NÚBIA APARECIDA FERREIRA DE MELO
“O SUJEITO DO GOZO” NA PSICOSE
A foraclusão generalizada e as psicoses ordinárias, tema do quarto módulo do curso de psicanálise, realçaram os desenvolvimentos posteriores de Lacan no que concerne aos estudos e tratamento da psicose.
Se no Seminário. Livro 3: As Psicoses (1955-1956), bem como em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” ([1958] 1998, p.537-590), Lacan enfatiza o registro simbólico e a ausência de seus índices: Nome do Pai e significação fálica – recursos para representar a falta a ser e o gozo que se perde – como elementos balizadores da psicose extraordinária ou desencadeada, algo de novo se põe quando um modo diferente de entrar na psicose se apresenta.
Neste texto, o objetivo não é enveredar por toda a teorização acerca do primeiro e segundo ensino de Lacan sobre as psicoses, ainda que o elemento que nos interessa situar, o sujeito do gozo, derive da passagem de um ensino ao outro. É quando se formula que o sujeito da psicose não é o sujeito do significante, mas sim o sujeito do gozo. E que a clínica da psicose vai tratar da solução de gozo e não do significante.
Dois eventos realizados na França, entre 1996 e 1999, “A Conversação de Arcachon”, com “Os casos raros e inclassificáveis da clínica psicanalítica”, seguida da “A Convenção de Antibes”, que resultou no livro A Psicose Ordinária, são formalizadores de casos atípicos de psicose que requerem um manejo outro do gozo não localizado, que ataca o ser do sujeito. Os casos são centrados em uma experiência que devemos entender como confrontação a um gozo do Outro, que o sujeito sente como totalmente enigmático, não lhe atribuindo outro lugar senão o de objeto, colocando-o em perigo extremo.
Trata-se do real difícil de simbolizar que pode ocasionar passagens ao ato, como suicídios e assassinatos, ou formas inusitadas de tentar localizar o gozo: cortes no corpo, escarificação, tatuagem, uso de drogas e outros. Tudo são maneiras de tentar extrair o objeto que fica no corpo, num excesso, alcançando alguma pacificação do gozo desregulado – daí a formulação de que o psicótico traz seu objeto no bolso, colado ao corpo.
Miller (2011), no seu texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, menciona que esta psicose também poderia ser nomeada como comum. Trata-se apenas de um termo, um significante, e não um conceito. No entanto, por se apresentar discretamente, por desligamentos sucessivos do Outro, tornando difícil precisar o diagnóstico, requer tomar em consideração a polaridade entre “sujeito do gozo” e “sujeito do significante”, orientando a clínica pela questão do real e do aparelhamento do gozo, o que traria mais perspectivas para alguns tratamentos na atualidade. Miller afirma ainda que Lacan insiste nesta mudança de perspectiva, uma vez que passa a dar todo o lugar à clínica “borromeana”, contemporânea dos Seminários RSI e O Sinthoma, sem se desconsiderar a clínica estrutural que distingue entre neurose e psicose, em função da presença ou ausência do operador que é o Nome do Pai.
É também num outro texto, “La Verdad Mentirosa” ([2009]2011, p.146), que Miller vai mencionar que é somente quando se considera que a finalidade do aparato significante é o gozo, incluindo aí o real, que Lacan escreveu – a pedido seu, na primeira tradução francesa das Memórias do Presidente Schreber – “el sujeto del gozo”. E “si no lo repitió, fue porque no se sostenía”.
Miller segue comentando que foram necessários mais dez anos para se apresentar o parlêtre como o ser que fala de seu gozo, gozo este que é a razão última de seus ditos.
O que se encontra na “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos” (Outros Escritos, 1966/2003, p.219-223)? Lacan retoma a importância do texto de Schreber em Freud dizendo que “a liberdade que Freud se deu aí foi simplesmente aquela, (…), de introduzir o sujeito como tal…”. Ou seja, que não se trata de avaliar o louco em termos de déficit, ou de que lhe falta algo que se precisa recompor. E prossegue, sobre o mesmo texto:
“A temática que avaliamos pela paciência exigida pelo terreno em que temos de fazê-la ouvida, na polaridade – a mais recente promovida – do sujeito do gozo e do sujeito que o significante representa para um significante que é sempre outro, não estará nisso o que nos permitirá uma definição mais precisa da paranoia como identificando o gozo no lugar do Outro como tal”? (LACAN, 2003, p.221).
O que se torna elucidado, a partir do que se coloca, é que a clínica borromeana interroga o que pode manter ligados, ou fazer ficarem juntos os três registros da estrutura: Real, Simbólico e Imaginário, acolhendo outras soluções e invenções para além do Nome do Pai. Cada um pode fazer o seu sinthoma que amarra. Há psicóticos que fazem isso, e foi o que Lacan procurou demonstrar com Joyce, caso paradigmático de uma amarração do sujeito com sua escrita – não estava delirando –, levando-o à formulação de “Joyce, o sinthoma”. Schreber, sem narcisismo, faz uma construção delirante: “Ser uma mulher copulada por Deus” e tudo que vai construir, delirantemente, é para amarrar isso.
No livro A Psicose Ordinária (2012) menciona-se a posição ética do psicótico, tantas vezes ressaltada por Lacan em expressões como “escolha da liberdade”, ou “insondável decisão do ser” etc., nos seguintes termos: “o psicótico é aquele que se recusa a trocar o gozo pela significação” (MILLER, 2012, p. 56).
Daí ser necessária uma outra lógica na direção do tratamento que leve em conta a relação do sujeito psicótico com lalíngua e não com a articulação significante. As amarrações que um sujeito psicótico faz não precisam ter, necessariamente, um sentido. São construções ou produções que funcionam como um Nome do Pai para o sujeito, e o estabilizam ou religam ao Outro.
Sujeito do gozo, portanto, vem indicar a posição do sujeito como resposta do real e como escolha segundo o modo de gozo.
Para concluir, faremos um breve relato sobre o documentário “A Céu Aberto” (2014), de Mariana Otero, cineasta francesa, no que ele revela algo do sujeito tomado pelo gozo desregrado.
Otero, interessada no enigma da loucura, escolhe entre as instituições o “Le Courtil”, na fronteira entre a França e a Bélgica, um espaço que acolhe crianças autistas e psicóticas, para a sua produção. Com uma câmera amarrada ao corpo, deixando livres suas mãos para interagir com os internos, filma cento e oitenta horas, em 2012, o que foi essa experiência, lançada entre 2013 e 2014.
Comentando a respeito de seu trabalho, a cineasta dirá que não encontrou ali a loucura, mas sim o modo singular, a língua própria de cada um, diferente da língua da maioria das pessoas.
“A céu aberto” é o que Lacan formula sobre o inconsciente do psicótico, no Seminário, Livro 3, As Psicoses. O inconsciente exposto, sem nenhuma censura. “Esquisitices” ditas, sem nenhum pudor, marca do que perturba a relação do sujeito com a realidade, tal como a paciente dele que diz numa sessão: “Eu venho do salsicheiro” (LACAN, 1985, p.60).
A cineasta mesmo parece ter-se constituído, com sua presença discreta e sua câmera-olhar, um Outro ao qual as crianças podiam se enlaçar. Um objeto fora do gozo de seus corpos, algo a que se endereçar. Amina, que não utilizava as palavras com clareza, interessa-se pela câmera e por quem está por detrás dela. Pergunta: “o que é isso”? Otero responde: “a câmera”. E isto, referindo-se a Otero. “Sou eu, Amina, Mariana. Você me conhece”! A criança prossegue dizendo que vai querer uma câmera como a dela, quando crescer. Perguntada sobre o que faria, a criança responde que vai filmar lá fora, o céu, as aves…
Alysson, uma menina de 12 anos, completamente invadida pelo gozo sexual, não para quieta com suas mãos, inclusive sobre os genitais, o que se acentua quando perto de algum menino. Com um gomo de mexerica na boca, balança-se freneticamente e diz “estou chupando”. Em outro momento, chega a gritar “sexo”. No jardim começa a se interessar por minhocas e outras coisas que desenterra. Vai convocar o olhar da cineasta, mostrando para a câmera a minhoca que desliza na palma de sua mão. Em outra cena, Alysson a convoca, colocando-se em três lugares diferentes com a pergunta: “e aqui”? Ao que Mariana responde: “eu te vejo”, “também te vejo”, “vejo também”, a cada uma de suas posições. Constituição de um corpo para Alysson, cujo diagnóstico é de esquizofrenia, psicose em que o gozo retorna no próprio corpo? O documentário termina com Alysson pegando uma trilha no campo por onde corre e chama: “venha, Mariana, por aqui”, sempre convocando esse olhar para si.
Jean-Hughes, um dos mais velhos, 14-15 anos, fala, delira e pensa sem cessar. Sabemos quanto o Outro do psicótico é tomado como mau, abusador e invasivo. Otero consegue se fazer o Outro dócil que apenas acompanha o psicótico, como sugere Miller. Jean-Hughes a recebe em seu quarto e faz uma apresentação minuciosa de seus objetos. Aliás, é sempre ele que a convida com “bom-dia”, “olá”, ou até mesmo fazendo passinhos de dança em frente à sua câmera. Ela nunca o invade. Soube manter a distância que o autista estabelece do Outro insuportável para si. Como Otero pôde funcionar assim, com tanta sensibilidade, não sendo uma profissional com conhecimento do manejo delicado que requer a clínica da psicose? Operava com o mesmo cuidado de cada um dos interventores e demais profissionais do Le Courtil: Véronique Mariage, Dominique Holveoet, Marie Brémant e outros. Todos mergulhados no mundo da singularidade dessas crianças e adolescentes, propiciando e acompanhando as invenções que pudessem constituir alguma borda entre o corpo e a linguagem.
Alvarenga, em seu texto “Psicoses Freudianas e Lacanianas”, propõe que “aquele que acompanha o sujeito psicótico na sua experiência enigmática opera, ao contrário do que faz na clínica da neurose, com o mínimo de enigma possível, tentando, de alguma forma, reatar a pulsão à cadeia significante” (ALVARENGA, 2000, p.43).
Com Alysson, a direção do tratamento foi ocupar suas mãos, que já se ocupavam da terra, com as massas de bolo. Deu para observar sua hesitação quando Marie lhe disse: “Agora terá de misturar”. Era comum a menina ter dificuldade para prosseguir, queixando-se de dor na barriga, ou na cabeça, nesses momentos em que a finalidade era que o sujeito pudesse ceder um pouco da carga de gozo que afeta seu corpo.
Evanne, de 8 anos, roda até cair. Possivelmente, uma representação de suas crises epilépticas, em que cai e se debate. Numa oficina de música, Dominique propõe ao violonista que faça pausa na música e interponha algumas perguntas que a criança tenha que responder, parando-a um pouco em seu gozo de rodopiar incessantemente. A canção dizia: “vovó foi à padaria e o que comprou?” A criança para e responde: “baguete”. “Quanto custou”? Nova parada nos rodopios e um valor: “três euros”. Logo após, a brincadeira se interrompe com uma fala da criança: “fiz cocô”. Um esforço para perder, ou esvaziar o gozo que o invade.
Jean-Hughes delirava, mas também desenhava e tentava falar do gozo invasivo, na escuta atenta de Marie que se assenta com ele em seu quarto, dizendo “não posso deixá-lo assim”. Ele que gritava para os italianos o deixarem em paz, diz: “Não aguento viver desse jeito, falando sem parar e com tudo isso dentro da minha cabeça”. Marie lhe diz que vai ficar ali e que não precisa falar. Segue-se uma conversa em que o orienta sobre como pinçar e não raspar os pelos da sobrancelha que o incomodam, pois demorariam mais para crescer. Jean lembra que já fez isso com seu pai uma vez, e vai ficando visivelmente apaziguado.
O tratamento conduzido nessa instituição vai constituindo um “novo céu” para as crianças e jovens em tratamento, não as deixando à deriva do gozo em seus corpos, que expõe o inconsciente “a céu aberto”.