A Radicalização Da Recusa Frente À Inexistência Da Relação Sexual

CRISTIANE DE FREITAS CUNHA VINICIUS MOREIRA LIMA

 

CRISTIANE CUNHA

Domenico Cosenza (2014) percorre a ‘delicada transição’ da adolescência em três tempos lógicos. O primeiro é o tempo dos sonhos; sem eles, não se pode pensar em fazer amor (LACAN, 1974). O segundo tempo é o do trauma; a inconsistência dos sonhos se revela, constata-se que, sob o véu, não há nada. No terceiro tempo, o percurso se bifurca; alguns adolescentes aceitam entrar no jogo da vida amorosa, sem garantia. O amor e a linguagem seriam saídas elegantes que podem fazer suplência à inexistência da relação sexual (LACAN, 1972-73/1975). Outros permanecem em uma posição de recusa. A posição da recusa coloca em cena o objeto nada, causa de não desejo (COSENZA, 2017).

 

No laboratório Janela da Escuta, temos nos deparado com casos de adolescentes que se nomeiam trans ou travestis nos quais a posição da recusa frente à inexistência da relação sexual é notável. O corpo se revela como um território de investimento pulsional intenso, que absorve o sujeito. Demandas são tecidas e endereçadas à tecnociência, abrangendo a administração de hormônios e intervenções cirúrgicas e, ao campo do direito, para a mudança do nome de registro. Temos, assim, o discurso universitário, na posição autoritária de semblante, com o objetivo de melhorar a relação entre os sexos (LACAN, 1973/1975, p.63) ou de velar a falta da relação entre eles. No discurso de alguns desses jovens, não há referência ao amor.

 

Um jovem trans, Ivan, procura o Janela da Escuta com a demanda de se submeter à mastectomia. Ele nos conta que a transição para uma identidade masculina foi harmônica: começou a se hipertrofiar com a musculação, depois começou a usar hormônios masculinos. Obteve o registro do nome social, com o qual se matriculou na universidade. Os pais têm aceitado o processo. A única ‘desarmonia’ é no campo amoroso, ao qual ele renuncia.

 

Do outro lado do Atlântico, na França, somos convidados a participar de uma pesquisa clínica com jovens extremistas que aderiram ao Estado Islâmico (EI). Na construção dos casos, desvela-se uma outra forma de recusa. Jovens que recusam qualquer dialética, qualquer opacidade, qualquer equívoco.

 

Hana, 13 anos, encontrava-se presa em uma cidade de fronteira, na França. Hana é neta de marroquinos e, assim como seus pais, nasceu na França. A infância é marcada pela violência sexual. Desde os onze anos, apresenta anorexia. A assistente social, que foi visitá-la na prisão, se impressionou com sua magreza, evidenciada pela retirada dos véus e túnicas. E, sobretudo, com o olhar de Hana: “ela já está morta”. A incorporação da morte que antecede a sua anunciada e abortada explosão de si mesma.

 

O radicalismo islâmico usa a tecnociência para se difundir, captando adeptos nas redes sociais. As redes e mídias são também o veículo de difusão do terror; as imagens captadas no momento dos atentados se impõem, sem mediação simbólica. Não há uma narrativa em torno dos atentados, uma demanda (LACHANCE, 2016). O enigma se instala do lado do Outro, assim como a angústia. Tentativa de fazer o Outro existir?

 

Do lado dos extremistas, vemos a simplificação do discurso islâmico, que produz conceitos inequívocos sobre a sexualidade e os papéis a serem desempenhados no laço sexual.

 

Relatos das conversões na Tunísia nos mostram as prescrições da incorporação dos textos, do treinamento corporal e da aquisição de hábitos e costumes (corte do cabelo, barba, comprimento da túnica, perfume). Diante das mulheres, o olhar deve se desviar para baixo. As mulheres são classificadas dicotomicamente: as muçulmanas são candidatas ao casamento, muitas vezes mediado por agências matrimoniais do próprio EI. As outras mulheres, as não crentes, podem ser objeto de violência sexual e/ou física. Há um esvaziamento do simbólico, que permitiria o equívoco do inconsciente, em favor de uma proliferação dos signos (SELAMI e SALEM, 2016).

 

Uma nova relação se instaura: entre irmãos. Oliver Roy (2016) enfatiza a inexistência de extremistas mais velhos. De uma forma diferente da observada em grupos como o Hamas, no EI há uma ruptura geracional. Quando já havia uma evaporação do pai, um enfraquecimento da função paterna, delineia-se um corte, a saída de casa, a adoção de ritos e referências alheios à família.

 

Os novos nomes trazem na raiz o Abu, o pai. Jeffrey (2016) nos lembra que o termo radicalização se refere à raiz, à filiação. Um novo pertencimento se instaura, destruindo o que havia antes. Assim, cada um porta um nome do pai, uma versão do pai, que dá acesso a uma relação fraternal e a uma relação regulada com as mulheres.

 

O ódio de si pode se externalizar no ódio do Outro, com a permissão e a exaltação da violência. É uma cultura da pulsão de morte. Oliver Roy (2016) diz que não se trata de um islamismo radical, mas da radicalização do islamismo. A radicalização seria a pura recusa da opacidade do sexual.

 


Referências
COSENZA, D. Le refus dans l’anorexie. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2014.
COSENZA, D. La dimensione S0 e l’oggetto niente nelle psicosi ordinarie. Disponível em: https://congresoamp2018.com/wp-content/uploads/2017/04/PAPERS-7.7.7.-N%C2%B01-Multilingue.pdf > Acesso em 21 de agosto de 2017.
JEFFREY, D. “La radicalisation des jeunes djihadistes”. In: JEFFREY, D. et al. Jeunes et djihadisme – les conversions interdites. Paris: Les Presses de l’Université Laval, 2016.
LACAN, J. Prefácio a O despertar da primavera (1974). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.557-559.
LACAN, J. (1972-73/1975). Le Séminaire, livre XX: Encore. Texte établi par Jacques-Alain Miller. Paris: Éditions du Seuil.
LACHANCE, J. In: JEFFREY, D. et al. Jeunes et djihadisme – les conversions interdites. Clamecy: Les Presses de l’Université Laval, 2016.
ROY, O. L’interview: Rencontre avec Oliver Roy “La crise du monde musulman”. In: Mental: Identités en crise. Paris: La nouvelle imprimerie laballery, 2016.
SELAMI, M., SALEM, J. H. “Conversion djihadiste des jeunes en Tunisie postrévolucionaire: alterité, corporalité et spatialité”. In: JEFFREY, D. et al. Jeunes et djihadisme – les conversions interdites. Paris: Les Presses de l’Université Laval, 2016.

CRISTIANE DE FREITAS CUNHA VINICIUS MOREIRA LIMA
Membro da Escola Brasileira de Psicanalise (AMP) cristianedefreitascunha@gmail.com VINICIUS MOREIRA LIMA



Passagem Ao Ato E Adolescência

ANA MARIA C. S. LOPES

ANA MARIA – LOUISE-BOURGEOIS, FEMME MAISON

 

Na clínica contemporânea, deparamo-nos com uma significativa incidência de novos sintomas, sobretudo aqueles nos quais se verifica o privilégio do registro do ato; da convocação do corpo que, por vezes, supõe uma precariedade do registro simbólico, uma tentativa de apagamento da dimensão subjetiva. As mídias anunciam o aumento dos atos violentos no espaço das escolas e da cidade, atos que se inscrevem via o ato compulsivo de utilização de substâncias tóxicas e atos infracionais que expõem o sujeito adolescente a situações de risco. Verifica-se, enfim, a clínica da supremacia do imaginário, da impossibilidade de amarração simbólica, independente da estrutura clínica, e, por conseguinte, o imperativo da clínica do ato.

 

Então, é preciso perguntar: qual é a função que está em jogo na clínica do ato? Lacan faz do ato suicida o modelo de ato, pensa o ato a partir do suicídio, independente da estrutura (neurose, psicose ou perversão). Há algo no sujeito que não trabalha para o seu bem, não trabalha para o útil; ao contrário, trabalha para a destruição. Na elaboração de Lacan, todo ato verdadeiro é um “suicídio do sujeito”. O sujeito não é o mesmo depois do ato, renasce desse ato de modo diferente. Há um antes e um depois. Todo ato é transgressão, no sentido que contém, em si, um atravessamento de uma lei, de um conjunto simbólico.

 

O ato tem uma dimensão paradoxal, pois o sujeito, ao cometer o ato contra o próprio organismo, visa à homeostase. O ato se direciona ao cerne do ser: o gozo. Nessa perspectiva, na adolescência, são comuns os comportamentos de risco, tais como toxicomanias, transtornos alimentares, tentativas de suicídio, entre outras. Soluções que têm a ver com uma prática da ruptura, um curto-circuito da relação ao Outro. Alguns adolescentes prescindem do Outro e até mesmo recusam o Outro na medida em que esses sujeitos devem se separar da autoridade parental. O adolescente não possui palavras para traduzir o que acontece no corpo ou em seu pensamento. O que não se traduz em palavras tenta se inscrever via ato (LACADÉE, 2007).

 

Nesse ponto, torna-se essencial distinguir passagem ao ato e acting out. Podemos falar de acting out quando há uma cena; essa cena é a palavra, e o sujeito se coloca a atuar sobre essa cena sob o olhar do Outro. Necessita do Outro, do espectador. Ao contrário, a passagem ao ato não tem um espectador, o que se tem é a desaparição da cena. Digamos que o sujeito está, eventualmente, morto.

 

A passagem ao ato

 

A expressão “passagem ao ato” tem sua origem na psiquiatria francesa dos anos 20 do século XX, articulada à criminologia, e é utilizada para referir-se, de forma exclusiva, a atos violentos, delituosos. Lacan, na tese de 1932, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade, e na análise do caso das irmãs Papin (1933), introduz a passagem ao ato como solução mecanicista, liberadora do Kakon, palavra grega que significa “dor”, “desgraça” (VON MONAKOW; MOURGUE, 1928). Nas psicoses autopunitivas, que se traduzem pelo “delírio de interpretação”, as energias autopunitivas do superego se dirigem contra as pulsões agressivas provenientes do inconsciente do sujeito e visam a retardar, atenuar e desviar o impulso assassino. Guiraud (1931) apoia-se em von Monakow e Mourgue e destaca o Kakon como liberação de um complexo de natureza automática que, por ato-reflexo, encontra uma saída mecanicista. Para Guiraud, o objetivo da passagem ao ato é o de desembaraçar o sujeito da sensação dolorosa que o invade, concepção adotada por Lacan na tese de 1932, quando aproxima a passagem ao ato de Aimée ao mecanismo liberador do Kakon, o inimigo interno (LACAN, 1932, p. 236).

 

Em “Agressividade em psicanálise” (LACAN, 1948), o Kakon surge a propósito das reações violentas na psicose. Em “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946), Lacan sublinha que Guiraud reconhece que o sujeito atinge, no objeto que ele fere, o Kakon de seu “próprio ser” (LACAN, 1946, p. 176). Silvia Tendlarz ressalta que Guiraud não relaciona o Kakon ao ser do sujeito, e sim ao mal, à doença, transposto no mundo externo, de forma que Lacan utiliza o “próprio ser” para tratar o ser do sujeito, a saber, o conceito de gozo, como se Kakon nomeasse algo que estivesse fora de teorização naquela época e que, conceitualmente, seria abandonado posteriormente (TENDLARZ, 1990).

 

Em O seminário 10: a angústia, Lacan articula passagem ao ato, angústia e objeto. Lacan concebe o acting out como dirigido ao outro e a “passagem ao ato” como o instante em que o sujeito se coloca no lugar de puro objeto. Então, no primeiro momento (1932), pode-se afirmar que o sujeito passa ao ato para liberar-se do mal interior, ou, por um imperativo superegoico, atinge no outro a imagem de si mesmo. No segundo momento (1962), a passagem ao ato representa o instante em que nenhuma mediação é possível e visa promover uma separação radical do outro. O sujeito “deixa-se cair” sai de cena (LACAN, 1963, p. 118).

 

O sujeito passa ao ato no momento em que não é possível a distância mínima entre o eu e o outro, numa regressão tópica ao especular. Ressalta-se, aqui, o que Lacan introduz como a situação de júbilo da criança diante do espelho, em que ela pede ao outro uma confirmação do que experimenta ao ver sua imagem refletida. A criança, via olhar, via voz do outro, pode fazer a passagem dessa imagem, ainda não unificada do eu, para a unificação da imagem. Então, antes do estádio do espelho, o que se tem é a falta de contorno que a imagem do espelho poderia dar ao sujeito como eu.

 

Em suma, o sujeito se encontra face ao não reconhecimento da imagem especular: algo que não é reconhecido como especularizável pelo sujeito não é passível de ser proposto ao reconhecimento do outro. Aí o sujeito é capturado por essa vacilação, por essa experiência despersonalizante, cuja saída é a passagem ao ato que se inscreve na dimensão do deixar cair, daquilo que é resto. Na passagem ao ato, o sujeito sai da cena (LACAN, 1962). Nessa perspectiva, torna-se necessário distinguir passagem ao ato e acting out.

 

O acting out e a clínica do impossível de dizer a clínica do Real

 

Fenichel (1945), no artigo intitulado “Neurotic Acting-Out”, considera que o acting out alivia, inconscientemente, a tensão interna e produz uma descarga parcial de impulsos, como sentimentos de culpa. A presente situação se encontra conectada com o conteúdo recalcado e é utilizada como uma ocasião para a descarga de energias recalcadas. O acting out é, então, considerado uma descarga de energia egossintônica. É uma forma especial de representação na qual a recordação antiga é representada de uma maneira mais ou menos disfarçada. A experiência recordada conserva sua organização original. Fenichel considera que estar em análise favorece o acting out e há sempre uma qualidade motora da ação que se difunde a todo o acting out (FENICHEL, 1945, apud GREENACRE, 1950).

 

No acting-out, a ação é mais importante do que a linguagem. Em geral, a criança que sofreu frustrações orais expressa seu sofrimento através de uma motilidade difusa e uma exacerbada incapacidade para tolerar frustrações. Possui também uma exacerbação em relação ao ver e ser visto, que marca a fragilidade narcisista do eu, e apresenta, ainda, uma dificuldade de fazer a passagem do pré-verbal ao verbal (FENICHEL, 1945, apud GREENACRE, 1950). Lacan, no Seminário 10: a angústia, na aula de 23/1/1963, irá articular o acting out à cena analítica e enfatizar que não se trata da questão da fragilidade do eu, mas de casos não analisáveis e da supremacia do pré-verbal. Para Lacan, no acting out, está em jogo a questão do objeto, por isso não se trata de intervirmos no sentido de um fortalecimento ou não do ego. O acting out articula-se à cena analítica; a clínica do acting out coloca em jogo o que não pode ser dito – não por um déficit do simbólico, mas por questão de estrutura, em relação àquilo que o simbólico delimita como resto, o objeto a. Se o que está em questão no acting out é o objeto a, a interpretação é inútil. O acting coloca em jogo a clínica do impossível de dizer a clínica do real (RUBISTEIN, 1993).

 

Para Lacan, o acting out não deve de ser interpretado, mas pode ser respondido, via manejo da transferência. Via acting out, o sujeito coloca em jogo, desde a tenra infância, a causa do desejo, via o ato que se dirige ao Outro. Nessa perspectiva, como pensar a clínica do ato na contemporaneidade, sobretudo na adolescência? Aqui, recorro à série da Netflix, adaptada do original 13 Reasons Why, título original do romance de Jay Asher, cujo título da edição brasileira é Os 13 porquês, como paradigma ou modelo para se pensar a clínica do ato na adolescência.

 

13 Reasons Why e a clínica do ato

 

O autor Jay Asher, em 13 Reasons Why, desenvolve o tema do suicídio de uma adolescente e tenta demonstrar que a decisão de tirar a própria vida é dela, mas destaca que as pessoas causam impacto na vida umas das outras. Na narrativa do livro Os 13 porquês, os motivos que a levaram ao suicídio estão gravados em fita cassete. O romance é construído com duas narrativas simultâneas. Na primeira, Hannah conta suas motivações para o ato suicida e, na segunda, o autor descreve imediatamente as reações de Clay, personagem escolhido para ser os “olhos e ouvidos” do leitor ao longo do romance.

 

Hannah escolhe, entre os colegas da escola, treze, aos quais diz: “Vou contar aqui a história da minha vida. Mais especificamente, por que ela chegou ao fim. E, se estiver escutando estas fitas, você é um dos motivos.” Hannah convoca cada colega escolhido a escutar todas as fitas. No momento das gravações doa áudios, talvez seja possível formular que há uma dimensão de acting out. O que está em jogo é a questão do objeto – voz e olhar –, a tentativa da articulação a uma cena, colocar em jogo o que não pode ser dito, aquilo que o simbólico delimita como resto, o objeto a.

 

O acting coloca em jogo a clínica do impossível de dizer a clínica do real. No momento em que Hannah grava essas fitas, a dimensão do Outro está presente. Porém, é possível articular que, no momento em que cada fita é escutada pelos colegas, algumas semanas depois do seu suicídio, a dimensão que o envio dessas fitas provoca é da passagem ao ato. Ou seja, cada um dos lados dessas fitas são tentativas de soluções precárias, que se inscrevem somente na perspectiva especular e criam um percurso que dá consistência à erotomania mortífera, que finalizará no ato suicida.

 

A série Os 13 porquês narra, desde o início, situações habituais da adolescência atual, tal como o primeiro beijo da adolescente – uma experiência que deveria ter sido maravilhosa e que, pela transmissão de uma imagem via WhatsApp por um colega, se torna um dos pontos que, segundo a adolescente, arruinou sua vida. Hannah revela seu sentimento de ter sido traída e as consequências de boatos geradores de uma série de histórias sobre si, entre as quais nem ela mesma sabe qual seria a mais popular. Nessa perspectiva, há, na gravação das fitas, uma tentativa de desembaraçar-se da sensação dolorosa que a invade, do inimigo interno inscrevendo-se no campo da passagem ao ato, enquanto, definido, a partir da noção de Kakon, como liberação do mal interior. Os relatos de Hannah evidenciam a progressão da impossibilidade de distinção mínima entre o eu e o outro e a passagem ao ato e o acting out são tentativas, por vezes precárias, de soluções.

 

Considerações finais:

 

A construção percorrida por Hannah ao gravar as fitas se revela – como solução precária para a ausência de um aparato simbólico – para lidar com a problemática da castração, que, aqui, se presentifica no real. Hanna grava as fitas e as destina a cada um dos colegas. A Justin e Jessica, que a magoaram; a Alex, Tyler, Courtney e Marcus, que destruíram sua reputação; a Zack e Bryan, que abalaram sua alegria; e a Bryce Walker, que destruiu sua alma. O percurso de gravação das fitas, pelo menos momentaneamente, possibilita a ela algum alívio, momento em que procura o orientador da escola e fala sobre seu sofrimento subjetivo; pede ajuda, mas não é escutada. Ressalta-se, aqui, que o modelo do ato, a partir do suicídio, independe da estrutura. O ato é sempre auto: autocastigo, autopunição.

 

Nesse sentido, torna-se possível formular que a adolescência é marcada por algo da ordem do gozo sem sentido, da busca pela construção de respostas. Por vezes, o sujeito adolescente convoca a dimensão do olhar do Outro, momentos em que se verifica a clínica do acting out, mas, na passagem ao ato, não tem um espectador, tem-se a desaparição da cena; o ato é um autocastigo, uma tentativa de separação do Outro. A psicanálise pode oferecer intervenções aos adolescentes, tais quais espaços de conversação para que possam surgir soluções para além do puro ato.

 


Referências
ASCHER, J. Os 13 porquês. 1ª. Ed. São Paulo: Ática, 2009.
FENICHEL, O. “Teoria psicanalítica das neuroses”. Rio de Janeiro: Ateneu. 1945 [1981]. Citado por LOMBARDI, G. Infortúnios del acto analítico. Buenos Aires: Atuel, 1993. p. 31-38.
GUIRAUD, P. “Les meurtres immotivés”. L’Evolution Psychiatrique. 2ª série, mar. 1931.
GREENACRE, P. “General problems of acting out”. In: Psychoanalitic Quaterly, n. 19, 1950, p. 455-467.
LACADÉE, P. “A passagem ao ato nos adolescentes”. (2007). Disponível em: Revista eletrônica do Núcleo Sephora. www.isepol.com/assephalus/numero 04.pdf. p. 85-91. Acesso em 29/1/2018.
LACAN, J. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
______. “Os complexos familiares” (1938). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984. In: O seminário 10: a angústia. [1962-63 (2005)]. 1962-1963. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. “A agressividade em psicanálise” (1948). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949). In: Ibidem.
______. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. (1950). In: Ibidem.
MONAKOW, C. Von, MOURGUE, R. “Introduction biologique à la neurologie pathologique” (1928). In: LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
RUBISTEIN, Adriana. “Acerca Del comentário de Lacan ao artículo de Greenacre: problemas generals del acting out”. In: Infortúnios del acto analítico. Buenos Aires: Atuel, 1993. p. 31-38.
TENDLARZ, S; GOROG, F.; CHOURAQUI-SEPEL, C. “Nouvelles considérations sur les meuertres immotivés”. Nervure, t. III, nº. 6, set. 1990.

ANA MARIA C. S. LOPES
Psicanalista praticante, membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. E-mail: amcslopes@ig.com.br



O Valor De Uma Aposta: Tecendo A Rede Nas Instituições De Saúde

ALINE AGUIAR MENDES

 

 

ALINE 

Este texto resulta da apresentação do dia 30 de agosto de 2017, na noite do CIEN, que teve como mote o CIEN e as instituições. Contamos com a presença de Philippe Lacadée, que realizou uma intervenção com base em nossa experiência.

 

O laboratório Tecendo a Rede (TaR) trabalha com a construção do caso clínico por meio da conversação com equipes de saúde e saúde mental no campo da infância e da adolescência. Dois pilares sustentam nossa prática, quais sejam, a presença de um aluno, aprendiz na equipe – que denominamos AT não somente por sua função de Acompanhante Terapêutico, mas também, e mais fundamentalmente, como veremos, por sua função de colocar a equipe a trabalho – e a construção do caso clínico, por meio da conversação com as equipes.

 

O aluno aprendiz inicia seu trabalho com a condução de um caso escolhido pela equipe na função de acompanhante terapêutico dentro e fora da instituição.

 

O caso encaminhado ao aluno deverá, necessariamente, ser construído em, pelo menos, três conversações com a equipe. Nas conversações, são expostos o percurso do paciente na instituição e sua história de vida e clínica (quando surgiram os sintomas, os tratamentos realizados), bem como são discutidos livremente os pontos de impasse.

 

Essa prática nos propiciou elaborar o que se tornou um achado: a equipe não existe previamente a um caso, ao contrário, é a construção do caso que faz existir uma equipe ou, melhor dizendo, o que chamamos de ‘efeito-equipe’. A construção do caso clínico, ao implicar os profissionais, faz existir uma equipe, fazendo valer que, ali, há sujeitos concernidos pelo caso, o que é distinto de uma equipe composta, por exemplo, pelos profissionais designados burocraticamente pela instituição. Além disso, não se pode entender o efeito-equipe como o estabelecimento de uma unidade, de uma equipe coesa em torno do caso, tampouco que implique todos os profissionais, mas que um ou mais profissionais, ao serem tocados, cada um ao seu modo, pelo impasse, se tornem um aprendiz do caso, o que reorienta suas intervenções, antes dirigidas pelos significantes mestres normatizantes da instituição.

 

Nessa perspectiva, estamos alinhados com o projeto do CIEN como o que

 

consiste em abordar a nova situação da criança nos discursos, ou seja, nos vários discursos que se encarregam dela: a escola, os dispositivos assistenciais, a família, a língua que lhe dá seu lugar, o direito. (…) Mas de forma a localizar o que separa a criança de um discurso da palavra especializada[i] (LAURENT, 2017, p. 37).

 

Assim como experimentamos em nossa prática, a conversação no CIEN não é uma conversa livre. Ela se pauta por um impasse que deve ser localizado pelos participantes e possui um fim, um objetivo, que não é o alívio de um mal-estar. A conversação visa a introduzir a dimensão da causalidade psíquica nos campos em que esta é extirpada para que não sejam reproduzidas práticas segregatórias nem de controle. O encontro com a opacidade do discurso, com o que não se sabe, com o que não vai bem, permite o desajuste das identificações que mortificam os sujeitos. Isso propicia que o sopro de vida se faça presente na invenção testemunhada pelos laboratórios do CIEN.

 

Nessa perspectiva, apresentaremos uma de nossas experiências em parceria com o laboratório Janela da Escuta[ii].

 

Conversação sobre o caso Rocha[iii]: sobre o truco! o valor de uma aposta

 

Dividimos nosso relato das conversações para a construção do caso clínico em três momentos: 1a e 2ª conversações: tempo de ver; 3a conversação: tempo de escutar-se; e 4a conversação: do que resta a construir.

 

1ª e 2ª conversações: tempo de ver

Na primeira conversação para a construção do caso, Rocha é apresentado como um adolescente encaminhado ao Janela da Escuta em função de seu quadro clínico de hipertensão e obesidade e também por sua difícil inserção na escola, que o expulsa reiteradamente e chama pela mãe, para que esta responda por suas atitudes. No entanto, ao longo da conversação, o que se apresenta como impasse em seu tratamento é a relação do jovem com sua mãe. Desse modo, durante a 1ª conversação, começa a se delinear um outro caso, distinto daquele para o qual fomos inicialmente apresentados. Rocha é apresentado pela equipe como um adolescente cuja imagem reflete a imagem da mãe: vestiam roupas parecidas, ambos estavam obesos e a ginecomastia de Rocha acentuava, ainda mais, a semelhança entre mãe e filho.

 

O que é relatado pela equipe no percurso de Rocha no Janela da Escuta

 

Rocha e Lúcia encontram o Janela da Escuta quando o rapaz contava doze anos de idade. O acompanhamento clínico pela hebiatra do adolescente estava atento ao quadro de obesidade, associado à hipertensão, e exerceu, até a construção do caso, função de escuta do jovem. A psiquiatria procura intervir frente às respostas impulsivas e agressivas apresentadas por ele. Além disso, Rocha participa da oficina que acontece semanalmente no serviço, a Arte na Espera[iv], na qual consegue estabelecer importante vínculo com os pares, com o serviço e com uma produção de saber.

 

Nas consultas médicas, endereçava seus embaraços na relação com seu próprio corpo. Por vezes solicitava para não ser pesado e medido nos atendimentos, no que era respeitado. Além disso, entrava e saía várias vezes, interrompendo e recomeçando a consulta. Rocha, certa vez, relata a sua médica a repercussão que o filme Malévola exerce sobre ele, dizendo: “A Malévola perdeu suas asas e lutou para retomá-las. Também quero ser livre”. Nesses atendimentos clínicos, a mãe parecia se presentificar muito, participando ativamente dos atendimentos, ora entrando com filho, ora se apresentando ao final, quase sempre para se queixar dele. Num jogo de escrever e soletrar palavras, realizado com a médica, Rocha interroga: “Mãe, onde coloca o assento?”

 

No Janela da Escuta, outro espaço é ofertado a Lúcia, para dizer do mal-estar em sua relação com Rocha. A psicóloga que a atende no Janela da Escuta relata que o trabalho de escuta da mãe permitiu a ela que investisse em seu próprio corpo, tornando-o mais feminino. A mãe coloca Rocha num lugar próximo ao pior do pai: “vagabundo como o pai (…) homem debaixo da asa da mãe…”. E, ainda, a psicóloga relata que mãe e filho dormem juntos, trocam segredos e que ele lhe mostra suas ereções. Ela teme que um dia ele a mate ou a estupre.

 

Ainda nesse primeiro encontro para a construção, ante o relato apresentado, buscou-se demarcar o ponto a partir do qual o estagiário poderia operar. A equipe do Janela da Escuta debruça-se, então, sobre os impasses na relação de Rocha com a escola. Em dois encontros realizados com a escola, os professores alegam que não é possível uma intervenção específica destinada a Rocha, pois eles priorizam casos “mais graves que o de Rocha”. Nada poderia ser ofertado a Rocha, já que ele não era grave o suficiente nem “normal” como outros alunos. A direção da escola passou a comunicar cada vez mais que o jovem não poderia continuar ali, por qualquer motivo, como soltar um pum.

 

Na segunda conversação, que fazemos para recolher os efeitos da primeira conversação para construção do caso, a equipe do Janela da Escuta relata que viabiliza a doação de um fogão para a nova casa de Lúcia e Rocha, tendo em vista que só recentemente passam a ter sua própria casa. Esse passo representava, para Lúcia, uma importante separação de sua própria mãe, que a humilhava constantemente. A esse ato, Lúcia responde: “eu e o Rocha, a gente está fazendo tanta comida, tanta comida… estamos comendo até. A gente está fazendo tanta comida gostosa, porque, lá na minha casa, eu não posso fazer comida. Agora eu tenho minhas coisas”.

 

Com base nas falas que foram se decantando na construção, cernimos uma outra fala do paciente a sua médica: “quero cortar minhas mamas com faca”. Embora houvesse um avanço reconhecido, a partir do tratamento de Rocha com sua médica e, por outro lado, uma evolução no tratamento da mãe, no tocante a seu lugar como mulher e como mãe, persistia, na fala da equipe, o modo como a mãe era convocada a responder pelos atos de Rocha, tanto na escola quanto no serviço. Foi o que pontuamos como um impasse do caso. Durante as reuniões, escutamos como mãe e filho dormem, comem e engordam juntos.

 

O modo como o Outro materno olha e manipula o corpo de Rocha e o horror que esse filho ocupa no discurso de Lúcia nos orientam a oferecer um lugar de escuta distinto, no qual o olhar do Outro possa estar suspenso. Ao cernimos essa lógica do caso, a médica de referência afirma que é preciso introduzir um outro agente, além dela, na referência do caso e assinala que não se trata apenas dos impasses de Rocha, mas, na verdade, são três os casos a serem considerados: o caso Rocha, o caso Lúcia e o caso da própria equipe. Desde então, a estagiária passou a atender Rocha semanalmente.

 

3ª conversação: tempo de escutar-se

 

Nessa conversação para a construção do caso, iniciamos com uma apresentação/leitura, projetada em slide, das falas dos técnicos sobre o que se decantou da conversação. É muito interessante porque permite que cada um da equipe, ao ler suas falas projetadas, escute a própria voz: o que disseram, como se posicionam frente ao caso. Recolhemos momentos de surpresa dos profissionais e também uma possibilidade de a palavra circular sem se repousar em um mestre.

 

A relação mãe-criança é um ponto fundamental, e sua relação com o modo como a equipe vinha trabalhando é salientado como um ponto de impasse da equipe. A coordenadora do serviço pontua: “Sem dúvida, quando você coloca assim, ele repete uma coisa assim da relação com a mãe, na relação com a sua médica”.

 

Outros pontos são trabalhados sobre como intervir com a escola e também sobre o horror com o qual Rocha muitas vezes se apresenta, como nos diz a coordenadora da oficina Arte na Espera: “Tem um pior aí, sabe, assim, nos vídeos… ou são histórias de terror, que ele quer horrorizar… aí os meninos dão um chega para lá nele, aí ele para”.

 

Nessa conversação, a estagiária também narra os atendimentos com Rocha. Nas primeiras entrevistas, Rocha, por vezes, demorava a ir ao atendimento, necessitando que a estagiária insistisse e sustentasse o seu desejo de escutá-lo. Jogar truco viabilizou o laço transferencial, na medida em que se trata de um significante do sujeito, o qual demarcava um lugar no qual Rocha sabe transitar. E, mais, o truco se tornou um significante a partir do qual a estagiária transmitia sua aposta no sujeito: “truco que você não tem nada a dizer”, ou “truco que você só quer ficar em casa dormindo”.

 

Na construção do caso, o manejo dos jovens (participantes das oficinas) com Rocha foi se desvelando, como a direção do tratamento: pontuar os excessos sem se horrorizar, o que mantêm o laço e permite a Rocha experimentar outras posições. Ele passa, daquele que assusta o outro tentando ‘sujá-lo’ de tinta, àquele que faz artes no corpo do outro, ‘maravilhas’, como diz uma das oficineiras. Dessa forma, a oficineira joga truco com ele e, ao não se horrorizar diante de uma ação intempestiva do jovem tentando ‘sujá-la’, legitima tal movimento como um ato subjetivo. Portanto, “o caso não pode ser tomado no horror”. O truco aparece como a invenção desse sujeito, acolhida pela equipe, que rompe com a palavra especializada: ele pode passar a trucar a palavra do Outro que o nomeia no lugar do pior, como a escola fazia.

 

4ª conversação: sobre o que resta a construir…

 

Nessa conversação, a estagiária fala de como estava o processo de seu desligamento do TaR e se faz a apresentação de uma nova estagiária e de uma psicóloga do Janela da Escuta para a continuidade do tratamento. Ela relata para equipe o que Rocha responde sobre continuar indo aos atendimentos: “só se elas souberem jogar truco”.

 

Vários são os impasses que se decantam da construção do caso, que nos lançam, mais uma vez, ao trabalho. Nessa perspectiva, nos perguntamos se um dos efeitos da conversação foi a escuta do significante truco, que pode romper com a palavra especializada que mortifica o sujeito, e se esse significante poderia propiciar a separação da palavra da mãe.

 

Comentário de Philippe Lacadée[v]:

 

A invenção de vocês é surpreendente: dois pilares fundam a prática exercida. A presença de um aluno aprendiz, na equipe designada AT (Aluno a trabalho), tem a função de colocar a equipe para trabalhar. Isso permite criar o efeito-equipe, visto que a equipe, como Outro, não existe. Existem, assim, os efeitos-equipes, que só existem por causa da proposta de construção do caso. Produzem-se diferentes efeitos-equipes com a construção de caso. Em última instância, esses efeitos-equipes são efeitos de palavra. Tratam-se, portanto, de efeitos de criação, a partir de pontos de impasse.

Sobre o caso que Aline apresenta, é evidente a relação particular do jovem com sua mãe, pois sua imagem reflete a imagem de sua mãe. Ele se veste como ela, ambos são obesos, e a semelhança fica ainda mais facilitada pela particularidade de o jovem apresentar ginecomastia. Além disso, destaca-se a deficiência do rapaz, que permite ao par mãe-filho sobreviverem, já que recebem o BPC (Benefício de Prestação Continuada).

A construção clínica, com base na orientação lacaniana, mostra que vocês foram sensíveis ao fato de que ele tem um problema com o próprio corpo. No curso de uma das consultas, ele faz um jogo de fort-da: entra e sai da sala. E, sobretudo, não demanda mais que o seu corpo seja gozado pelo outro, recusando ser pesado e medido. E, finalmente, apoiando-se em um filme, diz que a personagem Malévola perdeu suas asas e quer recuperá-las. Diz também: “Eu quero ser livre”, o que nos remete à posição do sujeito. Ele quer voar com as próprias asas e, depois de dizer isso, faz um enunciado formidável: pergunta a sua médica: “mãe, onde coloca o assento”? Ele brinca com a homofonia. Acentua o lugar. Destaca o fato de cada um ter um lugar. Observem bem a palavra lugar: certamente é uma surpresa da linguagem, mas, ao mesmo tempo, é o testemunho da posição de gozo. Lacan diz que, nesse momento o analista se torna um leitor. Mais além do acento, o analista lê que, na história entre sua mãe e ele, trata-se de cada um encontrar o seu assento.

A mãe começa a reinvestir em seu corpo, a tornar-se feminina. Ela não é mais somente mãe. Porém, o corpo invisível da criança penetra o corpo da mãe e ela vai aceitar que o filho mostre as ereções. A luz sempre tem um lado obscuro. Nesse momento chega-se, então, à questão do lugar. Que lugar conceder a ele? De que lugar a gente vai operar?

É possível ver que essa criança precisa de ajuda. Em um determinado momento, Lacan propôs apoiar na função do pai como princípio de separação. A equipe do Janela da Escuta, para ajudar a criança a se separar de sua mãe, inventou um novo Nome do Pai: o dom do fogão. Para ajudar a criança a se separar da mãe, apostou–se no fogão, que veio modificar completamente a relação da mãe com a avó. Mãe e filho passam a cozinhar pratos deliciosos. Não se trata mais de comer o segredo do filho, à noite, nem de fazer um único corpo com o filho, menos ainda de engordarem juntos. De um momento a outro, a mãe pode se separar da própria mãe. O que o filho vai fazer diante disso? Pouco tempo depois, o filho vai decidir cortar as próprias mamas. Pode-se perceber, nisso, que há uma passagem na qual ele busca se separar de seu excesso de semelhança com sua mãe.

Na Terceira conversação também tem algo extraordinário: vocês introduzem o significante da repetição. Sem dúvida, ele repete alguma coisa. Ele repete alguma coisa da relação de sua mãe com a de seu médico. Como vocês notaram bem, alguma coisa se deslocou. Ele vai se apresentar de uma maneira completamente diferente a partir do momento em que se separou da repetição de seu corpo com o de sua mãe. Ele vai utilizar os vídeos com histórias de terror para fazer medo. Não se está mais no momento da repetição do corpo com o de sua mãe, pois ele teve acesso a uma outra coisa: o que Lacan chamou de pantomina, ou seja, ele coloca em evidência o fato de poder utilizar o semblante, de fazer medo. Da mesma maneira, ele vai utilizar o jogo do truco. Ele pode fazer isso porque se separou de um excesso de gozo no seu corpo para utilizar, então, o jogo do truco. Ele próprio coloca em ação um jogo baseado sobre a aposta, sobre o blefe. De fato, nesse momento há uma aposta na escuta, mais além do campo do visível que poderiam interessar a medicina que, por sua vez, diz que o corpo é obeso. Vocês deram testemunho de saber trabalhar sob a orientação lacaniana ao escutarem que o corpo não é isso, mas é algo que, para um cada um, se goza. A estagiária diz: “eu truco que você não tem nada a dizer”. Assim, ela apreende que se trata de um significante da transferência. Ela o utiliza na relação com a língua, como se dissesse: “já que é você que se interessa pelo truco, eu te reenvio sua mensagem, mas na forma invertida, e truco que você não tem nada a dizer.”

O jogo do truco é, essencialmente, um jogo, ou seja, um objeto, e isso pode ser a invenção do Rocha, ou seja, sua descoberta. Para que haja uma passagem da descoberta à invenção, é necessário que aconteça um efeito-equipe, que se constrói em torno do objeto carta-truco. O efeito-equipe permite elevar o objeto truco à dignidade de um significante, um significante que não está mais sozinho, porque ele pode gozar de si mesmo. É no momento em que vocês o elevam à dignidade de significante que ocorre a aposta. Se, por exemplo, o fogão pudesse vir como princípio de separação, como interdito do gozo, seria uma aposta sobre o fogão, aposta no pai. Entretanto, com o truco como significante, o que ocorre é uma aposta sobre o par significante: S1-S2. Se truco é um S1– “eu truco que você não tem nada a dizer” –, esse “você não tem nada a dizer” é uma nomeação de sua posição silenciosa, tendo reconhecido o truco como significante da transferência. Então, é possível esperar o que pode vir a ser dito. Não é mais o saber do handicap, mas um saber que será inventado. Por enquanto, o botar medo de Rocha é tomado no âmbito de um acting out, na própria cena da instituição. Ele ainda vai bancar o terror, fora da instituição. Mas não pensem que isso é uma resposta à intervenção “truco que você não tem nada a dizer”. Em relação à questão colocada em seu texto (se “truco” poderia ser uma separação com relação ao dizer da mãe), pode-se dizer que o truco pode ser uma entrada para uma separação possível, apoiada na palavra da estagiária, sim, mas também há a palavra da mãe. Ele pode até entrar na aposta, mas não sem continuar fazendo um pouco horror e medo.

Graças ao significante que vocês inventaram – aluno aprendiz –, significante que consegue enodar a questão do aprendiz como aquele que ensina aos outros, entendo que a aprendizagem só é possível pelo desejo, o que a distingue do adestramento. O aprendiz ensina à equipe que apenas se pode ensinar a partir do que se constrói sob um ponto de não-saber. A aprendizagem pode deslizar o significante do desejo que, nesse caso, é bem ilustrado, com base na maneira como o aprendiz fez a aposta do truco: isso é a pérola, é o desejo.

 


Referências
ALKMIM, W. (org.) VIGANÒ, Carlo. Novas conferências. Belo Horizonte, Scriptum Ed. 2010. 264p.
BRISSET, F.; SANTIAGO, A.; MILLER, J. (orgs.) Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte. Scriptum Ed. 2013.
BROWN, N.; MACÊDO, L.; LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP editora. 2017.
FREUD, S. (1937/1975) “Construções em Análise” In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. RJ. Imago.
LACAN, J. “Apertura de la sección clínica”. 5 de janeiro de 1977. Disponível em: www.ecole-lacanienne.net/wp-content/upload/2016/04/ouverture de la section clinique.pdf.
MENDES, A. O efeito-equipe e a construção do caso clínico. Curitiba, PR: CRV editora. 2015.
[i] LAURENT, E. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual” In: BROWN, N. MACÊDO, L. LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP Editora, 2017 (p. 37-47).
[ii] O laboratório Janela da Escuta, coordenado por Cristiane Cunha, trabalha com o acolhimento de adolescentes e suas famílias, por meio da formação de profissionais em uma prática clínica interdisciplinar orientada pela psicanálise em um ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG.
[iii] Os nomes utilizados na apresentação desse caso são fictícios.
[iv] Oficina de arte que ocorre junto às atividades do Janela da Escuta, coordenada por uma artista. Os adolescentes participam das oficinas enquanto esperam para serem atendidos pelos profissionais.
[v] O comentário de Philippe Lacadée, presente neste texto, foi extraído da conversação clínica realizada no CIEN no dia 30 de agosto de 2017.
[1] Esse texto foi escrito com colaboração de Ângela Maria Resende Vorcaro e Alice Rezende Oliveira, esta última, estagiária do Tecendo a Rede.
[1] LAURENT, E. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual” In: BROWN, N. MACÊDO, L. LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP Editora, 2017 (p. 37-47).
[1] O laboratório Janela da Escuta, coordenado por Cristiane Cunha, trabalha com o acolhimento de adolescentes e suas famílias, por meio da formação de profissionais em uma prática clínica interdisciplinar orientada pela psicanálise em um ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG.
[1] Os nomes utilizados na apresentação desse caso são fictícios.
[1] Oficina de arte que ocorre junto às atividades do Janela da Escuta, coordenada por uma artista. Os adolescentes participam das oficinas enquanto esperam para serem atendidos pelos profissionais.
[1] O comentário de Philippe Lacadée, presente neste texto, foi extraído da conversação clínica realizada no CIEN no dia 30 de agosto de 2017.

ALINE AGUIAR MENDES
Doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do CIEN-Minas. Coordenadora do Tecendo a Rede. Professora da PUC Minas. alineaguiarmendes@yahoo.com.br



O Mundo Do Trabalho E Subjetividade Nas Psicoses: Identificações, Estabilizações E Desencadeamentos

MARIA BERNADETE DE CARVALHO

 

ANA OU LACADE – FOSFOROS

Tempos atrás, mais ou menos entre 2004 e 2008, integrei um grupo interessado pelas questões do mental no trabalho. Nossas pesquisas e reflexões estiveram polarizadas pelas discussões a respeito dos nexos causais entre trabalho e adoecimento mental. Em que medida pode-se estabelecer um vínculo entre o trabalho e o adoecimento?

 

Tratava-se de uma questão que nos chegava dos sindicatos, de instâncias jurídicas, de profissionais de saúde vinculados à clínica com trabalhadores e até da Secretaria de Saúde do Estado. O reconhecimento médico e jurídico de uma relação causal entre um trabalho e certo adoecimento tem implicações em termos de direitos sociais, podendo o trabalhador receber ou não os auxílios previstos por lei. E, numa deformação, o adoecimento vira, muitas vezes, a via de luta, ou melhor, a forma individual de responder a condições degradantes de trabalho.

 

Nesse momento, chamava a atenção o número de trabalhadores afastados por problemas de saúde mental e, marcadamente, em certas atividades laborais, como os teleatendentes, os professores, os trabalhadores da saúde. Sintomas transestruturais, como o alcoolismo, as depressões, as fibromialgias e as perturbações do sono eram e, ainda são, frequentes.

 

Verificava-se também, estatisticamente, que algumas categorias profissionais eram especialmente afetadas por um ou outro desses sintomas, o que fazia pensar que as relações no trabalho e/ou sua organização poderiam estar na causa de certas manifestações sintomáticas, tal como se conseguiu comprovar para o caso de adoecimentos orgânicos, como a silicose.

 

Condições sociais diferentes colocam desafios diferentes à constituição subjetiva, que é de cada um. Mas, capturados pelos discursos sociais, os sujeitos se manifestam, inclusive sintomaticamente, de formas semelhantes, como por meio dos sintomas citados acima, sintomas sociais. A relação desses sintomas com o trabalho não é sem as mediações que são dadas pelas condições subjetivas de cada um. São esses os sintomas ou nomeações do mal-estar que, muitas vezes, nos chegam na clínica e cuja função e sentido vamos, aos poucos, entendendo em cada sujeito.

 

Estávamos, naquele momento, em outro nível de análise em relação ao que agora se coloca quando partimos da psicose.

 

De um modo geral, se o trabalho pode ser degradante, exigente e se constituir como a encarnação do Outro malévolo ou como espaço de realizações, ele é, sobretudo, o local, por excelência, do laço social. Vale retomar o que Freud diz em O mal-estar na civilização e que Nicola Purgato recorta, no seu texto intitulado “A benção do trabalho” (PURGATO, 2017, p. 10):

 

Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade (FREUD, 1930/1996., p. 87-88.).

 

Hoje, mais que nunca, o trabalho é central em nossas vidas, medida do seu valor e mediador de laços sociais. E, como um universal, o trabalho tem a qualidade de estar posto para todos. Ele é parte da condição humana. Desse modo, quando nos fazemos representar pelo trabalho, isso, por si só, nos garante um lugar na comunidade humana. Essa possibilidade é preciosa para todos, mas, na psicose, quando o campo do Outro é especialmente insuportável, as identificações com o trabalho podem oferecer a sensação de ocupar um lugar no mundo e viabilizar estabilizações e trajetórias de vida bastante normais. Alguns casos nos ajudam a avançar, já que isso ocorre de formas singulares.

 

Uma vinheta de Nicola Purgato é exemplar a respeito da estabilização pela identificação ao S1 trabalho, e a transcrevo abaixo:

 

Giuseppe, cinquentão single, há anos trabalha part-time em uma instituição pública, orgulha-se de fazer o seu trabalho, […] porque se sente o único que realmente trabalha e faz a instituição andar pra frente com certo cuidado, uma vez que todos os seus colegas são preguiçosos, só conversam e – por isso – o denigrem. Não há muitos sinais de psicose manifesta nele, embora se possa intuir sua estrutura subjacente […]. O trabalho para ele, por isolá-lo dos outros, o conecta com uma sensação que o mantém, de algum modo, ligado ao Outro (PURGATO, 2017, p. 11).

 

Há algum tempo, acompanhei um jovem, Jota, 30 anos, cuja relação com o trabalho e com os colegas em muito se aproxima à descrição acima. No entanto, ele chegou até mim num momento em que algo na junção com o sentimento de vida se desarranjou e que ele experimentou, repentinamente, uma total ausência de interesse pelo mundo. Tudo ficou cinza, diz ele, indicando um forte recolhimento libidinal.

 

Após uma licença e não sem dificuldades, Jota conseguiu reconstruir seu retorno ao trabalho. Sua explicação para o ocorrido e sua estratégia para o retorno centraram-se no excesso de trabalho: foi porque ele trabalhava demais, assumindo tarefas que eram difíceis para os outros e o lugar de um consultor, que ele terminou por ficar deprimido. Ao lado disso, e penso que mais importante, ele experimentou uma descrença na possibilidade de conseguir fazer o seu setor funcionar direito. Ele relata sobre uma conversa que teve com um diretor, em que este o teria sondado a respeito de como empregar os recursos destinados ao treinamento do pessoal da casa. Nessa conversa, Jota não só descobre a total ignorância do chefe a respeito dos problemas e seu menosprezo pela questão como também se vê colocado numa posição de exceção.

 

Esse relato, a perplexidade que o acompanha e sua desorganização corporal nas ocasiões em que é chamado a se responsabilizar por seu sobrinho, levou-me a trabalhar com a hipótese de que seu desencadeamento se devia à impossibilidade de ocupar esse lugar de exceção. Nesse momento, as solicitações de que era alvo começaram a se tornar invasivas.

 

Seu retorno ao trabalho se construiu sobre a limitação das tarefas de que se encarrega, embora permaneça sendo aquele que, diferente dos colegas, trabalha corretamente. Sua descrença quanto à possibilidade de mudar o funcionamento do mundo introduz um peso em sua relação com o trabalho e ele procura por alternativas. Esse trabalho, no entanto, com a flexibilidade que ele admite, dá um lugar no mundo a esse sujeito, cuja existência é bastante restrita.

 

Muito mais tarde no tratamento, Jota revelará que sua depressão sobreveio no momento em que iniciava um relacionamento com uma colega. Esse relacionamento, único em sua vida, não passou de alguns encontros, pois o estado em que se viu o levou a por um fim na história. Ele diz que, quando entendeu que estava deprimido, telefonou para a moça e falou que não poderia continuar. Aqui, também, o sujeito não pôde ocupar uma posição de exceção.

 

Nicola Purgato (2017, p. 11) chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, não é preciso que o trabalho seja formalizado ou socialmente muito significativo para sustentar uma existência e possibilitar a sensação de um lugar no mundo. Ele dá o exemplo de um jovem desempregado que se incumbe de estudar para descobrir como os políticos e economistas nos enganam. Com isso, ele escreve pequenos artigos para um jornal local, pelos quais nada recebe, mas que, para ele, é o trabalho mais importante para a construção de um mundo melhor. Aqui, também, o significante ‘trabalho’, sozinho, opera de modo a sustentar o sujeito e a dar-lhe um lugar no mundo.

 

Podemos lembrar do caso da Estamira, cuja vida foi alvo de um documentário que está disponível no Youtube. Ela encontrará um lugar no mundo através de um trabalho bastante à margem, o trabalho de catadora no lixão. Ela encontra, nesse trabalho, a oportunidade de construção de um cotidiano e de laços sociais, ao mesmo tempo em que trata seu ser de dejeto, pelo reaproveitamento do que ela aí encontra e que ela compartilha com seus familiares.

 

Já o caso do Homem do Relógio, parece-me exemplar a respeito do recurso às identificações imaginárias pelo trabalho. Trata-se de um caso sobre o qual escrevemos um artigo há tempos (CARVALHO; MACEDO, 2007), investigando tanto as condições de estabilidade quanto o que se revelou insuportável para esse sujeito. A importância do trabalho, para ele, pode ser transmitida pelo trecho abaixo, passagem do depoimento colhido em entrevista por pesquisadores das relações entre trabalho e adoecimento, após o seu desencadeamento:

 

Não gosto de olhar no espelho. Quando eu ia trabalhar, eu gostava. Tinha aquele pensamento bom: “Sou vigia, vou vencer mais este turno”. Mas, agora, não tenho mais esse gosto. Fui à barbearia, tinha um espelho muito grande, e eu fiquei muito aborrecido em ver essa imagem minha. Deu medo de me ver naquele espelho e não poder dizer comigo mesmo: “Eu sou vigia noturno” (LIMA et al, 2002, p. 236).

 

É o trabalho que lhe permite construir uma imagem de si. Isso se reafirma com o seu relato de que, após o desencadeamento, se entrega a devaneios em que se trata de rever, como num filme, todo o ritual de se aprontar, olhar-se no espelho e dirigir-se ao trabalho; não sem marcar seu orgulho em se ver fardado.

 

Trabalhador impecável, esse sujeito que zela por seu bom nome através de recursos imaginários sucumbirá ao encontrar um chefe que quer tudo controlar. Esse chefe, ao mesmo tempo tirano com os empregados e permissivo em seu comportamento, presentifica um Outro abusador, que se tornará mais e mais insuportável para esse sujeito. Esse chefe, com sua presença e seus dispositivos de vigilância, irá desalojá-lo da posição de quem vigia, de quem olha, e transformá-lo no objeto de um olhar invasivo.

 

Esse senhor passa a apresentar sobressaltos, ausências, insegurança, sinais de desorganização corporal que vão de diarreias a dores e tonteiras, além da extrema rigidez na obediência às determinações insanas do chefe. Após seu desligamento do trabalho, ele desenvolve a compulsão de desenhar o relógio que, no trabalho, devia ser acionado de 20 em 20 minutos, para provar que estava desperto. Sem o trabalho e sem o relógio, ele o desenha para poder acioná-lo, o que tem o efeito de acalmá-lo. É interessante que, até com o relógio, ele termine por estabelecer uma relação especular, de rivalidade: quem vigia quem? Quando ele perde seu posto, ele quer manter o trabalho com seu relógio, de quem se tornou amigo. Senão, ele pergunta, “como explicar por que que ele faz falta pra mim?” (LIMA, 2002).

 

Evoco ainda outro caso, que li recentemente no livro da Nieves Soria Dafunchio, Confines de las psicoses (2008). Trata-se de uma jovem que desencadeia aos 19 anos, no momento em que seu pai e sua mãe sofrem quedas e fraturas, um após o outro. Eme, como a chamaremos, cai, como seus pais, e passa por uma internação psiquiátrica, iniciando aí, uma depressão e anorexia radical. Sete anos depois, ela será internada por desnutrição e iniciará o tratamento psicanalítico. Conforme se revelará, para Eme, o alimento e a voz da mãe se sobrepõem, fazendo com que, quando ela come, não tem como não escutar a voz da mãe. Quando ela come, escuta a voz da mãe por dentro. Nieves isola a expressão “não tem como não”. Ela comenta que falta a Eme o “não” do Nome-do-Pai, que permitiria limitar a voz superegoica da mãe.

 

Mas o que me interessou nesse caso, para incluí-lo aqui, é que, para além das intervenções de sua analista, no sentido de deslocar essa sobreposição entre a voz superegoica e o alimento, um trabalho sobre o objeto voz será possibilitado pela escolha profissional de Eme.

 

Atuando junto a um comissariado de proteção de mulheres vítimas de violência familiar, ela produz petições, slogans e textos de divulgação que buscam dar voz aos que não têm voz. Ela se ocupa em dizer pelos que não podem ou não sabem dizer, apropriando-se de sua voz. O reconhecimento de seu trabalho pelos colegas permite a Eme tomar a palavra e ser escutada, no lugar de escutar a voz da mãe. Nesse tratamento, está colocada a possibilidade de que a nominação de Eme pelo trabalho faça suplência ao Nome-do-Pai e se constitua como um suporte para o sujeito.

 

Depois de afirmar a importância do trabalho como forma de inscrição dos sujeitos no Outro e como um campo de soluções para as inclinações do gozo, indo até à suplência do Nome-do-pai, gostaria também de dizer que ele é um contexto fecundo para as interpretações delirantes na paranoia. Facilmente um pedido ou uma observação de um chefe ou colega são interpretados como humilhação, perseguição ou avanço de caráter sexual. Alguns sujeitos conseguem inventar artifícios, por vezes discretos, como horários alternativos, que servem para limitar o gozo do Outro, experimentado como invasivo. São manobras que visam esvaziar a consistência do Outro e diferenciar o sujeito. Aqui, como na clínica com esses sujeitos, o que se viabiliza é o tratamento do Outro.

 


Referências:
CARVALHO, M. B.; MACEDO, L. F. (relat.) “O Homem do relógio”. In: Curinga: a variedade da prática analítica. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, nº 25, nov. 2007, p. 55-59.
DAFUNCHIO, N. S. “Confines entre esquizofrenia y melancolia – el miedo al cuerpo”. In: Confines de las psicoses: teoria e prática. Buenos Aires: Del Bucle, 2008, p. 211-235.
FREUD, S. [1930] “O mal-estar na civilização”. In: Obras completas de Sigmund Freud. ESB. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1996, p. 65-148.
LIMA, M. E. A.; ASSUNÇÃO, A. A.; FRANCISCO, J. M. S.D. “Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho”, In: JACQUES, M. G.; CODO, W. (orgs.). Saúde mental & trabalho: leituras. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 209-246.
PURGATO, N. (2017) “A benção do trabalho”, in Papers nº 2: Desordens, sintomas e sinais discretos: XI Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Disponível em https://congresoamp2018.com/wp-content/uploads/2017/07/PAPERS-7.7.7.-N%C2%B02-Portugu%C3%AAs.pdf. Acesso em: 8 fev. 2018.

MARIA BERNADETE DE CARVALHO
Analista praticante. Membro aderente da EBP-MG. Socióloga. Mestre em Sociologia. Doutora em Psicanálise. bernadetec59@gmail.com



Conter E Contar A Vida Secreta Das Palavras

ADMARDO BONIFÁCIO GOMES JÚNIOR

 

 

ADMARDO – FILME FULL-THE-SECRET-LIFE-OF-WORDS

A vida secreta das palavras, filme dirigido por Isabel Coixet, conta a história de Hanna (Sarah Polley), uma mulher de 30 anos, parcialmente surda, solitária, silenciosa e fechada em seu mundo. Empregada exemplar em uma fábrica têxtil, um dia, no fim de uma jornada de trabalho, é advertida por um colega, que a faz ligar seu aparelho de surdez, pois está sendo chamada, pelo serviço de alto falante, para comparecer à diretoria. Lá, é convencida pelo diretor a tirar um mês de férias. Há pressão do sindicato e dos colegas contra seu padrão excessivamente adequado à produção. Seguindo a sugestão de seu chefe, ela segue de férias a um pequeno povoado costeiro. Antes de sua partida, vemos Hanna em casa, comendo os mesmos nuggets, arroz e meia maçã de sua refeição diária. Na bagagem para a viagem, ela coloca vários sabonetes, todos iguais, como elementos que compõem uma rígida rotina.

 

No local das férias, ela escuta, da conversa de um desconhecido ao telefone, que estão precisando de uma enfermeira para cuidar de um trabalhador acidentado em uma plataforma petrolífera em pleno alto mar, longe da civilização. Decidida do que fazer com o vazio do tempo das férias, ela se oferece para o trabalho.

 

Hanna se expressa pouco. Seu rosto tem sempre a mesma expressão séria, entristecida e concentrada. As poucas palavras que fala denotam uma objetividade quase constrangedora. Aos poucos, descobrimos que Hanna é enfermeira, trabalhou com pacientes queimados e é estrangeira. Mas há muito mais a descobrir.

 

Na plataforma de petróleo desativada devido a um recente acidente, ela encontra seu paciente, Josef (Tim Robbins), um homem que sofreu uma série de queimaduras que o deixaram temporariamente cego e bastante comprometido para uma remoção até um hospital. No primeiro contato entre os dois, Josef, cego, procura, com as palavras, se aproximar de Hanna e criar alguma imagem da mulher que lhe cuida, não sem tentar estabelecer com ela alguma intimidade. Os contatos entre os dois personagens são estabelecidos entre os cuidados medicinais prestados por Hanna e as constantes questões que Josef lhe faz sobre sua vida e seu cotidiano. Ela se restringe às obrigações de enfermeira, sem respostas, sem intimidade, sem nem mesmo dizer seu nome, que Josef tentara adivinhar e acaba por nomeá-la Cora: o nome de uma freira que cuidou de um jovem e que, diante da morte dele, descobre que o amava.

 

Um belo e delicado encontro começa a se estabelecer entre esses dois personagens, no qual a cegueira temporária de Josef, que lhe impõe a necessidade de recriar as imagens de seu mundo com as palavras, se depara com mundo particular de Hanna, um meio mantido sob controle, como que ao alcance do botão de seu aparelho de surdez. Nesse encontro, entre a audição – agora necessária para Hanna – e a fala como único recurso para Josef, imobilizado e cego, as palavras ganham uma inigualável força vital e desvelam segredos. Aos poucos, as frases engraçadas, brincadeiras e piadas que Josef cria no contato com Hanna vão fazendo sua expressão facial mudar, pequenos sorrisos se esboçam e algumas confissões tomam o lugar do silêncio e da rígida defesa.

 

Os então habitantes da plataforma de petróleo são Hanna e Josef, um ganso que se chama Lisa e mais seis homens: Simon, Abdul, Dimitri, Martin, Scott e Liam. Vamos, aos poucos, conhecendo a singular história de cada um desses portadores da vida secreta das palavras. Personagens cujos trabalhos lhes preservam a solidão como forma de viver em paz. Simon é um exímio cozinheiro e diz que, para suportar o tédio do local e não ficar louco, cozinha pratos de diferentes nacionalidades, ao som das músicas de cada país a ser representado na culinária. Martin é oceanógrafo e gosta de jogar basquete sozinho. Seu trabalho é medir, pelas ondas que se chocam contra a plataforma todos os dias, a força do mar. Scott e Liam cuidam da casa de máquinas, têm, cada um, suas famílias e filhos e vivem ali, na plataforma, uma relação amorosa. Abdul trata da limpeza. Delicadamente, Hanna se integra àqueles habitantes exatamente por se sentir confortável em meio a seus inabituais, mas familiares silêncios e palavras, repletos de solidão e lembranças.

 

Dimitri é o encarregado geral e é quem um dia relata, a pedido de Hanna, o acidente que feriu Josef e matou o melhor amigo deste. As palavras de Dimitri sobre a morte do amigo de Josef são:

 

Esse homem queria se matar. Se lançou às chamas. Josef tentou salvá-lo, mas… tudo aconteceu muito rápido. Todos vimos ele se jogando às chamas. Não dissemos à companhia tudo o que se passou. Deixamos que pensassem que foi um acidente. Esse homem deixou uma mulher e dois filhos. Por que dizer a verdade? Deixamos que pensassem que morreu acidentalmente. Isso deixaria dinheiro para a família. E… no fundo… tudo é um acidente.

 

O filme segue. Há muito mais para contar, mas pensemos sobre a função subjetiva do trabalho. O que A vida secreta das palavras nos permite desvelar dessa função? Parece-nos que, se pensarmos o trabalho como “uso de si” (SCHWARTZ, 2000), ele é inteiramente uma reflexão sobre muita coisa do que se passa aí. É um filme em que fica claro que as escolhas possíveis que cada pessoa faz ali, no campo do trabalho, diz muito sobre a dimensão subjetiva de cada uma delas. A diretora Isabel Coixet soube trazer para a história toda a dramática do uso que cada personagem faz ali, de si, na relação com o trabalho. No filme, trabalho e vida não se separam, eles estão na mesma plataforma.

 

Depois que descobrimos alguns dos segredos das palavras que contam a história de Hanna, entendemos melhor o uso que a personagem parece fazer de si na fábrica têxtil. O trabalho ali é o da contenção, na repetição de uma rotina sem muita invenção. A mesma comida todos os dias, o mesmo trabalho repetitivo, quatro anos sem aparente interrupção. Tudo isso indica cumprir uma função. Seu modo sintomático de viver busca amarrar registros por demais disjuntos pelos traumas vividos.

 

A vida secreta das palavras de Hanna na fábrica segue seu rumo, organizado de forma a conter. Manter dentro de si. Sob certo uso. Sem risco de transbordar e inundar a vida de lágrimas. Mas eis que algo interrompe sua surdez também controlada. O eventual, a contingência, o inesperado, o acidental: as férias forçadas que a conduzem ao litoral. No ônibus, a caminho das férias, podemos ver Hanna bordando um pedaço de pano. Nesse novo lugar, o trabalho de bordado é dispensado numa lixeira. Prenúncio de um novo uso de si? Do uso de conter para o uso de contar a vida secreta das palavras? ”Sou enfermeira”, diz Hanna, ao seu vizinho de mesa cuja conversa ela ouvia. É surpreendente a forma decidida com que Hanna se apresenta. Naquele momento, as palavras servem para contar algo de muito importante da sua história. Sou enfermeira. Um significante que a nomeia. Uma palavra que a identifica, e cujo emprego acaba por expô-la ao trabalho de contar sua vida.

 

O trabalho de enfermeira reenvia Hanna a sua vida no ponto em que ela foi paralisada. Onde ela brutalmente foi obrigada a se conter. Uma formação interrompida pela guerra. Uma escolha impedida. Um projeto de uso de si violentamente abortado. Retomar essa atividade, esse uso de seu corpo na função de cuidar do outro, parece ir, aos poucos, permitindo fazer conviver experiências incomunicáveis: o antes e o depois das atrocidades vividas, as marcas indeléveis das torturas sofridas na guerra. Nesse trabalho, um novo uso do corpo, que lhe exige reordenar, com as palavras, as novas experiências do encontro com alguém que lhe demanda cuidado e afeto. Um encontro no qual o amor e a confiança permitem que ela possa dizer, afinal, algo de seu trabalho e de si. Numa manhã, Hanna, ao limpar o corpo de Josef, relata:

 

Quando estudava em Dubrovnik, sempre temia o momento de limpar os pacientes. Sentia-me desconfortável… pensando que eles estavam com vergonha. Mas percebi que as pessoas gostam de estar limpas. Não importa como você os limpa… ou quem limpa, eles gostam de estar nas suas mãos. Gostam de te confiar o seu corpo. Como se dissessem: É apenas o meu corpo. Só um corpo. Você nunca vai saber o que penso realmente, quem sou.

 

Essa é a frase que desencadeia a sequência de palavras que descortinam algumas das doses do horror guardadas em segredo pela personagem. Na cena, Hanna diz dos cortes e cicatrizes que levaram à morte aquela que vivia com ela e que era sua melhor amiga. E ela desnuda seu corpo para que seu paciente, cego, possa tocar e sentir as cicatrizes que o marcam. A última palavra dita nessa sequência responde à pergunta de Josef “Como se chamava a tua amiga?”: “Hanna”, ela responde. Só então Josef pôde saber seu nome. Nesse ato, corpo, história e nome se enlaçam. Amor e trabalho, nesse momento, parecem cumprir mais um passo no caminho da sublimação da pulsão de morte contida e contada nesse corpo.

 

Estaríamos aí frente a um novo uso do trabalho enquanto significante mestre S1, que parece conter a vida da personagem? Podemos pensar que retomar no corpo os gestos do saber-fazer de sua escolha profissional de enfermeira a convoca a contar a vida em um novo uso de si?

 

Lembremos de Freud (1930) em O mal-estar na civilização, da ênfase concedida ao trabalho, da livre escolha, do uso das moções pulsionais, do que a sublimação nesse domínio pode operar. Lembremos de Lacan (1976-1977) ao dizer do savoir y faire para entender que o saber que aí se produz não é da ordem da troca, do sentido, do pensamento, da interpretação. Ele é uso, é emprego, é fazer com. Não é que não possa ser aprendido, mas é que não se deixa apreender no formalismo do ensino, nos programas disciplinares, nas prescrições do trabalho, nas sugestões terapêuticas, etc. Não é um saber da racionalidade orientada pelos conceitos, mas pela dialética desses com a atividade da vida. É um saber que permite lidar com o fato de que, na vida secreta das palavras, como disse o encarregado Dimitri, “tudo é um acidente”. Aberto às contingências, às múltiplas causalidades, às arbitragens, às variações de possibilidades de ordenar as palavras e com elas ampliar os sentidos de seu uso.

 

Ao final do filme, a voz de criança que narra parte da vida de Hanna, a acompanha e a acolhe, pode se fazer mais ausente. Essa presença imaginária que ajuda Hanna a se enlaçar é substituída pela presença real de uma família que ela pôde constituir. O amor dedicado ao marido e às crianças e o trabalho de cuidar, contido no lar, parecem fazer prosseguir a pulsão por um destino mais sublime.

 


Referências: 
A VIDA SECRETA DAS PALAVRAS (La vida secreta de las palabras). Dir.: Isabel Coixet. Distribuído por: Monopole-Pathé. Espanha, Irlanda. Cor, 2005, 115 min.
FREUD, S. (1930/1976). O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. (1976-1977) “O Seminário, Livro 24: Lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra”. In: Obras completas de Lacan em cd-rom.
SCHWARTZ, Y. (2000). “Trabalho e uso de si”. In: Pro-Posições, Vol.1, Nº5 (32), julho.

ADMARDO BONIFÁCIO GOMES JÚNIOR
Pós-doutor pela Fae/UFMG, doutor em Educação Fae/UFMG e em Filosofia pela Aix-Marseille Université. Professor do CEFET-MG. Rua São João Evangelista, 525/101, Santo Antônio – Belo Horizonte – MG admardo.jr@gmail.com 31 9 8557 4281



Entre A Cruz E A Espada: Culpa E Gozo Em Um Caso De Neurose Obsessiva

RODRIGO ALMEIDA

RODRIGO ALMEIDA- GUSTAV KLIMT

O tema do masoquismo aparece na obra de Freud em sua elaboração sobre as perversões, na fundamentação da criança perverso-polimorfa e, posteriormente, em relação aos sintomas neuróticos, em que sadismo e masoquismo só devem ser considerados patologias em casos extremos.

 

Na elaboração da teoria das pulsões, Freud afirma que as pulsões de autoconservação são também pulsões sexuais. Em “As pulsões e seus destinos” (1914), aponta os quatro destinos da pulsão: reversão a seu oposto, retorno ao próprio eu, recalcamento e sublimação. Detendo-se aos dois primeiros, no retorno ao próprio eu, Freud propõe que o sadismo é anterior ao masoquismo e que o masoquismo é um sadismo contra a própria pessoa.

 

“A observação analítica realmente não nos deixa duvidar de que o masoquista partilha da fruição do assalto a que é submetido e de que o exibicionista partilha da fruição de sua exibição. (…) não podemos deixar de observar, contudo, que nesses exemplos o retorno em direção ao eu do indivíduo e a transformação da atividade em passividade convergem ou coincidem.” (FREUD, 1914, p. 132)

 

Notamos, nesse momento de sua construção teórica, que o masoquismo encontra satisfação sexual no sadismo. A mudança da atividade para a passividade faz parte do mecanismo pelo qual a pulsão busca a satisfação.

 

No texto “Uma criança é espancada” (1919), Freud busca esclarecer sobre o masoquismo e faz uma leitura das perversões, argumentando que as fantasias sádicas ou masoquistas podem estar presentes nas neuroses, em que algo de um traço perverso permaneceu. A primeira fase, representada pela frase “meu pai está batendo na criança que eu odeio”, acontece em um período muito precoce, em que o sadismo ou o masoquismo não se define muito bem, visto que aquele que cria a fantasia não é o mesmo que espanca; a segunda, “estou sendo espancada pelo meu pai”, é importante porque mostra um caráter masoquista, em que o que é colocado em evidência são os aspectos psíquicos, e não a dor. Freud nos orienta que o agente de mudança da fantasia é a culpa, esta que aparece com a interdição do incesto. Assim podemos aferir que algo do amor que foi interditado e da culpa estão presentes no masoquismo.

 

Na terceira, “O meu pai está batendo nas crianças, ele só ama a mim”, apesar de sádica, Freud orienta que nessa fantasia a satisfação é masoquista, pois a outra criança nada mais é que a própria criança.

 

Uma nova mudança se dá em 1920, em “Além do princípio do prazer”. Atento ao que percebe como compulsão, a repetição em sua clínica, Freud nota que o que está em jogo não é uma busca pelo prazer, mas algo que se satisfazia ali no ato de repetir uma experiência desprazerosa para o sujeito. Com o dualismo pulsional, pulsão de vida e pulsão de morte, Freud propõe que sadismo e masoquismo estão presentes em todo sujeito.

 

Porém a grande mudança em relação ao masoquismo se confirma em sua elaboração de 1924, “O problema econômico do masoquismo”, em que no par de oposição prazer-dor há um ponto de vista econômico em relação ao princípio do prazer e à ameaça que o masoquismo representa para a vida psíquica. O masoquismo, sempre “enigmático”, aparece agora no que guarda relação com os componentes libidinais em cada indivíduo.

 

Nesse texto, o masoquismo não é mais oriundo de um sadismo. Freud reconhece e nomeia três formas de masoquismo: o primário, o feminino e o moral. Este último permite a Freud avançar em relação aos problemas ligados ao sentimento de culpa. “O masoquismo apresenta-se a nossa observação sob três formas: como condição imposta a excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento” (1924, p. 179).

 

Essa dimensão econômica, colocada aqui de forma mais evidente, nos abre os olhos para a pulsão de morte que, de forma silenciosa, se apresenta nos sintomas do sujeito. O masoquismo é o sinal da presença da pulsão de morte na pulsão de vida.

 

No masoquismo moral, o que vai importar é o sofrimento, já que o verdadeiro masoquista sempre oferece a face, onde quer que a oportunidade se apresente.

 

É o que se pode observar nos fragmentos de um caso clínico que trazemos. João relata situações nas quais o outro sempre se aproveita da sua boa intenção e da sua disponibilidade. Apesar de saber que ao final ele será prejudicado, não consegue negar ao outro que lhe pede. O mal-estar que dizer não ao outro produz em João é que faz com que o sentimento de culpa apareça. Podemos perceber a satisfação que a culpa traz a este sujeito, que na sua estratégia para lidar com o outro abraça o seu sintoma. O que importa é manter o sofrimento.

 

“A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o bastião do indivíduo no lucro que aufere da doença (…) o sofrimento acarretado pelas neuroses é exatamente o fator que as torna valiosas para a tendência masoquista.” (FREUD, 1924, p. 183)

 

Recolhemos outros pontos na fala deste sujeito, que colocam mais luz sobre o seu modo de gozo. O fato de sempre “se colocar em risco”, como deixar o carro em lugar que pode ser roubado ou arriscar-se contratando garotos de programa e indo com eles para lugares desertos, tendo sido por duas vezes espancado e roubado, atesta para o seu modo de masoquismo. É como se apenas ser roubado ou espancado fosse pouco para este sujeito, que está sempre à espreita para que algo pior lhe aconteça. A dimensão mortífera e silenciosa da pulsão aparece como que orientando a sua vida.

 

O outro, que aparece aqui como um abusador, e o sujeito que não sabe sobre o seu próprio gozo nos colocam diante do seu caráter masoquista. Vemos, assim, a prevalência do que Freud nomeia de verdadeiro masoquista, que está sempre pronto para dizer ao outro como abusar dele, e alcançar a punição. O masoquista é quem diz como quer ser espancado, tem a posição ativa mascarada pela passividade, pois é quem procura por aquele que vai lhe infligir a tortura; tortura essa que vá de encontro ao ponto fantasmático do seu sintoma.

 

Lacan (1956), ao retomar Freud em “Uma criança é espancada”, nos aponta a questão da satisfação pulsional. No primeiro momento existe o ódio ao rival espancado pelo pai, o segundo momento é quando, através da fantasia masoquista primordial, o sujeito dá sua entrada no simbólico, onde se coloca na dialética significante. É no terceiro momento que Lacan propõe uma reformulação: bate-se numa criança, acrescentando o índice de indeterminação do sujeito, em que a função paterna surge de maneira vaga. A produção fantasística faz com que qualquer um possa bater, não só o pai. A posição do sujeito será por ele reeditada nos seus sintomas e na sua repetição. Podemos pensar este como o momento em que o sujeito fabrica a sua fantasia.

 

A atualização deste ponto fantasmático é o lugar de onde o sujeito constrói sua relação com o outro. Acreditamos ser importante abordar o sujeito obsessivo e sua relação com o Outro:

 

“Mas aquele que importa é o Outro diante de quem tudo isso se passa. É esse que é preciso preservar a qualquer preço, o lugar onde se registra a façanha, onde se inscreve sua história. (…) O que o obsessivo quer manter acima de tudo, sem dar a impressão disso, com um jeito de quem almeja outra coisa é esse Outro onde as coisas se articulam em termos de significante.” (LACAN, p. 431)

 

Ainda no caso de João, um indicativo dessa importância com o Outro aparece no seu relacionamento amoroso, em que o dinheiro não pode deixar de se apresentar nada pode faltar ao Outro. Diz ele: “quando o dinheiro acaba, o amor voa pela janela”. Com o relacionamento a que ele sempre se refere como “abusivo”, podemos articular várias questões: sua posição de gozo, sua forma de não suportar a falta do Outro e a dimensão da culpa.

 

Durante o seu percurso de análise, João pergunta por que se coloca sempre em risco, por que se deixa abusar. “Deixa?” é a forma com que intervenho na tentativa de implicar o sujeito em seu modo de gozo. Mais adiante, ele passa a falar de situações pontuais no trato com o outro em que se destaca sua própria demanda de ser abusado. Conclui, destes relatos, que ele mesmo busca situações sem saída, como se tivesse entre a cruz e a espada.

 

João se sente culpado de negar o que o outro lhe pede. A necessidade de punição aparece ao se colocar em situações de risco e o sujeito se vê sem saída, a culpa cumpre seu papel, fazendo o desejo ficar subsumido, e a dimensão do gozo aparece no que ela guarda de mais mortífero para este sujeito. A punição está sempre no seu horizonte.

 

Podemos pensar aqui no que concerne à culpa e ao supereu na neurose obsessiva. O supereu desempenha o papel de figura feroz.

 

Como nos orienta Freud em “O mal-estar na civilização”:

 

“O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo deste agente crítico, a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela da pulsão voltada para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego”. (FREUD, 1930, p. 139)

 

Portanto, vemos que a agressividade que é percebida como tensão pelo ego retorna ao próprio ego em razão do supereu. O eu, ao tornar-se masoquista, cria uma relação erótica com o supereu. Esse ponto se apresenta pelo sentimento de culpa, o eu vai usar da culpabilidade para se proteger.

 

Neste fragmento clínico, as relações do obsessivo com a culpa e o gozo estão presentes; a culpa se apresenta de forma silenciosa, advinda dessa satisfação masoquista do eu em que o sujeito está sempre à espera de punição.

 

Outro ponto importante é a relação do obsessivo e seu desejo, no que diz respeito ao Outro, à demanda e ao gozo. Em O seminário, livro 5, Lacan nos fala sobre o obsessivo e seu desejo, denegado pelo sujeito. Para o teórico, essa denegação vai surgir como a expressão do sentimento de culpa. Esta se inscreve, no que concerne ao desejo e à demanda. Como percebemos no obsessivo, a culpa seria o sinal do desejo. Na relação com a demanda que o mata, nada pode ser desejado pelo obsessivo sem que esteja recoberto pela culpa. “O obsessivo resolve a questão do esvaecimento de seu desejo fazendo dele um desejo proibido. Faz com que ele seja sustentado pelo Outro, precisamente pela proibição do Outro”. (LACAN, 1957-8, p. 427).

 

Preservar o Outro é a estratégia pela qual o obsessivo consegue tornar válido algo do seu desejo. Portanto, o mecanismo de defesa do obsessivo está posto em relação ao seu desejo.

 

João passa a se antecipar antes de ser capturado pelo seu gozo de arriscar-se. Um saber sobre o seu sintoma começa a ser construído. Começa a se perguntar se não está se colocando em risco e se a resposta é sim, tenta fazer diferente. Diante disso, lhe observo que ele está trazendo uma novidade. João se posiciona como aquele que sabe algo sobre a sua repetição e a satisfação presente no seu sintoma. Então ele questiona se realmente é preciso oferecer tudo ao outro, quando intervenho com um corte e a pergunta: “o que é possível oferecer ao outro?”

 

Mais adiante admite que se não tivesse buscado uma análise, poderia já ter morrido. Vemos aqui algo desse gozo mortífero, com que o sujeito, nesta frase direcionada para a sua análise, demonstra que foi possível conter algo da ordem da sua atuação.

 

Nosso tema não se esgota neste artigo. Propomos, para além deste trabalho, uma articulação em torno da questão da defesa no fazer da clínica. Para pensar na direção da cura na neurose obsessiva, é preciso levar em conta os pontos da defesa nas estratégias do sujeito, em que reconhecer a inconsistência do outro não traga algo de terrível e que não necessite mais ser um trabalhador incansável do supereu.

 


Referências bibliográficas
FREUD, S. (1915/2006). “Os instintos e suas vicissitudes”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV, p. 117-144.
_____. (1919/2006) “Uma criança é espancada”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, p. 193-218.
_____. (1920/2006). “Além do princípio do prazer”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, p. 13-75.
_____. (1924/2006). “O problema econômico do masoquismo” In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p. 175-188.
_____. (1930/2006). “O mal-estar na civilização”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, p. 67-148.
LACAN, J. (1956-57). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
_____. (1957-58). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.



Almanaque V. 11 – Nº 19 1º semestre de 2017

Eis aqui o Almanaque, o 19º de nossa série. Nossos textos foram cuidadosamente selecionados pelos integrantes da equipe de publicação desta revista eletrônica do IPSM-MG, a partir dos movimentos do Campo Freudiano. Neste número, você, leitor, encontrará material sobre o tema do XI Congresso Mundial de Psicanálise, “As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência”, e sobre o tema do VIII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL) “Assuntos de família, seus enredos na prática”. Acreditamos que a fluidez da internet possibilite que essas discussões reverberem e provoquem a participação de vários. Leia o editorial…

TRILHAMENTO

Psicoses, ordenadas sob transferência – MIQUEL BASSOLS

Clínica lacaniana da psicose – ANGELINA HARARI

Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos – YVES VANDERVEKEN

Catálogo de textos: Sobre as psicoses ordinárias e as outras – Almanaque

ENTREVISTA

Entrevista com Juliana Mota (Instituto Raul Soares – FHEMIG) Do confinamento ao manejo clínico – ALMANAQUE ON-LINE

INCURSÕES

A família contemporânea e o real do sexo – SUZANA FALEIRO BARROSO

O real na família contemporânea – Questões sobre o incesto – LUCIA MELLO

Os Filhos dos toxicômanos – MARIANA FURTADO VIDIGAL

The wolfpack: entre filmes e lobos – GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR

ENCONTROS

Assuntos de família no discurso toxicomaníaco: impasses – CASSANDRA DIAS FARIAS

O escabelo de François Augiéras: escritura e pintura do corpo do de-lito (de-leito) – PHILIPPE LACADÉ

DE UMA NOVA GERAÇÃO

De onde vêm as mães? – MAGDA H. B. CASAROTTI

“O Sujeito do gozo” na psicose – NÚBIA APARECIDA FERREIRA DE MELO




Psicoses, Ordenadas Sob Transferência

MIQUEL BASSOLS

 

LYGIA CLARK

 

Psicoses, ordenadas sob transferência

 

MIQUEL BASSOLS

 

A solidez de um conceito clínico se mede pela efetividade de seu uso, especialmente quando dá conta de um campo de fenômenos para os quais não existia antes um mapa estabelecido[1]. A partir dessa perspectiva, podemos dizer, sem dúvida, que o conceito de “psicoses ordinárias”, cunhado por Jacques-Alain Miller no final dos anos noventa, chegou a ser um conceito clínico já estabelecido, um conceito de enorme efetividade, dado ao seu uso ampliado desde então no campo freudiano… e mais além. As psicoses ordinárias dão conta, assim, de uma série de fenômenos que, às vezes, passam despercebidos por sua aparente normalidade mas que, escutados desde o ensino de Lacan, indicam as condições de estrutura que temos aprendido a localizar no campo das psicoses. Discretos acontecimentos de corpo, sutis obturações de sentidos no deslizamento da significação, velados fenômenos de alusão, suplências minimalistas nas quais o sujeito sustenta a frágil estabilidade de sua realidade. Esses fenômenos estavam aí, à vista de todos, mas se confundiam frequentemente com a paisagem da normalidade. Tal como indicava o próprio Jacques-Alain Miller na hoje conhecida Convenção Antibes, “Passamos da surpresa à raridade, e da raridade à frequência” (MILLER, 2012, p. 241). Quer dizer, passamos da surpresa de encontrar o excepcional e o extraordinário a reparar em fenômenos com que, por sua frequência, já estávamos familiarizados.

 

Mas ali onde opera o preconceito da normalidade, esse fantasma que adquire em nossos dias categoria de verdade estatística, se trata sempre de encontrar a estranheza do traço clínico em seu detalhe mais singular. Assim, as psicoses ordinárias nos revelam agora um tipo de carta roubada de nossa clínica: estavam tão à vista de todos que se escondiam de cada um. Bastava um ligeiro deslocamento de foco clínico para fazer aparecer, nesses fenômenos, a estrutura das psicoses em suas diversas formas de amarração e revelar, com essa mudança de perspectiva, que o mais estranho habitava o mais familiar da clínica. As psicoses ordinárias são assim também o Unheimlich (o sinistro, o estranhamente familiar) de nossa clínica. E não é raro obter esse afeto vinculado ao Unheimlich no psicanalista praticante quando se assinala a dimensão do estranhamente familiar desses fenômenos.

 

Então, se o conceito de psicoses ordinárias veio delimitar o mapa do que antes era uma “terrra incógnita” de nossa clínica, é também porque mostra que a topografia de seu terreno está presente em cada um dos continentes previamente definidos pela cartografia clássica, a cartografia repartida segundo as categorias de psicoses, neuroses e perversão. Dito de outra maneira, o mapa cria mais o terreno do que o representa, até confundir-se com ele. O que quer dizer também que a linguagem, incluída a da clínica, em vez de ter uma função de representação da realidade, está vinculada na mesma operação da construção e da percepção dessa realidade. É algo tão estranho como familiar para alguém formado na orientação lacaniana clássica: a percepção eclipsa a estrutura ali onde essa estrutura revela o modo em que se constrói essa percepção.

 

Vamos agora considerar a natureza do terreno que hoje conhecemos como o termo “psicoses ordinárias”. Imaginemos um tipo de Google Earth da clínica em que podemos visualizar o terreno e as localizações geográficas com seus nomes e fronteiras. Encontramos aí, segundo nossa clinica clássica, claramente estabelecidos os dois grandes territórios das neuroses e das psicoses, com suas fronteiras e subfronteiras, com a histeria e a obsessão de um lado, com a paranóia e a esquizofrenia por outro. Podemos localizar também a melancolia, também as perversões, ainda que às vezes se confundem um pouco mais em algumas de suas fronteiras para revelar sua condição de traços que podem compartilhar diferentes países. Existem, com efeito, traços melancólicos em vários lugares dos continentes delimitados, assim como traços de perversão, para retomar a tema de um encontro internacional do Campo Freudiano de algumas décadas atrás.

 

Se escrevermos agora “psicoses ordinárias” nesse localizador imaginário da clínica no Google Earth para ver como os zooms sucessivos nos conduzem a uma localização precisa, oh, surpresa!, a lista de lugares que aparecem na pequena janela de busca se alarga mais e mais, até fazer-se presumivelmente infinita. Até o ponto que pareceria que as “psicoses ordinárias” podem estar hoje em qualquer parte do mapa sem que se possa reduzir sua descrição a um traço, tampouco constituir-se em um continente em si mesmo. Se clicamos em qualquer um desses nomes, somos conduzidos, sem dúvida, a lugares já conhecidos. E se continuarmos a verificar a lista, talvez poderíamos concluir, então, que a psicose ordinária é, na realidade, o próprio Google Earth como um todo, o próprio sistema de representação com o qual buscamos localizar os lugares da nossa clínica clássica. É uma clínica feita de traços discretos, que valem pela diferença que existe entre uns e outros, ao estilo do sistema estrutural da língua que conhecemos desde a lingüística de Saussure. Mas aqui os traços são tão discretos – permitam-me o equívoco dessa palavra –, tão sutis, que desaparecem à visão geral e só aparecem na singularidade de cada caso, e cada vez de maneira distinta. Difícil construir um mapa geral e um buscador preciso com essas condições de representação, a não ser, como dizemos, que o lugar em questão que buscamos não seja senão o próprio sistema de representação com o operamos.

 

Digamos de imediato que esse paradoxo não nos parece de todo estranho aos leitores de Jacques Lacan. Está presente desde muito cedo em seu ensino. Ele mesmo leu sua própria entrada na psicanálise, a que leva o título de sua famosa tese de 1932, On Paranoiac Psychosis in its Relations to the Personality, dizendo, alguns anos depois, que a personalidade é a paranóia, e que é por essa razão que não há, de fato, relações entre uma e outra. Nada mais normal que a personalidade, nada menos discreto também – tome-se o termo “discreto” com o equívoco que temos assinalado.

 

Mas, então, será que a categoria de “psicoses ordinárias”, que nos parecia tão efetiva no seu uso, se evapora agora precisamente pela extensão e efetividade deste uso? Não estará ocorrendo o mesmo que assinalava Lacan nos anos cinquenta, quando estudava o uso da interpretação no meio analítico a partir das observações de Edward Glover? Recordo-lhes sua indicação a respeito em seu escrito sobre “The direction of the treatment and the principles of its power”: Edward Glover, na falta da noção de significante para operar na experiência analítica – escreve Lacan – “finds interpretation everywhere, being unable to stop it anywhere, even in the banality of a medical prescription[2]”(LACAN, 1998, p. 585.).

 

Sem dúvida, tal estravio seria, seguramente, a nossa confusão de línguas, confusão que se acrescentaria à Babel atual da clínica, uma clínica que parece desaparecer ela mesma no mundo das nosografias cada vez mais desordenadas e hoje alimentadas pela crise do sistema DSM. É sabido que a crise desse sistema, em suas novas versões, estendeu de tal modo as descrições do patológico na vida cotidiana que não há um só canto que não seja diagnosticado como uma possível “desordem”. Até o ponto de que, se alguém não se encontra descrito em alguma das páginas do manual, é porque realmente deve ter uma séria “disorder“.

 

Trata-se, em realidade, de um erro de perspectiva homólogo ao que descrevíamos com o modelo do Google Earth. Com a introdução das categorias das “psicoses ordinárias” na clínica, nos encontramos – como assinalva Jacques-Alain Miller no momento mesmo de introduzir o termo – “divididos entre dois pontos de vista contrastantes, mas que não são excludentes um do outro” (MILLER, 2012, p. 242.). Desde a primeira perspectiva, aqui podemos ordenar, a partir do primeiro ensino de Lacan, que há descontinuidade entre neurose e psicose; há fronteiras mais ou menos precisas; há elementos discretos e diferenciais, tributários da lógica em que funcionam os nomes do Pai e a lógica do significante que opera de modo discricional, pelas diferenças relativas entre os elementos. Quando há uma fronteira no mapa, há diferenças discricionais entre os territórios, há também possível reciprocidade entre eles para definir o que um é e não é em relação ao outro. Desde a segunda perspectiva, a que podemos ordenar a partir do último ensino de Lacan, coloca-se mais a ênfase na continuidade entre territórios, aquela que os torna contíguos, como dois modos de responder a um mesmo real, como dois modos de gozo diante de uma mesma dificuldade de ser. Não se trata mais, nessa segunda perspectiva de estabelecer fronteiras, senão de constatar amarrações e desamarrações entre fios que estão em continuidade.

 

Assim, podemos dizer que não há propriamente uma descrição clínica das psicoses ordinárias segundo o modelo clássico que ordena suas categorias a partir de uma série de traços presentes no interior de um conjunto mais ou menos delimitado. Resultaria impossível então incluir uma categoria assim na lógica do DSM ou dos manuais de diagnósticos habituais, em que se enumeram os traços que devem estar presentes para cada categoria clínica. Desde o ponto de vista descritivo poderiam definir-se melhor por uma traço que falta, nunca o mesmo, por aquele que sentimos faltar em relação às psicoses clássicas, mas também pelo que percebemos faltar em relação as neuroses clássicas. Nos vemos então obrigados a defini-las, mais do que nunca, caso a caso, e sempre segundo com o contexto em que encontramos esta falta.

 

Se me permitem assim dizer, a categoria “psicoses ordinárias” inclui então as categorias que não se incluem a si mesmas: parece uma histeria mas não é uma histeria, não inclui os traços que conhecemos da histeria; parece uma obsessão mas não inclui os traços da obsessão; parece a paranóia mas não inclui os traços da paranóia… O que converte as psicoses ordinárias em um tipo de paradoxo de Russell, o paradoxo bem conhecido daquele conjunto que inclui os conjuntos que não se incluem a si mesmos. Há várias maneiras de ilustrar o paradoxo de Russell, e uma é o catálogo que inclui todos os catálogos que não se incluem a si mesmos, sem poder concluir finalmente sobre a pergunta se o primeiro catálogo se inclui ou não a si mesmo.

 

Desse modo, a categoria das psicoses ordinárias faz explodir o sistema diagnóstico da clínica estrutural. Ocorre com elas algo parecido ao que ocorria na primeira clínica freudiana, com a introdução das chamadas “neuroses atuais”, as neuroses que Freud distinguia das psiconeuroses clássicas e que se definiam por sua falta de história infantil e pela falta de sobredeterminação simbólica dos sintomas. Toda neurose era uma neurose atual até que não se encontrasse esses dois elementos estruturais que não cessavam de não se escrever… até o encontro contingente que decantava sua significação.

 

Digamos que o único modo de verificar esse fato, o único modo de pôr a prova esse real que não cessa de não se escrever em cada caso, é a própria estrutura da experiência analítica, a estrutura que se põe à luz do dia no fenômeno da transferência.

 

Dito de outro modo, e para concluir, as psicoses ordinárias só se ordenam clinicamente quando seus fenômenos se precipitam, se ordenam, na lógica da transferência. Só ali se revelam as psicoses ordinárias como ordenadas sob transferência.

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Maria das Graças Sena

 


Referências
LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (RIBEIRO, V. Trad.) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998, p. 585. 
MILLER, J-A. A psicose ordinária. (Batista, M. C.; LAIA, S. Orgs.). Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012. 
[1] Texto apresentado no Congresso NLS – Dublin, julho de 2016.
[2] “Encontra interpretação em todo lugar, tornando-se incapaz de para-la em qualquer lugar, mesmo na banalidade da prescrição médica”. Tradução nossa.

MIQUEL BASSOLS
Psicanalista em Barcelona, membro da ELP, presidente da AMP.



Clínica Lacaniana Da Psicose

ANGELINA HARARI

 

YVES KLEIN

 

Clínica lacaniana da psicose

ANGELINA HARARI

 

Tema abordado em dissertação em que se interessou mostrar o percurso de Lacan no tocante à psicose, isto é, o que se passou entre a marca estruturalista recebida de Clérambault e a clínica universal do delírio. Adotamos como fio condutor o conceito não deficitário da psicose. Nessa ótica, a retirada do índice negativo da psicose une o percurso de Lacan dos anos 1930, em que sua abordagem encontra eco no meio surrealista, à inversão ocorrida nos anos 1970, quando propõe a foraclusão generalizada como modelo do núcleo real de todo sintoma, servindo-lhe a topologia do nó borromeano para reformular o conceito de estrutura (HARARI, 2006). Para dar conta de entendermos o último ensino de Lacan, James Joyce, eleito como o paradigma de sua última clínica, nos obriga a nos debruçarmos ainda mais sobre a psicose. O conceito de sinthome coincide com a definição estabelecida para o sintoma psicótico: interseção entre simbólico e real por fora do imaginário, na qual um elemento do simbólico, sozinho, não encadeado, desloca-se para o registro do real como letra.

 

Quando abandona a clínica mecanicista, privilegiando a abordagem não deficitária da psicose, enfatizando a clínica universal do delírio, Lacan visaria a uma prática da psicanálise sem a ficção dos universais conforme o “ultimíssimo ensino em que a universalização do significante é o que impede que a singularidade de um sujeito seja circunscrita na fala” (VORUZ, 2017).

 

Nessa vertente, introduzir o tema do XI Congresso da AMP e abordar a psicose ordinária, não sem as outras, tem como objetivo somar-se ao esforço contínuo de elucidação da prática lacaniana que, quando não se trata de abordagem via casuística ou via discussão de uma apresentação de pacientes, ou, ainda, via o Ensino do passe, exige demonstração de fundamentos.

 

Partiremos da Conferência no Rio, de Jacques-Alain Miller, “Habeas corpus”, isolando as seguintes referências: o objeto a – como aporte e solução encontrada por Lacan durante muitos anos; o objeto a – degradê, como uma modelagem do gozo no modelo significante, e o parlêtre por natureza. Do percurso que vai do objeto a como o aporte lacaniano, por excelência, sua degradação para abrir a via ao parlêtre por natureza (MILLER, 2016).

 

A clínica lacaniana da psicose contribui igualmente para o tema do fim de análise, e a psicose ordinária veio relançar através de uma das soluções assinaladas por Jacques-Alain Miller: a psicose em análise (ANSERMET, 2017).

 

Às questões “como enlaçar o simbólico, caracterizado pelo efeito de sentido, com o real sem sentido?” e “como enfocar a disjunção radical entre o real como impossível e o sentido?”, Lacan responde que “o efeito de sentido a ser exigido do discurso analítico não é imaginário ou simbólico; é preciso, portanto, que seja real” (LACAN, 1974-5).

 

O efeito de sentido ex-siste, e nisso ele é real

 

Nessa frase de Lacan, o ponto notável é que o discurso analítico exige um efeito de sentido que seja real. De um lado, a experiência analítica se inicia ao dar sentido ao sintoma; o pivô da ação analítica é a oferta de sentido. O sujeito do inconsciente surge da experiência como sujeito representado no entre dois significantes de uma cadeia. De outro lado, pouco a pouco isso dá lugar ao parlêtre/falasser, e não se trata mais “de sentido, mas de gozo-sentido” (LACAN, [1973] 2003).

 

Um efeito de sentido que seja real não é simples nem automático de se obter, e nesse ponto podemos partir do trabalho de J.-A. Miller, o de elucidação do ensino de Lacan e, mais precisamente, seus comentários em “L’Être et l’Un” (MILLER, 2011), ao evocar o esvaecimento do sujeito suposto saber como correlativo do des-ser. Segundo ele, há o desvelamento da negação da essência e do sentido do sujeito suposto saber. É a ideia de um nó que se constrói efetivamente ao formar cadeia da matéria significante, pois essas cadeias não são de sentido, mas de gozo-sentido, que se encontra em “Televisão” (LACAN, [1973] 2003). Isso explica por que o termo “sujeito” é substituído por parlêtre/falasser, que inclui o corpo, o que é mais coerente com a noção de gozo: “não há sentido sem gozo, não há desejo sem pulsão, e a raiz do Outro é o Um” (MILLER, 2011). Isso não é acompanhado de um novo sentido para o que diz respeito à castração – o que faz cessar as embrulhadas do sentido –, pois o sintoma não se abranda com sentido. É próprio do gozo resistir ao sentido. É preciso um uso lógico capaz de secar o sentido.

 

Para Lacan, a relação do efeito de sentido com o real só é de exterioridade inicialmente, pois essa exterioridade supõe o nó projetado em uma superfície plana; se se serve dele (do nó), é para nos introduzir à noção de ex-sistência e deduzir que o efeito de sentido ex-siste, e nisso ele é real. A cisão do ser e da existência leva Lacan a fundar o Um que ex-siste face ao Outro (A) que não existe, sendo que o nó é plano, acrescenta ele, porque pensamos só horizontalmente. Pode ser que exista uma construção cuja consistência não seja imaginária, e isso implica que haja um furo, o que, por sua vez, nos conduz à topologia do toro. No derradeiro ensino de Lacan, a exaltação do furo tem por função dar existência ao puro “não existe”, o que nos ajuda a situar-nos no espaço do ultrapasse (MILLER, 2011).

 

Quais são as incidências disso na prática? Por essa perspectiva, o esvaziamento de sentido deve ser obtido como um saber haver-se [ou no coloquial: saber se virar, savoir y faire] com os restos sintomáticos. Retomo aqui a proposição de JAM a respeito dos dois regimes do passe: o da verdade e o do saber. O passe do sinthome como “extensão conceitual do fantasma” coloca o acento na verdade mentirosa. Então, a verdade é mentirosa ao se confrontar com a irredutibilidade do sinthome e fracassar na absorção desses restos sintomáticos. Nesse sentido, o passe-saber destaca mais claramente os limites do simbólico.

 

Falar da praxis lacaniana do passe deve necessariamente incluir o ultrapasse, tal como foi nomeado por Miller. Isso está relacionado ao acontecimento de corpo: é precisamente o gozo que se mantém para além da resolução do desejo (MILLER, 2011). Os restos sintomáticos provenientes da assunção do interdito são da ordem da existência, diferentemente do desejo, que está no âmbito do ser.

 

A renúncia à ontologia no passe foi inicialmente concebida por Lacan como deflação do desejo. Em seguida, ele ultrapassou esse limite ao articular seu “Há o Um”. Desse modo, ele inaugura o primado do Um em detrimento do primado do Outro da fala, que é necessária para o reconhecimento do sentido. A partir de então, o corpo aparece como Outro do significante (MILLER, 2011).

 

Com o sinthome, pendemos para o campo existencial; é para ele que Lacan nos conduz quando renuncia à sua ontologia, que era regida pela noção de ser e de “falta-para-ser”; topar com os limites do simbólico levou Lacan a considerar de outro modo o real em jogo na experiência analítica.

 

O passe, conforme o regime da verdade, “evoca antes que uma demonstração de saber, uma satisfação, uma experiência de satisfação” (MILLER, 2011). De todo modo, para além da nomeação ao título de AE, é a relação ao furo, conforme aponta Miller, que se situa no âmbito do real. É, portanto, no espaço do ultrapasse, no qual o sujeito fala para si mesmo, sem comunicação possível, que se faz da práxis lacaniana do passe um real existencial.

 

Retomaremos um ponto do texto Habeas corpus (MILLER, 2016), no último parágrafo do apartado virada (tournant) lacaniana, em que se afirma que essa virada só será concluída no “Seminário 20”, (LACAN, [1972/3] 1985) momento que Lacan arromba a fechadura para degradar o objeto a, colocando-o como falso semblante.

 

Uma modelagem do gozo no modelo do significante

 

Para Miller, o saber sobre o gozo talvez seja o único saber psicanalítico que temos sobre a vida, sobre o que é o ser vivo. E acrescenta que ‘gozar’ do corpo vivo seria tudo o que podemos saber (MILLER, 2004). Apoia-se, para tanto, em Lacan, quando formula que “(…) não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso goza” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

É distinta a relação do significante com o corpo no início do ensino de Lacan, com a tese segundo a qual linguagem é corpo; corpo aí fica entendido como materialidade da fala e da linguagem.

 

O corpo como substância gozante, que é introduzido na década de 1970, diz respeito ao corpo vivo, à substância do corpo na medida em que há gozo do corpo: “Isso só se goza por corporificá-lo de maneira significante” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

Só podemos afirmar ter havido uma conversão de perspectiva quando Lacan passa a situar o significante no nível da substância gozante: “O significante á a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo?” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

Inicialmente, em Lacan, a materialidade do significante é inanimada, materialidade da linguagem, e até a satisfação é própria do simbólico: a elaboração de uma satisfação semântica. Um gozo, sem o corpo vivo, tem uma satisfação significante: a satisfação pelo reconhecimento, emprestado da fenomenologia de Hegel (MILLER, 2004).

 

Entender que seria possível uma satisfação significante da pulsão é o modo como Lacan torna simbólica a pulsão freudiana, solidária da noção de corpo mortificado. Mas não é o significante, da sustância gozante, tornando-se o corpo, recortando o corpo até fazer surgir o gozo.

 

São duas vertentes que Lacan introduz: a do corpo vivo e a do sujeito do inconsciente. Da reunião dessas vertentes, desse binário, surge o falasser (parlêtre) (MILLER, 2004), o que o faz postulando ‘sua’ hipótese: “Minha hipótese é a de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

O objeto a “natural”

 

Até o “Seminário 10: a angústia”, conhecia-se somente o corpo como essencialmente implicado na formação do eu, o corpo visual. Podemos afirmar que o corpo que faz sua entrada, sob o modo do objeto a, na constituição do próprio sujeito do inconsciente, é o corpo erógeno, o corpo das zonas erógenas, das zonas de borda, sem limite, que se sobrepõe ao corpo do Outro (MILLER, 2005).

 

Para Lacan, o sinal, termo que Freud designou para a angústia, é distinto da situação traumática. A originalidade de seu aporte reside no fato de ter enunciado com maior exatidão que o que Freud refere como o perigo que a angústia sinaliza e está ligada ao caráter cedível do momento constitutivo do objeto a, a angústia-sinal.

 

Se, por um lado, o perigo sinaliza o objeto caracteristicamente cedível, por outro, sinaliza que a angústia não é mensagem. Essa separação do objeto incide sobre o corpo libidinal, que não é o corpo visual, que implica o corpo do Outro.

 

O caráter cedível caracteriza o objeto a e Lacan faz da angústia um operador da separação, por isso ela não é mensagem, é um afeto único.

 

E, por sua vez, em entrevista a uma revista italiana, quando responde à questão do que é a angústia para a psicanálise, vai dizer que “é algo que se situa fora do corpo, um medo, mas nada que o corpo, espírito incluído, possa motivar. É o medo do medo, em suma” (LACAN, 1974).

 

De 1963 a 1974, do “Seminário 10” à entrevista, há um percurso do objeto a no ensino de Lacan, desde sua emergência como pura extração corporal até sua sofisticada forma de pura consistência lógica. E, para entendermos esse avanço, J-A Miller (MILLER, 2005) aponta que, mesmo sendo pura extração corporal, a fisiologia do objeto a se desenvolve, ou seja, o objeto a tem sob o significante da topologia uma consistência topológica, desde quando emerge (MILLER, 2005).

 

O intuito é tensionar as vertentes topológicas e de extração corporal do objeto a no “Seminário 10”, uma vez que as posições da angústia e do que é o objeto a são intercambiáveis (LACAN, [1962-63] 2005). Para tanto, é importante localizar, no “Seminário 10” [1962/63], qual é o lugar de corte do qual emerge o objeto a.

 

No capítulo IX, temos:

 

O corte que nos interessa, o que deixa seu traço, num certo número de fenômenos clinicamente reconhecíveis, e que, portanto, não podemos evitar, é um corte que, graças a Deus, é muito mais satisfatório para a nossa concepção do que a cisão da criança que nasce, no momento em que ela vem ao mundo.

 

Cisão de quê? Dos envoltórios embrionários.

 

Basta-me remetê-los a qualquer livrinho de embriologia datado de menos de cem anos para que vocês percebam que, para terem uma ideia completa do conjunto pré-especular que é o a, deverão considerar os envoltórios como um elemento do corpo da criança. É a partir do óvulo que os envoltórios se diferenciam, e vocês verão com que formas o fazem, de maneira muito curiosa – deposito bastante confiança em vocês, depois de nossos trabalhos do ano passado em torno do cross-cap (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Embora a referência aí seja o corpo, mais exatamente uma referência do corpo da embriologia, o corte, ou o momento cedível, não se confunde com nenhuma substância. Os envoltórios a partir do óvulo, que se diferenciam com formas curiosas, aproximam-se mais da topologia, ou seja, de uma forma mais oca.

 

No último capítulo, Lacan retorna a isso ao se referir à marca do a, quanto ao momento de sua constituição, e propõe o grito como algo que o lactante cede: “Ele cede alguma coisa, e nada mais o liga a isso” (LACAN, [1962-63] 2005). Grito que coincide com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser o sujeito. Lacan chega até a afirmar que o grito é o próprio âmago do grande Outro, o ponto de partida do primeiro efeito cedível.

 

Se a angústia foi escolhida por Freud como sinal de algo, Lacan fala da própria aspiração do lactante como um momento de perigo: “Foi a isso que se deu o nome de trauma do nascimento – não existe outro – o trauma do nascimento, que não é a separação da mãe, mas a própria aspiração de um meio intrinsecamente Outro” (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Tanto a cisão dos envoltórios quanto o grito são exemplos dos momentos cedíveis na constituição do objeto a, exemplos que promovem a desnaturalização e dessubstancialização do objeto a. Não é por acaso que o exemplo dado do objeto a e de sua separação seja o prepúcio na circuncisão, exemplo de uma prática claramente cultural. O pequeno a se faz assim, quando se produz o corte, seja qual for, quer o do cordão umbilical, quer o da circuncisão (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Desunir a função do objeto e sua substância permite vislumbrar a estrutura do mais de gozar sob a forma do objeto que a pulsão contorna, presença de um oco, de uma vacuidade a ser ocupada por qualquer objeto.

 

Para Miller, “o Seminário 10 é a via de acesso ao objeto a como nada. É o objeto nada que pode se tornar a causa do ato, ato que comporta sempre um momento de suicídio, um momento de morte do sujeito” (MILLER, 2004). É o objeto a desnaturalizado, topológico, que permitirá ao próprio analista inscrever-se na mesma série que o objeto a nada.

 

Apesar de afirmar a desnaturalização do objeto a topológico, verificamos que Lacan ainda está preso à separação entre inconsciente e pulsão, presente no início de seu ensino. Na Conferência do Rio, Miller afirma que

 

O objeto a, ao mesmo tempo faz parte da armadura da fantasia, está no âmago da pulsão e tem certas propriedades significantes. Notadamente, ele se apresenta por meio de unidades, é contável e enumerável, já é, portanto, um gozo. Se ele é mais-de-gozar, é um mais-de-gozar que já é um degradê (dégradé) do gozo, uma modelagem do gozo no modelo do significante. (MILLER, 2016)

 

“Parlêtre/falasser por natureza”

 

O último ensino contrapõe o corpo vivo ao corpo morto, coloca em questão o próprio termo sujeito, como falta-a-ser, substituindo-o por parlêtre/falasser, o sujeito mais o corpo. Assim também o conceito de Outro é posto em questão. O Outro está aí representado por um corpo vivo.

 

Há um paradoxo inevitável do corpo humano: ser vivo e, ao mesmo tempo, falante. Por mais corporal que seja o homem, ele é também feito sujeito pelo significante, feito da falta-a-ser. Para o homem não se pode fazer equivaler ser e corpo, enquanto para o animal isso é possível. Razão pela qual Lacan afirma que o homem ‘tem um corpo’, o que vale por sua diferença com relação a ‘ser um corpo’. A falta-a-ser divide seu ser e seu corpo, reduzindo este último ao estatuto do ter (MILLER, 2004).

 

É no contexto de 1975 que Lacan, ao se “dedicar um montão” à leitura dos livros de Joyce e de outros sobre ele, retoma a noção do corpo imaginário extraído dos nós borromeanos: “Ao fazer assim, introduzo alguma coisa de novo, que dá conta não somente da limitação do sintoma, mas do que faz com que, por se enodar ao corpo, isto é, ao imaginário, por se enodar também ao real e, como terceiro, ao inconsciente, o sintoma tenha seus limites” (LACAN, [1975-6] 2007).

 

Ao retomar a grafia antiga de sinthome, em francês, Lacan caracteriza o parlêtre/falasser, dizendo que ao mesmo tempo em que “é preciso sustentar que o homem tem um corpo, isto é, que fala com seu corpo, ou em outras palavras, que é parlêtre/falasser (…)”, e definir o sintoma como um acontecimento de corpo (LACAN, [1975] 2003).

 

No curso do seu ensino, Lacan corporifica as principais funções significantes por ele isoladas e, nesse sentido, duvida da consistência puramente lógica da função do Outro (MILLER, 2004). Ao corporificar o grande Outro, introduz o corpo do parceiro falante dizendo que “Uma mulher, por exemplo, é sintoma de um outro corpo” (LACAN, [1975] 2003).

 

Aqui vemos que o conceito de parlêtre/falasser (MILLER, 2016) “se sustenta na equivalência originária inconsciente-pulsão”. Na vertente do puro gozo do inconsciente, Lacan forjou tal neologismo.

 

Éric Laurent, por sua vez, em seu livro “ O avesso da Biopolítica” faz uma leitura de Joyce e pontua a frase na qual Lacan propõe o acesso a seu parlêtre/falasser por natureza. Entendendo que a equivalência entre “ter um corpo” e “falar com o corpo” acarreta a seguinte dedução: ter um corpo equivale a falar com o corpo a tal ponto que o homem parlêtre/falasser. E acrescentando que o homem tenha um corpo, então tem corolários exigentes que convertem o dispositivo instalado por Joyce no centro da tensão entre arte e natureza.

 

A tensão arte-natureza caracteriza Joyce; seu projeto de arte não passa pelo naturalismo, nem pelo o simbolismo, temas que nutrem o debate do final do século XX. Opor natural a arte tem como intuito reconciliá-los no parlêtre/falasser por natureza (LAURENT, 2016).

 


Bibliografia
ANSERMET, F. www.lacanquotidien.fr. Lacan Quotidien nº595, 2017. Acesso em: 3 setembro 2017.
HARARI, A. Clínica Lacaniana da Psicose. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, [1962-63] 2005. 354;135-6;355;110 p.
LACAN, J. Seminário 17. O avesso da psicanálise. 1. ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, [1968], 1992. 95 p.
LACAN, J. O Seminário, livro 20 Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editor, [1972/3] 1985. p.36 p.
LACAN, J. O Seminário.Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editor, [1972-1973] 2008. 96-103 p.
LACAN, J. “Televisão”, Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, [1973] 2003. 516 p.
LACAN, J. ”Joyce, o Sintoma” Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, [1975] 2003. 562-565 p.
LACAN, J. O Seminário, Livro 23 O Sinthoma. Rio de janeiro: Zahar Editor, [1975-6] 2007. 164 p.
LACAN, J. Interview Freud Per Sempre. Panorama, Roma, nov. 1974.
LACAN, J. O Seminário, livro 22: RSI. inédito. ed. [S.l.]: [s.n.], 1974-5. aula de 11 de fevereiro de 1975 p.
LAURENT, É. O Avesso da Biopolítica. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J.-A. Biologia Lacaniana. Opção Lacaniana n°41, São Paulo, p. 50-66, 2004.
MILLER, J.-A. NLS-Messenger n°103. www.causefreudienne.fr, 2004. Acesso em: 14 dez. 2004.
MILLER, J.-A. Introdução à Leitura do Seminário 10. Opção Lacaniana n°43, São Paulo, p. 64-66, 2005.
MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana n°42, São Paulo, p. 7, fevereiro 2005.
MILLER, J.-A. Haverá Passe? Opção Lacaniana, São Paulo, p. 65, março 2011.
MILLER, J.-A. L’Être et l’un. Paris: inédito, 2011. 25/11/2011 p.
MILLER, J.-A. Habeas Corpus. Opção Lacaniana, São Paulo, p. 36, 2016.
VORUZ, V. Derivas Analíticas Revista Digital de Psicanálise e Cultura EBP-MGDerivas. revistaderivasanaliticas.com.br, 2017. Acesso em: 14 junho 2017.

 


ANGELINA HARARI
Psicanalista em São Paulo, AME, membro da EBP e da AMP. E-mail: angelina.harari@terra.com.br



Em Direção A Uma Generalização Da Clínica Dos Signos Discretos

YVES VANDERVEKEN

 

Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos[1]

YVES VANDERVEKEN

 

“A psicanálise muda. É um fato” (MILLER, 2016, p. 26). Essa é a constatação que Jacques- Alain Miller faz, em seu texto de apresentação do tema do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que aconteceu no Rio de Janeiro em abril de 2016.

 

De uma transformação do inconsciente…

 

Essa constatação traz, ou mesmo se deduz, de uma transformação do inconsciente. Jacques Lacan a havia antecipado em seu ensino. Ele acabou por abandonar o termo inconsciente para substitui-lo pelo neologismo falasser – em condições melhores de representá-lo. Essa transformação tem sua origem na mudança de época e daquilo que decorre como mutação da estrutura do Outro. Ora, é justamente no Outro que o sujeito encontra as coordenadas de seu inconsciente.

 

É a questão do recalque que se encontra no cerne mesmo dessa mutação. Nascida na época vitoriana, em um contexto de quintessência da repressão sexual, a psicanálise se pratica hoje em um contexto de liberação dos costumes, do direito ao gozo e de um acesso generalizado à pornografia. Para além do complexo de Édipo, que ele não deixará de desconstruir ao longo de seu ensino, não é à toa que Lacan isolará a estrutura mitológica de Hamlet na medida em que ela se distingue daquele. A distinção entre o Édipo e Hamlet diz respeito justamente à questão do recalque. Lacan insiste: lá onde o Édipo não sabia, onde as coordenadas de seu crime eram recalcadas e não sabidas, Hamlet, ele sabe. É nesse ponto de distinção que Hamlet aparece como sendo mais propício do que o Édipo a incarnar a estrutura da questão neurótica de hoje. O importante é perceber a que se refere esse saber revelado, essa é a questão a ser delimitada. Eu usarei esta conferência[2] para isolar essa resposta, como ponto final.

 

Mas digam-me: inconsciente, recalque, complexo de Édipo, não são justamente nessas referências que se fundamentam as distinções entre nossas grandes estruturas clínicas – e a partir das quais situamos a orientação do tratamento?

 

Sem dúvida, nossa prática se orienta, a partir de hoje, menos pela questão do recalque e de sua suspensão em termos de verdade revelada do que pelo impacto do significante sobre o gozo do corpo enquanto tal.

 

…E de seu impacto

 

O que acontece, nesse contexto remanejado, com as nossas referências e categorias clínicas? As coisas devem ser novamente definidas, os contornos devem ser constantemente redesenhados. Isso é tudo, menos simples. É nesse contexto que orientarei esta conferência de abertura do ano de trabalho da London Society da New Lacanian School.

 

Trataremos aqui de questões clínicas e das dificuldades que podemos encontrar nessa clínica a partir de nossas referências clássicas. Através do que se apresenta como questões diagnósticas, colocam-se também questões muito concretas.

 

Em psicanálise, além do diagnóstico enquanto tal, apoiamo-nos em referências clínicas diferenciais. Por que? Justamente porque elas são determinantes para orientar nosso ato e a direção do tratamento.

 

Somos classicamente formados para saber que o tratamento de um sujeito psicótico não se orienta como o de um sujeito neurótico. É por isso que nossas referências diagnósticas importam, mesmo que, ao desenharmos grandes linhas estruturais, configurações precisas das coordenadas subjetivas, elas não digam nada sobre o que representa a singularidade de um sujeito.

 

É um paradoxo lógico que sustentamos, diante do qual não recuamos: duas verdades opostas podendo ser verdadeiras ao mesmo tempo. Tudo depende do ângulo pelo qual abordamos o real em jogo. Foi apoiando-se em um tal paradoxo que Lacan pôde dizer que nada se parece menos com um neurótico obsessivo – uma categoria geral e universal – do que um outro neurótico obsessivo – uma singularidade absoluta. É o que torna a relação entre o singular e o universal ao mesmo tempo tão necessária, mas também tão precária.

 

A abordagem do real clínico por um viés pode ser radicalmente diferente de sua abordagem por um outro, sem que um anule, no entanto, o outro – assim como a segunda tópica freudiana não anula em nada a primeira, ou, ainda, o último ensino de Lacan não põe um fim ao seu primeiro.

 

J.-A. Miller não hesita em nos convidar a fazer “remendos” a partir dos diferentes tempos dos ensinos freudianos e lacanianos porque eles nos permitem tomar conhecimento, visto que são verdadeiros, de um real que a verdade só consegue alcançar por partes.

 

Nessa perspectiva, nós nos permitimos, por exemplo, apoiar-nos, ao mesmo tempo, em uma clínica binária, descontinuísta, e em uma clínica continuísta, tomada por um outro ângulo. Fazemos as duas; às vezes até as duas ao mesmo tempo. As duas são importantes, cabe a nós precisá-las.

 

O binário neurose clássica ou psicose desencadeada: sua eficácia, um limite

 

Por um lado, apoiamo-nos em uma clínica diferencial que se baseia no binário neurose/psicose. Podemos reduzi-la a esse binário, pois a categoria de perversão está sujeita à contestação. Ela está caindo em desuso, devido ao fato de que as coordenadas da nossa época são, enquanto tais, perversas, e sem contar, voltaremos a isso, com a natureza perversa em si da sexualidade do falasser.

 

Esse binário clínico oferece uma base inestimável. Mas ele é também rígido e restrito. Ele repousa sobre “um ‘ou isso, ou aquilo’ absoluto” (MILLER, 2015, p. 3). Foi preciso que constatássemos que toda uma parte da clínica não entra nessa dicotomia neurose clássica/psicose desencadeada, se radicalizamos as coisas. Nem sempre é fácil decidir a partir dessa referência diagnóstica, e isso, às vezes, depois de vários anos de análise.

 

Essa dimensão não satisfatória, não discriminante do binário clínico neurose/psicose, é abordada há vários anos em nosso Campo Freudiano, através do que podemos chamar de um verdadeiro programa de pesquisa. O sintagma “psicose ordinária” encontra sua origem nessa dificuldade. Ele encontra aí sua origem, para ultrapassá-la. Ele é oriundo – ou melhor, construído – por J. -A. Miller a partir do último ensino de Lacan.

 

O impasse borderline

 

A “psicose ordinária” é uma resposta à categoria borderline, tão desenvolvida no mundo anglo-saxão, essa categoria borderline sendo, ela mesma, uma tentativa de resposta a essa mesma dificuldade clínica. Entretanto, lá onde a categoria borderline supõe uma terceira estrutura clínica (nem neurose, nem psicose) – o que só faz multiplicar os impasses das estruturas clínicas –, o sintagma “psicose ordinária” insiste em fazer fundo ao binário neurose e psicose – para finalmente subvertê-lo, ou mesmo ultrapassá-lo. Um pouco sob a modalidade de um “prescindir dele, servindo-se dele” (LACAN, 2007, p.132), é precisamente o que Lacan acabará por dizer do Nome-do-Pai.

 

Classicamente, J.-A. Miller indica que havia uma certa diferenciação “supostamente absoluta entre a neurose e a psicose” (2015, p. 4). Se não fosse uma, seria a outra, e vice-versa. Essa dimensão de diferenciação absoluta apoiava-se em um verdadeiro “credo lacaniano” [dixit também J.-A. Miller]: aquele da foraclusão do Nome-do-Pai.

 

A função do Nome-do-Pai se apoia naquilo que hoje é comumente definido sob o sintagma ordem simbólica. Os padres da Igreja, assim como todos os tipos de conservadores, retiveram apenas essa dimensão do ensino de Lacan, a ponto de se referirem a ela para tudo. Ora, é importante compreender o que esse Nome-do-Pai recobre no ensino de Lacan.

 

Lacan percebeu sua carência, precisamente na psicose desencadeada. Foi a partir daí que ele elaborou o conceito da foraclusão. Do que se trata? J.-A. Miller situa novamente a hipótese que conduz a ela em seu texto “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária” (MILLER, 2015) que pode constituir em si um argumento para nosso próximo congresso da New Lacanian School.

 

A hipótese do Nome-do-Pai

 

Lacan parte da experiência de que, nos primeiros tempos da chegada do infans ao mundo, há uma vivência de um sujeito às voltas com um espaço desorganizado, movente, não estruturado, onde predomina a experiência subjetiva do corpo fragmentado, inteiramente submetido às forças pulsionais e às significações fora de sentido. É um mundo em que o eu do sujeito e o Outro estão indistintos. Lacan não desistirá nunca dessa hipótese de partida da subjetividade humana. Ele situa a prematuridade do filhote do homem como sua causa.

 

Nessa configuração e no classicismo do mundo à moda antiga, a mãe, ou seu substituto, vinha sustentar essas características, já que ela era supostamente a figura do primeiro representante encarnado desse Outro. O desejo da mãe era a manifestação primária, para o infans, dessa força pulsional e da figura desse Outro desorganizado, pulverulento, ilegível e fora de sentido. Um mundo, uma experiência de gozo fora de sentido e enigmática habitavam a figura do Outro materno. É uma experiência subjetiva precisamente idêntica àquela encontrada pelo sujeito psicótico depois de seu momento de desencadeamento.

 

No segundo tempo desse desenvolvimento, Lacan situa a entrada do simbólico nesse mundo, como vindo para organizá-lo, para colocar ordem nesse imaginário e nesse gozo sem rédeas. O simbólico vem regulá-los, pelo menos para definir suas leis e seus interditos. Essa figura supostamente natural, que surge como terceiro entre este, o infans e esse Outro desregulado, e que nessa construção supunha-se organizar o que está desorganizado por natureza, quem mais poderia ser, nesse caso, senão o pai, enquanto representante da lei e de sua suposta ordem simbólica?

 

É a ideia de que há um Outro desse Outro primeiro, que tem como função vir dominá-lo, limitá-lo, definir sua organização e, principalmente, dar-lhe um sentido, torná-lo legível. Trata-se da função ordenadora do Nome-do-Pai, sob a condição de que ele venha nomear e organizar o desejo supostamente desorganizado da mãe. Ele se faz de destinatário, isto é, ele vem se definir como o que causa o desejo materno, e desde então lhe dá sentido. É uma operação de metáfora, que Lacan chamará de paterna. É uma operação metafórica, a partir do momento em que ela vem dar sentido a um x, uma incógnita situada no cerne do desejo, enquanto gozo. Essa é a formalização que Lacan dá ao complexo de Édipo freudiano.

NP

DM

Essa operação produz um efeito. A operação do simbólico, ao organizá-lo, estanca o desencadeamento pulsional. Supõe-se que essa operação o limite. Nesse sentido, ela produz um efeito de perda, tanto quanto de localização. É o que quer dizer “a castração”, ou, ainda, “o menos phi”, “uma subtração de gozo” (MILLER, 2015, p. 6), lá onde, na psicose, ela se apresenta como não localizável, não limitada, e desde sempre “em excesso”. O órgão peniano se faz o depositário e o representante desse gozo a partir daí regulado por uma lógica fálica. Ele é o órgão precisamente apto a encarnar esse gozo marcado por um mais ou um menos. Ele tem seu significante: o falo.

 

É uma construção, se nós a separarmos – a modernidade obriga – dos atores que são a mãe e o pai, extremamente robusta e clinicamente pertinente, pelo menos enquanto função e estrutura. Uma parte do gozo é interdito, passa sob a barra, instalando o recalque, uma perda e a limitação do gozo.

 

É precisamente essa função que o Presidente Schreber tenta restabelecer, depois de seu desencadeamento que desorganiza todas as significações do mundo e sua relação com o corpo. Ele tenta restabelecê-la de um outro modo, que nós diremos delirante, a fim de tecer novamente e dar um outro sentido aos fenômenos que o assaltam, no ponto em que a significação paterna se mostra foracluída. A causa desses fenômenos é, daí em diante, Deus (nova figura de um pai), ele próprio tornando-se o objeto de gozo desse Deus. Toda uma nova construção complexa elabora e determina as vias em condições de explicar, e legíveis para ele, o que ele experimenta como fenômenos de gozo desenfreado e não localizável falicamente. É seu trabalho de elaboração, assim como de interpretação. É por isso que Lacan qualifica essa operação de metáfora delirante, na medida em que ela vem suprir a foraclusão da metáfora paterna, e isso precisamente na linha freudiana, que já compreendia o delírio como uma tentativa de cura.

 

A carência paterna neurótica

 

Eu dizia que essa construção era robusta. No entanto, ela não conduzirá Lacan a uma religião do pai. E isso por várias razões.

 

Lacan só constrói a lógica da metáfora paterna na medida em que ela se revela, digamos, a céu aberto, sem recalque, como faltante, ou mesmo carente, na psicose desencadeada. Mas, logo depois que sua construção é feita como não operando na psicose, Lacan se encarrega de demonstrar, pela clínica, a generalização da carência da metáfora paterna em relação ao gozo, e isso para todo o campo da clínica: a saber, que nem tudo do gozo passa pelo crivo fálico e pela lógica da metáfora paterna, que nem tudo do gozo se deixa negativar.

 

É o que demonstra o neurótico Pequeno Hans. Em seu próprio corpo, em relação à vida de seu órgão peniano, a significação paterna e fálica, não consegue explicar o Krawall que aí se manifesta. Ele também tem que recorrer a uma construção paliativa: o significante fóbico, na medida em que ele vem em seu socorro para poder significá-lo.

 

É também nessa falha que se situa o que produz o encontro traumático de Hamlet. Bem além da morte real de seu pai, é justamente com a parte do desejo de sua mãe que não responde, ou melhor, que excede e transgride a lei do pai, que ele se debate. É o traumatismo eletivo do neurótico obsessivo: o encontro da mãe com sua feminilidade que não se reduz ao materno, se articula com a relação ao pai. Lacan zomba do esforço de Hamlet, que ele considera patético, em querer fazer entrar o desejo de sua mãe não referido ao pai no nível da decência. É o encontro com esse ponto que mergulha Hamlet no luto do pai, bem além de sua morte, e precisa do apelo de todo o jogo simbólico – o trabalho dito de luto – para fazer face à sua carência encontrada no buraco que perfura, no limite fálico, o gozo feminino. Ele construirá para si uma fantasia pessoal, em condições de responder sua própria versão da coisa: a saber, que nenhuma palavra vale e que há, desde então, “algo de podre” (SHAKESPEARE, 1995, p. 547) no mundo – eu acrescento: no mundo suposto da ordem simbólica. É o grande segredo que Lacan acabará por revelar aos próprios psicanalistas: a saber, que “não há Outro do Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 322) em posição de normalizar o gozo, de conseguir dar-lhe um sentido.

 

A compensação generalizada

 

Em uma outra vertente, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose, que só se revela por seu desencadeamento, conduz à dedução lógica de que outra coisa, antes, ficava no lugar, como uma bengala, uma compensação; assim como a metáfora delirante indica ao mesmo tempo que alguma outra coisa pode exercer essa função depois.

 

A metáfora delirante, a psicose compensada e não desencadeada, assim como a fobia de Hans ou a fantasia de Hamlet, demonstram seu caráter de construção ou de tentativa de construção simbólica sobre o real, que faz objeção a eles. Nesse contexto, toda construção simbólica, na medida em que visa a dar sentido a alguma coisa profundamente fora de sentido, tem a estrutura do delírio e do religioso. Para dizê-lo de maneira mais leve, isso relega a significação paterna e fálica do gozo a uma significação possível, dentre outras. Ela perde então sua primazia. É o que a clínica demonstra.

 

O fim do ordinário neurótico?

 

Isso interroga a neurose. Em setembro de 2015, o Kring voor Psychoanalyse van de NLS iniciava em Gand um ciclo de conferências sob o título “A neurose de hoje é assim tão ordinária?”[3]

 

A neurose tinha, no início do ensino de Lacan, uma conexão com a normalidade; pelo menos a psicose derivava dela. Essa última era uma variação, pelo modo da carência, da estrutura considerada como fundamental da neurose, da normalidade e maturação que encarnava o complexo de Édipo. No tempo da potência dos grandes discursos da tradição – o pai é isso –, que são finalmente tantas prescrições ensinadas e transmitidas para saber como fazer com o gozo, com a sexualidade, com o ser homem e mulher, etc., a neurose era considerada como a normalidade. Nesse sentido, ela era o ordinário. Certamente, a neurose era o preço a pagar pela lei do pai e pela tradição, com toda a série de sintomas que tornaram necessárias e conduziram à invenção da psicanálise. Mas nós tínhamos então prescrições para saber fazer com o gozo, que retiravam mais ainda sua força do fato de que eles imitavam o dito e o suposto natural. Por seu próprio desvio, em nossas referências clínicas, dizia-se que a psicose não enganava. A psicose era clara: na medida em que não era “normal”, não era “ordinária”, ou ainda não era “típica”.

 

Desde o início da sequência do ensino de Lacan, a perspectiva mudou radicalmente.

 

Inicialmente foi a clínica que levou a demonstrar a natureza essencialmente perversa, sempre não ordinária, sua dimensão “nunca a boa” e “nunca a necessária” da sexualidade humana. É o que o retorno do recalcado do sintoma neurótico dizia, significava, ou mesmo gritava, de algum modo.

 

Hoje, a desconstrução dos grandes discursos, sob o efeito conjugado da ciência, do capitalismo, da democracia – e ousemos acrescentar, da psicanálise – acabou por desnudar sua natureza de semblantes. Foi justamente sua única natureza de tradição que foi revelada, em relação a uma sexualidade que, no ser humano, não é de forma alguma natural ao passar pela linguagem. O grande edifício falocrático da lei do pai, que é tudo, menos igualitário e democrático, foi contestado e rejeitado por toda parte. Ora, a rejeição ao pai é precisamente o que constituía o elemento determinante da psicose (MILLER, 1987).

 

A lei do pai, que dá acesso ao gozo num contexto de interdição, aparece desde então como uma modalidade, dentre outras, de tratamento do gozo. Digamos ainda: um modo de gozar, particular, onde isso se goza da interdição, outros modos podendo ser possíveis.

 

O ordinário da foraclusão generalizada

 

A psicose ordinária é um sintagma que nasceu dessa mudança de perspectiva. Ele faz da neurose um caso inteiramente particular sobre um pano de fundo, em que a estrutura da psicose domina e é primeira. O ordinário se traduz em termos de foraclusão generalizada na medida em que falta no Outro o significante que venha significar o gozo, e isso, para todo ser falante.

 

Mesmo que ela continue a se fundamentar no binário neurose/psicose, entramos aqui para nos orientar numa abordagem clinica mais continuísta.

 

Poderíamos representar essa nova perspectiva clínica como uma curva de Gauss. Em uma de suas extremidades, está a psicose desencadeada com todos os seus fenômenos de desconexão, fenômenos de corpo e do significante. De acordo com as nossas primeiras referências clinicas, é uma dimensão que, quando a encontramos, não nos engana. Mas, na outra extremidade dessa hipotética curva de Gauss, temos também alguma coisa que, particularmente na atualidade, não engana: a neurose. É o que me ensina minha experiência de psicanalista. O ordinário, se vocês quiserem, torna-se de algum modo um “entre-dois”. Nas duas extremidades do campo clinico, vocês estão no extraordinário, vocês estão no claro, no binário. O ordinário diz respeito a um registro mais difícil: o da tonalidade, dos indícios, em que as oposições são menos formais.

 

O que não engana na neurose

 

O efeito da mudança nos discursos nos obriga a uma afinação do conceito de neurose. Em “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária”, J.-A. Miller (2015) é claro. A neurose é algo preciso, muito construído. Ela traz nela algo que não engana. É nesse sentido que ela traz, como ele diz, uma assinatura. Ele utiliza outros termos: é uma formação que apresenta uma estabilidade, uma constância. Há uma repetição da neurose. Em termos estruturais, de arquitetura geral se vocês quiserem. J.-A. Miller precisa o que é necessário ter para estar na presença desta construção tão singular que é uma neurose: ele fala mesmo de “critérios”. Eu o cito:

 

Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: de uma relação ao Nome-do-Pai — não um Nome-do-Pai — vocês devem encontrar algumas provas da existência do menos fi, da relação à castração, à impotência e à impossibilidade; é preciso ter — para utilizar os termos freudianos da segunda tópica — uma diferenciação nítida entre o Eu e o Id, entre os significantes e as pulsões, um Supereu claramente traçado. Se não há tudo isso e outros sinais, então não se trata de uma neurose, é outra coisa (MILLER, 2015, p. 13-14).

 

Isso é forte! É preciso se curvar a isso, a essa disciplina e a essa precisão. Não estou certo se tiramos sempre todas as consequências clínicas disso.

 

Aliás, a imagem da curva de Gauss não é aqui satisfatória. O “entre-dois”, nessa lógica, deve ser situado ao mesmo tempo, de um lado. Se não for uma neurose, é uma psicose – a compreender, já que isso se apoia no binário, que não é uma neurose.

 

Sob o efeito da desconstrução dos discursos da tradição – o Nome-do-Pai sendo colocado na categoria de um dos semblantes dentre outros –, tende-se a generalizar a dimensão encontrada na clínica de um semblante compensatório que possa funcionar.

 

A categoria epistêmica da psicose ordinária…

 

Retornemos ao campo clínico. No registro da psicose ordinária, como a psicose não está desencadeada, já que ela não é nítida e não é uma neurose, é preciso supor que alguma coisa faz função ou serve como Nome-do-Pai, na medida em que ele estabiliza e enlaça os diferentes registros – do corpo e do significante – sem que seja o Nome-do-Pai. Um outro elemento, não típico, exerce essa função.

 

J.-A Miller constata que

 

Isso introduz uma mudança de estatuto para o Nome-do-Pai. Nos textos clássicos de Lacan, utiliza-se o Nome-do-Pai enquanto nome próprio. Quando se pergunta: “O sujeito tem o Nome-do-Pai ou há a foraclusão do Nome-do-Pai?”, utiliza-se logicamente o Nome-do-Pai como nome próprio, o nome próprio de um elemento particular que é chamado o Nome-do-Pai.

Seguindo a ideia da ordem simbólica delirante, pode-se dizer que o Nome-do-Pai, não é mais um nome próprio, mas um predicado definido na lógica simbólica.

Um tal elemento funciona como um Nome-do-Pai para o sujeito. Esse elemento é o princípio que ordena seu mundo. Isso não é o Nome-do-Pai, mas tem essa qualidade, essa propriedade (MILLER, 2015, p. 8).

 

Podemos então ter um quadro clínico que pode se assemelhar a uma neurose, apesar de não ser uma. É precisamente nesse singular entre-dois – que não é, portanto, um – que é convocada e deve ser desenvolvida toda uma fineza e uma riqueza clínica. Longe de se constituir como uma zona indefinida, de um não-saber, isso obriga e produz um apelo na direção de um refinamento cada vez maior de nossas referências clínicas. Inversamente ao que não está nítido, ou de uma zona onde tudo cabe, há uma convocação a um maior rigor. É precisamente aí que todo o saber da distinção clínica é convocado.

 

…E seu apelo a um saber clínico renovado

 

É um programa de pesquisa, um work in progress. As indicações de clínicas diferenciais que J.-A. Miller abre em seu texto são um recurso muito precioso. Nesse registro em que a clareza dos traços do grande binário clássico psicose desencadeada/neurose está ausente, somos confrontados com a necessidade de produzir distinções que não pertencem ao registro dos grandes traços, mas do detalhe, da distinção fina. J.-A. Miller utiliza ainda outros termos que tentam descrever o que é exigido aqui: é uma clínica dos “pequenos indícios variados” (MILLER, 2015, p. 5). Não estamos, nesse campo circunscrito pelo sintagma “psicose ordinária”, no registro de uma “definição rígida” (MILLER, 2015, p. 2). Não é uma clínica da categoria “objetiva” (MILLER, 2015, p. 4), é uma clínica da “categoria epistêmica” (MILLER, 2015, p. 5) que está à procura de uma “sinalização[4]”. Resumindo, é uma clínica do registro dos “signos discretos”! Anuncio aqui o que está em jogo e a envergadura do título do próximo congresso da New Lacanian Scholl: “Signos discretos nas psicoses ordinárias. Clínica e tratamento”. Ele acontecerá este ano, no começo de julho e também pela primeira vez em Dublin – cidade cujo laço com a psicanalise lacaniana é evidente através de James Joyce, cuja figura está precisamente na origem de uma nova abordagem da clínica e do sintoma para a psicanálise lacaniana.

 

É interessante notar que, em francês, o termo “discreto” (discret) comporta uma dupla significação das mais interessantes, que não “passa” pelo inglês. Ele significa o que não se mostra facilmente, o que é pequeno, o que não é evidente – quase escondido -, mas ele comporta também a significação, em outros registros, daquilo que determina, aquilo que dá a assinatura e decide.

 

Partir da não-relação

 

Resultado de uma necessidade clínica que o sintagma “psicose ordinária” tenta delimitar, essa lógica clínica dos signos discretos, das “tonalidades” a encontrar e precisar se inscreve em uma lógica que nos cabe ampliar. Por causa da mutação da estrutura dos grandes discursos, é uma lógica que acaba por concernir o conjunto do campo da clínica. Situo aí a envergadura do próximo congresso da NLS.

 

Nós escorregamos, oscilamos, entramos em um contexto de binaridade, em uma clínica que se inscreve também, pouco a pouco, em um registro continuísta.

 

É um registro de distinção clínica que acompanhada de um traço geral, comum a todo ser falante, que é experimentado por todos. Em seu texto, J.-A. Miller aponta esse traço comum como uma discordância. Uma discordância experimentada por todos, no registro ou na relação com o ser, com o sentimento de ser. Para se referir a esse traço, ele lança mão de uma expressão originada nos primeiros tempos do ensino de Lacan, que diz respeito precisamente à psicose desencadeada: “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565). Trata-se de um sentimento de alguma coisa que não vai bem, que não se encaixa, não anda como deveria. De fato, se fizermos referência aos termos mais tardios de seu ensino, veremos que se trata de uma “não-relação”. Essa não-relação resulta da conjunção ou do encontro do registro do corpo, portanto, do imaginário, e o registro do significante, o simbólico. Esse encontro estrutural provoca uma “desordem”, que produz uma não-relação – nos deparamos com o encontro dos registros imaginário e simbólico que serviam de base para a construção edipiana, tomada aqui de outra maneira. Sim, mas se a não-relação é experimentada por todos, em que modalidade ou tonalidade ela se declina? Em que registro, por exemplo, ela se manifesta mais eletivamente?

 

Essa última questão permite situar uma primeira distinção: entre histeria e obsessão. J.-A. Miller (2015, p. 9-10) precisa: o sujeito histérico experimenta essa desordem, mais precisamente, na relação com seu corpo, e o sujeito obsessivo mais eletivamente na sua relação com as ideias.

 

Sim, mas – precisão suplementar necessária – quando essa discórdia se inscreve prioritariamente no registro da relação identificatória narcísica com o corpo próprio, quando essa relação não é ”suficientemente boa” (MILLER, 2015, p. 4), quando ela se manifesta pelo sentimento de não ter corpo, quando a relação com o corpo se inscreve em uma dimensão de “derrota” (MILLER, 2015, p. 4), isso tudo faria parte do campo histérico e do sentimento de vazio que os sujeitos podem experimentar em si, ou isso denotaria uma relação com o “buraco psicótico” (MILLER, 2015, p. 4)? O que, nesse último caso, revela que nenhuma marca da identificação simbólica grampeia o corpo, e denota, dito de outro modo, uma disjunção total dos dois registros do corpo e do significante.

 

Do mesmo modo, quando nos situamos no registro da relação discordante com o pensamento, podemos nos perguntar se o sujeito mantém uma relação muito erotizada com o pensamento, se ele está sobrecarregado por seus pensamentos de forma obsessiva – o que J.-A. Miller lembrava recentemente (Bosquin-Caroz, 2015), que ele apresentava então uma estrutura extremamente construída, decorrente de um edifício muito complexo, como para o Homem dos ratos e a análise estrutural que Lacan (2008) desenvolve sobre ele em O mito individual do neurótico? Ou, ainda, podemos nos perguntar se isso vai até o sentimento de que seu pensamento, de uma forma ou de outra, é influenciado, por exemplo? Ou se ele acontece de maneira autônoma, nas modalidades do automatismo mental? Ou ainda se ele é habitado pelo sentimento de ser manipulado por um Outro exterior ao sujeito – o que faz parte então precisamente do registro psicótico?

 

O prescindir, se servir do binário clínico – Da tonalidade nos registros clínicos

 

Mesmo em relação ao fato de que ainda resta uma grande oposição entre o corpo e o significante, tudo isso exige uma localização mais precisa. Nem sempre é simples decidir, exatamente quando isso não se apresenta de uma forma nítida, quando, por exemplo, uma amarração não típica dos registros evocados “vela” (MILLER, 2015, p. 4), “dissimula” (MILLER, 2015, p. 9) ou compensa os efeitos potencialmente maiores e excessivos.

 

Quando é esse o caso, é então a dimensão da “tonalidade”, da “intensidade” (MILLER, 2015, p. 9) que é exigida. É um manejo muito delicado. J.-A. Miller situa alguns registros onde ela pode ser delimitada. Eles são apaixonantes. Sua delicadeza exige que eles sejam desdobrados, refinados. O que produz, em contrapartida, um novo enriquecimento das distinções clínicas.

 

Um primeiro registro útil deve ser situado no nível da inscrição e do laço social do sujeito. Por esse registro, não se trata de promover a inserção social, do mesmo modo que também não se trata de erigir sua rejeição como ideal. Mas, com relação a esse registro, o que poderia ser lido nele de particular em um dado sujeito? Mais precisamente, que indícios poderiam ser lidos na maneira como ele se identifica com sua função social? Mais precisamente ainda, que tipo de “relação negativa” o sujeito manteria com ela? Aqui também há um desacordo para todos. Mas de que tipo seria ele? Seria na modalidade de uma rebelião – toque histérico? Seria na modalidade “autônomo”, do tipo “não tenho nada a ver com isso, não pense que eu acredito nisso, isso não me interessa nem um pouco, mas tudo bem…” – assinatura mais obsessiva? Ou ainda, a não inserção seria mais forte? A impossibilidade de se inscrever seria mais forte e de que tipo? Sob que coordenadas? A dificuldade de se inscrever em um laço social seria impossível, ou ela seria necessária e iria de ruptura em ruptura, até o extremo de ter que romper todo laço com o outro – assinatura esquizofrênica? Uma dificuldade relacional conduziria à necessidade de tomar distância a cada vez, até, às vezes, de maneira vital, ter que colocar vários quilômetros entre as coisas – esse número de quilômetros sendo, literalmente, proporcional à distância subjetiva que o sujeito precisa para não ser capturado pelo Outro? Que facilidade teria o sujeito com a ruptura, lá onde certos neuróticos se fixam por anos, e têm uma angústia diante da ideia de qualquer mudança? Ou, ainda, no outro extremo da tonalidade identificatória, esta seria completamente fora da dialética? Ela apresentaria uma inserção imediata sem discordância, ou ainda uma identificação completa e total com a função – o que poderia não produzir um déficit, mas justamente uma competência multiplicada nessa ocasião? Essa identificação com a posição social seria justamente a amarração atípica que permitiria ao sujeito psicótico dar a si mesmo um ser, uma posição no social, um eu e uma imagem, da qual só perceberíamos a medida “compensatória” quando a perda desse apoio real não fosse superável pelo sujeito e pudesse conduzir ao desencadeamento ou ao desligamento psicótico?

 

Temos aqui variedades que somente o binário neurose/psicose no quadro da presença ou não do Nome-do-Pai, nem sempre pode ser identificado. Antes de tudo, a ausência da função Nome-do-Pai somente se deduz a partir desses traços e da dimensão de intensidade que apresentam.

 

A mesma fineza do detalhe deve se mostrar necessária na relação com o corpo, com o sentimento de estranheza que se pode manter com ele. Nós já o evocamos brevemente. Como o sujeito habitaria, sempre de maneira mais ou menos ruim, seu corpo? Quanto a esse corpo, essa discordância apresentaria uma dimensão acabada, localizada, bordejada? Seria uma parte do corpo – o pênis, por exemplo – que escaparia ao controle e ao comando e seria objeto de todas as disfunções? Ou então ele não seria jamais atingido por elas e, portanto, não estaria submetido ao vai e vem do desejo? Essa discordância se deveria a um sentimento de impotência localizada, com relação, por exemplo, a um funcionamento ideal e idealizado? Ela seria então marcada por essa função própria do menos, do menos-phi em que se situa o registro do binário neurótico da impotência e do impossível? Ou então seria todo o corpo que escaparia? A localização seria mais fluida? As lágrimas, por exemplo, estariam ligadas a um acontecimento, fosse ele acompanhado de um sentimento de vacuidade, ou então tivesse ele um caráter radicalmente imotivado? Em resumo, J.-A. Miller diz isso de uma maneira muito bonita: é uma discordância submetida a uma imposição, no limite que impõe o menos-phi da estrutura exigida pela neurose, ou então a falha é não marcada por esse limite e apresenta uma característica muito mais insondável?

 

Os detalhes podem se multiplicar e se entrecruzar ou podem ainda se acumular. J.-A. Miller toma o exemplo da marca real no corpo, que pode constituir uma compensação à não-inscrição, à falta de marca simbólica, à não-amarração do simbólico na relação com o corpo. Não é simples elucidar o alcance disso, ainda mais com a mudança de época e o enfraquecimento justamente da força de marca de inscrição dos discursos da tradição. Alguns rituais tradicionais, por exemplo, constituíam as marcas do corpo inscrevendo-as em um registro social e dando-lhes função, eu diria, de corpo. Vemos, hoje, na era da queda desses grandes marcadores, a utilização generalizada, “democratizada”, das marcas reais no corpo: piercings, tatuagens, etc., às vezes, mesmo que raramente, nos lugares mais sensíveis deste. De que eles seriam marca? Lá onde – certamente de maneira errada – elas eram consideradas muito rapidamente como signos de psicose, não faz ainda muito tempo. Lá também é a tonalidade que informa. Seria em um registro do limitado? Ou então carregaria uma outra característica, que dá corpo ao sujeito psicótico, lá onde ele não dispõe de nenhum outro grampo para ele?

 

A questão da dialética, ou ao contrário, de uma fixidez ou insistência estranha, se coloca igualmente no nível da identificação com o objeto dejeto. Seria a relação com a falta ou com a falta da falta? A autodesvalorização, por exemplo, seria a máscara de um narcisismo e de um ideal bem enraizados, em relação aos quais o sujeito teria um jogo dialético – o que não o impediria de sofrer por isso – isso se inscreveria novamente em uma dimensão de falta, de limitação? Ou então o sujeito estaria, sem dialética, inteiramente identificado com essa falta que ele encarna? Ele chegaria até mesmo a ser, realmente, na relação com o corpo e com sua forma de se vestir, um verdadeiro dejeto? Isso aconteceria em um registro onde a tonalidade é menos marcada? Além disso, como essa identificação não dialética se manifestaria? Como tal ela conseguiria se velar-desvelar por uma afetação, uma higiene, uma forma de se vestir específica que carregaria essa marca?

 

O que aconteceria ainda, por exemplo, no registro da culpa? De que ordem e intensidade seria ela em relação a suas manifestações extremas? De tipo neurótico, ou ainda insondável, identificando-se com falta e com o objeto que acabo de evocar? Como no caso de Franz Kafka, por exemplo, na medida em que a culpa acontece, entretanto, e precisamente com ele em sua relação com o pai. Com que tipo de figura de pai o sujeito teria que se haver?

 

O que dizer da relação com a linguagem? Em sua clínica generalista, Lacan terminará por dizer que ela é um parasita para todos. Sim, mas de que forma e em quais modalidades para cada um, no singular?

 

A lista não termina. O continente é imenso. Tanto para os registros como também particularmente no seio mesmo da cada entidade clínica. J.-A. Miller toma o exemplo na psicose:

 

Vejam a diferença entre um bom paranoico, fino e musculoso, que se construiu verdadeiramente um mundo para ele e para outros, e o esquizofrênico que não pode sair de seu quarto. Nós nomeamos tudo isso psicose.

Quando se trata de uma paranoia, o make-believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido. […] Mas, há algumas, como o gênero paranoia sensitiva, que mencionei anteriormente, que não são claras, desde o início. Foi apenas após três anos de análise que o analista percebeu que alguma coisa não estava certa, que o sujeito construía, cada dia, sua paranoia. Há também os esquizofrênicos socialmente desconectados, enquanto os paranoicos são socialmente, totalmente conectados. Algumas grandes organizações são frequentemente dirigidas por psicóticos em potencial, cuja identificação é super social. O campo das psicoses é, portanto, imenso (MILLER, 2015, p. 16).

 

Sem dúvida, não é à toa que ele toma o exemplo da amplitude do campo clínico no registro da psicose, a neurose sendo provavelmente mais específica, mais “extraordinária” e, portanto, mais precisa e circunscrita.

 

O que não se distingue

 

A lista é infinita. Eu a fecharei – e isso é crucial – somente por um contraexemplo. Um registro a propósito do qual J.-A. Miller insiste que justamente ele não é pertinente, que ele não é “discreto”, no sentido de determinante, com relação às distinções clínicas: a saber, o registro da sexualidade. Não se pode basear um diagnóstico clínico apoiado nas práticas sexuais enquanto tais precisamente porque é o lugar eletivo da não-relação, em que a normalidade, o ordinário, não existem no ser falante. O ordinário, o natural, em termos de sexualidade, é o instinto. Ele é, por natureza, desregulado no ser falante. Não há “vida sexual típica” (MILLER, 2015, p. 19). É um ponto para se recordar sempre: se as práticas sexuais podem revelar, ou mesmo permitir refinar, as distinções clínicas, estando colocadas em relação aos elementos dos outros registros percorridos (relação ao corpo, etc), elas não o podem per se (por elas mesmas).

 

O ensino com o qual rompemos

 

As “pequenas chaves” (MILLER, 2015, p. 13), outro nome dos signos discretos, devem ser precisados a cada vez naquilo que podemos ler deles da relação própria para cada sujeito, tomado em sua singularidade.

 

Essa estreita fineza exigida, levada ao extremo de sua lógica, nos conduz a um mais-além da clínica binária, hierarquizada. Ela não a anula enquanto tal, mas pode fazê-la passar para segundo plano; ou mesmo, ela desloca o ângulo do modo pelo qual podemos considerá-la.

 

A clínica se orienta, assim, mais na direção da lógica dos nós borromeanos, que interessou Lacan em seu ensino tardio, a partir precisamente de J. Joyce. É uma lógica que tira todas as consequências da desorganização inicial dos campos da subjetividade humana que nós havíamos evocado como estando na base da concepção lacaniana da psicose. Lacan é levado pela clínica a generalizá-los. A mudança de estatuto no Nome-do-Pai que evocamos, de se encontrar “reduzido” a uma modalidade dentre outras, de amarrar os três registros com os quais Lacan dividiu, desde o início de seu ensino, o campo da subjetividade humana, é o que leva a isso. A lógica é invertida. É o campo da psicose extraordinária que revela o estatuto inicialmente solto e independente dos registros. Eles certamente encontraram uma modalidade típica, socialmente compartilhada, decorrente da tradição, de se atar: o modo neurótico e edipiano. Pelo fato de ser típico, ele poderia ser pensado como ordinário, e mesmo “natural”. Essa tipicidade foi diminuída e contestada até o osso.

 

O campo imenso que não diz respeito a isso, o vasto campo que nós tentamos capturar pelo registro da psicose ordinária, a psicose dita compensada e não desencadeada, o registro no qual outras amarrações se revelam eficazes, constitui o ensino de uma outra lógica com a qual devemos abrir um espaço.

 

A abordagem não é mais tanto a de se identificar o que é deficiente em relação a um standard e a uma norma suposta – de fato inexistentes. Deve-se tentar apreender e delimitar o modo flexível e em movimento pelo qual cada sujeito, em sua singularidade, se vira ou não para enodar e ligar o real que constitui a não-relação sexual, com o corpo – o imaginário – e o significante – o simbólico –, como nós começamos a fazer nas declinações dos registros clínicos. Essa amarração é, por exemplo, típica, singular ou inexistente?

 

Para dizer de outra maneira, citando J.-A. Miller, nosso trabalho é, antes de isolar e “de captar sua maneira particular, insólita, [no sentido próprio de cada um e a nenhum outro semelhante] de dar sentido às coisas, de dar sempre o mesmo sentido às coisas, de dar sentido à repetição em sua vida” (MILLER, 2015, p. 8). Isso significa, se quiserem, delimitar seu “delírio privado”, o que, em uma época, foi isolado por Lacan pelo termo fantasia fundamental, na medida em que daria o algoritmo do ser do sujeito.

 

O fenômeno clínico, ou o anti-DSM

 

Nessa lógica, o diagnóstico, particularmente o binário neurose/psicose, é grosseiro, no sentido de que ele é uma ofensa precisamente à fineza exigida. Ele é demasiado espesso, é muito abrangente. Essa lógica nos conduz menos às classificações do que ao isolamento do “fenômeno clínico” enquanto tal. Retornamos, assim, aos “signos discretos” do congresso da NLS, no ponto que podemos considerar que ele só é estreito na medida em que ele escapa às classificações conhecidas e toca na singularidade absoluta.

 

J.-A. Miller precisava, durante a última reunião da FIPA em Paris (BOSQUIN-CAROZ, 2015, p. 4-5), que os relatos clínicos de G. de Clérambault são os modelos: a saber, uma precisão rica de todos os recursos da língua, em sua dimensão literária, no ajuste do fenômeno clínico, até poder tentar dizer, e reduzir, em uma ou duas frases, o que faz o osso e a depuração para cada sujeito. É uma abordagem em que o diagnóstico não é mais dito. Ele se deduz em cada oportunidade, sem mais.

 

Observemos que são os recursos de que a psiquiatria clássica dispunha e sobre os quais ela se apoiava. Ela os perdeu em sua biologização desenfreada. A psicanálise se tornou sua depositária. Ela também tem a tarefa de reinventá-los a partir de suas próprias referências.

 

A captura por um dizer aproximado do fenômeno clínico, na medida em que ele é próprio a um sujeito, é o avesso mesmo, radicalmente, da referência do DSM. Aqui, é a singularidade absoluta que está em questão. No DSM, trata-se de um corte e de um corte e de um desfiar, por um recenseamento estatístico acéfalo de sintomatologias standards e quantificáveis.

 

Em direção a uma nova orientação do tratamento

 

Concluirei por destacar a ponta do que J.-A. Miller disse a respeito em sua apresentação do congresso da Associação Mundial de Psicanálise – referência com a qual fiz a abertura dessa conferência.

 

Uma nova inflexão de ângulo está aí ainda presente, a partir do ultimíssimo ensino de Lacan, aquele que antecipava as consequências clínicas das figuras do Outro de hoje.

 

Se a psicanálise muda, diz J.-A. Miller, é porque ela “deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera” (MILLER, 2016, p. 26). Ele precisa: não é que a ordem simbólica tenha vacilado, mas que a verdadeira mutação que ela sofreu foi o desvelamento de que ela não passa de uma articulação de semblantes, de simples construções sociais, cada dia mais votadas à desconstrução.

 

É precisamente isso, como para o ser falante de hoje, que Hamlet sabe, lá onde para Édipo era não sabido. É a natureza da dimensão de semblante do pai e de sua própria ordem que lhe é des-velada. Doravante, tudo é apenas semblante. É o que faz a errância – a época e seus errantes – do ser falante de hoje e faz também dele, fundamentalmente, um não-tolo.

 

Foi a psicanálise que veio recolocar que tudo é apenas semblante. Que existe um real, fora de sentido: aquele da não-relação, a respeito do qual o ser falante se encontra em uma posição de debilidade que o destina, em sua busca de sentido, ao delírio.

 

A esse respeito, J.-A. Miller prossegue – eu o cito brevemente, isso merece evidentemente ser desdobrado –

 

Enquanto a ordem simbólica era concebida como um saber regulando o real e lhe impondo sua lei, a clínica era dominada pela oposição entre neurose e psicose. Agora, a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas lhe é subordinada. […]

Disso resulta, se assim posso dizer, uma declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres (MILLER, 2016, p. 31).

 

Aquele que fez uma análise sabe que a respeito do real, não há nenhuma normalidade que valha – nenhum “ordinário” não é conveniente.

 

J.-A. MILLER isola um ternário que “repercute”, ele diz, aquele clássico dos registros real, simbólico, imaginário: delírio, debilidade, tapeação (duperie).

 

A única via que se abre mais além é, para o falasser, fazer-se tolo [dupe] de um real, quer dizer, montar um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crê sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é. A debilidade é, ao contrário, a tapeação [duperie] do possível. Ser tolo, tapeado por um real – que ostento – é a única lucidez aberta ao corpo falante para se orientar (MILLER, 2016, p. 31).

 

Eu acrescento: é o que se chama se fazer tolo de seu inconsciente. Uma nova definição de uma orientação do tratamento resulta disso. Ela é, contrariamente àquela que se fundamentava em nossas referências clínicas binárias, transestrutural: “Analisar o falasser demanda jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio [a decifração do inconsciente no tratamento] de maneira que sua debilidade ceda à tapeação do real” (MILLER, 2016, p. 31-32). É a esta escola que nós devemos tentar nos situar.

 

Tradução e revisão: Márcia Bandeira e Márcia Mezêncio

 


Referências
BOSQUIN-CAROZ, P. “Compte rendu de la Journée casuistique du 28 mars 2015”, Après-midi casuistique-Dossier des textes des CPCT et associations apparentées (FIPA). Paris, documente interne, abr. 2015.
LACAN, J. (1958) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 537-590.
LACAN, J. (1958-1959) O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
LACAN, J. (1975-1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1978) O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MILLER, J.-A. “Sur la leçon des psychoses”. In: Actes de l’École de la Cause Freudienne XIII, ECF. Paris, 1987.
MILLER, J.-A. “Efeito retorno sobre a psicose ordinária”. In: Almanaque On-line Nº 5. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Jacques.pdf
MILLER, J.-A. “Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016 – O inconsciente e o corpo falante”. In: AMP, Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo, EBP, 2016. p. 19-32.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1995, vol. I, p. 529-619.
YVES VANDERVEKEN – Psicanalista em Bruxelas, AME, membro da ECF e da AMP. Foi presidente da NLS. E-mail: yves.vanderveken@skynet.be
[1]Tradução da versão publicada na Revista Mental n. 35, Paris, jan/2017, p. 13-33. Uma primeira versão deste texto foi publicada no Quarto, Revista de Psicanálise publicada na Bélgica, no 112/113.
[2]Um primeiro esboço desta conferência foi feito em Gand, em 24 de setembro de 2015, sob o título, A clínica binaria e seu além. Ela se deu na abertura de um ciclo de conferências do Kring voor Psychoanalyse van da NLS sobre o tema: “é a neurose de hoje sempre tão ordinária?” Ela foi retrabalhada em sua versão aqui publicada, para a conferência de abertura do ano de trabalho da London Society da NLS, que aconteceu em Londres, em 10 de outubro de 2015.
[3]Cf. Programme de l’ACF-Belgique 2015-2016 en ligne, p. 30-31. http://www.ch.freudien-be.org/WordPress/wp/content/programme-adf-belgique-2015-2016.pdf
[4]NT: Em francês “signalétique” de acordo com o Petit Robert, significa “conjunto dos elementos de uma sinalização”, ou seja, uma referência, um descritivo, um identificador.

YVES VANDERVEKEN
Psicanalista em Bruxelas, AME, membro da ECF e da AMP. Foi presidente da NLS.