A Rua De Cada Um

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

 

Supervisão clínico-institucional e orientação psicanalítica

Este trabalho se inscreve na perspectiva de uma experiência de supervisão clínico-institucional, em que foram acompanhadas as equipes da Rede de Atenção Psicossocial – com destaque para as conversações realizadas com a equipe do Consultório na Rua, dispositivo da Atenção Primária à Saúde para populações de rua – em direção à construção de saídas diante dos impasses dos trabalhadores na abordagem dos sujeitos em situação de rua.

 

A supervisão clínica-institucional tem uma função singular no trabalho das equipes no exercício do trabalho compartilhado. Ao supervisor cabe “a complexa tarefa de contextualizar permanentemente a situação clínica, foco do seu trabalho, levando em conta as tensões e a dinâmica de rede e do território” (BRASIL, 2007, p. 1).

 

A partir dessa diretriz política, o supervisor de orientação lacaniana é remetido ao campo da psicanálise aplicada, que, nesse contexto, se trata da clínica denominada “feita por muitos”. O que também lhe possibilita atuar em novos dispositivos em sua relação com a cidade, para além da psicanálise standard. Como afirma Teixeira (2010), há particularidades da psicanálise nos dispositivos em saúde mental:

 

“É a partir da psicanálise que encontramos uma orientação clínica que respeite a lógica extraída de cada caso, assim, como a possibilidade de operar com dispositivos clínicos que considerem as saídas apontadas por cada sujeito” (TEIXEIRA, 2010, p. 23).”

 

Nessa direção, cabe ao supervisor, a partir da transferência de trabalho e de sua posição êxtima em relação à equipe, colocar-se como aprendiz da clínica a partir da experiência dos trabalhadores, condição para que possa emergir desse encontro um novo saber, para além dos ideais de cura e de inserção social dos sujeitos, e, dessa posição, poder reconhecer os efeitos de sua prática. Nas palavras de Alvarenga (2011):

 

“A posição do êxtimo deve ser conquistada a cada passo pela maneira de se utilizar o real como furo no saber próprio à mestria. Ela convoca e autoriza o não-todo do saber, e responsabiliza cada um por sua construção. Procura-se então situar em cada caso, o que escapa ao saber cristalizado em torno do paciente, que alimenta um sentimento de impotência e desânimo, evitando que o saber do Outro venha anular a dimensão da enunciação (ALVARENGA, 2011, p. 3).”

 

Ao adotar a prática da conversação para o trabalho com a equipe, busca-se a produção de um novo saber sobre cada caso acompanhado. A partir da circulação da palavra, são recolhidos fragmentos que marcam a experiência dos trabalhadores. A escuta permite uma localização de pontos de real em jogo para cada sujeito e novas construções dos casos tendo como referências as estruturas clínicas e as fixações de gozo, apontando direções para as intervenções junto aos sujeitos. A conversaçãodefinida como “uma prática da palavra para tratar dos insucessos”, ao privilegiar a enunciação, produz um efeito de saber que passa a orientar o trabalho, rompendo com o discurso da impotência na equipe (LACADÉE, 1999/2000; MIRANDA; SANTIAGO, 2010).

 

Por sua vez, a construção do caso clínico, operando como eixo para o trabalho em equipe, permite a circulação da palavra, o compartilhamento de elementos do caso e o esvaziamento de saberes prévios instituídos. Isso dá lugar ao trabalho coletivo, que destaca as contingências da história do sujeito e permite o aparecimento do sujeito singular e do caso. Na construção do caso, trata-se de recolher as narrativas do sujeito, dos operadores, das famílias, das instituições e das escanções clínicas, bem como as possibilidades diagnósticas, abrindo novas perspectivas de intervenção (VIGANÓ, 1999; FIGUEIREDO, 2004).

 

A rua como resposta ao impossível de dizer

A partir da supervisão, um esforço da oferta da palavra aos sujeitos em condição de rua é o convite posto à equipe, em uma prática orientada pela psicanálise em que se busca cotidianamente fazer uma leitura do sintoma do sujeito e da função que a rua tem para cada um, apostando no que há de único em cada sujeito.

 

A escuta tem produzido novos saberes sobre os sujeitos, destacando seus movimentos de desinserção e reinserção em lógicas particulares que os localizam no laço social. Podem ser destacadas três posições distintas:

 

  • Uma posição melancólica – marcada por pura pulsão de morte, em que não há uma articulação entre cadeia significante e o real do corpo – anuncia a morte do sujeito e convida a equipe à sublimação do ódio diante do insuportável da singularidade do gozo do outro e da recusa do sujeito à oferta de cuidados. O caso de um jovem que vivenciou o apodrecimento de seu corpo até a morte anuncia a impossibilidade de qualquer inserção no laço social, em que uma irrupção de real marcada pela ausência da palavra rechaça o outro, implicando um mal-estar generalizado na equipe. Uma releitura de sua história e a localização de possíveis pontos de desencadeamento permitem à equipe um novo posicionamento em busca de construção de saídas possíveis para lidar com a recusa do outro.

 

  • Uma posição paranoica, em que a oferta de cuidados é o mal encarnado na equipe, convida a equipe a repensar as suas práticas marcadas pelo ideal da inclusão social diante do movimento do sujeito em direção à desinserção no laço social, rechaçando o outro. O caso de uma mulher para quem as instituições estragam seus filhos anuncia o que é possível para cada sujeito, o que pode ser inventado diante da ameaça que o outro constitui. Essa mulher faz mudanças periódicas de endereço na cidade para não ser encontrada pelos técnicos de políticas públicas, desencadeando indignação entre os integrantes das equipes na medida em que, ao recusá-los, ela promove uma desconstrução radical nas suas práticas e os convida a romper com os ideais da política para todos. Em outra via, depara-se com um sujeito sentenciado para o qual a rua representa a possibilidade de anonimato frente às exigências judiciais e para quem o trabalho da equipe constitui uma ameaça ao arranjo construído. A possibilidade de manifestações kakônicas daí advindas convida a equipe ao seu discreto manejo, que implica na subtração do ideal de inserção do sujeito no laço social.

 

  • Uma posição marcada pelo apelo ao sentido do sujeito, em que a oferta da palavra o coloca a trabalho, convida a equipe à sustentação do fazer cotidiano apostando na possibilidade de o sujeito se colocar questões sobre sua condição de rua e, a partir desse ponto, poder ressignificantizar a vida em direção à reinserção no laço social. Diante do caso de uma mulher que perdeu a guarda dos filhos em consequência de suas ausências e do uso abusivo de drogas, a partir da escuta da equipe, colocam-se questões que conduzem essa mulher a novos projetos de vida, incluindo trabalho e nova moradia, e, nessa via, dá-se dignidade ao sintoma rua, fazendo-a se reposicionar em relação aos seus laços sintomáticos.

 

Tendo como referência as possibilidades de posições que marcam os sujeitos em condição de rua, gradativamente, há um deslocamento da equipe em seu desejo de curar, anunciando, assim, uma nova posição de escuta que busca localizar junto aos sujeitos o que se repete, o sem sentido e as amarrações possíveis para cada caso. Ao real impossível de suportar, a supervisão aponta para a preservação do laço, emprestando o corpo e aguardando as contingências propícias ao ato e seus efeitos (ALVARENGA, 2013).

 

Considerações finais

Pelo dispositivo da supervisão, são verificados avanços nas práticas da equipe a partir da escuta e do reconhecimento do que há de único em cada sujeito e do que se recolhe e se compartilha em cada caso, dando uma nova direção ao trabalho coletivo que possibilita repensar as práticas de cuidados particularizados e os serviços prestados pela equipe.

 

A supervisão tem possibilitado a emergência da dimensão clínica da política, valorizando a circulação da palavra e destacando o que há de mais singular em cada caso compartilhado e em cada saída construída pelo sujeito para lidar com o insuportável.

 

Lacan, no Seminário 23, ao tratar das formas de amarração possíveis entre os registros imaginário, simbólico e real, destaca que “O nó, certamente, é alguma coisa que se amassa, que pode tomar a forma de um novelo, mas que, uma vez desdobrado, mantém sua forma de nó e, ao mesmo tempo, sua ex-sistência” (1975-1976/2007, p. 165).

 

Tendo essa referência, pode-se afirmar que, para essa equipe, a supervisão funcionaria como um quarto elo que faz amarração entre o fazer de cada um, o trabalho em equipe e a dimensão clínica da política? Para Figueiredo (2009), a supervisão teria a função de enodar as diferenças estratégicas para construção e consolidação do trabalho em equipe como operador central da clínica.

Assim, a aposta no dispositivo da supervisão é o convite para a produção de um novo saber-fazer aí com os sujeitos, a partir do trabalho em equipe e da dimensão clínica que reconheça a solução de gozo que a rua apresenta para cada um.

 

 

 


Referências
ALVARENGA, E. “A ação lacaniana nas instituições”. InAlmanaque On-line. Belo Horizonte: IPSM-MG, ano 5, n. 8, 2011. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/edicoes/almanaque-no-08/#/Home. Acesso em: jul. 2019.
ALVARENGA, E. “A supervisão e seus efeitos”. InCorreio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo: n. 73. nov. 2013.
FIGUEIREDO, A. C. “Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial”. InMental. São Paulo: 2005, ano III, n. 5, nov. p. 43-55.
FIGUEIREDO, A. C. “A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental”. InRevista de Psicopatologia Fundamental. v. VII, Ano 1, 2004. Disponível em:        <http://www.fundamentalpsychopathology.org> Acesso em: mai. 2019.
LACADEÉ, P. “Da norma da conversação ao detalhe da conversação”, In: LACADEÉ, P; MONIER, F (orgs.). Le pari de la conversation. Paris: 1999/2000. Trad. Vasconcelos, R. N; SANTIAGO, A. L. Bezerra.
LACAN, J. (1975-76) O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. “O ofício da supervisão e sua importância para a rede de saúde mental do SUS”. 2007. Disponível em: <http:// portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=31355>  Acesso em: mai. de 2019.
MIRANDA, M. P; SANTIAGO, A. L. “As conversações e a psicanálise aplicada à educação: um estudo do mal-estar do professor e o aluno considerado problema”, InO declínio dos saberes e o mercado do gozo. São Paulo: Col. LEPSI IP/FE-USP. n. 8, 2010.
TEIXEIRA, A. (org). Metodologia em ato. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010.
VIGANÒ, C. “A construção do caso clínico em saúde mental”. InPsicanálise e Saúde Mental Revista Curinga, EBP-MG. Belo Horizonte: n. 13, p. 50-9, set. 1999.

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA
Psicóloga, psicanalista, doutora em Psicologia pela UFMG. Docente da Universidade Estadual de Montes Claros. Rua Serra da Mantiqueira, 302 | Montes Claros/MG | CEP: 39401-585 | silveira.rosangela@uol.com.br



A Histeria E Os Nomes Do Pai

DANIELA GONTIJO DE SOUZA

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

Uma inquietude contemporânea vem dando nova forma à subjetividade. A palavra contemporânea diz da atualização que a modernidade faz com essa inquietude, que já está posta desde os primórdios do psiquismo. A maneira de lidarmos com isso se modifica concomitantemente às transformações culturais.

 

Campos (2011, p. 13) esclarece que “uma nova ordem, já prenunciada no apagar das luzes do século XX, emerge como fruto de uma precarização da eficiência simbólica, da fugacidade do imaginário e das eventualidades do real”. As mudanças culturais vividas nas últimas décadas nos colocam em impasses com a civilização e nos fazem romper com as tradições. Vivemos uma modernidade pautada nos discursos da ciência e do capitalismo, que promovem uma desorganização simbólica e nos trazem, como uma das consequências, a pluralização do nome do pai.

 

Com a intenção de localizar as questões que a contemporaneidade me traz, interessou-me discutir a histeria quando não nos servimos mais, como antes, do nome do Pai, e sim dos nomes dele.

 

A precariedade do Pai

Vivemos uma mudança de paradigma em todo o cenário social, cultural e, consequentemente, analítico. A fragilidade simbólica é constatada na fluidez das relações e na falência das hierarquias. Miller (2015, p. 6), no seu texto “Em direção à adolescência”, aponta que “entre essas mutações da ordem simbólica, primeiramente a principal, a saber, é o declínio do patriarcado”.

 

A precariedade do nome do pai é evidenciada pelas “mutações simbólicas” e confirmada pela prevalência dos discursos das ciências e do capitalismo. Brisset (2012, p. 190) nos esclarece que:

 

“O mundo hoje não é mais freudiano, ele é lacaniano. E a tarefa incessante da falsa científica não é mais lançar um novo objeto, mas fabricar, em série, infinitas réplicas do único objeto que interessa: o objeto a no Zênite social. Talvez seja, desde essa virada, visando eliminar o impossível e alcançar o ilimitado infinito, que vimos um desenvolvimento científico desenfreado visando novas tecnologias – tecnologias voltadas para fabricação de toys para satisfação do imperativo de gozo.”

 

Campos (2011) conclui que a crise do simbólico tem afetado todas as ideologias, todavia, fez incrementar o discurso cientificista das manipulações genéticas, das falsas ciências e das novas tecnologias.

 

Sabemos que as ideologias políticas se esvaem neste contexto atual e nos traz um outro indicativo da precariedade paterna. No percurso histórico, assistimos à verdade do totalitarismo, que se encontrava em um único lugar, ser dividida na democracia. Em “Instituições milanesas”, Miller (2011, p. 14) esclarece que “o totalitarismo (…) era a esperança de suprimir a divisão da verdade, de instaurar o reino do Um na política” e diz que “o triunfo da democracia que vai de vento em popa no pensamento contemporâneo (…) não gera o mesmo entusiasmo, podendo inclusive ser avaliado por um efeito depressivo; ele o comporta na medida em que implica a aceitação da divisão da verdade”.

 

A divisão abre uma fenda, aponta uma falta que o Um do totalitarismo parecia preencher. Abre-se então um buraco que a ciência promete cobrir. Cada vez mais, objetos são produzidos e oferecidos como garantia da totalidade. Somos levados a consumir desenfreadamente, criando um ciclo de gozo sem fim.

 

O que o discurso da ciência promete, em aliança com o capitalismo, na verdade não se cumpre, e a “falta” aparece a cada vez que esse objeto fracassa em sua promessa. A função paterna, nos tempos de hoje, desprovida de sua força simbólica, faz sintoma e, segundo Miller (2011, p. 14), “o sintoma aparece como o regime próprio ao gozo, o sujeito – ou mais precisamente o ser vivente que fala – experimentando-o necessariamente como tal”.

 

As consequências analíticas das transformações citadas são vistas também na clínica da contemporaneidade, que nos traz, cada vez menos, sujeitos da dúvida. Partimos de interpretações que davam um sentido, pautadas na clínica do Nome do Pai, do complexo de Édipo, de Freud, para a clínica do real, de Lacan, do sem sentido. Lacan (1998, p. 598) afirma que “na atualidade a interpretação ocupa um lugar ínfimo, e não porque ela tenha perdido o sentido, mas porque a abordagem do sentido traz sempre um embaraço”.

 

Do Versagung às estruturas psíquicas

Sabemos que o sujeito, antes de nascer, já faz parte de uma estrutura simbólica (familiar, cultural, social). O “outro” que representa o simbólico, anterior ao sujeito, terá influências determinantes em sua estruturação psíquica e em sua maneira de estar no mundo.

 

Freud (1912/2016, p. 71) nos disse que “o motivo mais evidente, mais fácil de ser descoberto e mais compreensível para o adoecimento neurótico reside no fator externo que, de maneira geral, pode ser descrito como impedimento (Versagung)”.

O impedimento tratado por Freud diz de um impedimento ao estado anterior à linguagem:

 

“Trata-se, portanto, de um conflito entre a exigência pulsional e a reclamação da realidade e isso acarreta um efeito patogênico, pois represa a libido e, assim, submete o indivíduo a uma prova de quanto tempo pode tolerar esse aumento da tensão psíquica, e que caminhos irá tomar para se livrar dele (FREUD, 1940/ 2014, p. 200).”

Os caminhos escolhidos dirão das estruturas psíquicas que se formaram a partir desse impedimento. Acredita-se que houve uma perda de um estado de completude, e a maneira com que cada um irá lidar com isso dirá da sua estrutura. Parte dessa equação é recalcada e algo se perde. Essa perda faz uma “fenda” no sujeito, que representará a falta de um objeto. Lacan (1956-57/1995, p. 35) nos diz que “jamais, em nossa experiência concreta da teoria analítica, podemos prescindir de uma noção de falta do objeto como central. Não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo”.

Um confronto neurótico

A fenda que marca o sujeito e dá início a sua vida psíquica irá colocá-lo diante da castração. Sabemos que a castração nos aponta uma perda simbólica, uma falha que ocorre na tentativa de traduzir o real em linguagem.

 

O sujeito neurótico é confrontado com a castração do Outro. Ciente dessa castração, o recalque desloca esse saber para o inconsciente na tentativa de livrar-se da angústia que o saber da falta produz.

 

Todas as estruturas neuróticas passam por esse processo, e as particularidades de cada uma se diferenciam nas posições que os sujeitos têm diante das tentativas de retorno do que foi recalcado.

 

Naveau (2107, p. 56), em O que do encontro se escreve, nos diz que “na relação do sujeito com a castração, trata-se de sua relação com a castração do Outro e, mais exatamente, da consequência, no que concerne à sua relação com a castração do Outro” e cita Lacan no seminário A transferência: “sem dúvida, existe algo mais neurotizante que perder o falo, é não querer que o Outro seja castrado”.

Falo, desejo e o Édipo

Na constituição do sujeito, ao nascer, a criança ocupa o lugar de falo da mãe, ou seja, aquilo que supostamente completa essa mulher. Nesse lugar de ser o que a mãe deseja, a relação que se estabelece entre ela e o filho fica desprovida de qualquer possiblidade da dimensão do desejo, pois só o filho lhe basta. A criança vai surgir como significado desse desejo, ou seja, como ponto de irrupção no que há de ilimitado no desejo materno.

 

Na medida em que a mãe começa a desejar algo para além do filho, o que é marcado pela presença do pai (Outro), surgem na criança questionamentos acerca do desejo dessa mãe. Toda essa trama traz para ela a possibilidade do desejo e a faz verificar que a questão do desejar está mediatizada por um Outro. Isso nos indica uma condição estrutural do sujeito sobre o seu desejo, que é o enigma do desejo do Outro.

 

Considerei importante passar por essas articulações do desejo para marcar, mais uma vez, que é pela falta que se constitui o sujeito e dizer que, para histérica, a falta é determinante. A mãe, ao se referenciar ao Outro para dizer do seu desejo, esse outro, supostamente, é entendido como o que falta a ela, o pênis (falo). Esse ponto anatômico faz toda a dissimetria entre as estruturas, marcando um caminho específico para as histéricas no percurso do Édipo.

 

Lacan (1955-56/1988, p. 206) nos adverte:

 

“Não há, propriamente, diremos nós, simbolização do sexo da mulher como tal. Em todo o caso, a simbolização não é a mesma, não tem a mesma fonte, não tem o mesmo modo de acesso que a simbolização do sexo do homem. E isso, porque o imaginário fornece apenas uma ausência, ali onde alhures há um símbolo muito prevalente.”

 

Isso nos aponta que a identificação sexual da mulher passa pela falta no real.

 

Enquanto o menino, no seu complexo de Édipo, segue com seu objeto de amor (a mãe) e só o abandona pela angústia de castração, que seria a ameaça do pai de eliminar-lhe o falo (o pênis), abre mão dessa posição de objeto do desejo da mãe, possibilitando sua saída do complexo de Édipo. Já a menina precisa, nesse percurso, abandonar seu objeto de amor pela angústia da castração – a falta do pênis (falo) – e seguir até o pai (o Outro) na tentativa de que esse outro possa dar a ela o que ela não tem. Freud (1933/2018, p. 335) nos disse que “a menina permanece nele por tempo indeterminado, só o desconstrói mais tarde e de maneira incompleta”. A menina precisa ir até o Outro para significar essa falta.

 

Lacan (1956-57/1995, p. 207) dirá que “um dos sexos é forçado a tomar a imagem do outro sexo por base de sua identificação (…) O fato não pode ser interpretado senão na perspectiva em que é a ordenação simbólica que regula tudo”. No entanto, o significante dado por esse Outro não recobre toda a falta, e o que fica descoberto é recalcado.

Impasses histéricos

 

Esse movimento identificatório que é posto à menina – ora com a mãe, ora com o pai – apresenta o enigma e traz questões que dizem da histeria: o que as mulheres desejam nos homens? O que os homens desejam nas mulheres?

 

Esse ato de tomar para si a castração do Outro faz com que a histérica assuma a posição de um não saber. A questão com o saber está posta para histérica desde o início. Lacan, no Seminário 17 (1969-70/1992), irá dizer que há uma relação primitiva entre o saber e o gozo. Perde-se alguma coisa e é preciso compensar essa perda. O movimento compensatório faz gozo. Lacan vai nos mostrando como as questões que acompanham a histérica, nesse contexto de querer saber, faz com que o seu desejo esteja sempre implicado pela via do Outro, além de modular o seu modo de gozo.

 

As questões são pontos fundamentais na estrutura da histeria. As perguntas sobre o que desejar, o que é ser mulher, o que o homem deseja, irão funcionar como um guia na sua busca de respostas para sua vida. O que a histérica quer é um mestre, nos disse Lacan (1969-70/1992). Porém, ainda que a histérica se apresente querendo saber, na verdade, esse saber faz revelar a castração do outro, o ponto gerador de sua angústia, então há um recuo diante desse saber.

 

Retomando Lacan (1969-70/1992, p. 17), no seminário 17, “para estruturar corretamente um saber, é preciso renunciar a questão das origens”. A histérica, para suportar a angústia da castração do outro – um saber ordinário –, renuncia e, a cada possibilidade de um retorno do que foi renunciado – recalcado –, é elegido um outro que supostamente saiba responder às suas questões.

 

Isso se torna um ciclo no movimento da histeria, “ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas, mesmo assim, que não saiba demais (…)” afirmou Lacan (1969-70/1992, p. 136).

 

Haverá sempre questões que a farão ir em busca de respostas que serão insuficientes, marcando sua insatisfação e fazendo com que reinicie a busca pelo saber. A insatisfação funcionaria aí como um recurso para afastá-la da angústia e colocá-la sempre em movimento.

 

No contexto vigente, em que impera o discurso da ciência, que quer garantir tudo na era do capitalismo e da pluralização dos nomes do Pai, quando assistimos a um deslocamento do saber organizado pela lógica fálica para tantos outros modos de organização do saber em sua relação com o furo, perguntaria: como fica o movimento das histéricas, cujo sintoma, segundo Laurent (2013), “advém do amor ao pai”?

 

Aqui, não pretendia responder as questões; o trajeto que anunciei, de fundamentá-las, se cumpre e deixa um desejo enorme de seguir na investigação de tantas outras questões com as quais me encontro depois desta tentativa de cobrir um “furo” encontrado nessa jornada dos estudos – não podia ser diferente!

 

 

 


Referências
CAMPOS, S. P. R. “Apresentação de uma nova ordem”. In: Curinga. Belo Horizonte: Scriptum, v. 32, 2011, p. 13-30.
BRISSET, F. O. “Não basta mais cochichar no ouvido dos príncipes”. In: Tânia Coelho dos Santos; Jésus Santiago; Andrea Martello (Orgs.) De que real se trata na clínica psicanalítica? Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012.
FREUD, S. (1912/2016) “Sobre tipos neuróticos de adoecimento”. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, v. 5, p. 71-79.
FREUD, S. (1933/2018) “A feminilidade – Conferência XXXII”. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Amor, sexualidade, feminilidade. Autentica, v. 7, p. 313-341.
FREUD, S. (1940/2014) “A cisão do eu no processo de defesa”. In: Obras incompletas de Sigmund Freud. Compêndio de psicanálise e outros escritos inacabados. Belo Horizonte: Autêntica, v. 3, p. 199-217.
LACAN, J. (1955-56) O seminário, livro III: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1956-57) O seminário, livro IV: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LAURENT, E. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. In: Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, 6, 2013, Buenos Aires. Anais… Buenos Aires: ENAPOL, 2013. Disponível em: <http://www.enapol.com/pt/>. Acesso em: 16 jun. 2019.
MILLER, J-A. “Instituições milanesas”. In: Opção Lacaniana, ano 2, nº 5, 2011. p. 1-15.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. In: Intervenção de encerramento da III Jornada do Instituto da Criança, 2015. Disponível em: <http://minascomlacan.com.br/em-direcao-a-adolescencia/>. Acesso em 25 jun. 2019.
NAVEAU, P. O que do encontro se escreve: estudos lacanianos. Belo Horizonte: EBP, 2017.

DANIELA GONTIJO DE SOUZA
Psicóloga pós-graduada em Psicologia da Educação pela PUC-Minas BH, membro-tesoureira do Parlêtre e aluna do módulo III do curso do IPSM–MG. R. Dom Pedro II, 287/302, Divinópolis-MG | (37) 99927-6472 | danigontijopsi@gmail.com