O que você vê quando me vê? Eis aí uma questão para todos, mas a quem, no mais íntimo da interrogação sobre si, se encontra reanimado quando a invasão traumática permanece ligada a um outro, a outros, àquilo que sua imagem, seu rosto, reenvia a cada um.
Essa é uma questão que coloca com determinação Primo Levi, em busca de reencontrar o que teria podido dar conta, “restituir o fundo de um ser humano” (LEVI, 1989. p. 32); um mais além disso que pode dizer um documentário, a história. Ele se encontrou um dia, “diante dos traços de um homem do outro lado” (Ibid.), alguém que teve que testemunhar, diante dos tribunais, sobre o que fez ou viu em Auschwitz, uma pequena vila tranquila (Ibid. p. 31.). Encontrou muitas semelhanças consigo, idade, formação, trabalho na mesma fábrica; ele, no interior do arame farpado e, o outro, livre, voluntário nesse emprego: “Era quase eu, um outro eu mesmo do avesso” (Ibid. p. 32). Ele se interessava por tudo o que pudesse aprender desse químico alemão, como se ele houvesse podido aprender qualquer coisa sobre si mesmo. Mas, no final das contas, ele jamais pode reencontrá-lo: “Eu experimentava uma repugnância complexa na qual a aversão não era senão um dos componentes” (Ibid. p. 37). Ele permaneceu com essa questão lancinante: o que há dele em mim?
Também se interroga infinitamente para saber por que não podia reconhecer o rosto do SS que comandava o campo de Auschwitz e que, entretanto, estava lá presente todas as manhãs, ao chamado com os outros SSs. É que, escreveu, eles “eram todos parecidos, seus rostos, suas vozes, suas atitudes: todos deformados pelo mesmo ódio, a mesma cólera” (Ibid. p. 109.), mas também, acrescenta, por sua “inclinação à obediência curvada” (Ibid. p. 111). Lacan sublinha bem isso: o que se passa entre dois sujeitos excede o laço discursivo e traz consigo, antes de tudo, “o perfil, a projeção, a silhueta”. Certamente ele o diz do lado disso, de que nós “adoramos em um ser amado” (LACAN, 1973, s/p.), mas nós o entendemos também para aquilo que abominamos naquele que nos odeia.
Levi avança em sua reflexão sobre o outro nele mesmo nos contando uma história, a de um jovem herdeiro de muitas gerações de fabricantes de espelho. Jamais eles se desviaram da tradição que obrigava a repetir exatamente os mesmos espelhos planos, esses supostamente capazes de dar a verdadeira imagem – mesmo se ela for virtual – do mundo e, particularmente, do rosto dos humanos. Desde sua juventude, se dedicou a aprender bem sua profissão, mas, sem que seu pai soubesse, concebeu espelhos bem mais inventivos, que transformavam a realidade à qual cada um se habituava, e se angustiava quando era preciso retornar às imagens do mundo compartilhado! Mas sua esperança secreta era de realizar um Mimet, um espelho metafísico! Seria um espelho que, fora das leis da ótica, reproduziria sua imagem tal como ela fosse vista por uma pessoa que estivesse à sua frente (Cf. LEVI, 1989, p. 67)! Seria suficiente, para tanto, colar esse espelho na face da pessoa à frente e ver-se ali, como o outro supostamente o veria. Ele se deu conta de que essa imagem não tinha nada em comum com a imagem que cada um se gaba de ter no olhar do outro. Assim, foi um fracasso para ele e para seu negócio; ninguém queria se ver de um modo diferente daquele que se pensa!
O rosto, é o acontecimento
Com Levinas, a experiência de um outro toma a forma do rosto. Não aquele da plástica nem dos traços, que não são senão a “máscara” (LEVINAS, 1995. p. 44), mas aquele que leva o que se encontra na alteridade e que marca, impacta, por sua vulnerabilidade e seu desnudamento (Cf. Ibid.). Com o rosto, a dimensão que se apresenta ao sujeito não é aquela que está em jogo nas relações sociais, mas, de imediato, o que se coloca como uma questão ética (Cf. LEVINAS, 1991. p. 191). O rosto é “uma presença viva, ele é expressão”, isso que leva Levinas a precisar que o “rosto fala” (LEVINAS, 2000, p. 61). Se a manifestação do rosto é aqui apresentada como um discurso, é, entretanto, um discurso sem palavra na manifestação da exterioridade.
A alteridade, esse face a face, em que se pode manifestar “a epifania do rosto” (Cf. LEVINAS, 1991, p. 192.), é esse despertar ao outro homem, sua proximidade. Mas esse em-face do rosto do outro inclui a não-in-diferença que faz com que cada um seja responsável por aquilo que o outro se tornará, por essa “morte invisível que encaramos no rosto do outro” (Ibid.) e que é também “minha responsabilidade” (Ibid.). Essa colocação faz daquele que se deixaria tomar pela indiferença o cúmplice da morte desse outro, ao deixá-lo morrer sozinho.
O cara a cara – mais precisamente no cara a cara – que confronta o rosto do outro é uma forma do insuportável da relação com o outro, porque isso que ele apresenta vai, in fine, além do que ele dá a ver nesse imediato, o limite do outro, sua morte. Ao ver no rosto do outro sua morte, eu não posso senão ver a minha. Assim, o reconhecimento do outro, sua acolhida, é, em si, um acontecimento e coloca, desde o início, “minha responsabilidade por ele” (Ibid. p. 113) e que “todo outro é único” (Ibid. p. 114), e, nesse sentido, a alteridade é assimétrica. Entretanto, um certo apagamento se produz por algum contorno próprio ao sujeito, que faz com que, apesar de cada um ser único, esses outros se movam em um mesmo espaço onde todos se parecem. A introdução da menor diversidade é aí rapidamente insuportável, a não ser que se encontre um significante para localizá-la, absorvê-la e fazer com que, de novo, no escoamento uniforme do tempo, tudo seja contido. O acontecimento, por seu caráter de surpresa, inscreve-se como ruptura e não encontra muito frequentemente uma primeira resolução senão quando colocamos nele um rosto. Não há nada pior do que uma ameaça sem rosto, cada uma podendo incluir eles todos. Nosso ambiente é saturado de rostos, em um mundo de imagens que nos invade e que faz com que um acontecimento seja, mais que nunca, marcado, colado a um rosto. Sublinhemos, aí, um ponto de coincidência com o que sustenta Levinas na sua concepção mais global do rosto: seu contexto não tem a ver com o sentido, mas com o fato de que ele está lá, surgido dele mesmo. Então, podemos avançar que o rosto é o acontecimento por excelência. Para além desse em si, o rosto, um rosto, se encontra enlaçado por cada um a um acontecimento. A extensão vai além do outro, e podemos escrever que um acontecimento tem o rosto do inferno, do Apocalipse, do horror, da guerra, ou, em contraponto, do amor, da paz, etc.
Acontecimento, contingência e responsabilidade
Com Lacan, um acontecimento, um acontecimento humano, é o que se passará, ou não, amanhã. Isso depende da contingência, de um futuro que pode advir. Que se possa dizer que haja uma parte previsível na contingência que pode surpreender. Entretanto, os acontecimentos humanos são tanto mais previsíveis quanto mais eles dependem da repetição. Lacan os relacionará a um fenômeno de estrutura (LACAN, 1973, s/p.).
O acontecimento, como indica a sua raiz latina – evenire –, é o que pode acontecer. De fato, um acontecimento é o que advém ou não em uma data e em um lugar determinados. Ele não apresenta uma característica neutra e se distingue do curso uniforme dos fenômenos da mesma natureza. Que se produza sempre alguma coisa depende da repetição, e não do acontecimento, pois o acontecimento é inesperado; ele é efeito de surpresa. Ele advém de uma ruptura, de uma descontinuidade temporal em uma cadeia. O acontecimento é datável, memorizável. Ele não tem sempre as mesmas causas, senão ele não seria mais um acontecimento. Por seu caráter excepcional, ele se reveste de uma importância determinante para o indivíduo ou a coletividade.
Tomado no seu sentido absoluto, ele se define por situações significativas que acontecem a um homem. Nesse sentido, ele é um efeito que se refere ao homem, e “não existe acontecimento sem indivíduo concernido” (GUYOTAT, 1984. p. 219-222). Essa é uma noção “antropocêntrica”, e não um dado objetivo (Cf. BASTIDE, 1968, p. 159-168). Para retomar a questão do rosto em seu laço com o acontecimento, o efeito a considerar não está no rosto em si – mesmo se ele se apresenta marcado pela tristeza, alegria, hostilidade, reprovação, doçura… –, mas na relação entre dois rostos, nisso que faz encontro e que escapa ao sujeito. Isso é tão mais evidente quando o rosto desse outro que advém concretamente nesse acontecimento não é habitual ao que constitui a passagem do tempo: um agressor, um desconhecido, um surgimento do real na natureza ou na tecnologia, mas também um familiar que se encontra em um estado que faz dizer que não o teríamos reconhecido!
Isso permanece no domínio da experiência, e nós devemos distinguir o fato do acontecimento, que existe realmente. Ele é tido como um dado do real, e não da experiência. O fato se inscreve em uma duração que pode ser explicada pela ciência, por exemplo pelo fato histórico, pelo fato sociológico. A elaboração científica do fato tenta reabsorver a dimensão única, singular do acontecimento, para torná-lo “expressão regular das regularidades” (Ibid.).
O acontecimento é isso que produz um efeito de surpresa, é também o que pode ameaçar um equilíbrio individual ou social. Também, o homem tenta não se deixar surpreender e inventa, para isso, uma ciência, aquela dos acontecimentos. Mas, que o acontecimento possa encontrar uma referência em uma ciência histórica ou prospectiva, tanto quanto na mitologia, em Deus, não indica que uma reconstrução secundária venha ocorrer. Para que um acontecimento, que surge do exterior da subjetividade, seja um acontecimento para um sujeito, é necessário que este último responda diferentemente da passividade. Caso esse acontecimento seja compartilhado, o sujeito deve atuar de modo que lhe ocorra perguntar-se sobre o fato de que esse acontecimento é isso que acontece com ele.
O acontecimento traumático: o acidente
Foi Aristóteles que pôs em evidência a noção de acidente, à qual ele deu destaques diferentes na evolução de seu pensamento. É na Física que o que é acidente ganha o sentido do que é raro e fortuito, escapando, então, e em parte, às categorias lógicas (Cf. VAN AUBEL, 1963, p. 400). Até então, na filosofia aristotélica, o acidente se opunha, na dimensão ontológica, à substância e à essência em uma perspectiva lógica. Se o acidente toca qualquer coisa do sujeito, ele não diz o que é. Nesse sentido, “é preciso admitir uma certa alteridade entre o sujeito e o acidente” (Ibid., p. 389).
O acidente é referido ao outro; é o que existe não em si mesmo, mas em um outro. Ele é essa parte fortuita, improvável e impensável que, no fluir dos acontecimentos, causa o mal encontro, a tiquê (Cf. LACAN, 2008. p. 57), o acaso infeliz. Mas isso pode ser também a evocação da fatalidade, do nada imotivado, como causalidades deslocadas desse sinistro imprevisível. É o acidente que, no acontecimento, é traumático[1].
A contingência faz com que o acidente, tanto quanto o acontecimento, seja o que acontece, mas que também poderia não ter se produzido. A contingência se opõe à necessidade que faz com que o acidente seja, antes de tudo, coincidência, e não responde nem a leis gerais nem a fatores de constância. O contingente é o incalculável nos efeitos que produz o acidente sobre um sujeito: é o que faz encontro.
Um acontecimento traumático concerne sempre um sujeito. Ele comporta, ao mesmo tempo, uma parte de real que depende do acidente, o indizível do encontro, e uma parte de subjetividade na qual o sujeito está engajado.
Se o acontecimento traumático é necessário para produzir seus efeitos em qualquer um, ele não é suficiente. Não é a intensidade do acontecimento, na referência a uma quantificação, que o faz traumático. É muito mais a especificidade que ele adquire para o sujeito a quem concerne. Assim, pode-se dizer que o acidente é único. Ele não o é em referência à repetição, mas é no sentido de que ele é Um para um sujeito: esse acontecimento, e não um outro. Ele é para um sujeito, e não para todos, entre todos os que atravessam a mesma experiência. Ele toma então, para aquele que se encontra traumatizado, uma dimensão de inefável, de incomensurável, de irredutível.
Escritura, alteridade, trauma
Em “O instante de minha morte” (Cf. BLANCHOT, 2002), oito páginas fulgurantes, escritas aos 87 anos, sobre fatos ocorridos 50 anos antes, Maurice Blanchot faz aparecer a aresta viva da marca que deixa o traumatismo no sujeito: ele pode revivê-lo anos depois com a mesma precisão, como se acabasse de acontecer naquele instante. Colocado diante de um pelotão de execução, ele se mantém em pé nesse face a face com a morte e com o olhar desse jovem tenente SS, que vai decidir sobre o instante do fim. Nesse instante, o jovem homem “experimentou então um sentimento de leveza extraordinária. Um tipo de beatitude. [..] O encontro da morte com a morte?”. Ele percebe, ali, o nascimento de uma “amizade sub-reptícia” (Ibid. p. 11) com a morte. Ele foi poupado enquanto tudo ao seu redor foi devastado, e o jovem SS lhe fez sinal para desaparecer. Ele não compreende, permanece esse rosto que o condenava e esse olhar que o agraciou. Enquanto ele se sentia, por uma fração de segundo, “liberado da vida” (Ibid. p. 15), ei-lo aí, agora, sob o peso da morte, enquanto ser vivo. Como se a morte fora dele pudesse, doravante, apenas chocar-se com a morte nele. “Eu estou vivo. Não tu estás morto”, conclui o jovem homem que acrescentava que restava o sentimento de leveza sob uma forma precisa: “o instante de minha morte doravante sempre em iminência” (Ibid. p. 17).
Para Blanchot, “a palavra não é suficiente para a verdade que ela contém” (BLANCHOT, 1949. p. 315). Nós, da nossa parte, diríamos que ela não é suficiente para limitar os efeitos do real revelado pelo encontro traumático. A escritura, como muito frequentemente, vem como suplência a esse fracasso da função da palavra; ela limita as devastações do real encontrado.
Para Blanchot, a escritura participa do olhar pelo fato mesmo de que a leitura coloca em jogo o escópico. É preciso, quando a palavra falta, que o corpo entre em jogo. Com a escritura, é pela vertente do olhar que o corpo se encontra implicado. Essa relação que Blanchot estabelece entre o olhar e a escritura é original e se encontra frequentemente na clínica pós-traumática. Esse olhar persiste em olhar o sujeito, seja nos sonhos traumáticos, seja nos olhares cruzados ao acaso dos encontros com os pequenos outros. Cada rosto pode conter o olhar daquele que te olhou no momento em que te salvou a vida.
Para todos aqueles que encontraram a via da escritura para tentar limitar os efeitos do trauma e que não podem mais escapar a essa passagem pelo escrito, se coloca um infinito da escritura. Está sempre a ser retomada. Quando o escrito pode encontrar um destinatário, um leitor, eis aí o autor reenviado a uma profunda solidão. A solidão que, agora, é escrever se tornou incessante. A solidão daquele do qual pensamos ser o mestre das palavras; tanto mais aquele do que para quem é preciso “escrever sem perturbar o silêncio” (Ibid. p. 66). Pois, sublinha muito justamente Blanchot, a maestria será de poder parar de escrever, salvo que: “escrever não tem seu fim no livro” (BLANCHOT, 1969, p. 624). Mas aí está: a escritura do real é também da ordem do impossível. O incessante é isso que não cessa de não se escrever. É uma das definições do real, tanto quanto aquela que o traumatismo revelou.
O apagamento do acontecimento
Em sua introdução à Scilicet, Lacan define a psicanálise como aquilo que ela nunca deixou de ser: “um ato ainda por vir” (LACAN, 1968, p. 9). Nós podemos colocar essa definição de Lacan em tensão com Blanchot, que fala de um “livro (sempre) por vir” (BLANCHOT, p. 303 et sq.), a escrever. Produz-se qualquer coisa que não se inscreve, que toca nisso que não se apaga: o trauma. Esse acontecimento que, ele, é suscetível de um verdadeiro apagamento.
Todo encontro traumático é superinvestido ao ponto de, algumas vezes, ocultar completamente toda implicação subjetiva. A escuta do sujeito deve se ater a extrair sua posição em relação a isso que se apresenta a ele como produto do acaso. Ocorre, para além de todos os recursos imaginários e identificatórios – do herói à vítima –, que a via pessoal, ética, os leva a retomar esse acontecimento de vida em uma análise. A psicanálise põe ênfase na “ética do bem dizer” e visa, através do trabalho de transferência, a fazer com que as questões levantadas pelo acontecimento se tornem questões colocadas pelo sujeito. Fazer do arbitrário de um acontecimento uma questão que, restituída em sua hystoire, faça com que o trabalho na transferência lhe permita abordar a questão do real de outra maneira, na sua relação ao ôntico.