PHILIPPE LACADÉE
ANA OU LACADE – QUEBRAR LEIS
Por ocasião da Jornada do Instituto da Criança[1], Jacques-Alain Miller perguntava-se se a violência na criança era um sintoma. Pois quem diz sintoma, em psicanálise fala, em termos freudianos, de deslocamento, de substituição de uma satisfação pulsional, o que, em termos lacanianos, pode se traduzir como gozo. A violência produz-se quando, precisamente, não há esse deslocamento, essa substituição? Eis a questão que se deve colocar: “O surgimento da violência não é testemunho de que não houve substituição do gozo?”, precisa J.-A. Miller.
No capítulo II de “Inibição, sintoma e angústia”, Freud (1926 [1925] 1980) define: “Um sintoma é um o sinal e o substituto de uma satisfação pulsional que não ocorreu”.
Recusa de gozo
O sintoma caracteriza-se como substituto de um gozo recusado. A castração é definida por Lacan a partir de uma recusa do gozo, o que introduz uma referência à iniciativa do sujeito no âmbito de uma escolha – aceita-se ou recusa-se.
Assim, a castração como recusa de gozo implica o fato de que este não ocorrerá. Porém, Lacan, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo” (1998), introduz um raciocínio dialético: “O gozo deve ser recusado para ser alcançado”. Ele não deve ter tido lugar para advir. Trata-se do fato de que a castração é um deslocamento do gozo, de que o gozo deve ser recusado, em certo plano, para ser alcançado no nível da lei. Ele deve ser recusado no real para ser alcançado sob a égide do simbólico.
O que Lacan chama de lei do desejo é justamente essa recusa do gozo no real, a passagem do gozo para baixo (da barra). É isso que repercute a metáfora paterna, que é a tradução, em termos edípicos, do processo do recalque e pode ser generalizada, caso se postule que o operador essencial do recalque é a própria linguagem, a palavra, que opera essa passagem do gozo para baixo, no sentido de que bloqueia sua ocorrência.
O resultado do ‘processo do recalque’, como esclarece Freud, é precisamente o sintoma. O preço do recalque é a formação do sintoma como signo e substituto de um gozo não realizado. Em outras palavras, a legalização do gozo paga-se com a formação do sintoma. O ser humano, como falasser, está condenado a ser sintomático.
Lacan, em seu retorno a Freud, especifica que o adversário de Eros, do amor, não é o ódio; é a morte, Thanatos. É preciso diferenciar a violência do ódio. O amor, como o ódio, são modos de expressão afetiva de Eros. O ódio está do lado de Eros e é, de fato, um vínculo muito forte ao outro, é um laço social eminente, como se viu na Jornada. Quanto à violência, ela está do lado de Thanatos.
Uma pragmática da abordagem da violência, retorno à agressividade
Proponho retomar o conceito de agressividade tal como Lacan o elabora em “Agressividade na psicanálise” (1998), de 1948, para esclarecer a violência a partir da agressividade, já que ele diferencia intenção agressiva de tendência à agressão. Durante a delicada transição da adolescência, a questão do corpo entra em jogo de maneira violenta, seja sobre o corpo do outro, seja sobre o próprio corpo mediante mutilações ou escarificações.
Constatei, após 35 anos de prática com muitos em hospital-dia para adolescentes, que a violência é mais presente na clínica hoje, frequentemente porque os jovens que recebemos foram tratados, antes, em programas de terapias cognitivo-comportamentais (TCC), em que não são acostumados a falar e dizer de seus sofrimentos, em que são reduzidos a objetos que devem entrar em escores terapêuticos sem que seja reconhecida a relação deles com a língua e com o corpo. Encontram-se, portanto, novas modalidades de se fazer ouvir pelo Outro, que passam por fenômenos de gozo de corpos, sob o modo de violência verbal ou de violência sobre o corpo.
Intenção agressiva e tendência à agressão
A intenção agressiva, Lacan situa na vertente de uma vontade de dizer do sujeito que não chega a se revelar ao Outro numa dialética do sentido. Ela pressupõe um sujeito que se manifesta na intenção de um Outro. Lacan chega até a introduzir a noção de reivindicação como modo fundamental de se endereçar ao Outro. A reivindicação é demandar alguma coisa que se crê merecer. Se, mais tarde, Lacan vai declarar que todo discurso é demanda, em 1948, ele afirma que toda palavra é agressão. A posição de neutralização da agressividade que o discurso analítico oferece permite que a intensão de significação mascarada pela intenção agressiva surja. O analista não se apresenta como aquele contra quem se dirige a agressão, mas enseja à agressão se inscrever no registro verbal. Para Lacan, a intenção significa que a agressão é decifrável como acting-out a ser lido como sintoma – há, pois, uma possibilidade de interpretação. Trata-se, precisamente, de encontrar um lugar de destinação do sofrimento inerente à intenção agressiva. Seu mecanismo evidencia, antes, a negação, e, portanto, o recalque está incluído, preferencialmente a uma falha da defesa. Nesse caso, não é a foraclusão que está em jogo.
Lacan passa “da subjetividade da intenção à noção de tendência à agressão”, isto é, faz uma transposição da fenomenologia à metapsicologia. E, assim, ele vai esclarecer não só uma clínica de psicose mas também os acessos de violência dos jovens em função da tendência à agressão.
A tendência é, como esclarece J.-A. Miller, algo já objetivado, algo que se apresenta de maneira bruta, sem qualquer dialética de sentido, e algo sobre que a interpretação permanece sem efeito.
Na tendência à agressão, o sujeito é tomado por uma experiência de vida em que ele não é mais um efeito de sentido, mas encontra no real alguma coisa fixada no corpo que o arromba. Pode-se apreender essa tendência destacando-se do registro da foraclusão do sujeito, e, portanto, da passagem ao ato. Lacan desenvolve, desse modo, uma tese: o homem deve assumir seu despedaçamento original, em decorrência do qual se pode dizer que, a cada momento, ele constitui seu mundo pelo próprio suicídio e do qual Freud teve a audácia de formular a experiência psíquica tão paradoxal como expressão, em termos biológicos, do instinto de morte – que, mais tarde, chamará de pulsão de morte – ou mesmo como gozo fora de sentido.
A orientação lacaniana em face da violência é, pois, essencial. Não se deve desconhecer que há um despedaçamento original do sujeito, que Freud chama de Hiflosigheist, situado por Lacan principalmente na perspectiva da paranoia. Quando o sujeito se encontra sem o recurso a um discurso estabelecido e que se reatualiza no momento do despertar da primavera.
Em texto de Lacan sobre a agressividade, o despedaçamento do sujeito apresentado como a forma mais essencial da subjetividade humana é a paranoia – e essa paranoia como relação ao Outro imprime a modalidade da agressão. Pode-se compreender, em duas histórias, com base em dois sujeitos adolescentes, como os acessos de violência se desencadeiam para eles em consequência do fracasso no estabelecimento da defesa. Aliás, ambos dizem muito claramente que são violentos para se defender, que essa é a única possibilidade. O operador essencial do recalque, que é a linguagem, não opera, para eles, a passagem do gozo para baixo, não bloqueia sua ocorrência. No caso dos dois, o gozo não é recusado, nenhuma castração se opera. Alexis, jovem herói de A Virgem dos assassinos, ilustra essa tendência à agressão enodada ao próprio corpo como única saída para se defender de um real pulsional que o persegue, no seio mesmo de seu corpo, e atualiza sua violência sobre o corpo dos outros e, também, na cidade. Definitivamente, é o triunfo da pulsão de morte e da violência como ato gratuito. Para Alexis, é o sinal da liberdade, porque desligada de qualquer causa. Os sicários, contudo, rendem homenagem à Virgem, já que encontram, nesse ato, um ponto de apoio essencial para justificar, na falta da metáfora paterna, suas existências. Petit Roi, o herói da novela Inferno, ensina como as marcas violentas dos golpes de sua mãe, na falta de um pai para se apoiar, o confrontam com uma escolha forçada: matar ou morrer, a solução de ser um ator da violência na cidade. Ele ilustra plenamente o mais de gozo implicado na sua violência, como se estivesse preso no turbilhão de uma violência sem porquê. Ele nunca teve lugar nem endereço, devido à ausência de seu pai e à violência de sua mãe, para situar uma possível razão para o enigma de sua existência. Nenhuma explicação provável para o desejo do Outro e, por via de consequência, não pode se vincular ao Outro. Como resultado, é a violência que se tornará sua única resposta concebível em face do real que o persegue. É possível que a violência da criança anuncie, exprima, uma psicose em formação. É preciso, então, se questionar o intento da agressão e tentar apreender se a violência é uma violência com palavras – ou seja, se o paciente pode expô-la em palavras, se ela é simbolizada ou simbolizável. Ou se a violência resulta da tendência agressiva pelo puro surgimento da pulsão de morte, por um gozo no real. Se é um puro gozo no real, isso não sinaliza, necessariamente, psicose. Isso traduz, em qualquer caso, uma ruptura na trama simbólica, de que é preciso saber se é pontual ou durável, o que verá no caso de Jean. Um apelo urgente da mãe de Jean no momento em que se revela um acontecimento de violência Certa manhã, a mãe de Jean me telefona, às 8h, para dizer que não pode mais e quer que eu a receba com urgência, porque seu filho havia destruído tudo em casa. Digo-lhe: “Mas você sabe que devo vê-lo às 17h”. E ela responde: “Sei. Ele está ao meu lado”. E acrescenta: “Porém, não é mais possível. É preciso fazer alguma coisa, e ele concorda com que eu o acompanhe”. Recebo os dois. A mãe está com muita raiva do filho e explica-me que ele tinha quebrado tudo. Ele diz que arrebentou uma corda grossa e bateu a cabeça contra a parede, para se acalmar. Decido não aceitar sem discutir a imposição do significante ‘violento’ usado pela mãe e por seu filho. Isso pode ser apenas um fator secundário. Tento não ignorar que há uma revolta da criança, que pode ser sã e se distinguir da violência errática. Pode ser que ele teve razão de se revoltar? “Tem-se razão de se revoltar”[2]. Com Jean, nesse dia acompanhado de sua mãe, devo, então, entrar no plano da investigação sobre crianças violentas proposto por J.-A. Miller. Trata-se de uma violência que pode ser falada e, em caso afirmativo, resta saber o que ela diz? Não é, também, o caso de se procurarem os traços discretos da paranoia precoce, sem se esquecer de que o sujeito aparece, que a criança nasce sob a égide da paranoia? A violência que fala pode ser tanto de ordem paranoica quanto de ordem histérica. No que concerne mais propriamente ao recalque, levando-se em conta o Freud posterior a Inibição, sintoma e angústia, deve-se, igualmente, questionar a defesa da pulsão, uma defesa que se inscreve aquém do nível do recalque. É preciso ‘distinguir quando a violência resulta de um fracasso no processo do recalque ou de uma falha no estabelecimento da defesa’. Evidentemente, ela é mais facilmente alcançada no primeiro caso. A mãe insiste sobre a violência do filho e diz que esta deve ter uma causa, que ela não a aguenta mais, e detalha-me as circunstâncias da situação. Dou-me conta de que ao filho foi destinado, muito cedo, o lugar de violento, de quebrador.
Mesmo considerando que a violência na criança talvez seja de ordem psicótica, tento implantar-lhe um significante de autoridade, um ersatz com ofício de significante mestre, pois a mãe não para de afirmar que é a única a tomar posição e que, divorciada, o marido se recusa a intervir. Digo-lhe que, se isso é insuportável, ela pode chamar a polícia, pois não tem de suportar tudo, que há limites e que a polícia, como guardiã da paz, também pode ser usada para tanto, que “às vezes é preciso de um terceiro para parar”. Ela perturba-se: “Mas meu filho não é um delinquente e vim falar com um psicanalista e não com um comissário de polícia”. Minha intervenção visava a introduzir um significante com a função, o valor, de S1. Procuro ‘distinguir a violência como surgimento de uma potência no real da violência simbólica inerente ao significante’ que se sustenta na imposição de um significante mestre. Se essa imposição de um significante mestre falta, Jean não precisa encontrar um substituto e acaba impondo violência a seu corpo, porque não é a primeira vez.
Embora eu tenha evocado verbalmente um apelo ao guardião da paz, o analista não deve se tornar o guardião da realidade social. Ele tem apenas o poder de reparar, eventualmente, um defeito do simbólico ou de reordenar a defesa. E, de qualquer forma, o efeito de seus atos ocorre apenas lateralmente. Decido, então, manejar uma contraviolência simbólica, procedendo, antes, de forma suave, utilizando o poder da palavra, já que resta, de fato, saber por que Jean cometeu violência contra o próprio corpo.
Quando começa o domínio da violência
“Não sabemos em que confins a palavra se destitui e começa o domínio da violência, em que ela reina sem ser preciso provocá-la” (LACAN, 1998, p. 375).
Esse domínio da violência dá testemunho de fenômenos de corpos aberrantes, como o acesso de violência sobre si mesmo ou sobre o outro, o que nos leva a investigar o tempo que a precedeu e em que tais fenômenos vêm se inscrever. Qual é a articulação significante que, por essa via, produz esses fenômenos de corpo?
“Eu proporia que, quando se lida com o que chamamos, na nossa vulgata, fenômenos próprios de gozo, se busque sempre articulá-los em seu lugar no processo simbólico, porque isso continua a ser a lição fundamental de Lacan” (MILLER, 2003, p. 239).
Em “Questão preliminar”, Lacan sugere uma articulação em dois tempos: um primeiro, no âmbito de um processo simbólico, em que há uma articulação significante S1-S2; um segundo, quando há irrupção de um gozo. O fenômeno do corpo transborda a dimensão simbólica, mas inscreve-se no contexto de uma lógica. Jamais se deve, porém, deixar de associá-lo ao processo simbólico anterior. Tratando-se da criança violenta, não se pode deixar fascinar pela causa. ‘Há uma violência sem porquê, que é, em si mesma, sua própria razão, que é, em si mesma, gozo’. Somente num segundo momento, buscar-se-á o determinismo, a causa, o mais de gozar que é o motivo do desejo de destruir, da ativação desse desejo. Há, no caso de Jean, um ‘defeito no processo de recalque ou, em termos edípicos, um malogro da metáfora paterna’.
A propósito de Jean, interrogo-me, então, sobre a defesa no que concerne à pulsão, defesa que se inscreve aquém do nível do recalque. É preciso ‘distinguir quando a violência resulta de um malogro no processo do recalque ou de uma falha no estabelecimento da defesa’.
O processo simbólico
Proponho-me, em seguida, tomar distância do significante designado pelo Outro. O sujeito deve ser considerado um lugar de indeterminação. Pergunto-me então: que escolha ele fez? Que direção tomou?
Isso só pode ser abordado mais tarde. Resolvo, nesse momento, ser muito minucioso no levantamento dos propósitos da mãe no que concerne a seu “destruiu tudo”, solicitando-lhe especificar o que Jean tinha destruído e, levantando-me da minha cadeira, olho a cabeça dele e digo-lhe: “Sua cabeça, porém, não tem nada. Não vejo onde ela arrebentou”.
Esclareço aos dois que, às vezes, é preciso prestar atenção às palavras que se emprega, porque, depois, não se apreende muito bem o que aconteceu. Após a invocação ao guardião da paz, empreendo um processo simbólico.
A mãe explica-me então, que, na verdade, Jean quebrou o vidro de uma mesa, socando-a com o punho cerrado, e, em seguida, quebrou a porta de seu quarto com um soco. “Você sabe que essa não é a primeira vez. Na escola também, um dia, por causa de sua namorada, Léa, ao socar a porta do banheiro, com raiva, ele luxou o pulso. Logo você vê bem que ele é violento com ele mesmo, que ele se bate. E estou farta de ele quebrar tudo”.
Jean explica-me que, de fato, não arrebentou a cabeça, mas que a bateu contra a parede, para acalmar “seu surto de violência”:
– Ah, bom! Você teve um surto de violência? Pode explicar como isso aconteceu?
– Sim. A coisa sobe e a única maneira de acalmar tudo é a minha tendência, são os punhos cerrados.
– Explique-me isso: “minha tendência são os punhos cerrados”.
– Começa no baixo ventre e, depois, me toma o corpo, a garganta, fixa-se em mim e faz cócegas nos braços. Meus braços contraem-se, como em convulsões, e a única maneira de se resolver, de fazer isso parar, é socar com os punhos cerrados, para o arrancar.– Arrancar o quê?
– É como alguma coisa em excesso, fixada em mim, cócegas enormes.– Ah, bom! Porém, às vezes, sentir cócegas é agradável, não?
– Não. De fato, no caso, é a cólera que me faz cócegas no corpo; são as observações que fazem a meu respeito. Guardo-as para mim, em mim, e, depois, isso transborda do meu corpo e sai pelos punhos cerrados.
Em seguida, conta-me que, sem dúvida, ele passa por um registro muito diferente, quando bate a cabeça contra as paredes – trata-se, na verdade, do muro da linguagem, pois afirma, com segurança, ter arrebentado a cabeça, o que não parece uma metáfora, mas, sim, o que ele viveu no real. Parece que esse fenômeno traduz, então, o fracasso do processo de defesa, e é por isso que tentei, ao me levantar e olhar a cabeça de Jean, um processo de deslocamento.
Quando a violência parece ser o contrário de um sintoma
A violência de Jean parece ser o oposto do sintoma. Ela não é resultado do recalque, mas, antes, a marca de que este não se operou. E não parece ser um substituto da pulsão, mas, ao contrário, a satisfação da pulsão de morte.
A criança violenta é aquela que quebra e encontra prazer no simples fato de quebrar, de destruir. Será preciso interrogar Jean sobre o gozo implicado nisso e sobre o que se poderia chamar de “o puro desejo de destruição”. J.-A. Miller determina: “Quando se denunciam os quebradores, denuncia-se, no final das contas, o puro gozo de quebrar. Não se denuncia a política dos quebradores, denuncia-se o ‘mais de gozar’ implícito na violência dos quebradores”. É, pois, esse ‘mais de gozar’ que convém questionar.
Para Jean, esse não parece ser o caso. Ele declara que não tem palavras no momento da ocorrência, portanto, não pode repeti-las, já que é como uma pulsão, algo que cresce e se replica. Ele tenta, então, um esforço de tradução do que lhe parece aumentar esse gatilho de violência. É, no mais das vezes, uma recusa de sua mãe, mas ligada, sobretudo, às palavras ditas por ela. Afirma, a propósito, que são essas que o ferem, principalmente as observações dela, que se repetem em sua cabeça e se transformam nele, como se ele próprio se dissesse: “Você só faz merda. Ainda que trabalhe, não conseguirá nada”. O que o deixa colérico é o fato de as advertências de sua mãe lhe tomarem o corpo, como se ele os contivesse em si mesmo, quando, como explica, “elas são dela e, de repente, me encontro com elas em mim, o que me faz perder a cabeça”. Jean não compreende os comentários dela, porque ele sabe que consegue:
Tiro boas notas, embora seja verdade que não faço os exercícios de revisão, pois, para mim, é perda de tempo. Presto atenção às aulas, tenho uma memória excelente e isso é suficiente. No entanto, ela quer que eu deixe minha tela e faça as revisões. E, de noite, ela toma meu celular.
E, nesse momento, pesa, cada vez mais, o fato de a mãe se recusar a aceitar Léa, a namorada dele, ou de concordar que ele saia pela cidade com ela. Além disso, à noite, toma-lhe o celular, para que eles não se falem pelo telefone por toda a noite. É, portanto, essa recusa de sua mãe, ligada à sua maneira de falar com ele, que o faz explodir. É, pois, essa recusa do gozo no real que ele não pode simbolizar. No caso de Jean, mostra-se defeituoso o próprio operador da linguagem – ou seja, a palavra. Então, sobrevém-lhe um gozo sem sentido e a violência, para tentar se liberar disso.
De fato, Jean também explica muito bem que o que ele não suporta é o tom de voz de sua mãe, sua maneira de lhe dirigir observações. Ele sente na entonação dela o fato de o tratar como um cão, que deve obedecer, e sente-se um pouco humilhado. Há nisso um traço discreto de paranoia? Porque ele se sente perseguido por essa voz, que parece doutrinar seu ser. Sente-se que, quando sua mãe lhe fala, isso fala dele e, mesmo, fala nele. Como indica Lacan, em “Posição do inconsciente”, para o sujeito, “isso fala dele e é nisso que ele se apreende” (LACAN, 1998, p. 843). Em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache…” (LACAN, ibid. 653-691), há uma passagem muito elucidativa sobre a determinação do sujeito pelo discurso que o precede. Antes mesmo que ele surja, isso fala dele. Porém, de fato, Jean será mais preciso.
Quando a violência parece fazer sintoma
Ele dirá que sente, nessa voz, o fato de sua mãe não ser feliz, visto que ela declarou, um dia, aos filhos, que tinha sacrificado tudo – sua carreira, sua vida de mulher – para criá-los sozinha. Então, ele lhe fala que não entende por que ela não é feliz; que se isso lhe é insuportável, ela deveria refazer sua vida, ter um companheiro e, sobretudo, tentar de novo o curso superior, a fim de ganhar mais e parar de se queixar de sua vida diante deles:
Eu queria me orgulhar dela, mas ela não se orgulha de si mesma, não se ama e isso eu não suporto. (…) Quando ela, do seu jeito, me impede de aproveitar a vida, de sair com minha namorada, de jogar no computador, isso me encoleriza e me faz ter esses surtos de violência, quebrar tudo e me bater, para tentar parar o que acontece comigo (…) Pois não tenho vontade de fazer o que ela faz: não aproveita a própria vida e me condena a ser igual a ela. (…) Amo minha mãe, mas sinto que ela não se ama; então não quero ser igual a ela e, ao mesmo tempo, do mesmo modo, não me amo e bato para parar isso.
A violência de que Jean fala pode ser tanto de ordem paranoica quanto de ordem histérica. Com base no que ele informa, pode-se levantar a hipótese de que, numa clínica sob transferência, no ponto em que a palavra permite encontrar um lugar de endereçamento, tal violência é de ordem histérica. Ela tem o valor de demanda de amor ou de queixa contra a falta a ser. E encontra seu lugar no registro de Eros. Nesse registro, a violência da criança é o substituto de uma satisfação não advinda da demanda de amor. Em tal contexto, com efeito, a violência é um sintoma e é o que permite marcar e tornar operatória uma clínica analítica.
Conclusão
Vimos que é preciso ‘distinguir a violência como surgimento de uma potência no real e da violência simbólica inerente ao significante’, que se sustenta na imposição de um significante mestre: “Quando essa imposição do significante mestre falta, o sujeito pode se encontrar um ersatz, marcando-se a si mesmo – escarificação, tatuagem, piercing, diferentes maneiras de se cortar, de se torturar, de impor violência contra o próprio corpo”, como afirma J.-A. Miller (2003).
Hoje, isso está de tal forma generalizado, que se torna moda, é um fenômeno de civilização, é superficial; mas eu diria que é o sintoma da perturbação própria da ordem simbólica herdeira da tradição. Isso dito, restará sempre saber por que alguns sujeitos são mais sensíveis que outros, a ponto de cometerem violência contra seus corpos.
Por isso, levar em consideração apenas o comportamento violento pode confirmar e produzir ainda mais violência, como pude verificar no final de minha prática em instituição. E é por isso, ainda, que importa, como propõe J.-A. Miller, referir-se ao último ensino de Lacan e considerar, também, a violência na criança como um sinthoma, ou seja, impõe-se dar lugar a “uma violência infantil como modo de gozo, mesmo quando isso é uma mensagem, o que significa não a atacar de frente” (MILLER, 2003).
Não a atacar de frente implica saber responder à margem, se deslocar, propondo modalidades de respostas variadas, e saber lidar com certa agressividade necessária, que, como afirma Lacan no início de seu ensino, é a via para se apoiar sobre uma identificação ao outro como semelhante. Daí a necessidade de uma prática por vários. Não é, afinal, o que tentei, ao oferecer um espaço de conversação a Jean e a sua mãe, para destravar as identificações muito petrificantes que, frequentemente, levam ao pior?