Editorial Almanaque nº23

LETÍCIA SOARES

ÁREAS DE CONFLITO DE MINERAÇAO NO ESTADO DE MINAS GERAIS

Gostaríamos de destacar neste Almanaque o que ele transmite de uma dimensão política, no sentido daquilo que pode ser marcante e determinante para o indivíduo e/ou para a coletividade. A própria escolha do tema desta edição, “Acontecimento”, foi inspirada no impacto da experiência do rompimento da barragem na cidade de Brumadinho/MG em janeiro de 2019. Durante as leituras, somos convocados a refletir sobre os processos que ameaçam as coletividades humanas e a medir a parte que nos é devida. Nesse contexto, aproveitamos a escrita de Matet, que nos lembra que “Lacan nos mostrou que defender a extensão da psicanálise exige sair do consultório e se juntar ao real dos transbordamentos sociais para perceber algo que diz daquilo que é o gosto do momento, até mesmo, o desgosto”[i].

 

Em TRILHAMENTOS, o texto rigoroso e rico em referências de Guy Briole, “Os acontecimentos têm um rosto?”, nos oferece um bom percurso para compreender as noções de acontecimento, contingência, trauma, alteridade, acidente e rosto.  Com Levinas, a experiência da alteridade toma a forma do rosto. Não aquela dos traços de uma máscara, nem a do sentido, mas no fato de que o rosto está lá, surgido dele mesmo. Por isso, o rosto é o acontecimento por excelência.

 

Nessa mesma rubrica, o texto de Matet, “Diante da escalada dos perigos, a psicanálise?”, nos provoca a pensar sobre os sintomas contemporâneos e as manifestações do real no social que ruge e ameaça o mundo. Matet aponta como a ampliação do conhecimento da ciência, os processos de segregação, os discursos de medo ou de ódio e as dificuldades econômicas e sociais que avançam na atualidade convocam a psicanálise a encontrar recursos para intervir e permanecer no futuro.

 

Nosso convidado para a ENTREVISTA desta edição foi o coordenador de saúde mental do município de Brumadinho, Rodrigo Chaves, que logo de início nomeia o rompimento da barragem como “um crime em acontecimento”. Nessa expressão, nota-se uma análise significativa da situação: por um lado, foi um acidente que poderia ter sido evitado; por outro, desde que houve a ruptura, os efeitos e as consequências se tornaram imprevisíveis e inesperados para o ambiente e para as pessoas. Em seu complexo trabalho, Rodrigo extrai, do modo universalizante de abordar as pessoas afetadas pela tragédia coletiva, o importante testemunho do individual, ou seja, o que se escuta de cada um em suas vivências singulares.

 

Na rubrica INCURSÕES, ainda em consonância com o tema do nosso último Almanaque, “Ódio, cólera e indignação”, apresentamos os desdobramentos do que foi trabalhado nos núcleos de pesquisa do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais durante o primeiro semestre de 2019. Compõem essa rubrica os textos de Tereza Cristina Côrtes Facury, Andréa Eulálio, Bernardo Micherif Carneiro e Silvane Carozzi. Temos, assim, um conjunto expressivo de textos que contribuem e nos instigam rumo ao próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, o IX ENAPOL.

 

Na rubrica ENCONTROS, temos a oportunidade de conhecer duas experiências clínicas através da metodologia de Conversação, tal como a proposta por Jacques Alain-Miller. No texto de Nádia Laguárdia de Lima, Juliana Tassara Berni e Helena Greco Lisita, ficamos com as falas expressivas e marcantes dos adolescentes de escolas públicas de BH. No texto de Aparecida Rosângela Silveira, apresentado na I Jornada Clínica do IPSM-MG ocorrida em Montes Claros/MG, podemos acompanhar os efeitos da experiência de supervisão clínico-institucional em equipes da Rede de Atenção Psicossocial, em especial as conversações realizadas com a equipe do Consultório na Rua.

 

Para o texto DE UMA NOVA GERAÇÃO, Daniela Gontijo de Souza, aluna do IPSM-MG, apresenta seu tema de interesse sobre os efeitos na clínica da histeria diante das “mutações da ordem simbólica” na sociedade contemporânea.

 

Para finalizar esse convite à leitura, gostaríamos de chamar a atenção para as imagens escolhidas para nosso Almanaque 23, do fotógrafo Richardson Pontone, extraídas do documentário Lama: o crime Vale no Brasil[ii]. São fotos que mostram a ruptura, o inesperado e as marcas desse acontecimento traumático. Diante do real impossível de suportar, recorremos ao poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), ”Lira Itabirana”:

 

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

 

[i] Lacan, na École Normale Supérieure, ao dar seu Seminário na rua Ulm, nos degraus do Panthéon durante a greve da Sorbonne e criar o departamento de Vincennes.

[ii] Disponível em https://libreflix.org/i/lama-o-crime-vale-no-brasil.




Almanaque V. 13 – Nº 23 2º semestre de 2019

Gostaríamos de destacar neste Almanaque o que ele transmite de uma dimensão política, no sentido daquilo que pode ser marcante e determinante para o indivíduo e/ou para a coletividade. A própria escolha do tema desta edição, “Acontecimento”, foi inspirada no impacto da experiência do rompimento da barragem na cidade de Brumadinho/MG em janeiro de 2019. Durante as leituras, somos convocados… Leia mais

TRILHAMENTO
Os acontecimentos têm um rosto? – GUY BRIOLE

Diante da escalada dos perigos, a psicanálise? – JEAN-DANIEL MATET

ENTREVISTA
Brumadinho: um crime em acontecimento! – Rodrigo Chaves

INCURSÕES
Ódio, uma paixão do ser – TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY

Cólera em sua versão epidêmica – ANDRÉA EULÁLIO

Ódio: obstáculo ou condição para a psicanálise? – Bernardo Micherif Carneiro

O afeto da indignação como resposta frente à posição de indignidade – SILVANE CAROZZI

ENCONTROS
Quem se ocupará das crianças? A solidão e os gadgets na família atual – Nádia Laguárdia de Lima / Juliana Tassara Berni / Helena Greco Lisita

A rua de cada um – APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA

DE UMA NOVA GERAÇÃO
A histeria e os nomes do Pai – DANIELA GONTIJO DE SOUZA




Os Acontecimentos Têm Um Rosto?

GUY BRIOLE

 

LAMA –RICHARDSON PONTONE

 

O que você vê quando me vê? Eis aí uma questão para todos, mas a quem, no mais íntimo da interrogação sobre si, se encontra reanimado quando a invasão traumática permanece ligada a um outro, a outros, àquilo que sua imagem, seu rosto, reenvia a cada um.

 

Essa é uma questão que coloca com determinação Primo Levi, em busca de reencontrar o que teria podido dar conta, “restituir o fundo de um ser humano” (LEVI, 1989. p. 32); um mais além disso que pode dizer um documentário, a história. Ele se encontrou um dia, “diante dos traços de um homem do outro lado” (Ibid.), alguém que teve que testemunhar, diante dos tribunais, sobre o que fez ou viu em Auschwitzuma pequena vila tranquila (Ibid. p. 31.). Encontrou muitas semelhanças consigo, idade, formação, trabalho na mesma fábrica; ele, no interior do arame farpado e, o outro, livre, voluntário nesse emprego: “Era quase eu, um outro eu mesmo do avesso” (Ibid. p. 32). Ele se interessava por tudo o que pudesse aprender desse químico alemão, como se ele houvesse podido aprender qualquer coisa sobre si mesmo. Mas, no final das contas, ele jamais pode reencontrá-lo: “Eu experimentava uma repugnância complexa na qual a aversão não era senão um dos componentes” (Ibid. p. 37). Ele permaneceu com essa questão lancinante: o que há dele em mim?

 

Também se interroga infinitamente para saber por que não podia reconhecer o rosto do SS que comandava o campo de Auschwitz e que, entretanto, estava lá presente todas as manhãs, ao chamado com os outros SSs. É que, escreveu, eles “eram todos parecidos, seus rostos, suas vozes, suas atitudes: todos deformados pelo mesmo ódio, a mesma cólera” (Ibid. p. 109.), mas também, acrescenta, por sua “inclinação à obediência curvada” (Ibid. p. 111). Lacan sublinha bem isso: o que se passa entre dois sujeitos excede o laço discursivo e traz consigo, antes de tudo, “o perfil, a projeção, a silhueta”. Certamente ele o diz do lado disso, de que nós “adoramos em um ser amado” (LACAN, 1973, s/p.), mas nós o entendemos também para aquilo que abominamos naquele que nos odeia.

 

Levi avança em sua reflexão sobre o outro nele mesmo nos contando uma história, a de um jovem herdeiro de muitas gerações de fabricantes de espelho. Jamais eles se desviaram da tradição que obrigava a repetir exatamente os mesmos espelhos planos, esses supostamente capazes de dar a verdadeira imagem – mesmo se ela for virtual – do mundo e, particularmente, do rosto dos humanos. Desde sua juventude, se dedicou a aprender bem sua profissão, mas, sem que seu pai soubesse, concebeu espelhos bem mais inventivos, que transformavam a realidade à qual cada um se habituava, e se angustiava quando era preciso retornar às imagens do mundo compartilhado! Mas sua esperança secreta era de realizar um Mimet, um espelho metafísico! Seria um espelho que, fora das leis da ótica, reproduziria sua imagem tal como ela fosse vista por uma pessoa que estivesse à sua frente (Cf. LEVI, 1989, p. 67)! Seria suficiente, para tanto, colar esse espelho na face da pessoa à frente e ver-se ali, como o outro supostamente o veria. Ele se deu conta de que essa imagem não tinha nada em comum com a imagem que cada um se gaba de ter no olhar do outro. Assim, foi um fracasso para ele e para seu negócio; ninguém queria se ver de um modo diferente daquele que se pensa!

 

O rosto, é o acontecimento

 

Com Levinas, a experiência de um outro toma a forma do rosto. Não aquele da plástica nem dos traços, que não são senão a “máscara” (LEVINAS, 1995. p. 44), mas aquele que leva o que se encontra na alteridade e que marca, impacta, por sua vulnerabilidade e seu desnudamento (Cf. Ibid.). Com o rosto, a dimensão que se apresenta ao sujeito não é aquela que está em jogo nas relações sociais, mas, de imediato, o que se coloca como uma questão ética (Cf. LEVINAS, 1991. p. 191). O rosto é “uma presença viva, ele é expressão”, isso que leva Levinas a precisar que o “rosto fala” (LEVINAS, 2000, p. 61). Se a manifestação do rosto é aqui apresentada como um discurso, é, entretanto, um discurso sem palavra na manifestação da exterioridade.

 

A alteridade, esse face a face, em que se pode manifestar “a epifania do rosto” (Cf. LEVINAS, 1991, p. 192.), é esse despertar ao outro homem, sua proximidade. Mas esse em-face do rosto do outro inclui a não-in-diferença que faz com que cada um seja responsável por aquilo que o outro se tornará, por essa “morte invisível que encaramos no rosto do outro” (Ibid.) e que é também “minha responsabilidade” (Ibid.). Essa colocação faz daquele que se deixaria tomar pela indiferença o cúmplice da morte desse outro, ao deixá-lo morrer sozinho.

 

O cara a cara – mais precisamente no cara a cara – que confronta o rosto do outro é uma forma do insuportável da relação com o outro, porque isso que ele apresenta vai, in fine, além do que ele dá a ver nesse imediato, o limite do outro, sua morte. Ao ver no rosto do outro sua morte, eu não posso senão ver a minha. Assim, o reconhecimento do outro, sua acolhida, é, em si, um acontecimento e coloca, desde o início, “minha responsabilidade por ele” (Ibid. p. 113) e que “todo outro é único” (Ibid. p. 114), e, nesse sentido, a alteridade é assimétrica. Entretanto, um certo apagamento se produz por algum contorno próprio ao sujeito, que faz com que, apesar de cada um ser único, esses outros se movam em um mesmo espaço onde todos se parecem. A introdução da menor diversidade é aí rapidamente insuportável, a não ser que se encontre um significante para localizá-la, absorvê-la e fazer com que, de novo, no escoamento uniforme do tempo, tudo seja contido. O acontecimento, por seu caráter de surpresa, inscreve-se como ruptura e não encontra muito frequentemente uma primeira resolução senão quando colocamos nele um rosto. Não há nada pior do que uma ameaça sem rosto, cada uma podendo incluir eles todos. Nosso ambiente é saturado de rostos, em um mundo de imagens que nos invade e que faz com que um acontecimento seja, mais que nunca, marcado, colado a um rosto. Sublinhemos, aí, um ponto de coincidência com o que sustenta Levinas na sua concepção mais global do rosto: seu contexto não tem a ver com o sentido, mas com o fato de que ele está lá, surgido dele mesmo. Então, podemos avançar que o rosto é o acontecimento por excelência. Para além desse em si, o rosto, um rosto, se encontra enlaçado por cada um a um acontecimento. A extensão vai além do outro, e podemos escrever que um acontecimento tem o rosto do inferno, do Apocalipse, do horror, da guerra, ou, em contraponto, do amor, da paz, etc.

 

Acontecimento, contingência e responsabilidade

 

Com Lacan, um acontecimento, um acontecimento humano, é o que se passará, ou não, amanhã. Isso depende da contingência, de um futuro que pode advir. Que se possa dizer que haja uma parte previsível na contingência que pode surpreender. Entretanto, os acontecimentos humanos são tanto mais previsíveis quanto mais eles dependem da repetição. Lacan os relacionará a um fenômeno de estrutura (LACAN, 1973, s/p.).

 

O acontecimento, como indica a sua raiz latina – evenire –, é o que pode acontecer. De fato, um acontecimento é o que advém ou não em uma data e em um lugar determinados. Ele não apresenta uma característica neutra e se distingue do curso uniforme dos fenômenos da mesma natureza. Que se produza sempre alguma coisa depende da repetição, e não do acontecimento, pois o acontecimento é inesperado; ele é efeito de surpresa. Ele advém de uma ruptura, de uma descontinuidade temporal em uma cadeia. O acontecimento é datável, memorizável. Ele não tem sempre as mesmas causas, senão ele não seria mais um acontecimento. Por seu caráter excepcional, ele se reveste de uma importância determinante para o indivíduo ou a coletividade.

 

Tomado no seu sentido absoluto, ele se define por situações significativas que acontecem a um homem. Nesse sentido, ele é um efeito que se refere ao homem, e “não existe acontecimento sem indivíduo concernido” (GUYOTAT, 1984. p. 219-222). Essa é uma noção “antropocêntrica”, e não um dado objetivo (Cf. BASTIDE, 1968, p. 159-168). Para retomar a questão do rosto em seu laço com o acontecimento, o efeito a considerar não está no rosto em si – mesmo se ele se apresenta marcado pela tristeza, alegria, hostilidade, reprovação, doçura… –, mas na relação entre dois rostos, nisso que faz encontro e que escapa ao sujeito. Isso é tão mais evidente quando o rosto desse outro que advém concretamente nesse acontecimento não é habitual ao que constitui a passagem do tempo: um agressor, um desconhecido, um surgimento do real na natureza ou na tecnologia, mas também um familiar que se encontra em um estado que faz dizer que não o teríamos reconhecido!

 

Isso permanece no domínio da experiência, e nós devemos distinguir o fato do acontecimento, que existe realmente. Ele é tido como um dado do real, e não da experiência. O fato se inscreve em uma duração que pode ser explicada pela ciência, por exemplo pelo fato histórico, pelo fato sociológico. A elaboração científica do fato tenta reabsorver a dimensão única, singular do acontecimento, para torná-lo “expressão regular das regularidades” (Ibid.).

 

O acontecimento é isso que produz um efeito de surpresa, é também o que pode ameaçar um equilíbrio individual ou social. Também, o homem tenta não se deixar surpreender e inventa, para isso, uma ciência, aquela dos acontecimentos. Mas, que o acontecimento possa encontrar uma referência em uma ciência histórica ou prospectiva, tanto quanto na mitologia, em Deus, não indica que uma reconstrução secundária venha ocorrer. Para que um acontecimento, que surge do exterior da subjetividade, seja um acontecimento para um sujeito, é necessário que este último responda diferentemente da passividade. Caso esse acontecimento seja compartilhado, o sujeito deve atuar de modo que lhe ocorra perguntar-se sobre o fato de que esse acontecimento é isso que acontece com ele.

 

O acontecimento traumático: o acidente

 

Foi Aristóteles que pôs em evidência a noção de acidente, à qual ele deu destaques diferentes na evolução de seu pensamento. É na Física que o que é acidente ganha o sentido do que é raro e fortuito, escapando, então, e em parte, às categorias lógicas (Cf. VAN AUBEL, 1963, p. 400). Até então, na filosofia aristotélica, o acidente se opunha, na dimensão ontológica, à substância e à essência em uma perspectiva lógica. Se o acidente toca qualquer coisa do sujeito, ele não diz o que é. Nesse sentido, “é preciso admitir uma certa alteridade entre o sujeito e o acidente” (Ibid., p. 389).

 

O acidente é referido ao outro; é o que existe não em si mesmo, mas em um outro. Ele é essa parte fortuita, improvável e impensável que, no fluir dos acontecimentos, causa o mal encontro, a tiquê (Cf. LACAN, 2008. p. 57), o acaso infeliz. Mas isso pode ser também a evocação da fatalidade, do nada imotivado, como causalidades deslocadas desse sinistro imprevisível. É o acidente que, no acontecimento, é traumático[1].

 

A contingência faz com que o acidente, tanto quanto o acontecimento, seja o que acontece, mas que também poderia não ter se produzido. A contingência se opõe à necessidade que faz com que o acidente seja, antes de tudo, coincidência, e não responde nem a leis gerais nem a fatores de constância. O contingente é o incalculável nos efeitos que produz o acidente sobre um sujeito: é o que faz encontro.

 

Um acontecimento traumático concerne sempre um sujeito. Ele comporta, ao mesmo tempo, uma parte de real que depende do acidente, o indizível do encontro, e uma parte de subjetividade na qual o sujeito está engajado.

 

Se o acontecimento traumático é necessário para produzir seus efeitos em qualquer um, ele não é suficiente. Não é a intensidade do acontecimento, na referência a uma quantificação, que o faz traumático. É muito mais a especificidade que ele adquire para o sujeito a quem concerne. Assim, pode-se dizer que o acidente é único. Ele não o é em referência à repetição, mas é no sentido de que ele é Um para um sujeito: esse acontecimento, e não um outro. Ele é para um sujeito, e não para todos, entre todos os que atravessam a mesma experiência. Ele toma então, para aquele que se encontra traumatizado, uma dimensão de inefável, de incomensurável, de irredutível.

 

Escritura, alteridade, trauma 

 

Em “O instante de minha morte” (Cf. BLANCHOT, 2002), oito páginas fulgurantes, escritas aos 87 anos, sobre fatos ocorridos 50 anos antes, Maurice Blanchot faz aparecer a aresta viva da marca que deixa o traumatismo no sujeito: ele pode revivê-lo anos depois com a mesma precisão, como se acabasse de acontecer naquele instante. Colocado diante de um pelotão de execução, ele se mantém em pé nesse face a face com a morte e com o olhar desse jovem tenente SS, que vai decidir sobre o instante do fim. Nesse instante, o jovem homem “experimentou então um sentimento de leveza extraordinária. Um tipo de beatitude. [..] O encontro da morte com a morte?”. Ele percebe, ali, o nascimento de uma “amizade sub-reptícia” (Ibid. p. 11) com a morte. Ele foi poupado enquanto tudo ao seu redor foi devastado, e o jovem SS lhe fez sinal para desaparecer. Ele não compreende, permanece esse rosto que o condenava e esse olhar que o agraciou. Enquanto ele se sentia, por uma fração de segundo, “liberado da vida” (Ibid. p. 15), ei-lo aí, agora, sob o peso da morte, enquanto ser vivo. Como se a morte fora dele pudesse, doravante, apenas chocar-se com a morte nele. “Eu estou vivo. Não tu estás morto”, conclui o jovem homem que acrescentava que restava o sentimento de leveza sob uma forma precisa: “o instante de minha morte doravante sempre em iminência” (Ibid. p. 17).

 

Para Blanchot, “a palavra não é suficiente para a verdade que ela contém” (BLANCHOT, 1949. p. 315). Nós, da nossa parte, diríamos que ela não é suficiente para limitar os efeitos do real revelado pelo encontro traumático. A escritura, como muito frequentemente, vem como suplência a esse fracasso da função da palavra; ela limita as devastações do real encontrado.

 

Para Blanchot, a escritura participa do olhar pelo fato mesmo de que a leitura coloca em jogo o escópico. É preciso, quando a palavra falta, que o corpo entre em jogo. Com a escritura, é pela vertente do olhar que o corpo se encontra implicado. Essa relação que Blanchot estabelece entre o olhar e a escritura é original e se encontra frequentemente na clínica pós-traumática. Esse olhar persiste em olhar o sujeito, seja nos sonhos traumáticos, seja nos olhares cruzados ao acaso dos encontros com os pequenos outros. Cada rosto pode conter o olhar daquele que te olhou no momento em que te salvou a vida.

 

Para todos aqueles que encontraram a via da escritura para tentar limitar os efeitos do trauma e que não podem mais escapar a essa passagem pelo escrito, se coloca um infinito da escritura. Está sempre a ser retomada. Quando o escrito pode encontrar um destinatário, um leitor, eis aí o autor reenviado a uma profunda solidão. A solidão que, agora, é escrever se tornou incessante. A solidão daquele do qual pensamos ser o mestre das palavras; tanto mais aquele do que para quem é preciso “escrever sem perturbar o silêncio” (Ibid. p. 66). Pois, sublinha muito justamente Blanchot, a maestria será de poder parar de escrever, salvo que: “escrever não tem seu fim no livro” (BLANCHOT, 1969, p. 624). Mas aí está: a escritura do real é também da ordem do impossível. O incessante é isso que não cessa de não se escrever. É uma das definições do real, tanto quanto aquela que o traumatismo revelou.

 

O apagamento do acontecimento

 

Em sua introdução à Scilicet, Lacan define a psicanálise como aquilo que ela nunca deixou de ser: “um ato ainda por vir” (LACAN, 1968, p. 9). Nós podemos colocar essa definição de Lacan em tensão com Blanchot, que fala de um “livro (sempre) por vir” (BLANCHOT, p. 303 et sq.), a escrever. Produz-se qualquer coisa que não se inscreve, que toca nisso que não se apaga: o trauma. Esse acontecimento que, ele, é suscetível de um verdadeiro apagamento.

 

Todo encontro traumático é superinvestido ao ponto de, algumas vezes, ocultar completamente toda implicação subjetiva. A escuta do sujeito deve se ater a extrair sua posição em relação a isso que se apresenta a ele como produto do acaso. Ocorre, para além de todos os recursos imaginários e identificatórios – do herói à vítima –, que a via pessoal, ética, os leva a retomar esse acontecimento de vida em uma análise. A psicanálise põe ênfase na “ética do bem dizer” e visa, através do trabalho de transferência, a fazer com que as questões levantadas pelo acontecimento se tornem questões colocadas pelo sujeito. Fazer do arbitrário de um acontecimento uma questão que, restituída em sua hystoire, faça com que o trabalho na transferência lhe permita abordar a questão do real de outra maneira, na sua relação ao ôntico.

 

 

 

 

 

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Ana Helena Souza

 


Referências
BASTIDE, R. “Sociologie de la connaissance de l’événement”. In: BALANDIER et al. (s/dir.): Perspectives de la sociologie contemporaine. Paris: PUF, 1968.
BLANCHOT M. Le Livre à venir. Paris: Gallimard.
BLANCHOT, M. L’entretien infini. Paris: Gallimard, NRF, 1969.
BLANCHOT, M. L’ instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002.
BLANCHOT, M. La Part du feu. Paris: Gallimard, 1949.
GUYOTAT, J. “À propôs de la notion d’evénement”. InAnnales Médico-Psychologiques. v. 142, nº 2, fev. 1984.
LACAN, J. Introduction à Scilicet. Paris: Lyse, nº 1, 1968.
LACAN, J. Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Aula de 11 de dezembro de 1973. Inédito.
LACAN, J. Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Aula de 13 de novembro de 1973. Inédito.
LACAN, J. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LEVI, P. Le Fabricant de miroirs. Paris: Liana Levi, 1989.
LEVINAS, E. Altérité et transcendence. Paris: Fata Morgana, 1995.
LEVINAS, E. Entre nous: essai sur le penser-à-l’autre. Paris: Grasset, 1991.
LEVINAS, E. Totalité et infini: essai sur l’extériorité. Paris: LGF, 2000.
VAN AUBEL, M. “Accident, categories et prédicables dans l’oeuvre d’Aristote”. InRevue Philosophique de Louvain, t. 61, nº 71, ago. 1963.
 [1] Desenvolvi muitas vezes os pontos que vão seguir em outros trabalhos. Eles são retomados aqui pela sua precisão incontornável ao acidente traumático.

GUY BRIOLE
Psicanalista membro da Escola da Causa Freudiana e da Escola Lacaniana de Psicanálise



Diante Da Escalada Dos Perigos, A Psicanálise?

JEAN-DANIEL MATET

 

A invenção freudiana sobreviveu a todos os desastres do século XX, mas nada garante que será assim nos tempos que virão. O que foi demonstrado é que o desejo do analista resiste, por meio de sua transmissão original através de sua própria experiência, enquanto houver sujeitos divididos por esse saber que lhes aflige, lhes faz suportar a existência humana ao preço de sintomas; enquanto houver mulheres e homens que acreditem no inconsciente. Se algumas condições foram reunidas para que essa invenção (LACAN, 2003, p. 29-90) viesse à luz, outras permanecem necessárias para que ela se desenvolva. A liberdade de pensamento é uma delas, assim como a liberdade de circular e de encontrar livremente seus concidadãos, a liberdade de exercer a profissão de psicanalista. Essas condições estão reunidas hoje na Europa, mas estarão amanhã? Em 1933, os livros de Freud foram queimados em praça pública pelos nazistas, e mesmo que a prática da psicanálise “não tenha sido proibida na Alemanha hitlerista, ela foi interditada aos analistas judeus” (SOKOLOWSKY, 2013, p. 265). As declarações de Freud reunidas por Laura Sokolowsky fazem pensar que ele não dava crédito ao futuro da psicanálise, principalmente quando a segurança de Berlim caiu por terra e os nazistas e seus colaboradores tomaram o Instituto de Berlim. Outro acontecimento foi o desaparecimento de Ferenczi na Hungria, o que não permitiu o desenvolvimento esperado da psicanálise, da mesma forma como nos EUA (mas ali por razões de orientação). Entretanto, em nenhum momento, Freud considerou a causa perdida, empenhando-se em encontrar a resposta à altura da urgência do momento, particularmente com seu Moisés, ou, ainda, com “Análise finita e infinita”. Sua idade não foi motivo de abstenção, pelo contrário, na medida de suas forças, contribuiu para sustentar o que podia ser sustentado.

 

A pulsão de morte

A Primeira Guerra Mundial foi, para Freud, o encontro com um real que perturbou sua percepção das relações humanas e teve uma grande repercussão sobre sua própria teoria. O nacionalismo alemão de sua juventude (FREUD, 1987, p. 199) e o orgulho pelo engajamento de seu filho Martin na guerra, seguido de Ernest, não se estenderam por muito tempo diante do massacre de uma jovem geração de homens, mesmo que seus próprios filhos tenham sobrevivido. A angústia, durante quatro anos, de não saber se os veria novamente, a morte de pessoas próximas, transformou Freud radicalmente, que tirou daí as consequências na teoria e na prática do pós-guerra. Suas preocupações sobre a morte orientaram textos maiores, tais como “Luto e melancolia”, “As pulsões e seus destinos”, “Além do princípio do prazer”. Em 1915: “De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores” (FREUD, 1969, p. 327). Por isso Freud vai “tentar dar um sentido à impensável destruição generalizada da qual é a testemunha” (KAMIENIACK, 2008), construindo sua metapsicologia. É sua concepção da sociedade e da cultura que se encontra perturbada pelas terríveis consequências da guerra. Como as nações de cultura podem cometer tais crimes de massa? Ele tentará responder retomando Gustave Le Bon e dará, nos textos O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização, a ideia de que a cultura não dá nenhuma esperança de coexistência pacífica entre os humanos, sempre prontos a empregar a agressividade do narcisismo e das pulsões.

 

No coração do ser

Jacques-Alain Miller demonstrou como Lacan soube ler Freud acerca dessas questões sublinhando seu silêncio editorial durante a Segunda Guerra Mundial e destacando a importância desse período para aquele que soube intervir face o antijudaísmo que se abateu sobre sua família. À sensibilidade frente ao antissemitismo, Freud, que desde muito jovem sentiu na violência contra seu pai, fará assumir o fato de ser judeu, como dirá ao pai do pequeno Hans. Ele dá indicação do que a psicanálise deve enfrentar, ainda que tenha havido avanços no processo de a “tornar laica”. Não negligenciemos que ainda hoje as redes sociais dão voz a comentários cuja virulência antissemita ainda é dirigida a Freud e a seus descendentes. Por essa razão, as consequências do projeto nazista de exterminar massivamente os judeus da Europa continuam sendo aquilo com o que a psicanálise e os psicanalistas nunca poderão negociar. Que Lacan tenha feito uma referência aos campos de concentração em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967” reforça ainda mais essa exigência.

 

Ao dar seu seminário na rua Ulm, na École Normale Supérieure, nos degraus do Panthéon durante a greve da Sorbonne, e legalmente criar o departamento de Vincennes não sem se endereçar aos estudantes “enraivecidos” no local, Lacan nos mostrou que defender a extensão da psicanálise exige sair do consultório e se juntar ao real dos transbordamentos sociais para perceber algo que diz daquilo que é o gosto do momento, até mesmo o desgosto.

 

Ele sustentou essas consequências para a psicanálise, e seu seminário O avesso da psicanálise formaliza as modalidades do discurso que afetam aquele que se analisa e as passagens possíveis ou impossíveis de um ao outro (mestre, histeria, universidade, psicanálise). Percebe-se uma constante necessidade de se reformular os conceitos com os quais trabalhamos, com o objetivo de mantê-los ativos no real que tentamos abordar e na experiência do tratamento, para reduzi-lo a um matema transmissível e, assim, entender esse real que ruge e ameaça o mundo. Vê-se assim que a atualidade tem esta frase da “Proposição”: “Nosso futuro dos mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação!” (LACAN, 2003, p. 263).

 

Uma exigência

 

Lacan localizou um pouco antes o que se tornou uma exigência e que o levou a se separar da IPA, não por sua própria vontade, mas assumindo posições que deram uma chance à psicanálise freudiana de se reinventar: “Eis onde nos demitimos daquilo que nos faz responsáveis, ou seja, da posição em que fixei a psicanálise em sua relação com a ciência, a de extrair a verdade que lhes corresponde em termos cujo resto de voz nos é alocado” (LACAN, 2003, p. 257).

 

Ao terminar os Escritos por “A ciência e a verdade”, Lacan lançou um sinal decisivo. J.-A. Miller foi capaz de nos transmitir sua força e nos conduzir através da construção da AMP, e, ainda mais, a não dar importância aos golpes daqueles que são facilmente fascinados pela ciência e desejavam esquecer as consequências de seus posicionamentos. Seja pela invasão da prática avaliadora, seja utilizando as miragens do imaginário e da genética, o respeito que essas disciplinas impõem apenas se mantém quando deixam um lugar para a palavra. Esse ainda é e sempre será o papel do movimento dos Fóruns, hoje europeus.

 

O fim da democracia libera[1]

 

Não importa sua duração: dois séculos para a democracia ateniense, cinco para o Império Romano, mil anos para a república vienense, os sistemas políticos mudam. A alegria econômica ou o regime das liberdades de seus povos nada mudaram. Desde a última guerra mundial, vivemos na Europa e na América do Norte em um sistema que garante globalmente as liberdades individuais e promete um futuro de desenvolvimento econômico para seus habitantes com mais ou menos intervencionismo para corrigir o excesso do mercado. Depois de menos de um século, essa “democracia liberal […] poderia de fato estar chegando ao fim” (MOUNK, 2018, p. 364). O fim da União Soviética e de seus vassalos, ao marcar o fim das “democracias populares”, abriu a era de uma liberdade da qual eram privados, sem democracia. O autoritarismo que prevalecia retornou mascarado por um populismo travestido pelo sufrágio universal, uma força que tende a ser ouvida na Europa (Polônia, Hungria, Áustria, Itália, etc…). As vociferações do presidente Trump, dos EUA, mal escondem sua ambição nesse domínio, e mesmo que as instituições americanas enquadrem seus excessos, isso ainda respinga em outros países do mundo (Filipinas, Venezuela e ameaças no Brasil). Essa disjunção entre democracia e liberdades individuais é perceptível nos sistemas em que a potência do mercado exige, para a sua expansão profunda, um ataque às liberdades individuais – ou, pelo contrário, deseja restringir a satisfação da reivindicação dos povos – e também nos sistemas em que as oligarquias se instalam para controlar a sociedade civil em benefício dos seus interesses econômicos ou ideológicos (Erdogan, na Turquia, por exemplo). Ocasionalmente, as manifestações de massa permitiram limitar essa evolução (contra a presidência corrupta da Coreia do Sul ou contra o partido polonês Direito e Justiça, em 2007). Os chefes de Estado que devem suas eleições às promessas “populistas” têm, frequentemente, uma visão a curto prazo que lhes permite assegurar uma reeleição, por uma redistribuição saudável em um primeiro tempo, e, em seguida, é a hora dos sacrifícios com a privação das liberdades democráticas para assegurar a perenidade de um regime desligado de todas as realidades (o exemplo da Venezuela é surpreendente a esse respeito). Inútil convocar o grau de cultura dos povos ou a anterioridade de seu sistema democrático: o equilíbrio conseguido entre liberdade e democracia é ameaçado quando as dificuldades complexas do mundo real conduzem as personalidades políticas a fazer proposições simples e a curto prazo para tratá-las. A qualificação de demagógico é insuficiente para qualificar os comportamentos políticos que conduzem ao desastre, como a história não tão antiga demonstrou na Europa ocidental. Sob o pretexto de satisfazer as reivindicações do povo, os partidos da França tornaram-se movimentos ou agrupamentos, prontos a tomar as pesquisas de opinião como a realidade dos desejos de um povo ou de uma nação. Nem a pena de morte teria sido abolida nem o aborto, legalizado, sem a força de convicção de um Robert Badinter ou de uma Simone Veil. Foi, contudo, necessário que um presidente eleito tivesse a coragem de dizer que ele era fiador dos interesses do povo francês e obter o aval da representação parlamentar. Veremos desaparecer essas equações que nos permitem falar de democracia liberal (no sentido anglo-saxão, e não somente do lado do liberalismo econômico) sob o golpe das palavras de ordem tão absurdas quanto injustas sobre a imigração ou o aumento da insegurança?

 

A mola de tudo isso é o medo instilado nos habitantes de um país ao brandir ameaças que afetam sua existência, por mais pacífica e isolada que ela seja. Basta observar as regiões nas quais os extremos (direita e esquerda) fazem suas melhores pontuações eleitorais na França para compreender esse amálgama entre as reais dificuldades econômicas e sociais e os discursos de medo ou de ódio que constituem as reivindicações que sustentam os regimes autoritários até mesmo as ditaduras (TONDELIER, 2017).

 

 

Combater

 

A ciência, à medida que amplia seu conhecimento e seu domínio da realidade do nosso planeta (bem como dos seres vivos), exige sempre mais meios econômicos e liberdade de ação. Por definição, sob o modelo do experimentador que não se inclui em sua experiência, como Lacan o demonstrou, os atores do mundo científico contemporâneo que atuam supostamente pelo interesse de todos, para o seu desenvolvimento, às vezes são, a contragosto, os profetas de um mundo que caminha para a destruição. As questões dos orçamentos de pesquisa demonstram que, frequentemente, as promessas de resultados ocupam a dianteira da cena, e isso sem dar informações completas sobre o que é visado. A maneira como são solicitadas as doações nos grandes setores de pesquisa (da medicina à ecologia) se assemelha, por vezes, às promessas de startups em busca de investidores. O avesso dessas promessas revela ser os medos que elas veiculam quando os resultados dessas investigações ou dessas pesquisas não se realizam.

 

A meteorologia e a ecologia doutrinária também fazem crescer o nível de apreensão dos riscos (lembremo-nos dos milenaristas). Os medos das crianças, como nossa clínica o demonstra, nutrem a angústia do adulto que se exprime na clínica pós-traumática. O terreno é, então, propício para que a mola desses medos seja ativada e oriente os votos em direção às proteções prometidas ou à designação de um bode expiatório: o emigrante será o escolhido, como se cada um devesse compartilhar diretamente seu prato com aquele que foge dos horrores da guerra e da miséria.

 

Então, não são os movimentos da população que ameaçam a liberdade ou a democracia, mas o medo que dela se pode sentir.

 

A experiência da psicanálise nos confronta com a exigência de achar os recursos para viver com os outros, mesmo com aqueles que não escolhemos, como os pais ou ascendentes, e até mesmo para nos mantermos afastados sem desconhecer as razões devastadoras que teríamos para fazê-lo. Ela nos ensina a não ignorar os processos de segregação (SIDON, 2102) que ameaçam, sem parar, as coletividades humanas e a medir a parte que nos é devida.

 

As diferentes associações, os CPCTs, reunidos na FIPA, continuam sendo observatórios excepcionais dessas manifestações do real no social, desses sintomas contemporâneos que não conduzem necessariamente a encontrar um psicanalista. Indicadores dos limites também daquilo que é esperado dos efeitos da fala em nossa sociedade.  Que as Jornadas da ECF das Escolas da AMP tenham um grande sucesso público testemunha o que é esperado do ponto extremo da experiência quando se trata do testemunho dos AE. Os atentados de 2015 mostraram a fragilidade de nossas construções, mas também sua vitalidade, quando, no ano seguinte ao cancelamento, um público ainda maior esteve presente nas Jornadas da ECF.

 

O mais íntimo que se mistura a essa performance pública no passe continua a ser uma ferramenta maior para interpretar não somente a Escola de psicanálise que o acolhe, mas também o mundo que o envolve. A esse preço, a psicanálise tem um futuro, mas não sem combater os germes do ódio, sempre prontos a se expressar. As declarações de amor não são suficientes.

 

 

 

Tradução: Luciana Silviano Brandão Lopes
Revisão: Ana Helena Souza e Márcia Mezêncio

 

 


Referências
FREUD, S. (1900) “O material infantil como fonte dos sonhos”.  In: Obras completas de Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p. 199.
FREUD, S. (1914-1916) “Reflexões para os tempos de guerra e a morte”. In: Obras completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV. p. 327.
KAMIENIACK, J-P. “Mort et travail de pensée chez Sigmund Freud”. InLe Coq Héron, 2008, nº 195.
LACAN, J. “Os complexos familiares”, InOutros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003. p. 29-90.
LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967”, InOutros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.
MOUNK, Y. (2008) Le peuple contra la démocratie, Paris: Ed. L`Observatoire, 2018. p. 364.
SIDON P. Le discours universel comme refus de la segregation. Les débats de l´observatoire, soirée du 8 janvier 2012 [www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2012/01/Observatoire-Sidon.pdf].
SOKOLOWSKY, L. Freud et les Berlinois. Rennes: PUR, 2013. p. 265.
TONDELIER, M. Nouvelles du Front. Paris: Éditions Les liens qui libèrent, 2017.
[1] MOUNK, Y. Le peuple contre la démocratie.

JEAN-DANIEL MATET
Psicanalista membro da Escola da Causa Freudiana e da Escola Lacaniana de Psicanálise



Brumadinho: Um Crime Em Acontecimento!

RODRIGO CHAVES

 

 LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

Almanaque: “Acontecimento” é nosso tema de trabalho neste número do Almanaque e o entendemos como uma experiência que inaugura um antes e um depois. Você considera o rompimento da barragem de Brumadinho no estatuto de acontecimento? É uma experiência que inaugura um antes e um depois para a população e a cidade?

 

Rodrigo Chaves: Com certeza. Não sei se o conceito a ser utilizado é o de acontecimento ou se é o de crime, de tragédia humana absurda, mas com certeza tem um antes e um depois. É crime, que com certeza muda, traz transformações muito profundas na vida de uma comunidade, de um território. Ocorreram mudanças afetivas e mudanças culturais muito grandes em tão pouco tempo. Percebemos mudanças culturais, nas relações de afeto entre as pessoas, mas não é um crime que aconteceu. É um crime em acontecimento.

Se a palavra é essa, ele está acontecendo, a tragédia está em andamento. Temos como exemplo o caso de uma pessoa que, no primeiro momento, queria muito encontrar o corpo do familiar para poder sepultá-lo e, logo em seguida, era tomada por uma atitude de negação, acreditando que o familiar estivesse vivo. De alguma forma, o luto nem pôde começar, porque nem se sabia se o familiar desaparecido estava vivo ou não.

 

A: Como foi organizada a estrutura da Rede de Saúde Mental de Brumadinho após o rompimento da barragem?

 

RC: Nós fomos capazes de dar uma resposta imediata. Fizemos na Saúde, como um todo, um esquema de plantão tanto nos hospitais gerais da microrregião e região metropolitana – para receber os feridos, prestar os primeiros socorros – quanto na saúde mental, junto a equipes locais (adulto e infantil) e profissionais da Coordenação Estadual, da FHEMIG, dos municípios vizinhos, do CRP, da Força Nacional do SUS e de outros parceiros. Mas isso só foi possível porque Brumadinho tem um SUS bem organizado.

É um local que tem 100% de cobertura do Programa de Saúde da Família e uma equipe de saúde mental estruturada dentro da necessidade do município. A cidade já contava com o CAPS e com o CAPS infantil. E, em razão dessa necessidade, ampliamos toda a rede de saúde mental, aumentando a capacidade do CAPS; credenciamos o CAPS infantil e criamos mais equipes que trabalham no território, chamadas de intermediárias. Isso foi aprovado e está sendo financiado pelo Ministério da Saúde. São quinze profissionais, cinco em cada equipe, que acompanham os casos mais próximos nas unidades básicas, para que o CAPS fique efetivamente com a crise e com a urgência. Estruturamos plantões de saúde mental nos postos da zona quente e na sede. Era preciso que a população tivesse a certeza de que, se fosse necessário, estaríamos lá. Fundamentalmente, é preciso dizer do trabalho territorial anteriormente desenvolvido pela saúde mental e aprofundado pós-rompimento da barragem. O SUS que conhece e sendo reconhecido pela comunidade.

 

A: E como foi a resposta da comunidade?

 

 

RC: Diferente do que esperávamos. No primeiro momento, não apareceu ninguém.

As famílias ficaram fechadas dentro de casa, sem ter certeza do que estava acontecendo, ansiosos esperando uma notícia. Aparentemente só saiam de casa duas vezes por dia, uma de manhã e outra à tarde, a hora em que saía a lista dos bombeiros, para saberem se tinham encontrado alguém ou se alguém tinha mudado de lista, de desaparecido para encontrado ou dado como morto. Em seguida, voltavam para suas casas. E isso persiste, ainda, em muitos casos.

 

A: Como você avalia isso? Uma perplexidade?

 

RC: Logo após o rompimento da barragem, as pessoas ficaram circulando pela cidade tentando fazer contato com familiares, procurado saber se alguém tinha notícias. Em seguida tivemos uma pane e, segundo alguns relatos, os telefones param de funcionar, e não se conseguia comunicar. As pessoas ficaram esperando notícias do seu familiar, mas, diante da falta de notícias, a expectativa era de que ele ainda estaria vivo e não dava notícias por causa da pane que paralisou os telefones. Em seguida, a população ficou na expectativa de que viria uma enchente, de que a lama viria ocupar toda a cidade, e então eles foram para as partes altas da cidade. Mas isso não aconteceu. A lama parou nas proximidades da cidade, entre a barragem e a cidade. Acumulou ali uma lama gigantesca, uma montanha de lama que segurou a água. O rio que passa pela cidade foi interrompido por algum tempo pela lama e começou a baixar o nível de água. Muitas pessoas desceram para a beira do rio e foram acontecendo coisas inusitadas, por exemplo um ajuntamento de pessoas olhando para o rio, paralisadas ali, dias e dias e dias ali, olhando para ver se algo vinha. Porque, nas primeiras semanas, os números eram imprecisos. Eles olhavam ao longe, no rio, na esperança de que o rio trouxesse algo, de encontrar pessoas, ou mesmo fragmentos dos corpos. Era muito ruim.

 

A: O rio passou a ter outra conotação para a população?

 

RC: Sim, ocorreu também o “balé dos peixes”. Os peixes saltavam da água e as pessoas começaram a descer à beira do rio para pegar os peixes com as mãos. Ou seja, ao mesmo tempo em que se esperava que chegasse alguém, um corpo, uma notícia, o que se vê são pessoas pegando os peixes com as mãos. Me pergunto: o que faz o ser humano agir dessa forma? O rio e seus peixes eram um complemento alimentar utilizado normalmente por eles, pela pesca. Mas, naquela situação, eles desciam para pegar os peixes devido à facilidade, pois os peixes saltavam após a água baixar de nível. Isso é muito estranho, pois, ao mesmo tempo em que pegavam os peixes, aguardavam algum familiar, amigo, algo que pudesse ser trazido pela enchente. E também corriam o risco de serem levados, caso a enchente aumentasse. E foram muitas pessoas que fizeram isso.

É um movimento dúbio que aparece também em relação à Vale. Muitas pessoas estão recebendo dinheiro, muito dinheiro, o que nos leva a refletir que isso suspendeu o luto não de quem teve a perda do familiar, mas do resto da comunidade que não teve a perda direta mas estava em luto pelos amigos, pelos vizinhos, pelo crime, pelo chocante da tragédia…

 

A: Quais são as outras percepções sobre esse primeiro tempo, pós rompimento da barragem?

 

RC: Tivemos também uma invasão de imagens – dos tratores, da lama, dos bombeiros, mas não se viam pessoas sendo resgatadas. A cada minuto que passava, ficava mais difícil disso acontecer. Me parece que, após as primeiras setenta e duas horas, os bombeiros falaram que não tinham mais expectativa de encontrar pessoas com vida. Depois de alguns dias, eles anunciaram que iriam entrar com maquinário pesado, e isso estraçalhou as famílias, estraçalhou as pessoas. A compreensão de que os corpos já haviam sido dilacerados no momento da chegada da lama ainda não era corrente. Esperava-se ainda pelos corpos dos familiares, e não fragmentos. O uso de máquinas jogava por terra mais essa esperança.

Essas pessoas foram muito invadidas. A cidade foi invadida, foi invadida por voluntários, por serviços de saúde de todas as espécies, por gente fazendo pesquisa, por tudo o que vocês imaginarem. Chegavam ônibus de psicólogo, um ônibus de assistente social… Colocavam a plaquinha e saiam. Invadiram a cidade inteira. Independentemente de como a pessoa tinha sido atingida, eles batiam na porta da casa o dia inteiro. Não tinha um espaço para o sofrimento, não tinha um espaço para que a família pudesse sentir a dor da perda.

 

A: Qual é a perspectiva de passagem do tempo para essa população?

 

RC: A missa de sétimo dia, celebrada pelo arcebispo de Belo Horizonte, me parece que não estava muito cheia. Poderia ter sido uma marcação temporal para essa tragédia, mas algumas pessoas disseram “eu não vou à missa para quem eu não sepultei”, “eu não reconheço a morte”, “eu não sepultei ninguém”. Na missa de trigésimo dia, tivemos as mesmas falas. Uma pessoa que tinha perdido os familiares deu um testemunho em uma rádio, e quando o repórter perguntou para ele “e agora? como é começar do zero?”, ele respondeu “eu não sei onde é o zero, eu não achei o zero ainda”.

Então, para alguns, o tempo não começou a contar ainda.

 

A: Isso afeta a elaboração do luto…

 

RC: Sim, há um tamponamento, uma suspensão do luto. Inclusive isso aparece muito em relação à Vale. Escutamos no CAPS falas como “eu ouvi lá no supermercado pessoas comentando que foi bom que aconteceu, porque a vida está mais fácil agora”. Porque eles estão recebendo dinheiro, muitos estão recebendo dinheiro, então as pessoas estão podendo fazer a compra do mês e muitas outras compras não habituais. E essa cidade, que é bastante solidária, bastante afetuosa, começa a perceber essa divisão de opiniões entre as pessoas que acham que a Vale tem que voltar logo e as pessoas que estão muito magoadas, com muito sofrimento.

Nesse sentido, tem algumas coisas que estão muito diferentes. Essa questão financeira é muito delicada. As crianças! Podemos fazer a mesma comparação com o sentimento das crianças: para elas estão sendo ofertados, lá no Parque da Cachoeira, brinquedos a que elas nunca tiveram acesso ao mesmo tempo em que o irmão está desaparecido na lama. Isso já nos primeiros dias. É aquele sentimento ambivalente: estou feliz, mas estou triste, porque estou aqui brincando, uma coisa superlegal, mas meu irmão não chega.

E muitos são tomados pela culpa, como um paciente que chega procurando ajuda e fala que está insone, que está deprimido, chorando muito e, em seguida fala “não entendo por que isso está acontecendo; eu não perdi ninguém, eu não fui atingido, minha esposa está vindo trabalhar todos os dias, a lama não chegou na minha casa”. E completa “eu não estou sendo homem o suficiente, eu não podia estar desse jeito”.

Ora, todo mundo na cidade foi atingido, é óbvio que cada um vai se impactar de uma maneira. Em uma reunião de equipe, um técnico da área da saúde pergunta “e se todo mundo surtar? como vai ser?”. E a resposta que dei foi “não, isso não vai acontecer”. É claro que, nessas situações, muitos de nós vamos adoecer, inclusive da equipe; já estamos adoecidos. Mas não é assim, nesse processo de adoecimento metal, não adoece todo mundo.

Há essa coisa do “todo mundo”, da “tragédia coletiva”, mas, na hora que você recebe as pessoas, uma a uma, você percebe como é pessoal; como a vivência é de cada um mesmo. Ela tem esse caráter coletivo, de um crime, de uma tragédia coletiva, social. Fazemos política pública para “todo mundo”, mas, na hora do cuidado, se cuida muito individualmente. Temos casos em que o sofrimento retorna nos sonhos, e o sujeito não para de sonhar com a lama.

 

A: Isso tem a dimensão do trauma. É uma tentativa de elaborar o que aconteceu?

 

RC: Sim. Hoje, tem uma parcela da população que eu acho que é das pessoas que estão envolvidas – muito sofridas, mas envolvidas no processo de agrupamento. Eles estão se agrupando, excluem pessoas entendidas como aquelas que estão fazendo política partidária, política de uma determinada associação. Eles querem ser solidários uns com os outros. São grupos de pessoas que perderam familiares e se reúnem para discutir com advogados, com a promotoria, com a própria Vale. Há uma definição de que tudo tem que partir da população, assim como todas as estratégias de cuidado, e nós temos que partilhar isso com eles. Montamos nossa estratégia de trabalho a partir dessa premissa.

Talvez seja do início de uma retomada, uma retomada de reorganização de vida, de volta às ações, mas é uma retomada muito marcada. Não tem perspectiva de fim. Infelizmente eu não vejo assim, de que nós vamos, dentro de três anos, por exemplo, superar isso. É difícil fazer uma elaboração de uma coisa que não se fechou, não tem nada se fechando. As pessoas continuam por sepultar seus mortos, por entender o que aconteceu, e essa coisa de ter um sentimento muito ruim em relação a algo externo, não sei se permite uma elaboração. Quanto isso vai dificultar? Porque a cidade é muito dependente do minério e da Vale, que vai continuar existindo ali.

Hoje a comunidade não tem preocupação de que possa acontecer isso de novo, porque já aconteceu, já não tem mais barragem para romper. Os moradores de Macacos, de Barão de Cocais, estão vivenciando isso. Isso é uma situação absolutamente perversa.

 

A: Passados poucos meses, quais sintomas podem ser destacados e relacionados com esse crime em acontecimento?

 

RC: Há indicadores de que os adoecimentos vão aumentar, por exemplo a questão da violência doméstica, a questão do uso de álcool, a questão das tentativas de autoextermínio, quadros de ansiedade severa, a questão da depressão na infância. Estamos percebendo isso agora, com três meses, quase três meses. Esse fluxo está começando a chegar mais efetivamente, antes estava muito disperso.

 

 

 


Rodrigo Chaves
Entrevista com Rodrigo Chaves, Coordenador de Saúde Mental do Município de Brumadinho- MG, por Alessandra Rocha, Giselle Moreira e Ludmilla Féres Faria



Ódio, Uma Paixão Do Ser

TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

Freud, em “Pulsões e seus destinos” (1915), fala sobre o amor e o ódio tendo como pontos de partida suas relações com o tempo e com a origem. Eles têm origens diversas e andam em um descompasso temporal, sendo o ódio anterior ao amor.

 

Em Lacan, as paixões do ser se inscrevem no momento em que ele define o sujeito do inconsciente como falta-a-ser, motor que conduz o sujeito a buscar, no outro, aquilo que pode lhe conferir um sentido diante de uma significação sempre aberta.

 

O ódio, como uma das paixões do ser, diz respeito à operação de constituição do sujeito através do mecanismo da Austossung, a expulsão como o ponto de partida da configuração do ser. Movido pelo princípio do prazer, aquilo que é desagradável é expulso, configurando-se de um modo radical no dito do sujeito “isso não sou eu”. Do outro lado, temos a introjeção da experiência prazerosa que constitui o “isso sou eu”.

 

Ódio, o mais antigo

 

Em “Pulsões e seus destinos”, Freud nos diz que o amor e o ódio

 

(…) não surgiram da cisão de uma entidade originalmente comum, mas brotaram de fontes diferentes, tendo cada um deles se desenvolvido antes que a influência da relação prazer-desprazer os transformasse em opostos” e que “O ódio enquanto relação de objetos é mais antigo que o amor (1915/1976, p. 160-161).

 

Ele se refere a “uma fase mais elevada da organização sádico-anal pré-genital, [em que] a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia em dominar, para a qual o dano ou aniquilamento do objeto é indiferente” (Ibid.).

 

Freud não supõe pura e simplesmente uma anterioridade do ódio em relação ao amor. Ele parte do momento em que o eu só ama a si mesmo e permanece indiferente para com o mundo. O odiar atinge seu objetivo quando a fase puramente narcisista cede lugar à fase objetal, assim, prazer e desprazer significam relações entre o ego e o objeto, motivo de uma instabilidade essencial e sempre presente no eu, motor para uma relação mais permeável entre dentro e fora, descrita por ele da seguinte maneira:

 

O mundo externo é decomposto agora em uma parcela prazerosa, que [o sujeito] incorpora em si, e em um resto, que lhe parece estranho. Do seu próprio eu, ele extraiu uma parte que expeliu para o mundo externo e que passa a sentir como hostil (Ibid., p. 159).

 

Só depois de estabelecida a organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio.

 

Essa passagem aponta para uma expulsão fundadora, a Austossung, primeiro intercâmbio do sujeito com o mundo, que se baseia na expulsão de um excesso inominável.

 

Como aproximar essa expulsão mítica e estrutural dos fenômenos do ódio?

 

Para melhor situar as relações entre dentro e fora, Lacan insiste na importância de discernir os registros imaginário e real. A operação mítica de constituição do sujeito se dá sem a interferência do simbólico. Imaginário e real participam da constituição de um corpo que goza e, sem o alcance do simbólico, se constitui como um gozo que não segue o modelo do Ideal do Eu (SILVA, 2019). Dessa forma, o imaginário não consegue estabilizá-lo.

 

Esse corpo permanece no real, marcado por uma relação entre o eu e o outro que se constitui como uma espiral em que a possibilidade de vacilação da percepção quanto à unidade encontra-se sempre presente. É o que, no Seminário 2, Lacan nomeia ‘desarvoramento’ (LACAN, 1954-1955). O recurso à alteridade que o sujeito utiliza deixa como legado uma tendência à rivalidade e à inveja.

 

Essa tal rivalidade seria o fundamento do ódio? Lacan afirma que há uma dimensão imaginária do ódio, uma vez que a destruição do outro é um polo da relação intersubjetiva. Contudo, o ódio não se satisfaz com a destruição do adversário, o que aponta para uma presença suplementar. Aqui, Lacan destaca uma diferença entre simplesmente vencer, destacar-se no eixo imaginário e frustrar o sujeito no seu ideal no sentido de uma formação egoica, eu ideal (LACAN, 1953-1954, p. 316).

 

O desaparecimento do outro, objeto do ódio do sujeito, pode não representar uma solução eficaz. Pelo contrário, a presença imaculada da sua ausência pode eternizar o ódio. Humilhar e degradar publicamente o outro pode ser uma forma de destituição mais eficaz para o sujeito do que derrotar esse outro: mais vale a sua abjeção.

 

Para Lacan, no Seminário 1, o ódio, assim como o amor, é uma carreira sem limite (1953-1954, p. 316). Há um ilimitado em questão, uma presença suplementar que se constitui como gozo, que estabelece uma relação entre as figuras simbólicas abstratas e o campo concreto das relações. O gozo tende a evocar esse ponto de alteridade interna, de presença êxtima, de erro.

 

A distinção entre o ódio dito estrutural, constitutivo do sujeito, e o ódio manifesto no comportamento muito nos auxilia na nossa prática clínica.

 

O Erro enquanto uma figura de linguagem

 

Lacan, no Seminário 1 (1953-1954, p. 300-301), articula as três paixões às três figuras de linguagem: erro, ambiguidade e engano. Ele aproxima o ódio do erro vinculando-o à denegação, a ambiguidade à condensação e o engano ao lapso. Para Lacan, é no tecido simbólico que a emergência da verdade pode ser verificada. A palavra se afirma verdadeira justamente por ser enganadora. Na emergência de certo tipo de contradição, encontra-se uma passagem da errância subjetiva habitual para a materialização de um erro sem lugar e singular.

 

A denegação freudiana nos ensina que, quando um significante veicula uma impropriedade, quando se apresenta como não podendo estar ali, algo do ser comparece nesse regime de não ser, de não poder ser.

 

A figura do erro constitui uma prerrogativa capaz de possibilitar uma passagem do ódio como rompante, como fenômeno, como excesso, para algo mais apreensível na linguagem, para a ex-sistência, que, como tal, é sempre complicada. A ex-sistência é um nome para um excesso particular ou singular.

 

Marcus André, em seu livro A ética da paixão, trata o erro como aparição na fala de algo não planejado, de uma presença insensata que introduz a dimensão da verdade. “O erro diz respeito a um significante que é o ‘não pode ser” (2001, p. 174). Pode provocar o desprezo, a depreciação, a necessidade apaixonada de exclui-lo da série, de eliminá-lo. Esse é o fundamento do ódio. Um significante que, de alguma maneira, extrapolaria o próprio exercício corrente do simbólico.

 

Lacan nos diz que o ódio é um sentimento lúcido pressupondo, portanto, sua ligação com o saber, enquanto a dificuldade em reconhecer o ódio manifesto na relação ao outro pode ser uma manifestação da ignorância, como uma das paixões do ser. Dessa forma, o sonho do amor universal pode levar à ignorância quanto à irredutibilidade do ódio, que nunca se reduz a zero. O trabalho de análise pode possibilitar ao sujeito encontrar alternativas e saídas próprias.

 

 

 


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1915) As pulsões e seus destinos. Obras completas de Sigmund Freud. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
FREUD, S. A Negativa. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIX, 1976.
LACAN, J. (1954-1955) O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro:  Ed. Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1953-1954) O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:  Ed. Jorge Zahar, 1986.
SILVA, R.  “O ódio estruturante”. Boletim Enapol: OCI 1.
https://IX.enapol.org/boletim-oci-1/
VIEIRA, M. A. A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro:  Ed. Jorge Zahar, 2001.
VIEIRA, M. A.; SILVA, R. (org.) Ódio, segregação e gozo. Subversos e ICP/RJ. 2012.

TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY
Psicanalista, mestre em Psicologia (UFMG) | Rua Teixeira de Freitas 478, sala 706 | (31) 3225-5322 | 9 9985-7888 | terezafacury@gmail.com



Cólera Em Sua Versão Epidêmica

ANDRÉA EULÁLIO

 

LAMA -RICHARDSON PONTONE

Cólera (2013), curta-metragem do diretor espanhol Aritz Moreno, revela de forma cruel como a população de uma pequena vila se dispõe a erradicar o mal que ameaça contaminar todos aqueles que vivem naquela comunidade. Armados com paus, pedras e espingardas, os habitantes se dirigem a um pequeno casebre que se encontra isolado no ponto extremo de um campo. Lá se encontra o objeto hostilizado pela população, alguém que, segundo eles, já teria causado “problemas demais”. “Finalmente uma vila limpa!” é bradado pelo líder da comunidade após o linchamento daquele que propaga o mal, ato esse que não será sem consequências.

 

Nesse sentido, o filme nos revela um duplo contágio ao colocar as duas cóleras frente a frente, num duelo entre a vida e a morte: homofonicamente, a cólera representa o afeto em si, em sua versão epidêmica que mobiliza a população em direção ao linchamento; e o retorno desse ato como doença infecciosa grave, que poderá contaminar toda a população.

 

A escolha desse curta me permitiu pensar que o significante cólera, como metáfora do contagioso, epidêmico e viral que se exprime por colocar a justiça e a legitimidade ao seu lado, incide sobre o que se recolhe hoje como mal-estar da civilização, vigente no campo político e social. Os linchamentos, o ódio étnico e a intolerância são manifestações do imperativo de gozo, impulsionado pela pulsão de morte, que podem ser qualificadas como irrupções.

 

Segundo Laurent, na entrevista publicada no livro A violência: sintoma social da época, Lacan dizia que temos que estar atentos às novas formas com as quais uma época vive a pulsão. Mas não somente vive a pulsão no sentido Eros, mas também no sentido Tânatos (2013, p. 41).

 

Na perspectiva clínica, a cólera, segundo Lacan, se caracteriza pela irrupção do real do gozo que surge quando, numa trama simbólica bem estabelecida, os pinos deixam de entrar em seus furos. “Que quer dizer isso? É quando no nível do Outro, do significante, ou seja, sempre, mais ou menos no nível da fé, da boa-fé, não se joga o jogo” (LACAN, 1962-1963, p. 23).

 

Para Lacan, a cólera irrompe como uma certa reação, por vezes, violenta, a uma “decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre a ordem simbólica e a reposta do real” (LACAN, 1959-60, p. 127). Sendo assim, para que haja decepção, é preciso que haja crença no Outro, evidenciando uma correlação entre crença e espera (VIEIRA, 2001, p. 215). Então, quanto mais o sujeito estiver firmemente plantado no encadeamento das razões, maior será a possibilidade de que algo inexplicável esteja em ruptura com o universo e mais estará sujeito à cólera.

 

Segundo Vieira, é preciso esclarecer que nem sempre advém a cólera quando as coisas não funcionam bem. Ela irrompe justamente quando não se consegue atribuir à falha uma razão que a inclua, isto é, no momento da explosão colérica, o sentido aparece obscuro para quem o experimenta (2001, p. 215).

 

Freud, em “Estudos sobre Histeria” (1893-1895), salienta que todos os afetos intensos restringem a associação – o fluxo de representações. As pessoas ficam “insensatas” com a raiva ou com o pavor. Somente o grupo de representações que provocou o afeto persiste na consciência e o faz com extrema intensidade. Assim, a atividade associativa não consegue aplacar o excitamento (p. 209). Nesse ponto, Lacan concorda inteiramente com Freud ao dizer que “o afeto ele se desprende, fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram” (1962-63, p. 23). Portanto, essa ruptura da associação livre e a perda de sentido se caracterizam por uma quebra na articulação entre S1 e S2 (Boletim OCI, n0, 2019).

 

Ainda citando Freud, os afetos que são ativos aplacam a excitação aumentada através da descarga motora. Os gritos, o maior tônus muscular da cólera, as palavras raivosas e as ações retaliatórias, tudo isso permite que a excitação se escoe em movimentos. A linguagem comprova esse fato com expressões tais como desabafar pelo pranto, desabafar através de um acesso de cólera, esvair-se em cólera.

 

Que o afeto seja do corpo, Lacan retoma isso também de Freud. Lacan diz que o corpo é o “lugar do Outro”, é o lugar onde o simbólico toma corpo para ali se incorporar, mas esse lugar tem por propriedade o gozo (2003, p. 405).

 

“Com efeito, Lacan considera que nenhum afeto e nenhuma paixão, da angústia à cólera, pode ser compreendido sem a relação ao significante” (Boletim OCI, n0, Argumento, 2019), portanto, será só a partir da língua que poderemos distinguir cólera e ódio, cólera e violência, cólera e indignação, enquanto possíveis inscrições de gozo e de subtração de gozo, no qual a manifestação de cada um deles se insere em uma rede particular e não antecipável de sentidos (VIEIRA, 2001, p. 190/191).

Cólera e violência

 

Até que ponto a cólera pode se diferenciar da violência?

 

A cólera pode se manifestar como desejo de vingança: desprezo, querela, insulto, blasfêmia; passagem ao ato. Nesse caso, se tomarmos a diferenciação entre ‘intenção agressiva’ e ‘tendência à agressão’, presentes no texto de Lacan “Agressividade em psicanálise” (1948), a cólera se situa no registro simbólico da “intenção agressiva”, ou seja, supõe um querer dizer, tem a possiblidade de ser interpretada, indicando, assim, a incidência do recalque. Ao contrário, na “tendência agressiva” não há uma articulação significante, a interpretação permanece sem efeito e a pulsão aparece como pura pulsão de morte (LACADÉE, 2018, s/p).

 

Contudo, a cólera como disrupção do real do gozo e necessariamente vinculada ao significante, ao diferenciá-la da violência, nos leva a constatar que a violência pode ser a consequência da cólera, na medida “em que a separação com o Outro pode levar a um curto circuito onde a palavra falta ao discurso” (Boletim OCI, n0, 2019).

 

Para Laurent (2018), o termo disrupção é um sinônimo da efração, ou seja, o que constitui o gozo na homeostase do corpo, fundamento da repetição do Um. Nos casos aos quais temos acesso pela análise, seu modo de entrada (do gozo) é sempre a efração, a ruptura, “a disrupção em relação a uma ordem preliminar feita da rotina do discurso pelo qual mantêm as significações” (LAURENT, 2018, p. 52).

 

Cólera e ódio

 

Se na cólera temos a crença no Outro, o ódio, por sua vez, enquanto uma das três paixões do ser, é estabelecido como rechaço, expulsão do Outro, constituindo o real como o que subsiste fora da simbolização. Com efeito, o ódio, tanto quanto o amor e a ignorância, é uma via na qual o ser pode se ancorar negando o ser do outro, e, entre as três paixões, o ódio é o que se refere ao real de forma mais evidente.

 

Se o amor aspira ao desenvolvimento do ser do outro, o ódio quer o contrário, seja o seu rebaixamento, seja a sua desorientação, seu desvio, seu delírio, sua negação detalhada, sua subversão (LACAN, 1953-1954, p. 360). O ódio, como a forma mais primitiva de afeto, corresponde ao desejo de morte nutrido pelo sujeito em relação ao rival do amor. “Odeia-se no Outro sua maneira particular de gozar, justamente porque não é a minha maneira, ou porque implica na subtração da minha maneira de gozar” (MILLER, 2016, s/p).

 

Cólera e indignação

 

Ao dizermos que o sujeito está indignado, não estamos necessariamente dizendo que ele é violento, tampouco tomado pelo ódio ou pela cólera. Diante daquilo que vacila no simbólico, a indignação é um afeto que surge frente a uma situação que parece injusta, inaceitável, impossível para o sujeito suportar.

 

Se, por um lado, a indignação abala o núcleo do ser diante do rechaço da singularidade do sujeito, por outro lado, a dignidade irá consistir em um princípio ético orientador de uma psicanálise. Nesse sentido, poderíamos pensar na indignação como um tratamento para a cólera?

 

Assim, no contexto dos afetos, sabemos que não é possível supor qualquer distinção fenomênica para cada um deles. O ódio, a cólera e a indignação não se manifestam puramente por um ou outro correlativo orgânico ou fisiológico, nem por meio de um sentimento ou outro. O ódio, a cólera e a indignação, como três significantes e como modo de gozo do corpo desvinculado do simbólico quando a palavra vacila, se traduzem em atos nos quais “os seres falantes tentam escrever com seus corpos” (PACHECO, 2019, s/p).

 

 

 

 


REFERÊNCIAS
CÓLERA. Espanha, 7 min., cor, 2013. Roteiro, produção e direção de Aritz Moreno. Disponível em: http://www.kinoforum.org.br/curtas/2014/filme/39908/colera.
BOLETIM OCI: ódio, cólera, indignação. Enapol 2019, no 0. Disponível em:  https://ix.enapol.org/boletim-oci-0/. Acesso em jul. 2019.
FREUD, S. (1893-1895). “Estudos sobre histeria”. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. vol. II, p. 209.
LACADÉE, P. “A violência no jovem: sintoma ou não?”. In: Almanaque on-line, nº 20. Revista do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG, 2018.
LACAN, J. (1953-1954) “O conceito da análise”. In: O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. p. 360.
LACAN, J. (1959-1960) “O objeto e a coisa”. In: O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 126.
LACAN, J. (1962-1963) “A angústia na rede dos significantes”. In: O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 23.
LACAN, J. (1970) “Radiofonia”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 405.
LAURENT, É. “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia, 2018, n. 79.
MACHADO, O; DREZENKY, E. (Orgs). “Psicanálise e violência: sobre as manifestações da pulsão de morte”. Entrevista com Éric Laurent in: A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2013. p. 41.
MILLER, J-A. “Racismo e extimidade”. In: Derivas analíticas. mai. 2016. Nº 4. Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/.
PACHECO, L. (2018). “Cólera, ódio, indignação: desafios para a psicanálise”. Ementa Seção Clínica do Instituto de Psicanálise de Minas Gerais. mar. 2019.
VIEIRA, M. A. “Afetos”, In: A ética da paixão: uma teoria psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

ANDRÉA EULÁLIO
Psicóloga, mestre em Psicologia (FAFICH/UFMG) e membro da EBP e da AMP andrea.eulalio@hotmail.com



Ódio: Obstáculo Ou Condição Para A Psicanálise?

BERNARDO MICHERIF CARNEIRO

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

Partimos de uma hipótese: há, em Lacan, duas perspectivas distintas na abordagem do ódio. Uma primeira, que enfatiza a sua vertente como obstáculo à psicanálise, e uma segunda, na qual prevalece o ódio como condição para a análise. Tentaremos distinguir essas duas perspectivas para, com isso, delinear a função da clínica do ódio na experiência de análise.

 

Ódio: obstáculo à psicanálise

 

Lacan (1998b) considerou o ódio uma das paixões do ser, junto ao amor e à ignorância. O termo “paixões do ser” indica que se trata do ser, da forma como o sujeito constitui sua existência. Lacan propõe que isso se decide pelo modo como o gozo se relaciona com o saber.

 

Estabelecer a relação com o saber a partir da pergunta “o que o Outro quer?” condiciona uma demanda do sujeito ao Outro. Uma demanda que coloca em jogo um buraco no saber. As paixões do ser são três modos distintos de tampar esse buraco. O amor se dirige ao saber do Outro suposto como Um. Na ignorância, trata-se de um não querer saber do vazio no saber do Outro. O ódio se dirige ao gozo suposto no vazio do saber do Outro.

 

Ou seja, ama-se o saber, ignora-se a verdade do saber ou odeia-se o gozo no saber. O amor dedica uma devoção ao saber do Outro. O ódio parte do pressuposto de que o saber é um engodo que esconde um gozo. Por isso, o ódio denuncia o semblante e se dirige ao que o saber não alcança. “O amor ou o ódio. Um é cego e o fará entregar as armas. O outro é lúcido, mas despertará suas suspeitas” (LACAN, 1998a, p. 45). Se o amor se baseia no engano como a via para se alienar no saber, o ódio, ao expor o engano do amor, torna-se refém das suspeitas que suscita. Mas a suspeita permanece como uma manifestação amortecida do ódio.

 

Diante da oferta do saber do Outro, há uma pergunta que se coloca do lado do sujeito: “O que ele quer?”. O sujeito, por antecipação, suspeita que o saber do Outro o deprecia. Como se o saber que o Outro apresenta fosse um modo de dizer ao sujeito: “Você não sabe de nada!”. O sujeito interpreta que o Outro goza dessa depreciação que ele promove. Tudo o que vem do Outro, qualquer palavra ou gesto, fica sob o jugo dessa interpretação. Trata-se de uma antecipação na medida em que vai mais além do que se sabe, uma suspeita que não dispõe de provas. E quanto mais não se tem provas, mais essa suspeita retorna insistentemente. A suspeita é uma resposta do sujeito à mensagem de desvalorização que ele recebe do Outro.

 

Quando o saber perde sua articulação ao desejo do Outro, este ressoa como um blá-blá-blá sem fim. O sujeito considera que o saber que o Outro veicula é um meio pelo qual ele goza do sujeito, manipula-o. O sujeito sente-se humilhado e menosprezado. Acusa o Outro de ser invasivo, de se intrometer na sua intimidade. O gozo do Outro torna-se um obstáculo para a via do saber.

 

A recusa, do simbólico ao real

 

Apresentado o ódio como obstáculo à transferência, cabe questionar como conduzir tal questão. Propomos a noção de recusa como a via para essa condução. A recusa é uma noção que viabiliza um manejo do ódio na clínica. A recusa é uma defesa, anterior à resistência, que está na base da estrutura psíquica. A recusa é inaugural da relação do sujeito com o real. Ela visa uma extração de gozo para fazer existir o Outro como um lugar onde o sujeito possa se colocar. Se na resistência o gozo é um obstáculo, na recusa ele é o terreno onde a operação se realiza.

 

Há um gozo sempre deslocado, um gozo a mais que não encontra seu devido lugar. É sobre ele que a recusa incide. Se esse gozo está do lado do sujeito, o Outro interdita. Se se coloca do lado do Outro, o sujeito contesta. Se interditar o gozo do sujeito é a via para o amor ao Outro advir, quando o sujeito se defende do gozo do Outro, é do ódio que se trata.

 

Lacan esclarece esse impasse com um aforisma topológico decisivo para a noção de recusa: “Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso”. Pedido, recusa e oferta constituem um nó cuja interseção circunscreve o não é isso, onde se apresenta um furo, o objeto a. É preciso decifrar essa montagem.

 

Primeiramente, o Outro recusa que o sujeito goze do que não deve, o que chamamos de interdito, operação inaugural do campo simbólico. Essa recusa nos introduz na estrutura do aforisma ao qual nos dedicamos. A partir daí, o sujeito oferece ao Outro o gozo ao qual renuncia. Quando esse gozo se transfere, o sujeito pede que o Outro o recuse também em seu campo. Ele o pede impondo sua própria recusa: não é isso. Sua recusa incide separando o objeto a e o gozo, esvaziando o objeto para que possa fazer surgir ali o desejo do Outro. Por isso, Lacan (2012) acrescenta ao seu aforisma: “Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso o que tu desejas”.

 

A condição para que o desejo possa se colocar é que o gozo do Outro seja barrado. A defasagem entre o gozo obtido e o gozo esperado é onde o desejo se instala. Quando o sujeito se recusa ao que o Outro propõe, não se trata de uma oposição. Trata-se de uma demanda carregada de ódio. Uma demanda que se dirige à vontade de gozo que o sujeito atribui ao Outro. Considera que o Outro goza de subjugá-lo como objeto.

 

A saída dessa querela está condicionada a que o desejo do Outro se apresente. Que ele renuncie ao gozo indevido e abra espaço para o vazio de saber a partir do qual outros possam se apresentar. Ou seja, a solução para o problema do saber está na ausência de solução, no impossível de saber.

 

A princípio, a recusa é um resultado do deslocamento do gozo do campo do sujeito para o campo do Outro. Contudo, um problema se coloca. Na época do Outro, que não existe, não há Outro para recusar o gozo. Ao contrário, trata-se de uma civilização assolada pelo imperativo: “Goza!”. Esse gozo ilimitado que marca a subjetividade contemporânea tem incidência sobre a função da recusa. Ela marca uma ruptura do laço simbólico do sujeito com o Outro e evidencia uma nova relação entre esses dois termos em um contexto em que o gozo não encontra mais um limite ou um cativeiro no qual se abrigar.

 

Para propor o estatuto da recusa na atualidade, partimos de outro aforisma lacaniano: “O que é recusado no simbólico (…) reaparece no real” (LACAN, 2003, p. 257). Se o gozo não pode aceder ao simbólico, ele retorna no real do corpo, um real não localizado na estrutura. Em outras palavras, quando o Outro é recusado como lugar para localizar o gozo, o gozo retorna no corpo como corpo do Outro. A pulsão se expõe como uma exigência acéfala do corpo, “uma demanda que não se pode recusar” (MILLER, 2011, p. 196).

 

A sociedade do não-todo produz um sujeito que se recusa a representar o gozo do corpo no simbólico. Recusa-se a oferecer sua castração como prova de amor ao Outro. Trata-se de um corpo que visa ao acesso direto ao gozo como Um, apartado do Outro. Com isso, o Outro resta como corpo, como o corpo do Outro, lugar de manifestação de um gozo desregrado.

 

No lugar do amor ao Outro, surge o ódio ao gozo do corpo. Esse ódio não se restringe à perturbação que ele experimenta no próprio corpo, mas se coloca também em relação ao gozo do Outro, que se mostra inconciliável com o seu modo de gozar. O insuportável do gozo do Outro é a via que o conduzirá à eleição do Outro mau.

 

Podemos traduzir isso do seguinte modo: primeiramente, o sujeito se recusa ao amor ao Outro, “eu não o amo”, e isso pode leva-lo à prevalência do gozo do Um, “eu só amo a mim mesmo”. Trata-se de uma modalidade megalomaníaca de afeto, uma ideia de grandeza comum na atualidade. Contudo, a presença do gozo do Outro ameaça esse gozo solitário. Daí advém uma modificação no afeto: “Eu não o amo. Eu o odeio”. É o ódio ao Outro que se coloca como condição para a existência do Outro mau, o que permite uma interpretação: “Eu o odeio porque ele me persegue”. Está aí a lógica de assunção do Outro mau.

 

A recusa ao amor conduz ao ódio e à consequente localização do Outro mau. Uma passagem do sujeito que recusa o Outro, que não existe, até o sujeito que se encontra submetido a uma presença absoluta de um gozo do Outro sem limites. Para se separar desse Outro que se apossou do gozo do seu corpo, o sujeito pode reincidir em sua recusa de formas cada vez mais extremas. Pode ir, desde o desleixo com a própria aparência, até praticas de risco que testam os limites do corpo e dos laços sociais. Pode, até mesmo, oferecer a vida como cacife.

 

O sujeito recusa o campo do Outro por só conseguir fazê-lo existir sob a forma depreciada do Outro mau. Ele se recusa a oferecer sua castração ao Outro, pois isso implica ceder o gozo ao Outro. Um ciclo destrutivo se constitui: quando ele se refugia do gozo do Outro mau, resta confinado no gozo ilimitado de um corpo que é Outro. O corpo sozinho é lugar de um sofrimento devastador. Mas não há como fugir, pois a ameaça que habita no corpo também está no campo do Outro.

 

Quanto mais o Outro mau se impõe, mais o sujeito se experimenta como um dejeto. A recusa no real é sempre uma demanda de que o Outro recuse o gozo que o sujeito lhe atribui, que o Outro recuse a consistência do gozo malévolo para ascender à inconsistência dos caminhos do saber.

 

Ódio: condição para a psicanálise

 

Talvez possamos questionar se o ódio não seria o anteparo mais lúcido para viabilizar ao sujeito uma nova aliança com o saber. Mas qual seria a aliança possível entre o saber e o ódio que o sujeito direciona ao gozo do Outro? Como diz Lacan (1985, p. 122), “se precisamos hoje renovar a função do saber, é talvez porque o ódio nele não foi, de modo algum, posto em seu lugar”.

 

Nesse sentido, Lacan (1985, p. 122) constata que “não se conhece nenhum amor sem ódio”. Os laços entre os homens estão alicerçados nas bases precárias do ódio entre eles. O ódio é a via para o amor. Se alguém não suporta odiar, está impossibilitado de amar o Outro. Essa conclusão se opõe ao mandamento cristão de amar ao próximo.

 

É preciso distinguir o ódio como obstáculo e como condição para o acesso ao saber. O ódio cego ao gozo do Outro faz existir o Outro como um obstáculo. Ou seja, o sujeito faz do gozo que ele atribui ao Outro um impedimento para o acesso ao saber. Ele não o consegue quando se coloca em uma posição de dejeto rejeitado pelo saber do Outro. Torna-se refém de um Outro mau do qual ele se coloca como o alvo a ser atingido.

 

Mas há uma outra perspectiva. A transferência negativa coloca em jogo o real que movimenta o discurso. O ódio se dirige ao real que o saber não alcança e evidencia a inexistência do Outro. É o que Lacan definiu como paixão mais lúcida.

 

Isso se evidencia em “uma relação de desconfiança vigilante”[i] (MILLER, 1999, p. 72). O sujeito mantém o Outro na mira para verificar como ele se vira com o furo no saber, com o impossível que isso comporta. Isso é o que, a princípio, garante o laço do sujeito com o Outro: “para desconfiar de alguém, é preciso esperar algo dele”[ii] (Ibid., p. 68). O sujeito pode dedicar-se ao que o Outro diz à espera de um tropeço, de um equívoco. Essa contenda pode ser decisiva, desde que a desconfiança seja a via para a abertura a um novo saber.

 

Esse real que mobiliza a transferência é a via para que o sujeito se separe do gozo que ele supõe no Outro e, assim, reverta o saber em um instrumento útil. Por um lado, há o amor cego que se dirige ao saber do Outro e o ódio cego que se dirige ao gozo do Outro. Ambos conduzem à alienação. Por outro lado, há o “ódio lúcido”, que oculta um amor à inexistência do Outro. Um novo amor, sem limites, que conduz à separação.

[i] Tradução nossa do original: una relación de desconfianza vigilante.
[ii] Tradução nossa do original: para desconfiar de alguien hay que esperar algo de él.

 

 


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1911) “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides)”. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 12, 1996. p. 15-89.
LACAN, J. (1955) “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998a. p. 13-66.
LACAN, J. (1955) “Variantes do tratamento-padrão”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998b. p. 325-364.
LACAN, J. (1971-72) O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 2ª ed.
MILLER, J-A. La transferencia negativa. Seminario sobre Política de la Transferencia. Barcelona: Escola del Campo Freudiano de Barcelona, 1999.
MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.
MILLER, J-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2013.

Bernardo Micherif Carneiro
bernardomcarneiro@yahoo.com.br



O Afeto Da Indignação Como Resposta Frente À Posição De Indignidade

SILVANE CAROZZI

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

Em seu texto “A salvação pelos dejetos”, Miller nos possibilita uma leitura da sublimação na vertente do gozo – não daquele sublimado pela Coisa, o gozo reduzido à falta, à castração, mas sim em sua vertente de crueza. Foi preciso que a psicanálise aparecesse com sua promessa de salvar pelos dejetos para que se percebesse que, até então, só se havia procurado a salvação pelos ideais. O que é o dejeto? “O dejeto é o que os alquimistas chamavam de caput mortuum. É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva” (MILLER, 2010, p. 19). 

Essa definição nos remete à formulação que Lacan dava à sublimação: “elevar o objeto à dignidade de Coisa”. Para Miller, o que ele designa como a Coisa já é uma versão sublimada do gozo. O gozo como tal, no entanto, é nu e cru, não tem a dignidade com que se recobrir. Trata-se do gozo “rebaixado à indignidade do dejeto”. Nessa perspectiva, elevar o gozo à dignidade da Coisa estaria na possibilidade de entrelaçá-lo ao Outro, desde que esse gozo não seja encarnado por um Outro de forma maciça, mas que mantenha “o esplendor vazio da Coisa”. “Condição necessária para que o sujeito faça de sua posição de dejeto algo novo, inédito, construindo uma possível conexão com o Outro” (MILLER, 2010, p. 20).

 

Da tríade Ódio, Cólera e Indignação, pretendemos destacar as nuances da indignação buscando uma diferenciação entre esta e a posição de objeto indigno a partir de três fragmentos “clínicos” [1].

 

Lacan, no Seminário 7: a ética da psicanálise, trata do afeto da indignidade a partir da sublimação, da pulsão e de das Ding. A sublimação seria “elevar um objeto à dignidade da Coisa” (LACAN, 2008, p. 140-141). Ele faz referência a algama, objeto a como causa de desejo, ao contrário de um objeto que se posiciona como obturador de uma falta, estando fora de sua posição de dignidade. Ele destaca que a raiz de agalma se aproxima do “termo ambíguo que é agamai, ‘eu admiro’, […] que vai em direção a agaiomai, que quer dizer estar indignado” (LACAN, 1992, p. 145).

 

Lacan retoma a questão da dignidade relacionando-a ao desejo, o agalma, esse objeto “supervalorizado tem a função de salvar nossa singularidade. […] Ele faz de nós algo distinto do sujeito da fala, algo único, de inapreciável insubstituível, afinal, que é o verdadeiro ponto onde podemos designar aquilo a que chamei a dignidade do sujeito” (LACAN, 1992, p. 173). A singularidade é a relação erótica privilegiada com um objeto que “salva” a dignidade, ao fazer do sujeito uma coisa única  (LACAN, 1947/2003, p. 115).

 

Se a singularidade está na base da dignidade, por outro lado, “a indignação, como afeto de um corpo individual ou político, surge quando o singular é rechaçado ou desconhecido e, com isso, é tocado algo da juntura íntima do sentimento de vida” (MORAGA, 2018).

 

No Seminário 8: a transferência, a indignidade é designada como uma resposta frente a uma afronta à dignidade, tal como ele indica no comentário do choque sofrido por Hamlet: “Será que, respondendo à estranha iniquidade do gozo materno, uma certa hubris (Hybris) não responde aqui, traída pela forma que assume aos olhos de Hamlet o ideal do pai?” (LACAN, 1992, p. 277). Esse pai era o ideal do cavaleiro, um homem que atapetava de flores o caminho a ser percorrido pela rainha e que afastava de seu rosto o mínimo sopro de vento. Hamlet conhece o pai como o homem ideal. A afronta que representa o assassinato do pai investe Hamlet de indignação. Para ele, a figura do pai foi aviltada tanto pelo assassino como pela sua mãe, que parece lhe consentir com as ações em Elsinor.

 

Sabemos que a peça começa pouco depois da morte misteriosa de um rei muito admirável, o ideal tanto de rei como de pai. A versão de sua morte é que ele foi picado por uma serpente em um pomar (orchard). Alguns meses depois, a mãe de Hamlet desposou o cunhado, Cláudio. E, ainda mais, o pai que aparece no terraço de Elsinor, como ghost, “um fantasma”, para lhe revelar em quais condições de traição dramática se operou, lhe diz que foi efetivamente um atentado (LACAN, 2016, p. 262).

 

A partir desse encontro com o ghost surgem muitos sentimentos: “de usurpação, de rivalidade, de vingança, e mais ainda, da ordem expressa recebida de um pai admirado acima de tudo. Seguramente, em Hamlet tudo está de acordo para que aja, e ele não age!” (LACAN, 2016, p. 266). Mas por quê? De certo modo, há um mandamento do supereu materializado por esse pai que retorna do além-túmulo para lhe ordenar a vingança. Contudo, há outra tendência imperativa, a de querer defender sua mãe e guardá-la para si. É nesse ponto, diz Lacan, que tocamos em alguma coisa de essencial, que torna esse ato difícil e essa tarefa repugnante para Hamlet: o seu desejo (LACAN, 2016, p. 302).

 

O desejo de Hamlet nos leva à cena da alcova, onde o filho está cara a cara com a mãe. “Não há outro momento em que a fórmula o desejo do homem é o desejo do Outro seja mais tangível” (LACAN, 2016, p. 309). Fato é que Hamlet não se endereça ao Outro, com sua própria vontade, mas como suporte e representante do pai, da ordem, do pudor e da decência. A indignação é uma resposta frente à afronta à dignidade do pai, mas ele fica suspenso entre a iniquidade do gozo materno e o ideal encarnado pelo pai assassinado. Ao se endereçar ao Outro, a resposta que recebe da mãe é: “Sou o que sou, não tenho jeito, sou uma verdadeira genital […] luto não é comigo” (LACAN, 2016, p. 309). Não podemos deixar de constatar que é pelo viés do luto que o objeto entra em jogo. Vimos ao longo de toda a cena que se trata do “drama de que haja um objeto digno e um objeto indigno. Senhora, um pouco de asseio, por favor, afinal, alguma diferença há entre esse deus e esse lixo!” (LACAN, 2016, p. 309-310).

 

Mas que drama é esse? “O drama de Hamlet é o encontro com a morte”, diz Lacan. É preciso matar Cláudio. O assassinato a ser consumado é um assassinato justo” (LACAN, 2016, p. 309-316). Mas esse assassinato não se executará a não ser quando Hamlet é golpeado de morte. Seu ato se situa em seu termo no encontro último de todos os encontros, que só tem sentido em relação a um sujeito enquanto fala e enquanto é estruturado numa relação complexa com o significante. O sentido daquilo que Hamlet conhece pelo pai é a irremediável, insondável traição do amor mais puro, o amor desse rei que poderia ter sido um grande cafajeste, mas que, com sua mulher, afastava de seu rosto o mínimo sopro de vento. E a absoluta falsidade daquilo que apareceu a Hamlet como o próprio testemunho da beleza, da verdade, do essencial. Aí está a resposta, diz Lacan. “A verdade de Hamlet é uma verdade sem esperança. Não há vestígio, em todo o Hamlet, de uma elevação para algo que estaria mais além, Salvação, redenção” (LACAN, 2016, p. 321).

 

Hamlet é, então, uma tragédia?

 

Lacan nos informa que, para Hegel, a tragédia cristã, situada na “Fenomenologia do espírito”, está ligada à reconciliação, à redenção. A tragédia antiga sempre acaba sem remissão; na verdade, nesse Hamlet não aparece o menor traço de uma reconciliação ou uma redenção qualquer, pura tragédia (LACAN, 1992, p. 276).

 

Encontramos também em Schreber a indignação como uma resposta frente à afronta à sua dignidade. Sabemos que, ao ser tocado pelo símbolo da presidência, será logo arrebatado pela ideia que seria belo ser uma mulher no momento da cópula. Essa ideia seria tratada com a maior indignação caso surgisse em plena consciência.

 

Lacan (1998, p. 574) dirá que, em Schreber, após o desencadeamento:

 

“Sem dúvida, não lhe teria escapado, três anos depois (1911- 1914), a verdadeira mola da inversão da posição de indignação que a ideia da Eviração (Entmannung) inicialmente suscitara na pessoa do sujeito: e que, muito precisamente, nesse intervalo o sujeito havia morrido.”

 

Entre o momento de indignação frente à eviração até sua aceitação, o sujeito estava morto. Schreber descreveu essa fase como o “tempo sagrado” é uma morte em vida. Não apenas ele se sentia morrendo várias vezes por dia como chegou a ver no jornal o anúncio de sua própria morte.

 

Nesse tempo, Schreber não apenas era vítima do processo de feminização que se iniciava, mas também de despedaçamento de membros, esfacelamento de órgãos, liquefação dos genitais, cadaverização, fenômenos que testemunham a incidência do gozo do Outro, mortífero e destruidor, com todas as suas características – dilaceramento e angústia avassaladores. O próprio Schreber se descreve como “um cadáver leproso que carrega um cadáver leproso”. Descrição brilhantíssima pontua Lacan: “de uma identidade reduzida ao confronto com seu duplo psíquico, mas que, além disso, deixa patente a regressão do sujeito, não genética, mas tópica, ao estádio do espelho, na medida em que a relação com o outro especular reduz-se aí a seu gume mortal” (LACAN, 1998, p. 574).

 

Convém assinalar a atenção que Lacan dispensa à experiência de morte de Schreber em seu trabalho de reconstrução. Ela teria um papel fundamental na virada que teria se operado, da indignação e do horror inicial à ideia de eviração ao posterior consentimento, da volúpia à beatitude. É em torno da morte, que Schreber organiza a sua reconstrução:

 

“podemos colocar sob o signo da criatura o ponto decisivo de onde a linha escapa em suas duas ramificações, a do gozo narcísico e a da identificação ideal… E também, nesse caso, a linha gira em torno de um furo, precisamente aquele em que o assassinato de almas instalou a morte (LACAN, 1998, p. 577).”

 

Em suas Memórias, Schreber indaga: “Gostaria de ver qual o homem que, tendo de escolher entre tornar-se um idiota com aparência masculina ou mulher de espírito, não preferiria a última alternativa” (SCHREBER, 1985, p. 178). Encontram-se, pois, duas posições do sujeito em relação à fantasia “ser uma mulher”: a primeira é de indignação, uma vez que essa fantasia é articulada a um “para um homem”, ou seja, ser objeto de abusos sexuais; a segunda é a de aceitação, em que se trata, para Schreber, de ser Mulher de Deus com o objetivo de uma procriação, através da qual garantirá a lei e o bom funcionamento do Universo. Ele sacrifica o ideal da virilidade pelo ideal de redenção.

 

Tomado na experiência enigmática do desejo do Outro, na feminização produzida pelo inconsciente, Schreber precisou inventar uma via que tornasse mais aceitável essa solução. A metáfora delirante Mulher de Deus vem, então, suprir o furo no simbólico correspondente a Verwerfung, na medida em que ela lhe permite, ainda que assintoticamente, como observa Freud, vir um dia a procriar. Pela eviração sempre postergada, Schreber se mantem numa temporalidade eternamente adiada. “Uma solução elegante” nos diz Lacan  (LACAN, 1998, p. 578).

 

Encontramos a posição de objeto indigno no caso apresentado por Philippe de Georges em seu livro L’Autre Méchant (2010). Trata-se de uma senhora, nomeada de Madame S., que procura o analista quando soube da morte de sua analista anterior. A transferência havia se estabelecido a partir da erudição da analista e sua cultura literária. Foi no contexto dessa perda que Madame S. precisava encontrar um interlocutor que acolhesse seu profundo sofrimento. Contudo, esse luto, tão difícil de elaborar, remetia a uma outra perda, a de sua jovem tia, que, para ela, era um ser de exceção; de uma completa feminilidade, feita de graça e pureza, inatingível pelas mesquinharias da vida. O laço entre elas era tão intenso quanto exclusivo, eleito em todos os sentidos do termo. Contudo, a morte dessa tia rompe esse laço.

 

A perda da analista é um golpe gratuito que coloca a nu, definitivamente, a solidão radical e a ausência de recursos desse sujeito. O esgotamento físico e moral é permanente. O corpo é uma fonte difusa de sofrimento, com cefaleias que se impõem violentamente desde a hora em que ela acorda e que se tornam autênticas enxaquecas. Nenhum tratamento medicamentoso apazigua realmente, exigindo o isolamento total no silêncio e na escuridão. Madame S. as conhece desde a adolescência e dirá, mais tarde, que essas enxaquecas constituem um refúgio: a violência da dor física distrai a dor moral e as ideias suicidas obsedantes.  (FERREIRA, 2014, p. 194-195).

 

Devido ao seu grande sentimento de rejeição e de hostilidade, na juventude, Madame S. foi estudar longe de tudo o que lhe poderia ser familiar. Era preciso tomar a contramão da família puritana e hipócrita. Desde muito cedo, passou a sair para beber até se embriagar. Muitas vezes chegou ao coma alcoólico. Com isso, multiplicava suas experiências sexuais, as mais cruas, e o excesso era um desafio, mesmo se essas aventuras só fizessem aprofundar seu desespero e seu sentimento de rejeição. O ódio de si se alimentava, sem parar, de situações feitas para confirmá-lo em seu ser de sujeira e nulidade (GEORGES, 2010, p. 50).

 

Nesse caso, constata-se a presença do excesso como manifestação autodestrutiva. Isso culminava sempre em um ódio de si mesma, que alimentaria sem cessar as situações que confirmariam seu ser de pecado e de vazio (FERREIRA, 2014, p. 195-196).

 

Em relação à questão do feminino, merece destaque o trabalho que ela nomeia de “pesquisa”.  Madame S. é reconhecida por sua tese, publicada, sobre Joana d’Arc e pelos trabalhos sempre singulares, que apresenta com paixão. Suas monografias falam sobre as mulheres que tiveram uma vida fora do comum – assassinadas, envenenadas, decapitadas após terem desafiado poderes malignos e poderosos tirânicos (FERREIRA, 2014, p. 197).

 

De acordo com de Georges, quaisquer que sejam os afetos e os tormentos do sujeito, o que está aí em filigrana culmina na seguinte formulação: o Outro é definitivamente um lugar de ameaça e precisa ser denunciado. Esse postulado é o núcleo: aí reside, no fim das contas, um gozo maligno do qual o sujeito arrisca ser o objeto, mesmo se for a título de perspectiva. É sempre possível que o perigo se realize (GEORGES, 2010, p. 56).

 

Nesse sentido, a aposta do analista para Madame S. visa essencialmente fazer com que essa perspectiva mortal permaneça assintótica. Se alguma coisa deve ser criada, é uma alternativa para o suicídio.

 

No debate que se seguiu a essa apresentação, Alexandre Stevens (2010) aponta para o fato de que, no lugar de um delírio, Madame S. buscou a solução via escrita literária. A produção literária constitui uma de suas soluções por meio da construção do saber. Ela trata, assim, o Outro mau, de um modo universitário. Sua solução reside no fato de ser pesquisadora e de ser uma combatente que não cede diante do mundo mau. Uma solução descrita por seu analista como uma suplência.

 

Tratamos aqui a indignação, em três diferentes posições subjetivas, como uma resposta frente a uma afronta à dignidade. Cada uma delas, à sua maneira, buscando “elevar o objeto à dignidade de Coisa”, condição necessária para transformar “sua posição de dejeto em algo novo, inédito, construindo uma possível conexão com o Outro”.

 

 

 

 

 

 


Referências
FERREIRA, Maria de Fátima. A dor moral da melancolia. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014. p. 193 – 194.
DE GEORGES, Philippe. “L’Autre Méchant: Six cas cliniques commentés”. In: La Bibliotheque Lacanienne. Dirigido por Jacques-Alain Miller e Editado por Christiane Alberti. Paris: Navarin Éditeur, 2010..
LACAN, Jacques. “A psiquiatria inglesa e a guerra” (1947). In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 106-126.
LACAN, Jacques. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1955-1956). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 574.
LACAN, Jaques. Sete lições sobre Hamlet. In: ______. O Seminário, livro 6:  O desejo e sua interpretação(1958-1959). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016, p. 255-379.
LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
MILLER, Jacques-Alain. “A salvação pelos dejetos”. Revista Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo, n. 67, dez. 2010, p. 19-26.
MORAGA, Patrícia. “Pinceladas de dignidade”. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2018/08/. Acesso em jun. 2019.
SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 178.
[1] Dois deles, Hamlet e Schreber, são fragmentos literários.

SILVANE CAROZZI
Graduada em Filosofia e Psicologia, mestre em Letras e doutora em Psicologia. Analista praticante, membro correspondente da EBP – Seção Minas. Av. do Contorno, 9.215, sl. 2017 | Prado – Belo Horizonte/MG | CEP: 30110-941



Quem se ocupará das crianças? A solidão e os gadgets na família atual – Nádia Laguárdia de Lima / Juliana Tassara Berni / Helena Greco Lisita

NÁDIA LAGUÁRDIA DE LIMA / JULIANA TASSARA BERNI / HELENA GRECO LISITA

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

Este artigo apresenta uma reflexão sobre as transformações acarretadas nas relações familiares a partir da cultura digital. Tal reflexão surge a partir de falas de adolescentes em grupos de conversação oferecidos em escolas públicas de BH pelo laboratório “Além da tela: psicanálise e cultura digital”Chamou-nos a atenção a frequência com que os adolescentes afirmam ter pais ausentes ou pouco interessados por suas vidas. O uso excessivo dos dispositivos eletrônicos, feito pelos adolescentes, é justificado por eles como forma de suprir essa ausência dos pais. Entretanto, para alguns adolescentes, o desinteresse ou a falta de investimento dos pais nos filhos é consequência do fascínio que esses aparelhos digitais exercem sobre os pais. Consideramos que a adolescência é o tempo lógico de separação da autoridade paterna, momento em que os jovens percebem que os pais falham. Assim, questionamos se o fascínio pelas tecnologias seria apenas uma das formas atuais de justificar a falha dos pais ou se haveria algo de novo na família contemporânea.

 

O projeto “Conversação nas escolas: adolescentes e redes sociais”[1] é desenvolvido em escolas da rede pública de Belo Horizonte. Esse projeto, como o próprio nome revela, utiliza a metodologia de Conversação, tal como proposta por Jacques Alain-Miller, e visa a intervir junto aos adolescentes, criando espaços de reflexão nos quais a utilização do ciberespaço possa ser interrogada pelos jovens.

 

Embora a cultura digital seja o tema central dos encontros, ponto de partida das conversações, a oferta da palavra permite que outros assuntos caros à adolescência apareçam. As relações familiares são temas recorrentes em muitos grupos.

 

Em um dos grupos, todos os adolescentes têm pais separados, moram com a mãe e têm pouco ou nenhum contato com o pai. Eles se queixam de não poder ficar muito tempo conectados à internet devido ao excesso de tarefas domésticas. Alguns se queixam, ainda, da falta de atenção da mãe, do seu vício pelas redes sociais e da preferência pelos irmãos mais novos.

 

Em outro grupo, João diz: “meu pai me odeia, só sabe me criticar”. Márcia comenta: “eu sou adotada, meus pais biológicos são drogados, meu pai morreu e minha irmã é puta”, “até um ano de idade eu era totalmente largada, até que uma vizinha começou a cuidar de mim”. Esses adolescentes se designam, de forma irônica, como “os anjos da escola” e dizem que “não conseguem sair da internet”.

 

O tema da família foi também recorrente em outro grupo, no qual os adolescentes parecem se situar entre a infância e a adolescência. A animadora da conversação pergunta se eles percebem alguma diferença em suas relações com os pais, agora que estão na adolescência, e se as redes sociais interferem nessas relações. Pedro diz que a vida familiar mudou muito por causa do telefone: “Na minha infância, meus pais não sabiam o que era o telefone nem nada, e agora eles vivem por isso. Não tem mais aquilo de conversar, é tudo registrado em fotos. A vida da minha irmã é toda registrada em fotos. Não tem mais o diálogo que tinha antes, não tem mais aquela relação de conversar, de boca. Eu me sinto sozinho porque agora tudo é na base do telefone. Não é mais como antes. Eu nunca fui de ficar muito na rua, então eu conversava muito com meus pais. Hoje eles vivem a base de tecnologia. Sempre com o telefone na mão, sempre registrando o que minha irmã faz”.

 

Em seguida, todos os adolescentes do grupo começam a falar sobre como veem as relações de suas mães com a internet: “Minha mãe me tira do computador para ela ficar”. “A minha queima o arroz”. “Minha mãe fica o dia inteiro jogando, pode cair uma bomba do lado dela que ela nem vê”. A animadora retoma: “Vocês acham que era diferente quando vocês eram crianças?”. Marcos responde: “Não é a idade que tá atrapalhando, é a tecnologia”.

 

Flávio toma a palavra: “Minha mãe é chata demais. Toda hora ela me chama e me pergunta ‘como que faz isso aqui no celular?’. E o pior é que ela aprende num minuto”. O colega interpela: “Ué, você queria que ela demorasse pra aprender?”. Flávio, então, explica: “Claro. Eu queria que ela ficasse conversando comigo. Minha mãe nem conversa comigo direito”.

 

Eles seguem reclamando dos pais, mas de forma banalizada, rindo e se zombando mutuamente. A animadora pede que expliquem melhor suas queixas. Eles explicam que o que está atrapalhando não é a idade e nem o número de filhos, é a tecnologia “que atrapalha a família inteira”. A animadora pergunta o que eles fazem diante disso, e um participante diz: “Eu falo ‘para de mandar GIF, mãe’”. Mário diz: “Eu já acostumei. Eu fico no computador e ela fica no telefone. Mas a gente convive”. Lucas fala rindo: “A minha mãe fala que está ocupada cuidando da minha irmã, mas na verdade ela está com o celular lá. Ela nem está vendo o que minha irmã está fazendo. A minha irmã pode afogar lá atrás dela que ela nem vê”.

 

O adolescente e a família

Lacan (1969/2003) afirma que a família, apesar de todas as transformações sociais vividas ao longo dos tempos, continua exercendo função imprescindível na constituição subjetiva, a de transmitir um desejo não anônimo. Destaca que os cuidados maternos trazem a marca de um interesse particularizado e o nome do pai é o vetor da encarnação da lei no desejo. A função do pai é a de impor um limite ao gozo da mãe. Assim, a função da família é a de promover um sujeito desejante. Em outro texto, de 1968, Lacan ressalta que toda formação humana – e aí se inclui a família – tem, por essência, a função de refrear o gozo.

 

Posteriormente, Lacan afirma que a perda de gozo é estrutural e que o impasse sexual leva à construção de ficções “que racionalizam a impossibilidade da qual provém” (1972-1973/2003, p. 531). Sendo assim, cada família constrói as suas ficções para dar forma ao que se opera na estrutura. Ao mesmo tempo, ela tem a função de reforçar essa contenção estrutural do gozo, viabilizando o surgimento do desejo.

 

As ficções sobre a família são, portanto, construções simbólicas diante do traumatismo originário que está na origem de todo falasser. Como afirma Bassols (2016), toda família é um aparato de gozo, um modo de resguardar o segredo do gozo como inominável. Ao escutar cada adolescente falar de sua família, é possível ter acesso a uma trama discursiva tecida em torno desse inominável.

 

A puberdade desvela a impossibilidade de a trama simbólica tecida na infância recobrir o real do gozo. O púbere é confrontado com a inexistência da relação sexual e com a inconsistência do Outro, o que o leva a se desligar da autoridade dos pais. Os adolescentes percebem que os pais falham. Assim, questionamos se o uso da tecnologia seria apenas a forma atual de justificar a falha dos pais, desvelada no tempo lógico da adolescência, ou se haveria algo de novo. O uso excessivo dos dispositivos tecnológicos pelos pais estaria interferindo na função que eles exercem junto aos filhos?

 

Nossa hipótese é a de que o uso excessivo dos aparelhos digitais tenha contribuído para uma maior indiferença entre pais e filhos, tanto pelo objeto de gozo utilizado, que é comum a todos, quanto pelo excesso de uso a que todos estão submetidos. Pais, mães e filhos estão capturados pelo poder fascinante dos celulares, objetos mais-de-gozar, de forma indistinta. Mas quais seriam os efeitos subjetivos desse apagamento da diferença geracional e da ascensão do mais-de-gozar sobre as famílias?

 

 

A civilização atual e seus efeitos sobre a família e os laços sociais

Lacan (1970/2003) destaca que a civilização atual está marcada pela ascensão ao zênite social do objeto a e sustentada não pela renúncia ao gozo, mas, ao contrário, pelo seu imperativo. Em 1972 ele nos apresenta o discurso do capitalista, no qual o lugar de agente é ocupado pelo sujeito contemporâneo e por sua liberdade de consumo. O que está em questão não é mais a falta do sujeito, mas sua demanda enquanto consumidor. A máxima “tudo é possível” demonstra que o direito ao gozo se tornou dever de gozar e o mercado deve produzir produtos para todas as demandas do sujeito.

 

Acompanhamos, na atualidade, o declínio do pai, a queda da transmissão vertical fundada no Ideal e a promoção da horizontalidade das identificações e dos laços sociais. A família assume o lugar de uma igualdade formal, sem princípio de garantia, sem hierarquia ou autoridade. Além da horizontalidade do laço, há uma mudança na relação com o gozo. Os termos se inverteram: se a família tentava ordenar o real do gozo, o real do gozo é que reordena a família hoje (BASSOLS, 2016). Vinciguerra (2017) comenta que, se o gozo era ocultado pela instituição familiar, ele ressurge claramente na atualidade, pois a esfera do privado busca se exibir e a reivindicação do direito a gozar se afirma livremente.

 

Lacan (1968/2003) comenta que não existe gente grande e que devemos reintroduzir nossa medida ética através do gozo. Laurent acrescenta que “o que separa a criança da pessoa grande é a ética que cada um faz de seu gozo” (1994, p. 32). O adulto é aquele que se responsabiliza pelo seu modo de gozo. A época atual é caracterizada pela “criança generalizada” (LACAN, 1968/2003), ou seja, ninguém se responsabiliza pelo seu modo de gozo.

 

Na contemporaneidade, há uma tendência à objetalização do sujeito que desvela a condição da criança como objeto resto de um desejo, não mais objeto fálico do par parental. As mães não estão mais ocupadas com os seus filhos, mas sim com os seus gadgets, deixando mais clara a posição da criança de objeto resto do desejo materno.

Se não há gente grande, quem se ocupará das crianças hoje? O outro anônimo do espaço virtual? Alguns adolescentes mergulham na virtualidade como uma forma de se manterem numa posição de alienação ao Outro, evitando a solidão cada vez mais marcante na contemporaneidade. Assim, mantêm-se no gozo com as suas fantasias, através dos jogos virtuais que lhes oferecem a oportunidade de se sentirem invencíveis, fortes e destemidos, ou através das redes sociais que os mantêm ligados, conectados aos amigos virtuais, na ilusão de não estarem sós. Segundo La Sagna (2016), “esses objetos de consumo vão entrar em concorrência com outros objetos e outras satisfações enodando fantasias e usos regressivos do objeto e saturando, por vezes, o local e o uso possível do objeto separador para o sujeito”.

A oferta da escuta como uma saída aos impasses contemporâneos

Os adolescentes, em sala de aula, não podem falar do seu pior. As conversações permitem que o adolescente fale daquilo que ninguém quer ouvir, possibilitando um tratamento simbólico ao mal-estar que perturba o laço social. Como salienta Vieira, (2012, p. 10), “sempre é possível encontrar um destino aos extremos do dizer”. Esse espaço presencial tem alguém “de carne e osso” disposto a escutá-los, interessado no que eles dizem. O espaço da conversação não é o lugar anônimo do desabafo, mas um lugar onde um sujeito toma a palavra e se implica nela. Dessa forma, o adolescente pode sair da posição de objeto e se responsabilizar pelo seu modo de gozo.

 

Buscamos, via transferência, levar o adolescente a construir a sua rede de sentido, articulando as experiências on-line com as off-line. A transferência permite um tratamento ao gozo, uma vez que produz uma nova relação com o objeto, mas também um novo tipo de objeto, que é, para Lacan, o objeto causa do desejo (LA SAGNA, 2016).

 

Procuramos ficar atentos ao que captura cada adolescente na tela, aos efeitos dessa captura no próprio corpo e nos laços sociais. Como cada adolescente é afetado (no nível do afeto) pelas imagens e palavras que emergem da tela? O que cada um inventa com esses dispositivos para dar tratamento ao gozo?

 

A experiência com os adolescentes nas conversações nos mostra que, diante da desorientação advinda da falta de referenciais simbólicos sustentáveis na atualidadeeles parecem não recusar o Outro. Ao contrário, tentam, cada um à sua maneira, fazê-lo consistir. O meio virtual torna-se, nesse contexto, propício para a busca de identificação de pares e formação de grupos, servindo como ancoragem na travessia até a fase adulta (COSENZA, 2016). Percebemos o quanto é importante escutar esses adolescentes, permitir que a palavra se enlace ao gozo. João marca a importância desse espaço de escuta: “O que a gente está falando aqui, tem gente que nunca consegue falar”.

 

 

 


Referências
BASSOLS, M. “Famulus”. InRevista FAPOL on-line. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/wp-content/uploads/2016/10/lacan21_2016_volume2_PT-1.pdf. 2016. Acesso em jun. 2019.
COSENZA, D. “A iniciação na adolescência: entre mito e estrutura”. InCIEN Digital, 19 mar. 2016. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/n19/hifen.html. Acesso em jun. 2019.
LA SAGNA, P. “A adolescência prolongada, ontem, hoje e amanhã. Almanaque on-line. IPSM, n. 16. 2016. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/a-adolescencia-prolongada-ontem-hoje-e-amanha. Acesso em jun. 2019.
LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003
______. (1968). “Alocução sobre as psicoses da criança”. InOp. cit., p. 359-368.
______. (1969). “Nota sobre a criança”. InOp. cit., p. 369-370.
______. (1970). “Radiofonia”. In: Op. cit., p. 400-447.
______. (1972-1973). Televisão. In: Op. cit., p. 508-543.
______. (1972/1978). “Du discours psychanalytique”. In: Lacan in Itália (p. 32-55). Milão: La Salamandra.
LAURENT, E. (1994). “Existe um final de análise para as crianças”. In: Opção Lacaniana, n. 10. São Paulo: Eolia. p. 24-33.
LIMA, N. L. et al. “A identificação na contemporaneidade: os adolescentes e as redes sociais”. In: aSephallus, revista eletrônica do núcleo Séphora. Rio de Janeiro: vol. 6, nº 12. mai-out, 2011. Recuperado em:          http://www.isepol.com/asephallus/numero_12/artigo_01.html. Acesso em jun. 2019.
VINCIGUERRA, R. P. “A psicanálise em relação às famílias”. In: Almanaque, revista eletrônica do IPSM-MG. n. 18. 2017. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/a-psicanalise-em-relacao-as-familias/. Acesso em jun. 2019.
[1] Projeto vinculado à UFMG realizado pelo “Além da tela”, coordenado pela Profª Nadia Laguárdia de Lima. As conversações em questão foram animadas por Helena Greco e Juliana Berni.

Nádia Laguárdia De Lima / Juliana Tassara Berni / Helena Greco Lisita
Nádia Laguárdia de Lima Professora adjunta IV do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre e doutora em Educação pela UFMG. Pós-doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório Além da Tela: psicanálise e cultura digital | nadia.laguardia@gmail.com

Juliana Tassara Berni Psicóloga, mestre e doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Integrante do Laboratório Além da Tela: psicanálise e cultura digital | jutassara@hotmail.com

Helena Greco Lisita Psicóloga, mestre e doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Integrante do Laboratório Além da Tela: psicanálise e cultura digital | helenagrecolisita@gmail.com