htm, acesso em 8/6/2017.
[ii] Idem.

LUCIA MELLO
1. UOL educação, disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/06/08/mec-diz-que-vai-recolher-livro-infantil-de-escolas-por-falar-de-incesto.htm, acesso em 8/6/2017.



Os Filhos Dos Toxicômanos

MARIANA FURTADO VIDIGAL

 

 

BRIGID MARLIN

 

Falar sobre os filhos dos toxicômanos nos exige definir antes a quem chamamos de toxicômanos. Não poderíamos, orientados pela ética da psicanálise, estabelecer uma categoria universal para os toxicômanos e seus filhos. Verificamos, há anos, os efeitos ineficazes e catastróficos de intervenções que afetam os usuários de drogas e desconsideram sua condição de sujeitos e cidadãos, inferindo uma indiferenciação entre o sujeito e o objeto-dejeto-droga. Entretanto, sabemos como uma relação toxicômana com a droga pode provocar efeitos nefastos que comprometem a relação com a própria subjetividade e com o outro.

 

Percorreremos, portanto, dois eixos: o que a teoria psicanalítica e a clínica podem nos indicar sobre os possíveis efeitos subjetivos em uma família com pais toxicômanos e, a partir da noção lacaniana de função social de nomeação, ler o lugar do toxicômanos e de seus filhos no discurso atual de “os filhos do crack” e “as mães do crack”.

 

A função da família

 

Lacan (1969/2003) apresenta a função da família conjugal na constituição subjetiva da criança como a de uma transmissão irredutível que implica a relação de um “desejo que não seja anônimo” (p. 369). Trata-se de uma função de outra ordem que não a satisfação das necessidades, cabendo à mãe, a partir de seus cuidados, transmitir “a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas” (p. 369) e, ao pai, em seu nome, ser o “vetor de uma encarnação da Lei no desejo” (p. 369).

 

Estando em jogo a dimensão da falta materna, o pai – enquanto função – pode intervir como lei na relação mãe-criança, dando uma significação ao desejo materno, a significação fálica. A mãe é aquela que deve transmitir o Nome do Pai, consentindo, com a regulação do próprio gozo, o que permitirá ao filho sair do lugar de objeto (falo) e lançá-lo na metonímia do desejo. Mas, mesmo com a significação fálica, o enigma sobre o desejo do Outro permanece indecifrável, assim como o objeto último do próprio desejo. A perda do objeto é estrutural, tornando-se aquilo que causa o desejo e fazendo com que busquemos substitutos para o objeto a.

 

A criança se identifica ao que supõe ser o desejo do Outro, produzindo uma resposta sintomática ao sintoma do par parental e denunciando a verdade em jogo ali. Inscrita a função fálica, o sujeito poderá se posicionar sexualmente tanto em relação ao gozo quanto em relação à escolha de objeto, sustentado por identificação ao pai ou à mãe e orientado pela significação fálica.

 

Contudo, quando temos a forclusão do Nome-do-Pai, a criança resta como objeto tampão da falta da mãe, que se torna presença maciça, permanecendo identificada ao gozo do Outro. Permance no lugar de objeto, comprometendo o desejo e a metaforização do gozo no corpo – que retorna do real como delirio ou alucinação.

 

No último momento do ensino lacaniano há a reformulação da função do par parental como a de transmitir, enquanto homem e mulher, uma relação com o objeto a – tanto como causa de desejo quanto como gozo. Para ser um pai digno de amor e de respeito, deve-se apresentar uma versão de como pôde fazer com uma mulher, tomando-a como causa de seu desejo enquanto ela se ocupa de seus filhos, semblantes de objeto a para ela. Aqui a função paterna é transmitir ao filho o que ele pode inventar diante da não-relação sexual.

 

Vimos que o desejo não anônimo pela criança é peça constitutiva de sua subjetividade, mas, para Miller (2005) é em torno de um segredo que se une uma família: “de que gozam a mãe e o pai”. Um não-dito sobre o gozo, indevido, é o que se transmite entre as gerações.

 

Isso nos permite localizar uma versão de família menos idealizada do que as dos discursos normatizadores. As funções parentais são funções exercidas por homens e mulheres de maneiras particularizadas; o que se transmite é uma invenção singular para o impossível em jogo para todo ser falante e um resíduo sobre o gozo. Mesmo o desejo não anônimo por um filho mantém um caráter enigmático irredutível, e ao filho caberá, em alguns casos, responder ao que ele toma dessa transmissão residual com seu sintoma e formulando uma fantasia particular sobre o desejo do Outro, constituindo, assim, sua própria relação com o objeto a (S/ ◊ a). E, nos casos em que há uma presença maciça da mãe, desejosa demais, o sujeito pode se colocar alienado como o próprio objeto a da fantasia do Outro como objeto tampão (LACAN, 1969/2003).

 

A toxicomania e a família

 

A toxicomania não é uma relação qualquer com a droga, mas um ato contínuo e desenfreado de consumo, “um gozo que vale mais do que o amor à vida” (MILLER, 2000, p. 176). Lacan (1975) formula a droga como aquilo que permitiria o “rompimento do casamento do corpo com o petit-pipi” romper também com o excesso de gozo que invade o corpo, referenciando-se ao caso do pequeno Hans. Entretanto, tratar o excesso libidinal sem o recurso da linguagem que permitiria metaforizá-lo, sem os limites da significação fálica, pode provocar um gozo experienciado de maneira ainda mais desenfreada e mortífera no corpo próprio. Em outros casos, a droga se torna um tratamento para esse real pulsional que invade o corpo desde sempre, amenizando estes efeitos nefastos, como os dos delírios, que atormentam o sujeito.

 

Na toxicomania, a droga é um objeto “causa de gozo” (MILLER, 1995, p.17), um gozo autístico que pode provocar uma suspensão da circulação do desejo em torno de outros objetos e da relação com o outro. Em tese, pode-se concluir que comprometeria a transmissão pela mãe de um cuidado particularizado com o bebê e a transmissão de um desejo não anônimo direcionado a ele. Em tese.

 

A droga, em alguns casos, entra como uma resposta à não-relação sexual, fazendo do corpo próprio o seu único parceiro e objeto, o que poderia comprometer o casal por excluir o parceiro sexuado como causa de desejo para obter uma relação assexuada e autística com a droga (MILLER, 2000). E se o que a família transmite é um segredo sobre o gozo, de que gozam o pai e a mãe, o que se transmite quando o gozo que deveria se manter obsceno se coloca tão em cena, como geralmente acontece na toxicomania?

 

Contudo, na clínica é possível encontrar respostas diversas dos toxicômanos e de seus filhos. Há sujeitos que têm dificuldade em exercer as funções parentais pelo uso de drogas ou por sua condição de errância, de “desarraigamento” de toda referência simbólica (GELLER, 2016). Nesses casos, é possível um tratamento para se estabilizarem enquanto são auxiliados nos cuidados com os filhos, por outros membros da família e por políticas públicas competentes, mas preservando o vínculo parental. Em outro caso, “ser mãe” introduziu um intervalo na relação toxicômana com a droga em nome dessa nova nomeação e amor ao filho. Assim como a paternidade fez com que um sujeito quisesse ser um exemplo diferente para o filho.

 

Há pacientes que edipicamente elegem parceiros tomando o gozo toxicômano do pai como traço que se repete, identificando-se com o lugar da mãe na parceria sintomática do casal, ou tentando salvar o pai toxicômano assassinado ao tentar salvar os homens toxicômanos com os quais se relacionam. Um jovem toma a imagem do pai toxicômano e traficante como identificação especular maciça e de difícil dialetização da nomeação “patrão”, repetindo o caráter mortífero desse gozo. Em muitos outros casos, o sintoma e a fantasia do sujeito não se dão em relação ao uso de drogas dos pais e a droga não se torna uma questão em suas vidas adultas. Um homem produz um curto-circuito na relação amorosa ao eleger momentaneamente a droga como objeto de gozo, retirando-se da relação e repetindo o sintoma de seu par parental. Teríamos elementos para afirmar que a toxicomania em um par parental produziria efeitos na constituição subjetiva de seus filhos, pois suporia um colapso nas posições referidas à função paterna e materna – em tese, pois o que a clínica nos ensina é que as relações familiares são absolutamente singulares e o que cada filho toma como transmissão sobre o desejo e o gozo do Outro é enredado em uma ficção própria, não previsível e não necessariamente a ver com um ideal.

 

Objeto-dejeto-crack

 

O lugar da família e da droga são atrelados ao discurso social prevalente em uma época, com efeito na formação dos sintomas e no tratamento dado a eles. Com o declínio do pai, Lacan (1973/1974) advertiu sobre os riscos de a mãe tomar exclusivamente para si a função de “nomear para” ou, ainda mais grave, de o social deter esse poder de nomeação determinando “a trama de tantas existências” com uma ordem de ferro. Interessa-nos analisar as consequências na existência de famílias que recebem nomeações pelo social como “mães do crack” e “filhos do crack”.

 

Os toxicômanos são frequentemente nomeados como “zumbis” e “crackeiros” e sofrem com políticas higienistas que pretendem eliminá-los do olhar dos “cidadãos de bem”. Vê-se, nessa lógica de “mães do crack” e “filhos do crack”, mais uma versão em que sujeito e objeto-dejeto sofrem uma holófrase – são o objeto-dejeto-crack, desalojados de um lugar social, de sua subjetividade e de sua condição civil de direitos. Nessa trama discursiva, tem sua condição jurídica próxima ao homo sacer[i] de Agabem (2002, p. 71): “não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio”.

 

Em Belo Horizonte, em 2014, a 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível lançou as recomedações 05 e 06/2014 às maternidades públicas e às Unidades Básicas de Saúde para notificar a Vara sobre “as gestantes ou mães” que “manifestem interesse em entregar os seus filhos para adoção”. Além disso, os profissionais de saúde deveriam notificar sobre “mães usuárias de substâncias entorpecentes”, (nomeadas extra-oficialmente como “mães do crack”), os casos de “gestantes que recusam fazer o pré-natal” e as “situações de abandono de recém-nascido nos estabelecimentos de saúde, de negligência e maus–tratos ao nascituro ou ao recém-nascido”.

 

Em 2016, a Vara Cível da Infância e da Juventude baixou a portaria N° 3/VCIJBH/2016, que dispõe sobre o encaminhamento ao Juizado de recém-nascidos e dos genitores em grave suspeita de situação de risco para oitiva e aplicação de medidas de proteção. Essa “situação” se refere a casos em que “a família não apresenta ambiente que garanta o desenvolvimento integral, em especial em virtude da dependência química e/ou trajetória de rua dos genitores, sem condições imediatas de exercer a maternidade e a paternidade responsável” para decidir sobre “a aplicação de medidas protetivas, inclusive, se for o caso, a medida de acolhimento familiar ou institucional.

 

No entanto, segundo o movimento “De quem é este bebê?”[ii], na prática, mulheres, em sua maioria negras e pobres,

 

(…) estão sendo retidas nas maternidades, sem justificativa médica e sem necessidade clínica. Seus bebês estão sendo abrigados sem o levantamento da família extensa e sem a criação de um fluxo de atendimento que vise a sua recuperação. São sumariamente separadas de seus filhos, sem a possibilidade do alojamento conjunto. Existem muitos relatos de mulheres que sequer são aditas mas que são denunciadas por não terem feito o pré-natal, estarem infectadas com sífilis, terem feito uso recreativo de alguma substância antes mesmo de saberem que estavam grávidas.

 

Sendo esse o cenário, os nomeados “filhos do crack” e “mães do crack” constituiriam uma nova categoria de crianças e de mães, ambos nomeados como o pior, como o crack, vidas das quais o Estado se sente no direito de dispor à revelia da Constituição. Como ser filho de um objeto como o crack? Como ser o crack? Qual trama está sendo traçada para essas existências com essa nomeação pelo social?

 

Para Lacan (1973/1974), quando o social toma a função de nomear, tem efeito de uma “degenerescência castástrófica”, ou seja, um lugar como esse no discurso social não dá outro destino que não a catástrofe. Já o encontro com esses sujeitos – quando tomados nessa condição – nos ensina que é preciso aguardar a construção dos lugares de pai, mãe e filho e como cada família se configurará. Uma separação precoce e sem cálculo retira da família a possibilidade de construírem uma ficção singular para o que lhe acomete. Como nos diz Laurent, citado por Campos (2017):

 

O sujeito é que terá, portanto, a tarefa de constituir sua família, no sentido em que ela institui uma distribuição dos nomes do pai e da mãe. A tarefa não é, portanto, aliviada pela ficção jurídica (…) alguma coisa dos lugares do pai e da mãe é ineliminável: não como garantidor, mas como resíduo.

 

A toxicomania não é uma situação permanente. É possível um tratamento que possibilite uma regulação do gozo, um suporte para uma outra invenção menos danosa para conter o sofrimento e uma nova relação com o corpo próprio e com o Outro/outro. Permanentes talvez sejam os danos da nomeação “objeto-dejeto-crack” na existência desses sujeitos.

 


Referências
AGAMBEM, G. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua. Henrique Burigo (trad). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
CAMPOS, M. A familia na interface direito e psicanálise. Almanaque, revista eletrônica do IPSMMG, n.18, 2017. Disponível em http://almanaquepsicanalise.com.br/a-familia-na-interface-direito-e-psicanalise/, acesso em maio de 2017.
GELLER, S. Prefácio. In: MILLER, J.-A. y otros: Desarraigados. Buenos Aires: Paidós, 2016.
LACAN, J. (1969) “Duas notas sobre a criança”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, pp. 369-370.
LACAN, J. “Radiofonia”. In: Ibidem. pp. 403-447.
LACAN, J. (1973/74) El seminario 21: los no incautos yerran. Clase 10. Inédito.
LACAN, J. (1975) “Jornada de estudos dos cartéis da Escola Freudiana: Sessão de encerramento”. Documentos para uma Escola. Letra Freudiana: Escola, psicanálise e Transmissão. Ano 1, nº0, p. 117. Circulação interna.
MILLER, J-A. “A teoria do parceiro”. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000, pp. 153-207.
MILLER, J-A. Para una investigación sobre el goce auto-erótico. In Sujeto, goce y modernidade, fundamentos de la clínica. Buenos Aires: Instituto del Campo Freudiano – Atuel-TYA, 1995, p.17
MILLER, J-A. Assuntos de família no inconsciente. Recuperado em 05 de abril de 2017 em http://www.isepol.com/asephallus/numero_04/traducao_01.htm
[i] Homem sacro (ou sacer) é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguem matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advem que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro”.
[ii] Disponível em https://dequemeestebebe.wordpress.com/entenda-o-caso/, acesso em abril de 2017.

MARIANA FURTADO VIDIGAL
Psicanalista em Belo Horizonte, mestre em Estudos Psicanálíticos pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas da UFMG. marianafvidigal@yahoo.com.br (31) 991646605



The Wolfpack: Entre Filmes E Lobos

GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR

O cinema oferece hoje ocasião para reflexões sobre a clínica, já que, ao lado da psicanálise, a arte contemporânea é um discurso que põe em relevo as mudanças culturais hodiernas (BROUSSE, 2014). Nesse sentido, tomamos para apreciação The Wolfpack (2015): um documentário sobre a história da família Angulo, cujos sete irmãos cresceram dentro de um apartamento e foram isolados do mundo exterior. Saíram pouquíssimas vezes, e até que se contrapusessem à resolução delirante imposta por um pai onipotente, muito tempo se passou. Portanto, debruçamo-nos primeiro sobre a paternidade psicótica. Em seguida, investigamos como o cinema tornou a clausura possível por algum tempo e alicerçou também uma invenção através da qual Mukunda, um dos irmãos, pôde se enlaçar ao “mundo lá fora”.

 

A apresentação de Oscar, o pai, prenuncia a tônica paranoica intrínseca ao modo de organização dessa família, correlata à característica disposição de retorno da libido narcísica elucidada por Freud (1911/1996) sobre a psicose. Sujeito distante e silencioso, Oscar revela ter grande influência no arranjo familiar, cujo fundamento parece convergir absolutamente ao seu ser: “Meu poder está influenciando todos”. Em resposta às interferências manipuladoras da sociedade, protege a si e a sua família na delimitação panóptica de um espaço onde o seu olhar vigilante impera, detendo o controle e a guarda de sua comunidade. Compartilhando os valores hippies, o casal Oscar e Susanne (a mãe) aspiram à criação dos filhos na liberdade da natureza, purificados da babel civilizatória. Encontram na língua primeira, o sânscrito, os nomes de seus filhos. Ao mudarem-se para Nova York, onde teriam que somar recursos para tal projeto, veem-se cada vez mais sitiados na malha urbana. Ilhados num apartamento, o casal decide que a educação dos filhos Bhagavan, Govinda, Narayana, Mukunda, Krsna, Jagadisa e Visnu aconteceria nos limites desse microcosmo, incontaminado pela violência, drogas, filosofia ou religião. A foraclusão da norma simbólica (LACAN, 1959/1998) em Oscar se evidencia na radical separação da “sociedade”, seu Outro denso e não castrado. Fixando uma lei de ferro, ele tenta fazer barreira ao gozo ilimitado, estabelecendo um ponto cego ao real do olhar que goza dos corpos e os robotiza em favor dos interesses do sistema. Para a paternidade, Oscar se identifica ao deus Krishna, sustentando imaginariamente um lugar de Outro para a família. A condição subjetiva desse pai, sem a marca da divisão, parece transmitir o apagamento da diferença no clã dos meninos-lobo. Com cabelos longos e corpos esguios, eles se apresentam homogeneizados, atuando como um só corpo; uma alcateia. De objeto privilegiado do olhar do Outro, Oscar, em sua tribo, encontra-se no lugar imperativo do “Olho que tudo vê”, convergindo para si a pulsão escópica que circula na família.

 

Mukunda, por sua vez, afirma que o pai sempre encheu as cabeças dos filhos com filmes. Ademais, argumenta que “há um mundo lá fora”, e que devido ao fato de não o conhecerem, teve de criar, junto com a irmandade, um mundo próprio, servindo-se dos filmes para tal. Nessa cena, um dos outros irmãos chega a pontuar: “mas sempre soubemos a diferença entre a vida real e os filmes”. Segundo Metz (1980), o filme pode ser entendido como um espelho, pois tanto em um quanto em outro, qualquer coisa pode ser projetada. Inobstante, o primeiro diferencia-se do espelho primordial a partir do momento em que o espectador de cinema não tem, diante de si, sua imagem especular. Por já haver ultrapassado a primitiva indiferenciação entre eu e tu, o humano é capaz de reconhecer que existem objetos; que ele próprio é um sujeito e que há quem seja seu semelhante. Ele pode, portanto, acompanhar como observador o que se apresenta na tela. “No cinema, é sempre o outro que está no écran: eu estou lá para o ver” (METZ, 1980, p. 58).

 

Metz (1980) entende que há um saber do sujeito sem o qual nenhum filme seria possível. Vendo um filme, o indivíduo dá-se conta de que ele próprio percebe o imaginário; que seus órgãos sensoriais são fisicamente atingidos e que não está “fantasiando”. Simultaneamente, o material percebido-imaginário depõe-se no sujeito – estrutura de linguagem –, sendo aí agrupado e organizado numa continuidade. Há, por parte de quem vê o filme, uma identificação com o ato do perceber; um jogo dialético entre agente da percepção (sujeito) e percebido (tela), através do qual o imaginário do cinema, ao ser captado pelo espectador, acede ao simbólico, fazendo-se por isso uma atividade social e institucionalizada. O que, todavia, não eclipsa as possibilidades identificatórias, já que, na trilha de Brousse (2014), o império das imagens é uma trademark de nosso tempo, da qual o cinema certamente não está livre.

 

Portanto, na criação de um mundo, curiosa solução começa a se apresentar. Pulp Fiction e Reservoir Dogs são algumas das obras cujas falas Mukunda transcreve, ipsis litteris, para o papel. Ele explica que a vida enclausurada fica muito entediante, e que, assim, interpreta com seus irmãos as cenas copiadas. O figurino dos personagens, pistolas de papelão e uma sonoplastia improvisada se articulam em encenações fiéis aos mínimos detalhes. Parece estar em jogo um modo de gozo coletivizado. Mukunda fala que as encenações têm algo de mágico, e fazem com que ele se sinta vivo. Afirma poder, com isso, ser os personagens que encarna. Lacan (1979/2003) formulará ao final de seu ensino que ser falante não é, mas tem e fala com seu corpo; tem um evento corporal, isto é, o sintoma. A gente o tem, e “Ter é poder fazer alguma coisa com” (LACAN, 1979/2003, p. 562). Mukunda e os lobos põem seus corpos em cena. Interpretam, sorriem, matam e morrem. Porque no parecer-real sobre o qual se erige um mundo-dentro-do-apartamento, isso se pode fazer. Para Lacan, o imaginário é o corpo, que se introduz justamente como imagem (MILLER, 2015). Aqui, tal registro ganha tonalidade sobretudo na afinidade dos irmãos com os filmes de Tarantino, que, além de ofertarem muitos personagens que a irmandade pode ser e encenar, sempre retratam a selvageria da civilização.

 

Ademais, o espectador notará que mesmo antes de The Wolfpack (2015), a câmera já não era estranha aos Angulo. Veem-se as filmagens caseiras da família em que as crianças se assemelham a autômatos, corpos inertes à deriva dos caprichos de seu diretor todo-poderoso. O close em suas faces, posicionadas rentes ao rosto do pai, parece figurar o seu duplo especular. A câmera e a televisão são os objetos de fascínio nessa família; recursos que permitem a projeção e a captura da imagem e o emparelhamento do gozo escópico em curto-circuito. Para Metz (1980), se no cinema, o espectador identifica-se consigo mesmo enquanto olhar, pura percepção, ele também se identifica com a câmera, que, antes dele, olhou aquilo que ele vê agora. Para o autor, nós mantemos verdadeiras relações de objeto com o filme e, em Lacan (1971/2009), é o objeto a a preencher – enquanto olhar, seio, voz e excrementos – o local do mais-de-gozar. Mas através dessas filmagens, os membros da família não veem senão a si mesmos, aproximando-se o filme mais do imaginário que do simbólico. Sobretudo porque o olhar dos irmãos é controlado pelo pai onipotente, quem, por sua vez, se refugia do olhar do Outro. O clã só assiste aos filmes e ao outro lado da janela. Tamanho é o controle, que Mukunda lembra-se de seus quinze anos, quando o pai detinha as chaves da casa e, mais ainda, ditava os cômodos em que o garoto poderia ou não estar. Os irmãos chegam a se descrever como trabalhadores de uma terra da qual o pai é o senhor; veem-se prisioneiros de seu delírio tribal. Segundo Mukunda, “é difícil não poder querer sair dessa caixa”.

 

As imposições excessivas atingiam o insuportável. Certo dia, pela manhã, ainda aos 15 anos, Mukunda se levantou, vestiu-se de preto, respirou fundo, colocou uma máscara e partiu para a rua. Afirma que sentiu uma urgência de sair e não ser reconhecido por ninguém – nem mesmo Oscar. Algo aí se assemelha a uma cena na qual o jovem, trajando uma bela armadura do Batman, confeccionada por ele próprio com caixas de cereal e tapete de yoga, argumenta que interpretar o herói é muito pessoal, uma grande responsabilidade. Após haver assistido a Batman: The Dark Knight, Mukunda fala que passou a acreditar que algo era possível de acontecer. A experiência o fez sentir como se estivesse num outro mundo, o qual ele fez de tudo para tornar realidade, podendo, assim, escapar de seu próprio. Sendo um super-herói de identidade secreta, o garoto consegue, à maneira de sua fuga e num só tempo, vigiar e permanecer invisível. Como justiceiro e combatente do crime, ele parece encarnar em si uma lei que faz anteparo aos excessos do pai.

 

“Entrar na mente” de Bruce Wayne abre caminho, no sentido de que agora Mukunda pode se servir de um olhar o qual, até o momento, foi tão controlado. Emocionado, descreve sua evasão do apartamento e afirma que, após ela, confrontou Oscar lhe dizendo que não mais seguiria suas ordens: “me livrei das amarras e me libertei”. Talvez um passo a mais em direção à cidade; ao salto do homem-morcego que voará livre pela noite de Gotham City.

 

A partir daí a alcateia inicia uma gradual ruptura do isolamento. O documentário mostra os rapazes na praia, no parque e no cinema. Surpreendentemente, Mukunda chega a contar como procurou e conseguiu um emprego. Mais ainda, já na conclusão de The Wolfpack (2015), diz estar trabalhando num filme próprio, a ser mostrado nos créditos finais. É a história de um homem que, de sua poltrona, assiste aos sentimentos que passam do outro lado da janela. Cada afeto é interpretado por um irmão: raiva, tristeza e felicidade. O jovem descreve sua produção ressaltando que “tudo era, praticamente, medo. O medo foi colocado. Eu ainda tenho medo”. Mas ainda que o tenha, Mukunda coloca. Eis a novidade: ele introduz algo de seu. Se num primeiro tempo os filmes trazidos pelo pai eram fielmente reproduzidos, agora se inaugura um lugar de criação, em que Mukunda é agente. Ele coloca numa obra sua própria história: a de um menino que, do apartamento, apenas via passar em sua frente o mundo-lá-fora. Essa solução deslinda extraordinária metalinguagem: há um filme sobre a vida dos Angulo, o documentário, que, por sua vez, desfecha com outro filme: o dos sentimentos na tela. E isso passa pelo Outro social, porque circula na cultura introduzindo os Irmãos Lobo (2015) na instituição-cinema. Tal fenômeno convida-nos a pôr em cena a noção de escabelo. Para Miller (2015), essa palavra, que é do século XXI, tempo do falasser, pode ser entendida como um pedestal sobre o qual o ser falante se ergue para elevar a si mesmo à dignidade da Coisa. “O que chamamos de cultura não é nada além da reserva dos escabelos na qual se vai buscar com o que esticar o colarinho e bancar o glorioso” (MILLER, 2015, p.129). Traçando um paralelo entre escabelo e sinthoma, Miller (2015) situará o primeiro no nível do gozo da fala, que inclui o sentido e é sustentáculo dos ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo. O segundo já diz respeito ao corpo, relacionado a um gozo que, noutra via, exclui o sentido. O que deixa Lacan (1979/2003) perplexo em Joyce é que este, além de haver gozado com Finnegan’s Wake, o publicou, deixando toda a literatura com o flanco à mostra. É a façanha de Joyce que fez convergir sintoma e escabelo; fez do próprio sintoma, fora de sentido e ininteligível, o escabelo de sua arte (MILLER, 2015). Joyce se consuma como sintoma; é sintomatologia; um fabricante de escabelo que fez arte com o gozo opaco do sintoma (MILLER, 2015), e o fez sem recorrer à experiência de uma análise (LACAN, 1979/2003). “[…] a ironia do ininteligível é o escabelo de que alguém se mostra mestre” (LACAN, 1979/2003, p. 566).

 

The Wolfpack (2015) é riquíssimo nesse aspecto. De um lado, o “primeiríssimo” Lacan (1938/2003) argumentará que a conservação e progresso humanos, por serem indissociáveis da comunicação, delimitam uma obra coletiva que constitui a própria cultura e “introduz uma nova dimensão na realidade social e na vida psíquica. Essa dimensão especifica a família humana, bem como, aliás, todos os fenômenos sociais no homem” (LACAN, 1938/2003, p. 29). De outro, temos os Angulo, submetidos a esse sistema paranoico que os isola e prefigura uma horda de iguais. Nesse setting, está o percurso de Mukunda: prisioneiro de um capricho delirante, ele não deixa de sentir medo. Mas para sair de sua caixa, deve colocar isso em algum lugar. Talvez esteja aí sua sublimação; seu savoir-faire com esse gozo opaco, sem sentido, através do qual o jovem lobo faz algum enlace com o “mundo-lá-fora” para então deixar na cultura seu escabelo; sua marca radicalmente singular. Afinal, sabemos de Lacan (1949/1998) que não só a análise pode levar o sujeito ao limite extático do tu és isto, em que se revela para ele a cifra de seu destino mortal; momento em que começa a verdadeira viagem.

 


Referências
BROUSSE, M.-H. Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho. In: Opção Lacaniana online nova série, n. 15, p. 1-17, nov. 2014. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_15/Corpos_lacanianos.pdf>. Acesso em jun. 2017.
FREUD, S. (1911/1996). “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides).” In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 12, p. 13-89.
LACAN, J. (1938/2003). Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J (1949/1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1959/1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1971). De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
LACAN, J. (1979/2003). Joyce, o Sintoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
METZ, C. O significante imaginário – Psicanálise e Cinema. Livros Horizonte: Lisboa, 1980.
MILLER, J.-A. “O INCONSCIENTE E O CORPO FALANTE”. In: O osso de uma análise + o inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. p. 115-138.
The Wolfpack. Direção: Crystal Moselle. Estados Unidos, 2015 (1h29min), cor.

GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR
GABRIEL SILVA MEDEIROS Acadêmico de Psicologia das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros (FIPMoc) e aluno do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental (NIPSM). gabrielsmedeiros@hotmail.com
ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIO Psicólogo, Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Hospital Universitário Clemente de Faria/ Universidade Estadual de Montes Claros (HUCF/Unimontes), foi aluno do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental (NIPSM). robertopiresjr@yahoo.com.