O Valor De Uma Aposta: Tecendo A Rede Nas Instituições De Saúde

ALINE AGUIAR MENDES

 

 

ALINE 

Este texto resulta da apresentação do dia 30 de agosto de 2017, na noite do CIEN, que teve como mote o CIEN e as instituições. Contamos com a presença de Philippe Lacadée, que realizou uma intervenção com base em nossa experiência.

 

O laboratório Tecendo a Rede (TaR) trabalha com a construção do caso clínico por meio da conversação com equipes de saúde e saúde mental no campo da infância e da adolescência. Dois pilares sustentam nossa prática, quais sejam, a presença de um aluno, aprendiz na equipe – que denominamos AT não somente por sua função de Acompanhante Terapêutico, mas também, e mais fundamentalmente, como veremos, por sua função de colocar a equipe a trabalho – e a construção do caso clínico, por meio da conversação com as equipes.

 

O aluno aprendiz inicia seu trabalho com a condução de um caso escolhido pela equipe na função de acompanhante terapêutico dentro e fora da instituição.

 

O caso encaminhado ao aluno deverá, necessariamente, ser construído em, pelo menos, três conversações com a equipe. Nas conversações, são expostos o percurso do paciente na instituição e sua história de vida e clínica (quando surgiram os sintomas, os tratamentos realizados), bem como são discutidos livremente os pontos de impasse.

 

Essa prática nos propiciou elaborar o que se tornou um achado: a equipe não existe previamente a um caso, ao contrário, é a construção do caso que faz existir uma equipe ou, melhor dizendo, o que chamamos de ‘efeito-equipe’. A construção do caso clínico, ao implicar os profissionais, faz existir uma equipe, fazendo valer que, ali, há sujeitos concernidos pelo caso, o que é distinto de uma equipe composta, por exemplo, pelos profissionais designados burocraticamente pela instituição. Além disso, não se pode entender o efeito-equipe como o estabelecimento de uma unidade, de uma equipe coesa em torno do caso, tampouco que implique todos os profissionais, mas que um ou mais profissionais, ao serem tocados, cada um ao seu modo, pelo impasse, se tornem um aprendiz do caso, o que reorienta suas intervenções, antes dirigidas pelos significantes mestres normatizantes da instituição.

 

Nessa perspectiva, estamos alinhados com o projeto do CIEN como o que

 

consiste em abordar a nova situação da criança nos discursos, ou seja, nos vários discursos que se encarregam dela: a escola, os dispositivos assistenciais, a família, a língua que lhe dá seu lugar, o direito. (…) Mas de forma a localizar o que separa a criança de um discurso da palavra especializada[i] (LAURENT, 2017, p. 37).

 

Assim como experimentamos em nossa prática, a conversação no CIEN não é uma conversa livre. Ela se pauta por um impasse que deve ser localizado pelos participantes e possui um fim, um objetivo, que não é o alívio de um mal-estar. A conversação visa a introduzir a dimensão da causalidade psíquica nos campos em que esta é extirpada para que não sejam reproduzidas práticas segregatórias nem de controle. O encontro com a opacidade do discurso, com o que não se sabe, com o que não vai bem, permite o desajuste das identificações que mortificam os sujeitos. Isso propicia que o sopro de vida se faça presente na invenção testemunhada pelos laboratórios do CIEN.

 

Nessa perspectiva, apresentaremos uma de nossas experiências em parceria com o laboratório Janela da Escuta[ii].

 

Conversação sobre o caso Rocha[iii]: sobre o truco! o valor de uma aposta

 

Dividimos nosso relato das conversações para a construção do caso clínico em três momentos: 1a e 2ª conversações: tempo de ver; 3a conversação: tempo de escutar-se; e 4a conversação: do que resta a construir.

 

1ª e 2ª conversações: tempo de ver

Na primeira conversação para a construção do caso, Rocha é apresentado como um adolescente encaminhado ao Janela da Escuta em função de seu quadro clínico de hipertensão e obesidade e também por sua difícil inserção na escola, que o expulsa reiteradamente e chama pela mãe, para que esta responda por suas atitudes. No entanto, ao longo da conversação, o que se apresenta como impasse em seu tratamento é a relação do jovem com sua mãe. Desse modo, durante a 1ª conversação, começa a se delinear um outro caso, distinto daquele para o qual fomos inicialmente apresentados. Rocha é apresentado pela equipe como um adolescente cuja imagem reflete a imagem da mãe: vestiam roupas parecidas, ambos estavam obesos e a ginecomastia de Rocha acentuava, ainda mais, a semelhança entre mãe e filho.

 

O que é relatado pela equipe no percurso de Rocha no Janela da Escuta

 

Rocha e Lúcia encontram o Janela da Escuta quando o rapaz contava doze anos de idade. O acompanhamento clínico pela hebiatra do adolescente estava atento ao quadro de obesidade, associado à hipertensão, e exerceu, até a construção do caso, função de escuta do jovem. A psiquiatria procura intervir frente às respostas impulsivas e agressivas apresentadas por ele. Além disso, Rocha participa da oficina que acontece semanalmente no serviço, a Arte na Espera[iv], na qual consegue estabelecer importante vínculo com os pares, com o serviço e com uma produção de saber.

 

Nas consultas médicas, endereçava seus embaraços na relação com seu próprio corpo. Por vezes solicitava para não ser pesado e medido nos atendimentos, no que era respeitado. Além disso, entrava e saía várias vezes, interrompendo e recomeçando a consulta. Rocha, certa vez, relata a sua médica a repercussão que o filme Malévola exerce sobre ele, dizendo: “A Malévola perdeu suas asas e lutou para retomá-las. Também quero ser livre”. Nesses atendimentos clínicos, a mãe parecia se presentificar muito, participando ativamente dos atendimentos, ora entrando com filho, ora se apresentando ao final, quase sempre para se queixar dele. Num jogo de escrever e soletrar palavras, realizado com a médica, Rocha interroga: “Mãe, onde coloca o assento?”

 

No Janela da Escuta, outro espaço é ofertado a Lúcia, para dizer do mal-estar em sua relação com Rocha. A psicóloga que a atende no Janela da Escuta relata que o trabalho de escuta da mãe permitiu a ela que investisse em seu próprio corpo, tornando-o mais feminino. A mãe coloca Rocha num lugar próximo ao pior do pai: “vagabundo como o pai (…) homem debaixo da asa da mãe…”. E, ainda, a psicóloga relata que mãe e filho dormem juntos, trocam segredos e que ele lhe mostra suas ereções. Ela teme que um dia ele a mate ou a estupre.

 

Ainda nesse primeiro encontro para a construção, ante o relato apresentado, buscou-se demarcar o ponto a partir do qual o estagiário poderia operar. A equipe do Janela da Escuta debruça-se, então, sobre os impasses na relação de Rocha com a escola. Em dois encontros realizados com a escola, os professores alegam que não é possível uma intervenção específica destinada a Rocha, pois eles priorizam casos “mais graves que o de Rocha”. Nada poderia ser ofertado a Rocha, já que ele não era grave o suficiente nem “normal” como outros alunos. A direção da escola passou a comunicar cada vez mais que o jovem não poderia continuar ali, por qualquer motivo, como soltar um pum.

 

Na segunda conversação, que fazemos para recolher os efeitos da primeira conversação para construção do caso, a equipe do Janela da Escuta relata que viabiliza a doação de um fogão para a nova casa de Lúcia e Rocha, tendo em vista que só recentemente passam a ter sua própria casa. Esse passo representava, para Lúcia, uma importante separação de sua própria mãe, que a humilhava constantemente. A esse ato, Lúcia responde: “eu e o Rocha, a gente está fazendo tanta comida, tanta comida… estamos comendo até. A gente está fazendo tanta comida gostosa, porque, lá na minha casa, eu não posso fazer comida. Agora eu tenho minhas coisas”.

 

Com base nas falas que foram se decantando na construção, cernimos uma outra fala do paciente a sua médica: “quero cortar minhas mamas com faca”. Embora houvesse um avanço reconhecido, a partir do tratamento de Rocha com sua médica e, por outro lado, uma evolução no tratamento da mãe, no tocante a seu lugar como mulher e como mãe, persistia, na fala da equipe, o modo como a mãe era convocada a responder pelos atos de Rocha, tanto na escola quanto no serviço. Foi o que pontuamos como um impasse do caso. Durante as reuniões, escutamos como mãe e filho dormem, comem e engordam juntos.

 

O modo como o Outro materno olha e manipula o corpo de Rocha e o horror que esse filho ocupa no discurso de Lúcia nos orientam a oferecer um lugar de escuta distinto, no qual o olhar do Outro possa estar suspenso. Ao cernimos essa lógica do caso, a médica de referência afirma que é preciso introduzir um outro agente, além dela, na referência do caso e assinala que não se trata apenas dos impasses de Rocha, mas, na verdade, são três os casos a serem considerados: o caso Rocha, o caso Lúcia e o caso da própria equipe. Desde então, a estagiária passou a atender Rocha semanalmente.

 

3ª conversação: tempo de escutar-se

 

Nessa conversação para a construção do caso, iniciamos com uma apresentação/leitura, projetada em slide, das falas dos técnicos sobre o que se decantou da conversação. É muito interessante porque permite que cada um da equipe, ao ler suas falas projetadas, escute a própria voz: o que disseram, como se posicionam frente ao caso. Recolhemos momentos de surpresa dos profissionais e também uma possibilidade de a palavra circular sem se repousar em um mestre.

 

A relação mãe-criança é um ponto fundamental, e sua relação com o modo como a equipe vinha trabalhando é salientado como um ponto de impasse da equipe. A coordenadora do serviço pontua: “Sem dúvida, quando você coloca assim, ele repete uma coisa assim da relação com a mãe, na relação com a sua médica”.

 

Outros pontos são trabalhados sobre como intervir com a escola e também sobre o horror com o qual Rocha muitas vezes se apresenta, como nos diz a coordenadora da oficina Arte na Espera: “Tem um pior aí, sabe, assim, nos vídeos… ou são histórias de terror, que ele quer horrorizar… aí os meninos dão um chega para lá nele, aí ele para”.

 

Nessa conversação, a estagiária também narra os atendimentos com Rocha. Nas primeiras entrevistas, Rocha, por vezes, demorava a ir ao atendimento, necessitando que a estagiária insistisse e sustentasse o seu desejo de escutá-lo. Jogar truco viabilizou o laço transferencial, na medida em que se trata de um significante do sujeito, o qual demarcava um lugar no qual Rocha sabe transitar. E, mais, o truco se tornou um significante a partir do qual a estagiária transmitia sua aposta no sujeito: “truco que você não tem nada a dizer”, ou “truco que você só quer ficar em casa dormindo”.

 

Na construção do caso, o manejo dos jovens (participantes das oficinas) com Rocha foi se desvelando, como a direção do tratamento: pontuar os excessos sem se horrorizar, o que mantêm o laço e permite a Rocha experimentar outras posições. Ele passa, daquele que assusta o outro tentando ‘sujá-lo’ de tinta, àquele que faz artes no corpo do outro, ‘maravilhas’, como diz uma das oficineiras. Dessa forma, a oficineira joga truco com ele e, ao não se horrorizar diante de uma ação intempestiva do jovem tentando ‘sujá-la’, legitima tal movimento como um ato subjetivo. Portanto, “o caso não pode ser tomado no horror”. O truco aparece como a invenção desse sujeito, acolhida pela equipe, que rompe com a palavra especializada: ele pode passar a trucar a palavra do Outro que o nomeia no lugar do pior, como a escola fazia.

 

4ª conversação: sobre o que resta a construir…

 

Nessa conversação, a estagiária fala de como estava o processo de seu desligamento do TaR e se faz a apresentação de uma nova estagiária e de uma psicóloga do Janela da Escuta para a continuidade do tratamento. Ela relata para equipe o que Rocha responde sobre continuar indo aos atendimentos: “só se elas souberem jogar truco”.

 

Vários são os impasses que se decantam da construção do caso, que nos lançam, mais uma vez, ao trabalho. Nessa perspectiva, nos perguntamos se um dos efeitos da conversação foi a escuta do significante truco, que pode romper com a palavra especializada que mortifica o sujeito, e se esse significante poderia propiciar a separação da palavra da mãe.

 

Comentário de Philippe Lacadée[v]:

 

A invenção de vocês é surpreendente: dois pilares fundam a prática exercida. A presença de um aluno aprendiz, na equipe designada AT (Aluno a trabalho), tem a função de colocar a equipe para trabalhar. Isso permite criar o efeito-equipe, visto que a equipe, como Outro, não existe. Existem, assim, os efeitos-equipes, que só existem por causa da proposta de construção do caso. Produzem-se diferentes efeitos-equipes com a construção de caso. Em última instância, esses efeitos-equipes são efeitos de palavra. Tratam-se, portanto, de efeitos de criação, a partir de pontos de impasse.

Sobre o caso que Aline apresenta, é evidente a relação particular do jovem com sua mãe, pois sua imagem reflete a imagem de sua mãe. Ele se veste como ela, ambos são obesos, e a semelhança fica ainda mais facilitada pela particularidade de o jovem apresentar ginecomastia. Além disso, destaca-se a deficiência do rapaz, que permite ao par mãe-filho sobreviverem, já que recebem o BPC (Benefício de Prestação Continuada).

A construção clínica, com base na orientação lacaniana, mostra que vocês foram sensíveis ao fato de que ele tem um problema com o próprio corpo. No curso de uma das consultas, ele faz um jogo de fort-da: entra e sai da sala. E, sobretudo, não demanda mais que o seu corpo seja gozado pelo outro, recusando ser pesado e medido. E, finalmente, apoiando-se em um filme, diz que a personagem Malévola perdeu suas asas e quer recuperá-las. Diz também: “Eu quero ser livre”, o que nos remete à posição do sujeito. Ele quer voar com as próprias asas e, depois de dizer isso, faz um enunciado formidável: pergunta a sua médica: “mãe, onde coloca o assento”? Ele brinca com a homofonia. Acentua o lugar. Destaca o fato de cada um ter um lugar. Observem bem a palavra lugar: certamente é uma surpresa da linguagem, mas, ao mesmo tempo, é o testemunho da posição de gozo. Lacan diz que, nesse momento o analista se torna um leitor. Mais além do acento, o analista lê que, na história entre sua mãe e ele, trata-se de cada um encontrar o seu assento.

A mãe começa a reinvestir em seu corpo, a tornar-se feminina. Ela não é mais somente mãe. Porém, o corpo invisível da criança penetra o corpo da mãe e ela vai aceitar que o filho mostre as ereções. A luz sempre tem um lado obscuro. Nesse momento chega-se, então, à questão do lugar. Que lugar conceder a ele? De que lugar a gente vai operar?

É possível ver que essa criança precisa de ajuda. Em um determinado momento, Lacan propôs apoiar na função do pai como princípio de separação. A equipe do Janela da Escuta, para ajudar a criança a se separar de sua mãe, inventou um novo Nome do Pai: o dom do fogão. Para ajudar a criança a se separar da mãe, apostou–se no fogão, que veio modificar completamente a relação da mãe com a avó. Mãe e filho passam a cozinhar pratos deliciosos. Não se trata mais de comer o segredo do filho, à noite, nem de fazer um único corpo com o filho, menos ainda de engordarem juntos. De um momento a outro, a mãe pode se separar da própria mãe. O que o filho vai fazer diante disso? Pouco tempo depois, o filho vai decidir cortar as próprias mamas. Pode-se perceber, nisso, que há uma passagem na qual ele busca se separar de seu excesso de semelhança com sua mãe.

Na Terceira conversação também tem algo extraordinário: vocês introduzem o significante da repetição. Sem dúvida, ele repete alguma coisa. Ele repete alguma coisa da relação de sua mãe com a de seu médico. Como vocês notaram bem, alguma coisa se deslocou. Ele vai se apresentar de uma maneira completamente diferente a partir do momento em que se separou da repetição de seu corpo com o de sua mãe. Ele vai utilizar os vídeos com histórias de terror para fazer medo. Não se está mais no momento da repetição do corpo com o de sua mãe, pois ele teve acesso a uma outra coisa: o que Lacan chamou de pantomina, ou seja, ele coloca em evidência o fato de poder utilizar o semblante, de fazer medo. Da mesma maneira, ele vai utilizar o jogo do truco. Ele pode fazer isso porque se separou de um excesso de gozo no seu corpo para utilizar, então, o jogo do truco. Ele próprio coloca em ação um jogo baseado sobre a aposta, sobre o blefe. De fato, nesse momento há uma aposta na escuta, mais além do campo do visível que poderiam interessar a medicina que, por sua vez, diz que o corpo é obeso. Vocês deram testemunho de saber trabalhar sob a orientação lacaniana ao escutarem que o corpo não é isso, mas é algo que, para um cada um, se goza. A estagiária diz: “eu truco que você não tem nada a dizer”. Assim, ela apreende que se trata de um significante da transferência. Ela o utiliza na relação com a língua, como se dissesse: “já que é você que se interessa pelo truco, eu te reenvio sua mensagem, mas na forma invertida, e truco que você não tem nada a dizer.”

O jogo do truco é, essencialmente, um jogo, ou seja, um objeto, e isso pode ser a invenção do Rocha, ou seja, sua descoberta. Para que haja uma passagem da descoberta à invenção, é necessário que aconteça um efeito-equipe, que se constrói em torno do objeto carta-truco. O efeito-equipe permite elevar o objeto truco à dignidade de um significante, um significante que não está mais sozinho, porque ele pode gozar de si mesmo. É no momento em que vocês o elevam à dignidade de significante que ocorre a aposta. Se, por exemplo, o fogão pudesse vir como princípio de separação, como interdito do gozo, seria uma aposta sobre o fogão, aposta no pai. Entretanto, com o truco como significante, o que ocorre é uma aposta sobre o par significante: S1-S2. Se truco é um S1– “eu truco que você não tem nada a dizer” –, esse “você não tem nada a dizer” é uma nomeação de sua posição silenciosa, tendo reconhecido o truco como significante da transferência. Então, é possível esperar o que pode vir a ser dito. Não é mais o saber do handicap, mas um saber que será inventado. Por enquanto, o botar medo de Rocha é tomado no âmbito de um acting out, na própria cena da instituição. Ele ainda vai bancar o terror, fora da instituição. Mas não pensem que isso é uma resposta à intervenção “truco que você não tem nada a dizer”. Em relação à questão colocada em seu texto (se “truco” poderia ser uma separação com relação ao dizer da mãe), pode-se dizer que o truco pode ser uma entrada para uma separação possível, apoiada na palavra da estagiária, sim, mas também há a palavra da mãe. Ele pode até entrar na aposta, mas não sem continuar fazendo um pouco horror e medo.

Graças ao significante que vocês inventaram – aluno aprendiz –, significante que consegue enodar a questão do aprendiz como aquele que ensina aos outros, entendo que a aprendizagem só é possível pelo desejo, o que a distingue do adestramento. O aprendiz ensina à equipe que apenas se pode ensinar a partir do que se constrói sob um ponto de não-saber. A aprendizagem pode deslizar o significante do desejo que, nesse caso, é bem ilustrado, com base na maneira como o aprendiz fez a aposta do truco: isso é a pérola, é o desejo.

 


Referências
ALKMIM, W. (org.) VIGANÒ, Carlo. Novas conferências. Belo Horizonte, Scriptum Ed. 2010. 264p.
BRISSET, F.; SANTIAGO, A.; MILLER, J. (orgs.) Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte. Scriptum Ed. 2013.
BROWN, N.; MACÊDO, L.; LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP editora. 2017.
FREUD, S. (1937/1975) “Construções em Análise” In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. RJ. Imago.
LACAN, J. “Apertura de la sección clínica”. 5 de janeiro de 1977. Disponível em: www.ecole-lacanienne.net/wp-content/upload/2016/04/ouverture de la section clinique.pdf.
MENDES, A. O efeito-equipe e a construção do caso clínico. Curitiba, PR: CRV editora. 2015.
[i] LAURENT, E. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual” In: BROWN, N. MACÊDO, L. LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP Editora, 2017 (p. 37-47).
[ii] O laboratório Janela da Escuta, coordenado por Cristiane Cunha, trabalha com o acolhimento de adolescentes e suas famílias, por meio da formação de profissionais em uma prática clínica interdisciplinar orientada pela psicanálise em um ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG.
[iii] Os nomes utilizados na apresentação desse caso são fictícios.
[iv] Oficina de arte que ocorre junto às atividades do Janela da Escuta, coordenada por uma artista. Os adolescentes participam das oficinas enquanto esperam para serem atendidos pelos profissionais.
[v] O comentário de Philippe Lacadée, presente neste texto, foi extraído da conversação clínica realizada no CIEN no dia 30 de agosto de 2017.
[1] Esse texto foi escrito com colaboração de Ângela Maria Resende Vorcaro e Alice Rezende Oliveira, esta última, estagiária do Tecendo a Rede.
[1] LAURENT, E. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual” In: BROWN, N. MACÊDO, L. LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP Editora, 2017 (p. 37-47).
[1] O laboratório Janela da Escuta, coordenado por Cristiane Cunha, trabalha com o acolhimento de adolescentes e suas famílias, por meio da formação de profissionais em uma prática clínica interdisciplinar orientada pela psicanálise em um ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG.
[1] Os nomes utilizados na apresentação desse caso são fictícios.
[1] Oficina de arte que ocorre junto às atividades do Janela da Escuta, coordenada por uma artista. Os adolescentes participam das oficinas enquanto esperam para serem atendidos pelos profissionais.
[1] O comentário de Philippe Lacadée, presente neste texto, foi extraído da conversação clínica realizada no CIEN no dia 30 de agosto de 2017.

ALINE AGUIAR MENDES
Doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do CIEN-Minas. Coordenadora do Tecendo a Rede. Professora da PUC Minas. alineaguiarmendes@yahoo.com.br



O Mundo Do Trabalho E Subjetividade Nas Psicoses: Identificações, Estabilizações E Desencadeamentos

MARIA BERNADETE DE CARVALHO

 

ANA OU LACADE – FOSFOROS

Tempos atrás, mais ou menos entre 2004 e 2008, integrei um grupo interessado pelas questões do mental no trabalho. Nossas pesquisas e reflexões estiveram polarizadas pelas discussões a respeito dos nexos causais entre trabalho e adoecimento mental. Em que medida pode-se estabelecer um vínculo entre o trabalho e o adoecimento?

 

Tratava-se de uma questão que nos chegava dos sindicatos, de instâncias jurídicas, de profissionais de saúde vinculados à clínica com trabalhadores e até da Secretaria de Saúde do Estado. O reconhecimento médico e jurídico de uma relação causal entre um trabalho e certo adoecimento tem implicações em termos de direitos sociais, podendo o trabalhador receber ou não os auxílios previstos por lei. E, numa deformação, o adoecimento vira, muitas vezes, a via de luta, ou melhor, a forma individual de responder a condições degradantes de trabalho.

 

Nesse momento, chamava a atenção o número de trabalhadores afastados por problemas de saúde mental e, marcadamente, em certas atividades laborais, como os teleatendentes, os professores, os trabalhadores da saúde. Sintomas transestruturais, como o alcoolismo, as depressões, as fibromialgias e as perturbações do sono eram e, ainda são, frequentes.

 

Verificava-se também, estatisticamente, que algumas categorias profissionais eram especialmente afetadas por um ou outro desses sintomas, o que fazia pensar que as relações no trabalho e/ou sua organização poderiam estar na causa de certas manifestações sintomáticas, tal como se conseguiu comprovar para o caso de adoecimentos orgânicos, como a silicose.

 

Condições sociais diferentes colocam desafios diferentes à constituição subjetiva, que é de cada um. Mas, capturados pelos discursos sociais, os sujeitos se manifestam, inclusive sintomaticamente, de formas semelhantes, como por meio dos sintomas citados acima, sintomas sociais. A relação desses sintomas com o trabalho não é sem as mediações que são dadas pelas condições subjetivas de cada um. São esses os sintomas ou nomeações do mal-estar que, muitas vezes, nos chegam na clínica e cuja função e sentido vamos, aos poucos, entendendo em cada sujeito.

 

Estávamos, naquele momento, em outro nível de análise em relação ao que agora se coloca quando partimos da psicose.

 

De um modo geral, se o trabalho pode ser degradante, exigente e se constituir como a encarnação do Outro malévolo ou como espaço de realizações, ele é, sobretudo, o local, por excelência, do laço social. Vale retomar o que Freud diz em O mal-estar na civilização e que Nicola Purgato recorta, no seu texto intitulado “A benção do trabalho” (PURGATO, 2017, p. 10):

 

Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade (FREUD, 1930/1996., p. 87-88.).

 

Hoje, mais que nunca, o trabalho é central em nossas vidas, medida do seu valor e mediador de laços sociais. E, como um universal, o trabalho tem a qualidade de estar posto para todos. Ele é parte da condição humana. Desse modo, quando nos fazemos representar pelo trabalho, isso, por si só, nos garante um lugar na comunidade humana. Essa possibilidade é preciosa para todos, mas, na psicose, quando o campo do Outro é especialmente insuportável, as identificações com o trabalho podem oferecer a sensação de ocupar um lugar no mundo e viabilizar estabilizações e trajetórias de vida bastante normais. Alguns casos nos ajudam a avançar, já que isso ocorre de formas singulares.

 

Uma vinheta de Nicola Purgato é exemplar a respeito da estabilização pela identificação ao S1 trabalho, e a transcrevo abaixo:

 

Giuseppe, cinquentão single, há anos trabalha part-time em uma instituição pública, orgulha-se de fazer o seu trabalho, […] porque se sente o único que realmente trabalha e faz a instituição andar pra frente com certo cuidado, uma vez que todos os seus colegas são preguiçosos, só conversam e – por isso – o denigrem. Não há muitos sinais de psicose manifesta nele, embora se possa intuir sua estrutura subjacente […]. O trabalho para ele, por isolá-lo dos outros, o conecta com uma sensação que o mantém, de algum modo, ligado ao Outro (PURGATO, 2017, p. 11).

 

Há algum tempo, acompanhei um jovem, Jota, 30 anos, cuja relação com o trabalho e com os colegas em muito se aproxima à descrição acima. No entanto, ele chegou até mim num momento em que algo na junção com o sentimento de vida se desarranjou e que ele experimentou, repentinamente, uma total ausência de interesse pelo mundo. Tudo ficou cinza, diz ele, indicando um forte recolhimento libidinal.

 

Após uma licença e não sem dificuldades, Jota conseguiu reconstruir seu retorno ao trabalho. Sua explicação para o ocorrido e sua estratégia para o retorno centraram-se no excesso de trabalho: foi porque ele trabalhava demais, assumindo tarefas que eram difíceis para os outros e o lugar de um consultor, que ele terminou por ficar deprimido. Ao lado disso, e penso que mais importante, ele experimentou uma descrença na possibilidade de conseguir fazer o seu setor funcionar direito. Ele relata sobre uma conversa que teve com um diretor, em que este o teria sondado a respeito de como empregar os recursos destinados ao treinamento do pessoal da casa. Nessa conversa, Jota não só descobre a total ignorância do chefe a respeito dos problemas e seu menosprezo pela questão como também se vê colocado numa posição de exceção.

 

Esse relato, a perplexidade que o acompanha e sua desorganização corporal nas ocasiões em que é chamado a se responsabilizar por seu sobrinho, levou-me a trabalhar com a hipótese de que seu desencadeamento se devia à impossibilidade de ocupar esse lugar de exceção. Nesse momento, as solicitações de que era alvo começaram a se tornar invasivas.

 

Seu retorno ao trabalho se construiu sobre a limitação das tarefas de que se encarrega, embora permaneça sendo aquele que, diferente dos colegas, trabalha corretamente. Sua descrença quanto à possibilidade de mudar o funcionamento do mundo introduz um peso em sua relação com o trabalho e ele procura por alternativas. Esse trabalho, no entanto, com a flexibilidade que ele admite, dá um lugar no mundo a esse sujeito, cuja existência é bastante restrita.

 

Muito mais tarde no tratamento, Jota revelará que sua depressão sobreveio no momento em que iniciava um relacionamento com uma colega. Esse relacionamento, único em sua vida, não passou de alguns encontros, pois o estado em que se viu o levou a por um fim na história. Ele diz que, quando entendeu que estava deprimido, telefonou para a moça e falou que não poderia continuar. Aqui, também, o sujeito não pôde ocupar uma posição de exceção.

 

Nicola Purgato (2017, p. 11) chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, não é preciso que o trabalho seja formalizado ou socialmente muito significativo para sustentar uma existência e possibilitar a sensação de um lugar no mundo. Ele dá o exemplo de um jovem desempregado que se incumbe de estudar para descobrir como os políticos e economistas nos enganam. Com isso, ele escreve pequenos artigos para um jornal local, pelos quais nada recebe, mas que, para ele, é o trabalho mais importante para a construção de um mundo melhor. Aqui, também, o significante ‘trabalho’, sozinho, opera de modo a sustentar o sujeito e a dar-lhe um lugar no mundo.

 

Podemos lembrar do caso da Estamira, cuja vida foi alvo de um documentário que está disponível no Youtube. Ela encontrará um lugar no mundo através de um trabalho bastante à margem, o trabalho de catadora no lixão. Ela encontra, nesse trabalho, a oportunidade de construção de um cotidiano e de laços sociais, ao mesmo tempo em que trata seu ser de dejeto, pelo reaproveitamento do que ela aí encontra e que ela compartilha com seus familiares.

 

Já o caso do Homem do Relógio, parece-me exemplar a respeito do recurso às identificações imaginárias pelo trabalho. Trata-se de um caso sobre o qual escrevemos um artigo há tempos (CARVALHO; MACEDO, 2007), investigando tanto as condições de estabilidade quanto o que se revelou insuportável para esse sujeito. A importância do trabalho, para ele, pode ser transmitida pelo trecho abaixo, passagem do depoimento colhido em entrevista por pesquisadores das relações entre trabalho e adoecimento, após o seu desencadeamento:

 

Não gosto de olhar no espelho. Quando eu ia trabalhar, eu gostava. Tinha aquele pensamento bom: “Sou vigia, vou vencer mais este turno”. Mas, agora, não tenho mais esse gosto. Fui à barbearia, tinha um espelho muito grande, e eu fiquei muito aborrecido em ver essa imagem minha. Deu medo de me ver naquele espelho e não poder dizer comigo mesmo: “Eu sou vigia noturno” (LIMA et al, 2002, p. 236).

 

É o trabalho que lhe permite construir uma imagem de si. Isso se reafirma com o seu relato de que, após o desencadeamento, se entrega a devaneios em que se trata de rever, como num filme, todo o ritual de se aprontar, olhar-se no espelho e dirigir-se ao trabalho; não sem marcar seu orgulho em se ver fardado.

 

Trabalhador impecável, esse sujeito que zela por seu bom nome através de recursos imaginários sucumbirá ao encontrar um chefe que quer tudo controlar. Esse chefe, ao mesmo tempo tirano com os empregados e permissivo em seu comportamento, presentifica um Outro abusador, que se tornará mais e mais insuportável para esse sujeito. Esse chefe, com sua presença e seus dispositivos de vigilância, irá desalojá-lo da posição de quem vigia, de quem olha, e transformá-lo no objeto de um olhar invasivo.

 

Esse senhor passa a apresentar sobressaltos, ausências, insegurança, sinais de desorganização corporal que vão de diarreias a dores e tonteiras, além da extrema rigidez na obediência às determinações insanas do chefe. Após seu desligamento do trabalho, ele desenvolve a compulsão de desenhar o relógio que, no trabalho, devia ser acionado de 20 em 20 minutos, para provar que estava desperto. Sem o trabalho e sem o relógio, ele o desenha para poder acioná-lo, o que tem o efeito de acalmá-lo. É interessante que, até com o relógio, ele termine por estabelecer uma relação especular, de rivalidade: quem vigia quem? Quando ele perde seu posto, ele quer manter o trabalho com seu relógio, de quem se tornou amigo. Senão, ele pergunta, “como explicar por que que ele faz falta pra mim?” (LIMA, 2002).

 

Evoco ainda outro caso, que li recentemente no livro da Nieves Soria Dafunchio, Confines de las psicoses (2008). Trata-se de uma jovem que desencadeia aos 19 anos, no momento em que seu pai e sua mãe sofrem quedas e fraturas, um após o outro. Eme, como a chamaremos, cai, como seus pais, e passa por uma internação psiquiátrica, iniciando aí, uma depressão e anorexia radical. Sete anos depois, ela será internada por desnutrição e iniciará o tratamento psicanalítico. Conforme se revelará, para Eme, o alimento e a voz da mãe se sobrepõem, fazendo com que, quando ela come, não tem como não escutar a voz da mãe. Quando ela come, escuta a voz da mãe por dentro. Nieves isola a expressão “não tem como não”. Ela comenta que falta a Eme o “não” do Nome-do-Pai, que permitiria limitar a voz superegoica da mãe.

 

Mas o que me interessou nesse caso, para incluí-lo aqui, é que, para além das intervenções de sua analista, no sentido de deslocar essa sobreposição entre a voz superegoica e o alimento, um trabalho sobre o objeto voz será possibilitado pela escolha profissional de Eme.

 

Atuando junto a um comissariado de proteção de mulheres vítimas de violência familiar, ela produz petições, slogans e textos de divulgação que buscam dar voz aos que não têm voz. Ela se ocupa em dizer pelos que não podem ou não sabem dizer, apropriando-se de sua voz. O reconhecimento de seu trabalho pelos colegas permite a Eme tomar a palavra e ser escutada, no lugar de escutar a voz da mãe. Nesse tratamento, está colocada a possibilidade de que a nominação de Eme pelo trabalho faça suplência ao Nome-do-Pai e se constitua como um suporte para o sujeito.

 

Depois de afirmar a importância do trabalho como forma de inscrição dos sujeitos no Outro e como um campo de soluções para as inclinações do gozo, indo até à suplência do Nome-do-pai, gostaria também de dizer que ele é um contexto fecundo para as interpretações delirantes na paranoia. Facilmente um pedido ou uma observação de um chefe ou colega são interpretados como humilhação, perseguição ou avanço de caráter sexual. Alguns sujeitos conseguem inventar artifícios, por vezes discretos, como horários alternativos, que servem para limitar o gozo do Outro, experimentado como invasivo. São manobras que visam esvaziar a consistência do Outro e diferenciar o sujeito. Aqui, como na clínica com esses sujeitos, o que se viabiliza é o tratamento do Outro.

 


Referências:
CARVALHO, M. B.; MACEDO, L. F. (relat.) “O Homem do relógio”. In: Curinga: a variedade da prática analítica. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, nº 25, nov. 2007, p. 55-59.
DAFUNCHIO, N. S. “Confines entre esquizofrenia y melancolia – el miedo al cuerpo”. In: Confines de las psicoses: teoria e prática. Buenos Aires: Del Bucle, 2008, p. 211-235.
FREUD, S. [1930] “O mal-estar na civilização”. In: Obras completas de Sigmund Freud. ESB. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1996, p. 65-148.
LIMA, M. E. A.; ASSUNÇÃO, A. A.; FRANCISCO, J. M. S.D. “Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho”, In: JACQUES, M. G.; CODO, W. (orgs.). Saúde mental & trabalho: leituras. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 209-246.
PURGATO, N. (2017) “A benção do trabalho”, in Papers nº 2: Desordens, sintomas e sinais discretos: XI Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Disponível em https://congresoamp2018.com/wp-content/uploads/2017/07/PAPERS-7.7.7.-N%C2%B02-Portugu%C3%AAs.pdf. Acesso em: 8 fev. 2018.

MARIA BERNADETE DE CARVALHO
Analista praticante. Membro aderente da EBP-MG. Socióloga. Mestre em Sociologia. Doutora em Psicanálise. bernadetec59@gmail.com



Conter E Contar A Vida Secreta Das Palavras

ADMARDO BONIFÁCIO GOMES JÚNIOR

 

 

ADMARDO – FILME FULL-THE-SECRET-LIFE-OF-WORDS

A vida secreta das palavras, filme dirigido por Isabel Coixet, conta a história de Hanna (Sarah Polley), uma mulher de 30 anos, parcialmente surda, solitária, silenciosa e fechada em seu mundo. Empregada exemplar em uma fábrica têxtil, um dia, no fim de uma jornada de trabalho, é advertida por um colega, que a faz ligar seu aparelho de surdez, pois está sendo chamada, pelo serviço de alto falante, para comparecer à diretoria. Lá, é convencida pelo diretor a tirar um mês de férias. Há pressão do sindicato e dos colegas contra seu padrão excessivamente adequado à produção. Seguindo a sugestão de seu chefe, ela segue de férias a um pequeno povoado costeiro. Antes de sua partida, vemos Hanna em casa, comendo os mesmos nuggets, arroz e meia maçã de sua refeição diária. Na bagagem para a viagem, ela coloca vários sabonetes, todos iguais, como elementos que compõem uma rígida rotina.

 

No local das férias, ela escuta, da conversa de um desconhecido ao telefone, que estão precisando de uma enfermeira para cuidar de um trabalhador acidentado em uma plataforma petrolífera em pleno alto mar, longe da civilização. Decidida do que fazer com o vazio do tempo das férias, ela se oferece para o trabalho.

 

Hanna se expressa pouco. Seu rosto tem sempre a mesma expressão séria, entristecida e concentrada. As poucas palavras que fala denotam uma objetividade quase constrangedora. Aos poucos, descobrimos que Hanna é enfermeira, trabalhou com pacientes queimados e é estrangeira. Mas há muito mais a descobrir.

 

Na plataforma de petróleo desativada devido a um recente acidente, ela encontra seu paciente, Josef (Tim Robbins), um homem que sofreu uma série de queimaduras que o deixaram temporariamente cego e bastante comprometido para uma remoção até um hospital. No primeiro contato entre os dois, Josef, cego, procura, com as palavras, se aproximar de Hanna e criar alguma imagem da mulher que lhe cuida, não sem tentar estabelecer com ela alguma intimidade. Os contatos entre os dois personagens são estabelecidos entre os cuidados medicinais prestados por Hanna e as constantes questões que Josef lhe faz sobre sua vida e seu cotidiano. Ela se restringe às obrigações de enfermeira, sem respostas, sem intimidade, sem nem mesmo dizer seu nome, que Josef tentara adivinhar e acaba por nomeá-la Cora: o nome de uma freira que cuidou de um jovem e que, diante da morte dele, descobre que o amava.

 

Um belo e delicado encontro começa a se estabelecer entre esses dois personagens, no qual a cegueira temporária de Josef, que lhe impõe a necessidade de recriar as imagens de seu mundo com as palavras, se depara com mundo particular de Hanna, um meio mantido sob controle, como que ao alcance do botão de seu aparelho de surdez. Nesse encontro, entre a audição – agora necessária para Hanna – e a fala como único recurso para Josef, imobilizado e cego, as palavras ganham uma inigualável força vital e desvelam segredos. Aos poucos, as frases engraçadas, brincadeiras e piadas que Josef cria no contato com Hanna vão fazendo sua expressão facial mudar, pequenos sorrisos se esboçam e algumas confissões tomam o lugar do silêncio e da rígida defesa.

 

Os então habitantes da plataforma de petróleo são Hanna e Josef, um ganso que se chama Lisa e mais seis homens: Simon, Abdul, Dimitri, Martin, Scott e Liam. Vamos, aos poucos, conhecendo a singular história de cada um desses portadores da vida secreta das palavras. Personagens cujos trabalhos lhes preservam a solidão como forma de viver em paz. Simon é um exímio cozinheiro e diz que, para suportar o tédio do local e não ficar louco, cozinha pratos de diferentes nacionalidades, ao som das músicas de cada país a ser representado na culinária. Martin é oceanógrafo e gosta de jogar basquete sozinho. Seu trabalho é medir, pelas ondas que se chocam contra a plataforma todos os dias, a força do mar. Scott e Liam cuidam da casa de máquinas, têm, cada um, suas famílias e filhos e vivem ali, na plataforma, uma relação amorosa. Abdul trata da limpeza. Delicadamente, Hanna se integra àqueles habitantes exatamente por se sentir confortável em meio a seus inabituais, mas familiares silêncios e palavras, repletos de solidão e lembranças.

 

Dimitri é o encarregado geral e é quem um dia relata, a pedido de Hanna, o acidente que feriu Josef e matou o melhor amigo deste. As palavras de Dimitri sobre a morte do amigo de Josef são:

 

Esse homem queria se matar. Se lançou às chamas. Josef tentou salvá-lo, mas… tudo aconteceu muito rápido. Todos vimos ele se jogando às chamas. Não dissemos à companhia tudo o que se passou. Deixamos que pensassem que foi um acidente. Esse homem deixou uma mulher e dois filhos. Por que dizer a verdade? Deixamos que pensassem que morreu acidentalmente. Isso deixaria dinheiro para a família. E… no fundo… tudo é um acidente.

 

O filme segue. Há muito mais para contar, mas pensemos sobre a função subjetiva do trabalho. O que A vida secreta das palavras nos permite desvelar dessa função? Parece-nos que, se pensarmos o trabalho como “uso de si” (SCHWARTZ, 2000), ele é inteiramente uma reflexão sobre muita coisa do que se passa aí. É um filme em que fica claro que as escolhas possíveis que cada pessoa faz ali, no campo do trabalho, diz muito sobre a dimensão subjetiva de cada uma delas. A diretora Isabel Coixet soube trazer para a história toda a dramática do uso que cada personagem faz ali, de si, na relação com o trabalho. No filme, trabalho e vida não se separam, eles estão na mesma plataforma.

 

Depois que descobrimos alguns dos segredos das palavras que contam a história de Hanna, entendemos melhor o uso que a personagem parece fazer de si na fábrica têxtil. O trabalho ali é o da contenção, na repetição de uma rotina sem muita invenção. A mesma comida todos os dias, o mesmo trabalho repetitivo, quatro anos sem aparente interrupção. Tudo isso indica cumprir uma função. Seu modo sintomático de viver busca amarrar registros por demais disjuntos pelos traumas vividos.

 

A vida secreta das palavras de Hanna na fábrica segue seu rumo, organizado de forma a conter. Manter dentro de si. Sob certo uso. Sem risco de transbordar e inundar a vida de lágrimas. Mas eis que algo interrompe sua surdez também controlada. O eventual, a contingência, o inesperado, o acidental: as férias forçadas que a conduzem ao litoral. No ônibus, a caminho das férias, podemos ver Hanna bordando um pedaço de pano. Nesse novo lugar, o trabalho de bordado é dispensado numa lixeira. Prenúncio de um novo uso de si? Do uso de conter para o uso de contar a vida secreta das palavras? ”Sou enfermeira”, diz Hanna, ao seu vizinho de mesa cuja conversa ela ouvia. É surpreendente a forma decidida com que Hanna se apresenta. Naquele momento, as palavras servem para contar algo de muito importante da sua história. Sou enfermeira. Um significante que a nomeia. Uma palavra que a identifica, e cujo emprego acaba por expô-la ao trabalho de contar sua vida.

 

O trabalho de enfermeira reenvia Hanna a sua vida no ponto em que ela foi paralisada. Onde ela brutalmente foi obrigada a se conter. Uma formação interrompida pela guerra. Uma escolha impedida. Um projeto de uso de si violentamente abortado. Retomar essa atividade, esse uso de seu corpo na função de cuidar do outro, parece ir, aos poucos, permitindo fazer conviver experiências incomunicáveis: o antes e o depois das atrocidades vividas, as marcas indeléveis das torturas sofridas na guerra. Nesse trabalho, um novo uso do corpo, que lhe exige reordenar, com as palavras, as novas experiências do encontro com alguém que lhe demanda cuidado e afeto. Um encontro no qual o amor e a confiança permitem que ela possa dizer, afinal, algo de seu trabalho e de si. Numa manhã, Hanna, ao limpar o corpo de Josef, relata:

 

Quando estudava em Dubrovnik, sempre temia o momento de limpar os pacientes. Sentia-me desconfortável… pensando que eles estavam com vergonha. Mas percebi que as pessoas gostam de estar limpas. Não importa como você os limpa… ou quem limpa, eles gostam de estar nas suas mãos. Gostam de te confiar o seu corpo. Como se dissessem: É apenas o meu corpo. Só um corpo. Você nunca vai saber o que penso realmente, quem sou.

 

Essa é a frase que desencadeia a sequência de palavras que descortinam algumas das doses do horror guardadas em segredo pela personagem. Na cena, Hanna diz dos cortes e cicatrizes que levaram à morte aquela que vivia com ela e que era sua melhor amiga. E ela desnuda seu corpo para que seu paciente, cego, possa tocar e sentir as cicatrizes que o marcam. A última palavra dita nessa sequência responde à pergunta de Josef “Como se chamava a tua amiga?”: “Hanna”, ela responde. Só então Josef pôde saber seu nome. Nesse ato, corpo, história e nome se enlaçam. Amor e trabalho, nesse momento, parecem cumprir mais um passo no caminho da sublimação da pulsão de morte contida e contada nesse corpo.

 

Estaríamos aí frente a um novo uso do trabalho enquanto significante mestre S1, que parece conter a vida da personagem? Podemos pensar que retomar no corpo os gestos do saber-fazer de sua escolha profissional de enfermeira a convoca a contar a vida em um novo uso de si?

 

Lembremos de Freud (1930) em O mal-estar na civilização, da ênfase concedida ao trabalho, da livre escolha, do uso das moções pulsionais, do que a sublimação nesse domínio pode operar. Lembremos de Lacan (1976-1977) ao dizer do savoir y faire para entender que o saber que aí se produz não é da ordem da troca, do sentido, do pensamento, da interpretação. Ele é uso, é emprego, é fazer com. Não é que não possa ser aprendido, mas é que não se deixa apreender no formalismo do ensino, nos programas disciplinares, nas prescrições do trabalho, nas sugestões terapêuticas, etc. Não é um saber da racionalidade orientada pelos conceitos, mas pela dialética desses com a atividade da vida. É um saber que permite lidar com o fato de que, na vida secreta das palavras, como disse o encarregado Dimitri, “tudo é um acidente”. Aberto às contingências, às múltiplas causalidades, às arbitragens, às variações de possibilidades de ordenar as palavras e com elas ampliar os sentidos de seu uso.

 

Ao final do filme, a voz de criança que narra parte da vida de Hanna, a acompanha e a acolhe, pode se fazer mais ausente. Essa presença imaginária que ajuda Hanna a se enlaçar é substituída pela presença real de uma família que ela pôde constituir. O amor dedicado ao marido e às crianças e o trabalho de cuidar, contido no lar, parecem fazer prosseguir a pulsão por um destino mais sublime.

 


Referências: 
A VIDA SECRETA DAS PALAVRAS (La vida secreta de las palabras). Dir.: Isabel Coixet. Distribuído por: Monopole-Pathé. Espanha, Irlanda. Cor, 2005, 115 min.
FREUD, S. (1930/1976). O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. (1976-1977) “O Seminário, Livro 24: Lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra”. In: Obras completas de Lacan em cd-rom.
SCHWARTZ, Y. (2000). “Trabalho e uso de si”. In: Pro-Posições, Vol.1, Nº5 (32), julho.

ADMARDO BONIFÁCIO GOMES JÚNIOR
Pós-doutor pela Fae/UFMG, doutor em Educação Fae/UFMG e em Filosofia pela Aix-Marseille Université. Professor do CEFET-MG. Rua São João Evangelista, 525/101, Santo Antônio – Belo Horizonte – MG admardo.jr@gmail.com 31 9 8557 4281



Entre A Cruz E A Espada: Culpa E Gozo Em Um Caso De Neurose Obsessiva

RODRIGO ALMEIDA

RODRIGO ALMEIDA- GUSTAV KLIMT

O tema do masoquismo aparece na obra de Freud em sua elaboração sobre as perversões, na fundamentação da criança perverso-polimorfa e, posteriormente, em relação aos sintomas neuróticos, em que sadismo e masoquismo só devem ser considerados patologias em casos extremos.

 

Na elaboração da teoria das pulsões, Freud afirma que as pulsões de autoconservação são também pulsões sexuais. Em “As pulsões e seus destinos” (1914), aponta os quatro destinos da pulsão: reversão a seu oposto, retorno ao próprio eu, recalcamento e sublimação. Detendo-se aos dois primeiros, no retorno ao próprio eu, Freud propõe que o sadismo é anterior ao masoquismo e que o masoquismo é um sadismo contra a própria pessoa.

 

“A observação analítica realmente não nos deixa duvidar de que o masoquista partilha da fruição do assalto a que é submetido e de que o exibicionista partilha da fruição de sua exibição. (…) não podemos deixar de observar, contudo, que nesses exemplos o retorno em direção ao eu do indivíduo e a transformação da atividade em passividade convergem ou coincidem.” (FREUD, 1914, p. 132)

 

Notamos, nesse momento de sua construção teórica, que o masoquismo encontra satisfação sexual no sadismo. A mudança da atividade para a passividade faz parte do mecanismo pelo qual a pulsão busca a satisfação.

 

No texto “Uma criança é espancada” (1919), Freud busca esclarecer sobre o masoquismo e faz uma leitura das perversões, argumentando que as fantasias sádicas ou masoquistas podem estar presentes nas neuroses, em que algo de um traço perverso permaneceu. A primeira fase, representada pela frase “meu pai está batendo na criança que eu odeio”, acontece em um período muito precoce, em que o sadismo ou o masoquismo não se define muito bem, visto que aquele que cria a fantasia não é o mesmo que espanca; a segunda, “estou sendo espancada pelo meu pai”, é importante porque mostra um caráter masoquista, em que o que é colocado em evidência são os aspectos psíquicos, e não a dor. Freud nos orienta que o agente de mudança da fantasia é a culpa, esta que aparece com a interdição do incesto. Assim podemos aferir que algo do amor que foi interditado e da culpa estão presentes no masoquismo.

 

Na terceira, “O meu pai está batendo nas crianças, ele só ama a mim”, apesar de sádica, Freud orienta que nessa fantasia a satisfação é masoquista, pois a outra criança nada mais é que a própria criança.

 

Uma nova mudança se dá em 1920, em “Além do princípio do prazer”. Atento ao que percebe como compulsão, a repetição em sua clínica, Freud nota que o que está em jogo não é uma busca pelo prazer, mas algo que se satisfazia ali no ato de repetir uma experiência desprazerosa para o sujeito. Com o dualismo pulsional, pulsão de vida e pulsão de morte, Freud propõe que sadismo e masoquismo estão presentes em todo sujeito.

 

Porém a grande mudança em relação ao masoquismo se confirma em sua elaboração de 1924, “O problema econômico do masoquismo”, em que no par de oposição prazer-dor há um ponto de vista econômico em relação ao princípio do prazer e à ameaça que o masoquismo representa para a vida psíquica. O masoquismo, sempre “enigmático”, aparece agora no que guarda relação com os componentes libidinais em cada indivíduo.

 

Nesse texto, o masoquismo não é mais oriundo de um sadismo. Freud reconhece e nomeia três formas de masoquismo: o primário, o feminino e o moral. Este último permite a Freud avançar em relação aos problemas ligados ao sentimento de culpa. “O masoquismo apresenta-se a nossa observação sob três formas: como condição imposta a excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento” (1924, p. 179).

 

Essa dimensão econômica, colocada aqui de forma mais evidente, nos abre os olhos para a pulsão de morte que, de forma silenciosa, se apresenta nos sintomas do sujeito. O masoquismo é o sinal da presença da pulsão de morte na pulsão de vida.

 

No masoquismo moral, o que vai importar é o sofrimento, já que o verdadeiro masoquista sempre oferece a face, onde quer que a oportunidade se apresente.

 

É o que se pode observar nos fragmentos de um caso clínico que trazemos. João relata situações nas quais o outro sempre se aproveita da sua boa intenção e da sua disponibilidade. Apesar de saber que ao final ele será prejudicado, não consegue negar ao outro que lhe pede. O mal-estar que dizer não ao outro produz em João é que faz com que o sentimento de culpa apareça. Podemos perceber a satisfação que a culpa traz a este sujeito, que na sua estratégia para lidar com o outro abraça o seu sintoma. O que importa é manter o sofrimento.

 

“A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o bastião do indivíduo no lucro que aufere da doença (…) o sofrimento acarretado pelas neuroses é exatamente o fator que as torna valiosas para a tendência masoquista.” (FREUD, 1924, p. 183)

 

Recolhemos outros pontos na fala deste sujeito, que colocam mais luz sobre o seu modo de gozo. O fato de sempre “se colocar em risco”, como deixar o carro em lugar que pode ser roubado ou arriscar-se contratando garotos de programa e indo com eles para lugares desertos, tendo sido por duas vezes espancado e roubado, atesta para o seu modo de masoquismo. É como se apenas ser roubado ou espancado fosse pouco para este sujeito, que está sempre à espreita para que algo pior lhe aconteça. A dimensão mortífera e silenciosa da pulsão aparece como que orientando a sua vida.

 

O outro, que aparece aqui como um abusador, e o sujeito que não sabe sobre o seu próprio gozo nos colocam diante do seu caráter masoquista. Vemos, assim, a prevalência do que Freud nomeia de verdadeiro masoquista, que está sempre pronto para dizer ao outro como abusar dele, e alcançar a punição. O masoquista é quem diz como quer ser espancado, tem a posição ativa mascarada pela passividade, pois é quem procura por aquele que vai lhe infligir a tortura; tortura essa que vá de encontro ao ponto fantasmático do seu sintoma.

 

Lacan (1956), ao retomar Freud em “Uma criança é espancada”, nos aponta a questão da satisfação pulsional. No primeiro momento existe o ódio ao rival espancado pelo pai, o segundo momento é quando, através da fantasia masoquista primordial, o sujeito dá sua entrada no simbólico, onde se coloca na dialética significante. É no terceiro momento que Lacan propõe uma reformulação: bate-se numa criança, acrescentando o índice de indeterminação do sujeito, em que a função paterna surge de maneira vaga. A produção fantasística faz com que qualquer um possa bater, não só o pai. A posição do sujeito será por ele reeditada nos seus sintomas e na sua repetição. Podemos pensar este como o momento em que o sujeito fabrica a sua fantasia.

 

A atualização deste ponto fantasmático é o lugar de onde o sujeito constrói sua relação com o outro. Acreditamos ser importante abordar o sujeito obsessivo e sua relação com o Outro:

 

“Mas aquele que importa é o Outro diante de quem tudo isso se passa. É esse que é preciso preservar a qualquer preço, o lugar onde se registra a façanha, onde se inscreve sua história. (…) O que o obsessivo quer manter acima de tudo, sem dar a impressão disso, com um jeito de quem almeja outra coisa é esse Outro onde as coisas se articulam em termos de significante.” (LACAN, p. 431)

 

Ainda no caso de João, um indicativo dessa importância com o Outro aparece no seu relacionamento amoroso, em que o dinheiro não pode deixar de se apresentar nada pode faltar ao Outro. Diz ele: “quando o dinheiro acaba, o amor voa pela janela”. Com o relacionamento a que ele sempre se refere como “abusivo”, podemos articular várias questões: sua posição de gozo, sua forma de não suportar a falta do Outro e a dimensão da culpa.

 

Durante o seu percurso de análise, João pergunta por que se coloca sempre em risco, por que se deixa abusar. “Deixa?” é a forma com que intervenho na tentativa de implicar o sujeito em seu modo de gozo. Mais adiante, ele passa a falar de situações pontuais no trato com o outro em que se destaca sua própria demanda de ser abusado. Conclui, destes relatos, que ele mesmo busca situações sem saída, como se tivesse entre a cruz e a espada.

 

João se sente culpado de negar o que o outro lhe pede. A necessidade de punição aparece ao se colocar em situações de risco e o sujeito se vê sem saída, a culpa cumpre seu papel, fazendo o desejo ficar subsumido, e a dimensão do gozo aparece no que ela guarda de mais mortífero para este sujeito. A punição está sempre no seu horizonte.

 

Podemos pensar aqui no que concerne à culpa e ao supereu na neurose obsessiva. O supereu desempenha o papel de figura feroz.

 

Como nos orienta Freud em “O mal-estar na civilização”:

 

“O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo deste agente crítico, a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela da pulsão voltada para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego”. (FREUD, 1930, p. 139)

 

Portanto, vemos que a agressividade que é percebida como tensão pelo ego retorna ao próprio ego em razão do supereu. O eu, ao tornar-se masoquista, cria uma relação erótica com o supereu. Esse ponto se apresenta pelo sentimento de culpa, o eu vai usar da culpabilidade para se proteger.

 

Neste fragmento clínico, as relações do obsessivo com a culpa e o gozo estão presentes; a culpa se apresenta de forma silenciosa, advinda dessa satisfação masoquista do eu em que o sujeito está sempre à espera de punição.

 

Outro ponto importante é a relação do obsessivo e seu desejo, no que diz respeito ao Outro, à demanda e ao gozo. Em O seminário, livro 5, Lacan nos fala sobre o obsessivo e seu desejo, denegado pelo sujeito. Para o teórico, essa denegação vai surgir como a expressão do sentimento de culpa. Esta se inscreve, no que concerne ao desejo e à demanda. Como percebemos no obsessivo, a culpa seria o sinal do desejo. Na relação com a demanda que o mata, nada pode ser desejado pelo obsessivo sem que esteja recoberto pela culpa. “O obsessivo resolve a questão do esvaecimento de seu desejo fazendo dele um desejo proibido. Faz com que ele seja sustentado pelo Outro, precisamente pela proibição do Outro”. (LACAN, 1957-8, p. 427).

 

Preservar o Outro é a estratégia pela qual o obsessivo consegue tornar válido algo do seu desejo. Portanto, o mecanismo de defesa do obsessivo está posto em relação ao seu desejo.

 

João passa a se antecipar antes de ser capturado pelo seu gozo de arriscar-se. Um saber sobre o seu sintoma começa a ser construído. Começa a se perguntar se não está se colocando em risco e se a resposta é sim, tenta fazer diferente. Diante disso, lhe observo que ele está trazendo uma novidade. João se posiciona como aquele que sabe algo sobre a sua repetição e a satisfação presente no seu sintoma. Então ele questiona se realmente é preciso oferecer tudo ao outro, quando intervenho com um corte e a pergunta: “o que é possível oferecer ao outro?”

 

Mais adiante admite que se não tivesse buscado uma análise, poderia já ter morrido. Vemos aqui algo desse gozo mortífero, com que o sujeito, nesta frase direcionada para a sua análise, demonstra que foi possível conter algo da ordem da sua atuação.

 

Nosso tema não se esgota neste artigo. Propomos, para além deste trabalho, uma articulação em torno da questão da defesa no fazer da clínica. Para pensar na direção da cura na neurose obsessiva, é preciso levar em conta os pontos da defesa nas estratégias do sujeito, em que reconhecer a inconsistência do outro não traga algo de terrível e que não necessite mais ser um trabalhador incansável do supereu.

 


Referências bibliográficas
FREUD, S. (1915/2006). “Os instintos e suas vicissitudes”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV, p. 117-144.
_____. (1919/2006) “Uma criança é espancada”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, p. 193-218.
_____. (1920/2006). “Além do princípio do prazer”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, p. 13-75.
_____. (1924/2006). “O problema econômico do masoquismo” In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p. 175-188.
_____. (1930/2006). “O mal-estar na civilização”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, p. 67-148.
LACAN, J. (1956-57). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
_____. (1957-58). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.