A Rua De Cada Um

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

 

Supervisão clínico-institucional e orientação psicanalítica

Este trabalho se inscreve na perspectiva de uma experiência de supervisão clínico-institucional, em que foram acompanhadas as equipes da Rede de Atenção Psicossocial – com destaque para as conversações realizadas com a equipe do Consultório na Rua, dispositivo da Atenção Primária à Saúde para populações de rua – em direção à construção de saídas diante dos impasses dos trabalhadores na abordagem dos sujeitos em situação de rua.

 

A supervisão clínica-institucional tem uma função singular no trabalho das equipes no exercício do trabalho compartilhado. Ao supervisor cabe “a complexa tarefa de contextualizar permanentemente a situação clínica, foco do seu trabalho, levando em conta as tensões e a dinâmica de rede e do território” (BRASIL, 2007, p. 1).

 

A partir dessa diretriz política, o supervisor de orientação lacaniana é remetido ao campo da psicanálise aplicada, que, nesse contexto, se trata da clínica denominada “feita por muitos”. O que também lhe possibilita atuar em novos dispositivos em sua relação com a cidade, para além da psicanálise standard. Como afirma Teixeira (2010), há particularidades da psicanálise nos dispositivos em saúde mental:

 

“É a partir da psicanálise que encontramos uma orientação clínica que respeite a lógica extraída de cada caso, assim, como a possibilidade de operar com dispositivos clínicos que considerem as saídas apontadas por cada sujeito” (TEIXEIRA, 2010, p. 23).”

 

Nessa direção, cabe ao supervisor, a partir da transferência de trabalho e de sua posição êxtima em relação à equipe, colocar-se como aprendiz da clínica a partir da experiência dos trabalhadores, condição para que possa emergir desse encontro um novo saber, para além dos ideais de cura e de inserção social dos sujeitos, e, dessa posição, poder reconhecer os efeitos de sua prática. Nas palavras de Alvarenga (2011):

 

“A posição do êxtimo deve ser conquistada a cada passo pela maneira de se utilizar o real como furo no saber próprio à mestria. Ela convoca e autoriza o não-todo do saber, e responsabiliza cada um por sua construção. Procura-se então situar em cada caso, o que escapa ao saber cristalizado em torno do paciente, que alimenta um sentimento de impotência e desânimo, evitando que o saber do Outro venha anular a dimensão da enunciação (ALVARENGA, 2011, p. 3).”

 

Ao adotar a prática da conversação para o trabalho com a equipe, busca-se a produção de um novo saber sobre cada caso acompanhado. A partir da circulação da palavra, são recolhidos fragmentos que marcam a experiência dos trabalhadores. A escuta permite uma localização de pontos de real em jogo para cada sujeito e novas construções dos casos tendo como referências as estruturas clínicas e as fixações de gozo, apontando direções para as intervenções junto aos sujeitos. A conversaçãodefinida como “uma prática da palavra para tratar dos insucessos”, ao privilegiar a enunciação, produz um efeito de saber que passa a orientar o trabalho, rompendo com o discurso da impotência na equipe (LACADÉE, 1999/2000; MIRANDA; SANTIAGO, 2010).

 

Por sua vez, a construção do caso clínico, operando como eixo para o trabalho em equipe, permite a circulação da palavra, o compartilhamento de elementos do caso e o esvaziamento de saberes prévios instituídos. Isso dá lugar ao trabalho coletivo, que destaca as contingências da história do sujeito e permite o aparecimento do sujeito singular e do caso. Na construção do caso, trata-se de recolher as narrativas do sujeito, dos operadores, das famílias, das instituições e das escanções clínicas, bem como as possibilidades diagnósticas, abrindo novas perspectivas de intervenção (VIGANÓ, 1999; FIGUEIREDO, 2004).

 

A rua como resposta ao impossível de dizer

A partir da supervisão, um esforço da oferta da palavra aos sujeitos em condição de rua é o convite posto à equipe, em uma prática orientada pela psicanálise em que se busca cotidianamente fazer uma leitura do sintoma do sujeito e da função que a rua tem para cada um, apostando no que há de único em cada sujeito.

 

A escuta tem produzido novos saberes sobre os sujeitos, destacando seus movimentos de desinserção e reinserção em lógicas particulares que os localizam no laço social. Podem ser destacadas três posições distintas:

 

  • Uma posição melancólica – marcada por pura pulsão de morte, em que não há uma articulação entre cadeia significante e o real do corpo – anuncia a morte do sujeito e convida a equipe à sublimação do ódio diante do insuportável da singularidade do gozo do outro e da recusa do sujeito à oferta de cuidados. O caso de um jovem que vivenciou o apodrecimento de seu corpo até a morte anuncia a impossibilidade de qualquer inserção no laço social, em que uma irrupção de real marcada pela ausência da palavra rechaça o outro, implicando um mal-estar generalizado na equipe. Uma releitura de sua história e a localização de possíveis pontos de desencadeamento permitem à equipe um novo posicionamento em busca de construção de saídas possíveis para lidar com a recusa do outro.

 

  • Uma posição paranoica, em que a oferta de cuidados é o mal encarnado na equipe, convida a equipe a repensar as suas práticas marcadas pelo ideal da inclusão social diante do movimento do sujeito em direção à desinserção no laço social, rechaçando o outro. O caso de uma mulher para quem as instituições estragam seus filhos anuncia o que é possível para cada sujeito, o que pode ser inventado diante da ameaça que o outro constitui. Essa mulher faz mudanças periódicas de endereço na cidade para não ser encontrada pelos técnicos de políticas públicas, desencadeando indignação entre os integrantes das equipes na medida em que, ao recusá-los, ela promove uma desconstrução radical nas suas práticas e os convida a romper com os ideais da política para todos. Em outra via, depara-se com um sujeito sentenciado para o qual a rua representa a possibilidade de anonimato frente às exigências judiciais e para quem o trabalho da equipe constitui uma ameaça ao arranjo construído. A possibilidade de manifestações kakônicas daí advindas convida a equipe ao seu discreto manejo, que implica na subtração do ideal de inserção do sujeito no laço social.

 

  • Uma posição marcada pelo apelo ao sentido do sujeito, em que a oferta da palavra o coloca a trabalho, convida a equipe à sustentação do fazer cotidiano apostando na possibilidade de o sujeito se colocar questões sobre sua condição de rua e, a partir desse ponto, poder ressignificantizar a vida em direção à reinserção no laço social. Diante do caso de uma mulher que perdeu a guarda dos filhos em consequência de suas ausências e do uso abusivo de drogas, a partir da escuta da equipe, colocam-se questões que conduzem essa mulher a novos projetos de vida, incluindo trabalho e nova moradia, e, nessa via, dá-se dignidade ao sintoma rua, fazendo-a se reposicionar em relação aos seus laços sintomáticos.

 

Tendo como referência as possibilidades de posições que marcam os sujeitos em condição de rua, gradativamente, há um deslocamento da equipe em seu desejo de curar, anunciando, assim, uma nova posição de escuta que busca localizar junto aos sujeitos o que se repete, o sem sentido e as amarrações possíveis para cada caso. Ao real impossível de suportar, a supervisão aponta para a preservação do laço, emprestando o corpo e aguardando as contingências propícias ao ato e seus efeitos (ALVARENGA, 2013).

 

Considerações finais

Pelo dispositivo da supervisão, são verificados avanços nas práticas da equipe a partir da escuta e do reconhecimento do que há de único em cada sujeito e do que se recolhe e se compartilha em cada caso, dando uma nova direção ao trabalho coletivo que possibilita repensar as práticas de cuidados particularizados e os serviços prestados pela equipe.

 

A supervisão tem possibilitado a emergência da dimensão clínica da política, valorizando a circulação da palavra e destacando o que há de mais singular em cada caso compartilhado e em cada saída construída pelo sujeito para lidar com o insuportável.

 

Lacan, no Seminário 23, ao tratar das formas de amarração possíveis entre os registros imaginário, simbólico e real, destaca que “O nó, certamente, é alguma coisa que se amassa, que pode tomar a forma de um novelo, mas que, uma vez desdobrado, mantém sua forma de nó e, ao mesmo tempo, sua ex-sistência” (1975-1976/2007, p. 165).

 

Tendo essa referência, pode-se afirmar que, para essa equipe, a supervisão funcionaria como um quarto elo que faz amarração entre o fazer de cada um, o trabalho em equipe e a dimensão clínica da política? Para Figueiredo (2009), a supervisão teria a função de enodar as diferenças estratégicas para construção e consolidação do trabalho em equipe como operador central da clínica.

Assim, a aposta no dispositivo da supervisão é o convite para a produção de um novo saber-fazer aí com os sujeitos, a partir do trabalho em equipe e da dimensão clínica que reconheça a solução de gozo que a rua apresenta para cada um.

 

 

 


Referências
ALVARENGA, E. “A ação lacaniana nas instituições”. InAlmanaque On-line. Belo Horizonte: IPSM-MG, ano 5, n. 8, 2011. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/edicoes/almanaque-no-08/#/Home. Acesso em: jul. 2019.
ALVARENGA, E. “A supervisão e seus efeitos”. InCorreio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo: n. 73. nov. 2013.
FIGUEIREDO, A. C. “Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial”. InMental. São Paulo: 2005, ano III, n. 5, nov. p. 43-55.
FIGUEIREDO, A. C. “A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental”. InRevista de Psicopatologia Fundamental. v. VII, Ano 1, 2004. Disponível em:        <http://www.fundamentalpsychopathology.org> Acesso em: mai. 2019.
LACADEÉ, P. “Da norma da conversação ao detalhe da conversação”, In: LACADEÉ, P; MONIER, F (orgs.). Le pari de la conversation. Paris: 1999/2000. Trad. Vasconcelos, R. N; SANTIAGO, A. L. Bezerra.
LACAN, J. (1975-76) O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. “O ofício da supervisão e sua importância para a rede de saúde mental do SUS”. 2007. Disponível em: <http:// portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=31355>  Acesso em: mai. de 2019.
MIRANDA, M. P; SANTIAGO, A. L. “As conversações e a psicanálise aplicada à educação: um estudo do mal-estar do professor e o aluno considerado problema”, InO declínio dos saberes e o mercado do gozo. São Paulo: Col. LEPSI IP/FE-USP. n. 8, 2010.
TEIXEIRA, A. (org). Metodologia em ato. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010.
VIGANÒ, C. “A construção do caso clínico em saúde mental”. InPsicanálise e Saúde Mental Revista Curinga, EBP-MG. Belo Horizonte: n. 13, p. 50-9, set. 1999.

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA
Psicóloga, psicanalista, doutora em Psicologia pela UFMG. Docente da Universidade Estadual de Montes Claros. Rua Serra da Mantiqueira, 302 | Montes Claros/MG | CEP: 39401-585 | silveira.rosangela@uol.com.br



A Histeria E Os Nomes Do Pai

DANIELA GONTIJO DE SOUZA

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

Uma inquietude contemporânea vem dando nova forma à subjetividade. A palavra contemporânea diz da atualização que a modernidade faz com essa inquietude, que já está posta desde os primórdios do psiquismo. A maneira de lidarmos com isso se modifica concomitantemente às transformações culturais.

 

Campos (2011, p. 13) esclarece que “uma nova ordem, já prenunciada no apagar das luzes do século XX, emerge como fruto de uma precarização da eficiência simbólica, da fugacidade do imaginário e das eventualidades do real”. As mudanças culturais vividas nas últimas décadas nos colocam em impasses com a civilização e nos fazem romper com as tradições. Vivemos uma modernidade pautada nos discursos da ciência e do capitalismo, que promovem uma desorganização simbólica e nos trazem, como uma das consequências, a pluralização do nome do pai.

 

Com a intenção de localizar as questões que a contemporaneidade me traz, interessou-me discutir a histeria quando não nos servimos mais, como antes, do nome do Pai, e sim dos nomes dele.

 

A precariedade do Pai

Vivemos uma mudança de paradigma em todo o cenário social, cultural e, consequentemente, analítico. A fragilidade simbólica é constatada na fluidez das relações e na falência das hierarquias. Miller (2015, p. 6), no seu texto “Em direção à adolescência”, aponta que “entre essas mutações da ordem simbólica, primeiramente a principal, a saber, é o declínio do patriarcado”.

 

A precariedade do nome do pai é evidenciada pelas “mutações simbólicas” e confirmada pela prevalência dos discursos das ciências e do capitalismo. Brisset (2012, p. 190) nos esclarece que:

 

“O mundo hoje não é mais freudiano, ele é lacaniano. E a tarefa incessante da falsa científica não é mais lançar um novo objeto, mas fabricar, em série, infinitas réplicas do único objeto que interessa: o objeto a no Zênite social. Talvez seja, desde essa virada, visando eliminar o impossível e alcançar o ilimitado infinito, que vimos um desenvolvimento científico desenfreado visando novas tecnologias – tecnologias voltadas para fabricação de toys para satisfação do imperativo de gozo.”

 

Campos (2011) conclui que a crise do simbólico tem afetado todas as ideologias, todavia, fez incrementar o discurso cientificista das manipulações genéticas, das falsas ciências e das novas tecnologias.

 

Sabemos que as ideologias políticas se esvaem neste contexto atual e nos traz um outro indicativo da precariedade paterna. No percurso histórico, assistimos à verdade do totalitarismo, que se encontrava em um único lugar, ser dividida na democracia. Em “Instituições milanesas”, Miller (2011, p. 14) esclarece que “o totalitarismo (…) era a esperança de suprimir a divisão da verdade, de instaurar o reino do Um na política” e diz que “o triunfo da democracia que vai de vento em popa no pensamento contemporâneo (…) não gera o mesmo entusiasmo, podendo inclusive ser avaliado por um efeito depressivo; ele o comporta na medida em que implica a aceitação da divisão da verdade”.

 

A divisão abre uma fenda, aponta uma falta que o Um do totalitarismo parecia preencher. Abre-se então um buraco que a ciência promete cobrir. Cada vez mais, objetos são produzidos e oferecidos como garantia da totalidade. Somos levados a consumir desenfreadamente, criando um ciclo de gozo sem fim.

 

O que o discurso da ciência promete, em aliança com o capitalismo, na verdade não se cumpre, e a “falta” aparece a cada vez que esse objeto fracassa em sua promessa. A função paterna, nos tempos de hoje, desprovida de sua força simbólica, faz sintoma e, segundo Miller (2011, p. 14), “o sintoma aparece como o regime próprio ao gozo, o sujeito – ou mais precisamente o ser vivente que fala – experimentando-o necessariamente como tal”.

 

As consequências analíticas das transformações citadas são vistas também na clínica da contemporaneidade, que nos traz, cada vez menos, sujeitos da dúvida. Partimos de interpretações que davam um sentido, pautadas na clínica do Nome do Pai, do complexo de Édipo, de Freud, para a clínica do real, de Lacan, do sem sentido. Lacan (1998, p. 598) afirma que “na atualidade a interpretação ocupa um lugar ínfimo, e não porque ela tenha perdido o sentido, mas porque a abordagem do sentido traz sempre um embaraço”.

 

Do Versagung às estruturas psíquicas

Sabemos que o sujeito, antes de nascer, já faz parte de uma estrutura simbólica (familiar, cultural, social). O “outro” que representa o simbólico, anterior ao sujeito, terá influências determinantes em sua estruturação psíquica e em sua maneira de estar no mundo.

 

Freud (1912/2016, p. 71) nos disse que “o motivo mais evidente, mais fácil de ser descoberto e mais compreensível para o adoecimento neurótico reside no fator externo que, de maneira geral, pode ser descrito como impedimento (Versagung)”.

O impedimento tratado por Freud diz de um impedimento ao estado anterior à linguagem:

 

“Trata-se, portanto, de um conflito entre a exigência pulsional e a reclamação da realidade e isso acarreta um efeito patogênico, pois represa a libido e, assim, submete o indivíduo a uma prova de quanto tempo pode tolerar esse aumento da tensão psíquica, e que caminhos irá tomar para se livrar dele (FREUD, 1940/ 2014, p. 200).”

Os caminhos escolhidos dirão das estruturas psíquicas que se formaram a partir desse impedimento. Acredita-se que houve uma perda de um estado de completude, e a maneira com que cada um irá lidar com isso dirá da sua estrutura. Parte dessa equação é recalcada e algo se perde. Essa perda faz uma “fenda” no sujeito, que representará a falta de um objeto. Lacan (1956-57/1995, p. 35) nos diz que “jamais, em nossa experiência concreta da teoria analítica, podemos prescindir de uma noção de falta do objeto como central. Não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo”.

Um confronto neurótico

A fenda que marca o sujeito e dá início a sua vida psíquica irá colocá-lo diante da castração. Sabemos que a castração nos aponta uma perda simbólica, uma falha que ocorre na tentativa de traduzir o real em linguagem.

 

O sujeito neurótico é confrontado com a castração do Outro. Ciente dessa castração, o recalque desloca esse saber para o inconsciente na tentativa de livrar-se da angústia que o saber da falta produz.

 

Todas as estruturas neuróticas passam por esse processo, e as particularidades de cada uma se diferenciam nas posições que os sujeitos têm diante das tentativas de retorno do que foi recalcado.

 

Naveau (2107, p. 56), em O que do encontro se escreve, nos diz que “na relação do sujeito com a castração, trata-se de sua relação com a castração do Outro e, mais exatamente, da consequência, no que concerne à sua relação com a castração do Outro” e cita Lacan no seminário A transferência: “sem dúvida, existe algo mais neurotizante que perder o falo, é não querer que o Outro seja castrado”.

Falo, desejo e o Édipo

Na constituição do sujeito, ao nascer, a criança ocupa o lugar de falo da mãe, ou seja, aquilo que supostamente completa essa mulher. Nesse lugar de ser o que a mãe deseja, a relação que se estabelece entre ela e o filho fica desprovida de qualquer possiblidade da dimensão do desejo, pois só o filho lhe basta. A criança vai surgir como significado desse desejo, ou seja, como ponto de irrupção no que há de ilimitado no desejo materno.

 

Na medida em que a mãe começa a desejar algo para além do filho, o que é marcado pela presença do pai (Outro), surgem na criança questionamentos acerca do desejo dessa mãe. Toda essa trama traz para ela a possibilidade do desejo e a faz verificar que a questão do desejar está mediatizada por um Outro. Isso nos indica uma condição estrutural do sujeito sobre o seu desejo, que é o enigma do desejo do Outro.

 

Considerei importante passar por essas articulações do desejo para marcar, mais uma vez, que é pela falta que se constitui o sujeito e dizer que, para histérica, a falta é determinante. A mãe, ao se referenciar ao Outro para dizer do seu desejo, esse outro, supostamente, é entendido como o que falta a ela, o pênis (falo). Esse ponto anatômico faz toda a dissimetria entre as estruturas, marcando um caminho específico para as histéricas no percurso do Édipo.

 

Lacan (1955-56/1988, p. 206) nos adverte:

 

“Não há, propriamente, diremos nós, simbolização do sexo da mulher como tal. Em todo o caso, a simbolização não é a mesma, não tem a mesma fonte, não tem o mesmo modo de acesso que a simbolização do sexo do homem. E isso, porque o imaginário fornece apenas uma ausência, ali onde alhures há um símbolo muito prevalente.”

 

Isso nos aponta que a identificação sexual da mulher passa pela falta no real.

 

Enquanto o menino, no seu complexo de Édipo, segue com seu objeto de amor (a mãe) e só o abandona pela angústia de castração, que seria a ameaça do pai de eliminar-lhe o falo (o pênis), abre mão dessa posição de objeto do desejo da mãe, possibilitando sua saída do complexo de Édipo. Já a menina precisa, nesse percurso, abandonar seu objeto de amor pela angústia da castração – a falta do pênis (falo) – e seguir até o pai (o Outro) na tentativa de que esse outro possa dar a ela o que ela não tem. Freud (1933/2018, p. 335) nos disse que “a menina permanece nele por tempo indeterminado, só o desconstrói mais tarde e de maneira incompleta”. A menina precisa ir até o Outro para significar essa falta.

 

Lacan (1956-57/1995, p. 207) dirá que “um dos sexos é forçado a tomar a imagem do outro sexo por base de sua identificação (…) O fato não pode ser interpretado senão na perspectiva em que é a ordenação simbólica que regula tudo”. No entanto, o significante dado por esse Outro não recobre toda a falta, e o que fica descoberto é recalcado.

Impasses histéricos

 

Esse movimento identificatório que é posto à menina – ora com a mãe, ora com o pai – apresenta o enigma e traz questões que dizem da histeria: o que as mulheres desejam nos homens? O que os homens desejam nas mulheres?

 

Esse ato de tomar para si a castração do Outro faz com que a histérica assuma a posição de um não saber. A questão com o saber está posta para histérica desde o início. Lacan, no Seminário 17 (1969-70/1992), irá dizer que há uma relação primitiva entre o saber e o gozo. Perde-se alguma coisa e é preciso compensar essa perda. O movimento compensatório faz gozo. Lacan vai nos mostrando como as questões que acompanham a histérica, nesse contexto de querer saber, faz com que o seu desejo esteja sempre implicado pela via do Outro, além de modular o seu modo de gozo.

 

As questões são pontos fundamentais na estrutura da histeria. As perguntas sobre o que desejar, o que é ser mulher, o que o homem deseja, irão funcionar como um guia na sua busca de respostas para sua vida. O que a histérica quer é um mestre, nos disse Lacan (1969-70/1992). Porém, ainda que a histérica se apresente querendo saber, na verdade, esse saber faz revelar a castração do outro, o ponto gerador de sua angústia, então há um recuo diante desse saber.

 

Retomando Lacan (1969-70/1992, p. 17), no seminário 17, “para estruturar corretamente um saber, é preciso renunciar a questão das origens”. A histérica, para suportar a angústia da castração do outro – um saber ordinário –, renuncia e, a cada possibilidade de um retorno do que foi renunciado – recalcado –, é elegido um outro que supostamente saiba responder às suas questões.

 

Isso se torna um ciclo no movimento da histeria, “ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas, mesmo assim, que não saiba demais (…)” afirmou Lacan (1969-70/1992, p. 136).

 

Haverá sempre questões que a farão ir em busca de respostas que serão insuficientes, marcando sua insatisfação e fazendo com que reinicie a busca pelo saber. A insatisfação funcionaria aí como um recurso para afastá-la da angústia e colocá-la sempre em movimento.

 

No contexto vigente, em que impera o discurso da ciência, que quer garantir tudo na era do capitalismo e da pluralização dos nomes do Pai, quando assistimos a um deslocamento do saber organizado pela lógica fálica para tantos outros modos de organização do saber em sua relação com o furo, perguntaria: como fica o movimento das histéricas, cujo sintoma, segundo Laurent (2013), “advém do amor ao pai”?

 

Aqui, não pretendia responder as questões; o trajeto que anunciei, de fundamentá-las, se cumpre e deixa um desejo enorme de seguir na investigação de tantas outras questões com as quais me encontro depois desta tentativa de cobrir um “furo” encontrado nessa jornada dos estudos – não podia ser diferente!

 

 

 


Referências
CAMPOS, S. P. R. “Apresentação de uma nova ordem”. In: Curinga. Belo Horizonte: Scriptum, v. 32, 2011, p. 13-30.
BRISSET, F. O. “Não basta mais cochichar no ouvido dos príncipes”. In: Tânia Coelho dos Santos; Jésus Santiago; Andrea Martello (Orgs.) De que real se trata na clínica psicanalítica? Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012.
FREUD, S. (1912/2016) “Sobre tipos neuróticos de adoecimento”. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, v. 5, p. 71-79.
FREUD, S. (1933/2018) “A feminilidade – Conferência XXXII”. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Amor, sexualidade, feminilidade. Autentica, v. 7, p. 313-341.
FREUD, S. (1940/2014) “A cisão do eu no processo de defesa”. In: Obras incompletas de Sigmund Freud. Compêndio de psicanálise e outros escritos inacabados. Belo Horizonte: Autêntica, v. 3, p. 199-217.
LACAN, J. (1955-56) O seminário, livro III: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1956-57) O seminário, livro IV: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LAURENT, E. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. In: Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, 6, 2013, Buenos Aires. Anais… Buenos Aires: ENAPOL, 2013. Disponível em: <http://www.enapol.com/pt/>. Acesso em: 16 jun. 2019.
MILLER, J-A. “Instituições milanesas”. In: Opção Lacaniana, ano 2, nº 5, 2011. p. 1-15.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. In: Intervenção de encerramento da III Jornada do Instituto da Criança, 2015. Disponível em: <http://minascomlacan.com.br/em-direcao-a-adolescencia/>. Acesso em 25 jun. 2019.
NAVEAU, P. O que do encontro se escreve: estudos lacanianos. Belo Horizonte: EBP, 2017.

DANIELA GONTIJO DE SOUZA
Psicóloga pós-graduada em Psicologia da Educação pela PUC-Minas BH, membro-tesoureira do Parlêtre e aluna do módulo III do curso do IPSM–MG. R. Dom Pedro II, 287/302, Divinópolis-MG | (37) 99927-6472 | danigontijopsi@gmail.com



Editorial Almanaque nº22

MICHELLE SENA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE BELO HORIZONTE

Está no ar o Almanaque 22!

Em consonância com o tema do próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana – IX ENAPOL, esta edição conta com textos que abordam três paixões: ódio, cólera e indignação. Nossa intenção é alavancar essa pesquisa e iniciar os debates sobre essas paixões, sempre presentes na vida psíquica e tão em pauta na contemporaneidade.

Em Trilhamentos contamos com textos precisos sobre duas dessas paixões: o ódio e a cólera. No trabalho de Gil Caroz, o ódio será abordado a partir das perspectivas fálica e não-toda fálica, em sua relação com o ideal de amor universal proposto pela religião e também pela via de sua (des)localização do ilimitado do gozo feminino. Por Jean-Daniel Matet, a cólera será discutida em torno de suas diversas cores e nuances. Partindo desse afeto que toca o corpo, a reflexão sobre essa paixão irá percorrer o seu tratamento na vertente filosófica, a sua importância na vida psíquica infantil e em casos clínicos.

Na rubrica Entrevistas, conversamos com Juliana Flores sobre o CURA – Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte, festival que promove a pintura de laterais de edifícios no centro de Belo Horizonte. Nessa entrevista, para além da relação da arte com a cidade, Juliana nos sinaliza a forma com que as reivindicações artísticas tomam forma durante o festival e nos apresenta uma reflexão sobre o ‘pixo’ como uma das formas da indignação. Em seguida, temos a entrevista realizada com Damasia Amadeo Freda sobre as novas configurações da relação dos jovens com o desejo de saber e os efeitos das tentativas de normatização, sendo um desses um certo bloqueio ao acesso das saídas inovadoras que a arte poderia proporcionar.

Em Incursões, temos textos resultantes das discussões realizadas nos espaços de investigação do IPSM-MG e do CIEN no último semestre. Orientados pela queda do Nome-do-Pai, pela ascensão ao zênite do objeto a[1] e também reverberando sobre o ódio e a indignação, os trabalhos abordam como o que é ineliminável da dimensão pulsional se apresenta nas toxicomanias; em conversações com professores; em um dos episódios da série Black Mirror e também em uma leitura da pulsão de morte pela via da violência na civilização.

Na rubrica Encontros, o tema da cólera será apresentado via um trecho de estudo de Jean-Pierre Vernant sobre uma ficção grega clássica. E, por fim, em De uma nova geração, contamos com dois trabalhos, produzidos por Giselle Mattos e Graciana Guimarães, alunas do IPSM-MG.

Desejamos aos leitores que desfrutem esses preciosos trabalhos como uma preparação para o IX ENAPOL e que pontos de interesse surjam e possibilitem debates necessários sobre esse tema tão atual. Acompanhando os textos apresentados, vocês encontrarão as belíssimas fotografias dos murais pintados durante as edições do CURA[2], equipe à qual agradecemos por enfeitar nossa cidade e nosso Almanaque 22.

Boa leitura!


 

[1] Miller, J.-A. “Uma Fantasia”. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. nº 42, fevereiro 2005.
[2] Crédito das imagens: Área de Serviço.



Almanaque V. 13 – Nº 22 1º semestre de 2019

Em consonância com o tema do próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana – IX ENAPOL, esta edição conta com textos que abordam três paixões: ódio, cólera e indignação. Nossa intenção é alavancar essa pesquisa e iniciar os debates sobre essas paixões, sempre presentes na vida psíquica e tão em pauta na contemporaneidade. Leia mais.

TRILHAMENTO
Conhecer seu ódio – GIL CAROZ

As cores da cólera – JEAN-DANIEL MATET

ENTREVISTA
Pixo é protesto, é indignação – JULIANA FLORES

Entrevista Damasia Amadeo de Freda – DAMASIA AMADEO DE FREDA

INCURSÕES
A violência na civilização – Sandra Maria Espinha Oliveira

Parque de Justiça – Urso Branco: um Campo de Distorção da Realidade. – José Honório de Rezende / Giuliana Alves Ferreira de Rezende

Desmontagem da pulsão na toxicomania: a prevalência do objeto – LUÍS FERNANDO DUARTE COUTO

Para além do encanto pelas palavras, a indisciplina dos professores – VIRGÍNIA CARVALHO / BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE / ANA LYDIA SANTIAGO

ENCONTROS
Sobre a cólera de Aquiles – JEAN-PIERRE VERNANT
DE UMA NOVA GERAÇÃO
Primeau, Joyce, Wolfson e as falas impostas – GISELLE GONÇALVES MATTOS MOREIRA

O que a histérica quer saber? – GRACIANA GUIMARÃES




Conhecer Seu Ódio

GIL CAROZ

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Lucidez

 

O ódio é lúcido. Ele está ligado a um saber. Os cristãos transformaram o não-ódio de seu Deus, sinal de sua ignorância, em uma forma de amor (LACAN, 1982, p. 122). Esse Deus é um ser “como sendo aquilo pelo que os seres menos seres participam do mais elevado dos seres” (LACAN, 1982, p. 134). É, então, um ser ideal, unificador, que reúne nele os seres imperfeitos e, nesse sentido, ele é relacionado a um puro amor. No entanto, Lacan recorda “que não se conhece nenhum amor sem ódio” (LACAN, 1982, p. 122). É justamente esse sonho de um amor universal que faz ignorar a irredutibilidade do ódio e, em primeiro lugar, do seu próprio ódio. O amor é apenas uma construção secundária, um semblante que permite uma circunscrição da pulsão de morte. Mas ele não encobre jamais o ódio como dado primário. Freud demonstra bem essa irredutibilidade na sua crítica detalhada do imperativo “Amarás o próximo como a ti mesmo”, que ele designa como sendo “reinvindicação mais gloriosa” do cristianismo (FREUD, 2010, p. 73). Ele salienta: “Depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-se uma consequência inevitável” (FREUD, 2010, p. 81). Assim, o ódio jamais se reduz a zero, ele consegue simplesmente localizar-se de outro modo. O amor entre os membros de uma comunidade reunidos em torno de um ideal se paga sempre com um ódio dirigido ao exterior.

 

Ódio cordial

De todas as paixões, o ódio é, sem dúvida, o mais difícil de se reconhecer e admitir. Pensemos no sorriso do Homem dos Ratos testemunhando um gozo desconhecido de si mesmo quando ele relata o suplício infligido aos soldados no exército do Império. Nós lemos em marca-d’água na resposta de Freud ao “Por que a guerra?”, de Albert Einstein, que a questão mesma camufla uma posição de bela alma, ignorando a pulsão de morte, componente irredutível em todos os seres humanos. Assim, ignorado e negado, o ódio se manifesta ocasionalmente pelo seu contrário, a saber, por um amor ao mesmo tempo excessivo e suspeito. Um sujeito em análise fala de bom grado de suas tendências altruístas e caritativas, que ele apresenta, na oportunidade, como um traço que ele gostaria de se livrar, enquanto ele deixa suas hostilidades escondidas, especialmente quando estas são sentidas em relação aos seres mais queridos. Ele irá timidamente pronunciar seu ódio apenas quando tiver acesso à sua maldade fundamental.

O que chamamos de “fazer amor” é um oximoro. Sabemos que o que acontece sob essa designação tem muito pouco a ver com o respeito e o amor. Esses, pelo contrário, são muitas vezes um fator de inibição da vida sexual. Por outro lado, a fantasia, condição de todas as relações sexuais, é uma encenação na qual o ódio prevalece sobre o amor. Dessa forma, o ódio não exclui o desejo. O ser a quem o ódio é endereçado inclui o objeto a (LACAN, 1982, p. 135). O ódio, nesse caso, é uma manifestação consciente de um desejo situando-se entre o ser e o ter. Esse é o caso do ódio ciumento que Santo Agostinho testemunha quando ele observa o homenzinho empalidecendo ao ver seu irmão de leite pendurado no peito de sua mãe. É porque ele tem o objeto de desejo que o irmão é odiado. Essa cena com três posições nos lembra a fórmula fantasmática bate-se numa criança, e eu assisto. É um ódio cordial causado por uma rivalidade fálica e inscrita na lógica edipiana.

 

 

Nosso objeto a

Há um outro ódio, um ódio que rejeita. Esse não decorre do Édipo. Ele é necessário para a constituição do eu (moi). O gozo é evacuado como mal para ser localizado no exterior. É o ódio que Lacan descreve como sendo a raiz do racismo. A ignorância do fundamental do eu (moi) faz com que esse ódio não esteja nos detalhes. Ele coloca de bom grado seu kakon em um outro coletivo. É um ódio puro. Ele não tem nada do amódio (hainamoration) lacaniano, como o ódio que anda de mãos dadas com o amor. Atribuir um gozo a uma “massa de corpos” é uma forma de racismo. Esse é o caso do antissemitismo e da misoginia, a se distinguir das críticas que podem ser feitas em relação aos fundamentos de uma cultura. A crítica do texto do Alcorão não é equivalente ao insulto dirigido à suposta avidez do judeu pelo dinheiro ou à falta de fidelidade da mulher como tal.

 

O Judeu

O Judeu ocupa o lugar de “nosso objeto a” (REGNAULT, 2003) porque, pela sua posição no mundo, ele perturba qualquer forma de instalação em comunidade na medida em que isso responde à lógica do todo. “’O que tenho em comum com os Judeus?’, escreve Franz Kafka, é apenas se eu tenho algo em comum comigo mesmo” (REGNAULT, 2003, p. 23). Falando do ódio na medida em que este é dirigido ao ser, Lacan indica que, se o cristão se refere a um ser ideal e amoroso, que reúne nele os seres imperfeitos, não há ser perfeito que possa alojar o judeu. Tudo na tradição judaica vai contra isso, diz ele. De acordo com a tradição, “o menos perfeito é muito simplesmente o que ele é, quer dizer, radicalmente imperfeito, e não há estritamente nada a fazer senão obedecer ao dedo e ao olho […], àquele que tem o nome de Javé” (LACAN, 1982, p. 134). E acrescentar que esse Deus, os judeus só poderiam fazê-lo um ser-de-ódio, isto é, ”traí-lo” (LACAN, 1982, p. 134), porque ele os escolheu para obedecê-lo sem fornecer-lhes um ideal ao qual eles pudessem se identificar. Assim, o destino do Judeu, do qual ele faz sua ética, é dedicar-se a uma prática que se dá sem uma garantia do Outro.

Lá onde a mulher não existe, o Judeu é um Nome inatingível. Os judeus constituem um conjunto “de imperfeitos”, série aberta de sujeitos, cada um sendo singular na sua imperfeição. Os elementos desse conjunto aberto não são, mas ex-sistem ao sentido que Jacques-Alain Miller desenvolve sobre a existência no seu curso “O Ser e o Um”. Como tal, eles não são coletivizáveis. É por isso que é proibido na tradição judaica listar os membros de um grupo. O uso dos números naturais para contar os sujeitos é contrário à prevalência do um por um sobre a coletividade. O que não significa, claro, que, na “realidade”, os judeus não se organizem como comunidade.

 

Resistência ao para-todos

A partir daí, entendemos o uso do termo ‘nome judeu’, porque dizer simplesmente ‘o judeu’, como dizer a mulher, o difama. Quando tentamos coletivizar o incoletivizável, fazemos-lhe necessariamente uma violência. É uma forma de abuso que a lógica do todo inflige à lógica do não-todo. Antissemitismo e misoginia são dois nomes desse ódio irredutível que se produz no encontro entre as duas lógicas. O agente da lógica do todo quer colocar em ordem os sujeitos que respondem à lógica do não-todo. Assim, o antissemitismo irá censurar os judeus, com mais ou menos violência, por não se assimilarem, por se colocarem em um lugar de exceção, por não se alinharem de uma vez por todas e serem ‘como todo mundo’. A misoginia irá censurar as mulheres por suas práticas singulares que se opõem à lei do para-todos.

Um judeu, como vimos, só pode trair o seu Deus, isto é, trair sua posição de Judeu com um grande J. Ele sempre está aquém dessa posição insustentável. À exceção de alguns grupos que são mais ou menos bem-sucedidos em assumir a posição de ser-judeu, de que Benny Lévy fala, a saber, uma posição de recusa a se inserir em alguma forma de discurso universal, os judeus, de uma maneira ou de outra, aspiram a uma forma de assimilação. Isso não os torna antissemitas, pois, seja o que for que façam, eles permanecem judeus, nem que seja unicamente por negação. Se é um ódio, é um ódio do Judeu que eles carregam dentro deles, mas não um ódio do outro.

 

Ódio ao feminino

A caprichosa

Se a lógica do todo faz violência à lógica do não-todo, não há nenhum ódio veiculado pelo gozo feminino em direção à lei do pai. Aqui o caminho do Judeu e da mulher se separam. Se o judeu, em sua prática, está fora de uma lei universal, se ele pode tolerar certa falta de garantia no Outro, ele permanece fiel a uma versão da lei do pai. Por outro lado, o gozo feminino stricto sensu implica uma série de singularidades que rompem com essa lei como portadora de interditos. Ela coloca a vontade pulsional antes da lei. É o que Jacques-Alain Miller chamou de “capricho”, ou seja, uma vontade acéfala, que vai além dos limites da razão e às vezes é mortífera (MILLER, 2001). As manifestações de ódio desse gozo não têm causa localizável e não encontram limites na razão. Então, Lady Macbeth, a fim de incitar seu homem para o crime, assim formula a loucura do horror que ela seria capaz de cometer a partir de seu ódio:

 

Já amamentei e conheço como é agradável amar o terno ser que em mim mama. Pois bem, no momento em que estivesse sorrindo para o meu rosto, teria eu arrancado o bico de meu peito de suas gengivas sem dentes e ter-lhe-ia feito saltar o crânio, se o tivesse jurado como assim juraste… (Ato I, cena 7) (SHAKESPEARE, 1995, p. 489).

 

Aí, nós vacilamos. Essa manifestação de ódio ao modo de Medéia, que ameaça tocar o mais sagrado, excede o que podemos incorporar como humano. J.-A. Miller faz uma forte observação sobre a indignação que essa afirmação pode provocar em nós, porque significa que, se somos escandalizados, é porque Medéia somos nós: “Porque cada um de nós, diz ele, aturdido de compaixão que esteja, também é solicitado em sua parte irredutível de desumanidade, sem a qual não há humanidade se sustente” (MILLER, 2012).

Assim, através dos limites da “justa medida” da posição masculina[1], a ilimitação do gozo feminino pode parecer completamente fora de proporção, vontade feroz, sem limite. Por outro lado, da mesma forma que um judeu pode odiar o judeu nele, uma mulher pode odiar sua feminilidade, sem que isso a torne misógina. O caso de uma mulher que, durante muitos anos, não consegue mais estabelecer um relacionamento com um homem demonstra isso. À primeira vista, podemos pensar que é o amor que ela dedica ao pai, a quem ela está identificada, que aqui faz obstáculo. De fato, esse amor ao pai atravessa todo o seu ser. Mas, escavando um pouco mais, aparece o que lhe é realmente insuportável. Essa mulher bem organizada, que não deixa passar nada do inconsciente, encontrou em si mesma a conduta “louca” de sua mãe toda vez que tentou estabelecer um relacionamento com um homem. Isso a levou a um relacionamento com o homem marcado por um isso nunca mais, cujo preço é a solidão que ela inflige a si mesma. Ela odeia os homens, poderíamos dizer, não por causa do Penisneid, mas porque “o homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele” (LACAN, 1962/1998, p. 741).

 

Curar da misoginia

Para o homem freudiano, como sabemos, o final da análise se apresentará quando do encontro com o rochedo da castração, no momento em que ele poderá assumir o fato de que outro homem possa ser mais forte que ele. Essa renúncia à rivalidade fálica é uma forma de pacifismo. O homem entrega as armas, o que lhe permite renunciar à luta imaginária e fálica. No entanto, isso não garante um alívio com relação à questão feminina. É o homem lacaniano que enfrentará essa questão, porque, inicialmente, ele é “fundamentalmente medroso e, se for à guerra, é para fugir das mulheres, fugir do buraco” (MILLER, 1997, p. 11). Esse homem será capaz de se curar desse medo que o faz odiar desde que ele reconheça não só o seu ódio, mas também a sua própria feminilidade, seja qual for sua qualidade de guerreiro. Porque temos que esperar que os homens não estejam totalmente sob a lógica do todo, da mesma maneira que as mulheres podem se relacionar com o falo.

 

Inspiração

Não tire os sapatos, diz a psicanálise ao homem. Você não está na mesquita. Coloque, ao contrário, o seu par de sapatos femininos, de cor vermelha, e entre no consultório do analista. O analista vai tolerar isso, ele é formado para isso. Ele mesmo é um pouco mulher. Lá, no consultório do analista, você descobrirá que nem todo mal está nela. Que você a conhece intimamente, “de dentro”, que você é, você mesmo, ocasionalmente, um pouco mulher. Você tem o seu humor, seu amor louco; você pode ser generoso e mau ao mesmo tempo, pragmático e sonhador, caprichoso e racional. Você descobrirá que também pode ocasionalmente cometer o irreparável. É assim!

Você então se moverá em direção à fronteira do império fálico que é sua prisão e você levará seu olhar para o outro lado da fronteira, para o continente negro da feminilidade. Então você dirá a si mesmo que se ela se tornou a encarnação do próprio diabo; quem poderia não a amar enquanto a odeia? Ela é autêntica. Ela não se incomoda. Ela é generosa. Ela tem humor. Ela sorri. Ela diz: “Vá em frente, viva a sua vida, não tenha medo. Não se deixe desencorajar pelos moralistas que dizem a você para não se mover, para submeter-se à razão, a razão deles, ideais deles”. Ela não tem as angústias do proprietário nem a preocupação com o que vão dizer. O Outro está lá, mas ninguém é obrigado, diz ela, a obedecer à risca às suas exigências. Ele também pode ser louco de vez em quando. Ela é pragmática. Existem as regras e a lei, ela diz, mas ela procura a pessoa que as incorpora para fazer acordos com ela, porque ela é bastante “conciliadora”. Louca, mas não “louca-de-todo” (LACAN, 1974/2003, p. 538). Ela fala, ela negocia, ela recebe. Ela atravessa todas as recusas, porque para ela “não” não é uma resposta aceitável.

 

 

 

Tradução: Michelle Santos Sena de Oliveira
Revisão: Márcia Mezêncio

 

 


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1930) “O mal-estar na civilização” In: Obras completas, vol. 18, São Paulo: Companhia das Letras, 2010 p. 13-122.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Brasil: Jorge Zahar, 1982.
LACAN, J. (1962) “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 734-745.
LACAN, J. (1974) “Televisão” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 508-543.
MILLER, J.-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes” In: La Cause freudienne, nº36, mai 1997, p. 7-16.
MILLER, J-. “A teoria do capricho” In: Opção Lacaniana, nº 30, São Paulo, 2001, p. 79-86.
MILLER, J.-A. “Uma partilha sexual” In: Clique, nº2, Belo Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, 2003. p. 13-29.
MILLER, J.-A. “Le théâtre secret de la pulsion” In: Le Point, nº 2062, 22 mars 2012.
REGNAULT, F. Notre objet a. Paris: Verdier, 2003.
SHAKESPEARE, W. “Macbeth” In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. Vol. I, p.475-528.
[1] Cf. Miller, 2003, p. 16: “A ética da justa medida é por excelência uma ética masculina”.



As Cores Da Cólera

JEAN-DANIEL MATET

 

Encolerizado

 

 

Ficar vermelho, branco ou preto de raiva; cólera quente ou fria. Adjetivos não faltam para dar conta dos signos dessa emoção particular que é a cólera. Eles tentam descrever uma fenomenologia do que afeta o corpo tomado por aquilo que o domina. Paroxística ou permanente, rara ou frequente, a crise de cólera recobre realidades clínicas muito diversas. Alguns homens ou algumas mulheres dizem que apenas a experimentam raramente, enquanto ela se apresenta como sintoma ou traço de caráter em outros.

Manifestações de angústia, uma impulsividade ou uma passagem ao ato podem ser tomadas por cólera, o que, às vezes, são. Todavia, a propensão de alguns criminologistas em interpretar toda passagem ao ato, até o crime (BORTEYROU X., BRUCHON-SCHWEIRZER M., SPIELBERGER C. D., s/d), como a expressão de uma cólera da qual eles fazem uma hipótese que constantemente aparece forçada, em detrimento de uma clínica mais refinada.

A inibição ou sua ausência pode dar conta dessas diferentes modalidades, de desencadeamentos violentos, e se declina de maneiras diferentes no neurótico, no psicótico ou no perverso. O interpretativo, exposto a fenômenos discretos de parasitação linguageira, pode responder, aqui, por aquilo que aparece como uma cólera permanente, na qual seus próximos são as vítimas. A hostilidade persecutória do ambiente, as redes sociais, as informações de rádio e televisão do mundo podem alimentar uma cólera permanentemente envernizada por passagens ao ato. As notícias locais diárias de bebês fustigados ou violências domésticas testemunham isso.

 

A revolta

 

Cólera na primeira página! A imprensa nacional faz, com gosto, manchetes sobre a cólera de tal grupo social, tal categoria profissional, tal lobby. Os pesquisadores; os profissionais de saúde, do petróleo; os pais de crianças autistas e até os psiquiatras ou os psicanalistas podem protestar, se manifestar, gritar contra a injustiça ou o assassinato, e é o significante “cólera”, entre desespero, tristeza e revolta, que vai se impor. A cólera está na moda, ao ponto do que se designa não ser necessariamente a experiência autêntica do que a cólera experimentada faz sentir.

Desde sempre, esse afeto é objeto de comentários, de tentativas de precisar seu sentido, de condená-lo ou defendê-lo em nome da moral, da religião ou da ética. É necessário deixar que ela se exprima como liberação salvadora da inibição ou, pelo contrário, refreá-la contra o desastre que ela pode provocar ao redor do “encolerizado”?

Da cólera dos deuses ou do Deus que dominava os homens, a cólera passou ao registro do afeto; aqui ladeiam a tristeza, o ciúme, a alegria, e tentativas de precisá-la e defini-la não faltam. Descartes (1990) fez dela uma paixão entre o ódio e a indignação. Sêneca denunciou sua inutilidade e reclamou seu banimento, de tanto que ela oprime o gênero humano (vício nocivo à alma), opondo-se a Aristóteles (os peripatéticos), que a considerava necessária, aguçando a coragem e dando-lhe fôlego. São Tomás distingue em toda paixão um elemento formal; é o movimento do apetite sensitivo e um elemento material, é a mudança que se opera no corpo decorrente do movimento do apetite. Na cólera, o movimento do apetite sensitivo é de vingança.

Para Spinoza, a cólera é a consequência imediata do ódio, ele mesmo causado por diferentes sentimentos negativos, como a sensação de ser ameaçado, uma ofensa, uma humilhação, etc. E enquanto desejo de causar um mal àquele que, antes, nos fez dele padecer, ela é, por sua vez, causa de violência, de conflito, logo, retornando como ódio e cólera. Ele opõe à cólera a animositas, não a animosidade no sentido de cólera ou da hostilidade durável contra uma pessoa, mas de um “ardor, firmeza, coragem”. Com a generosidade, ele faz da animositas uma das virtudes fundamentais, ou forças da alma (SPINOZA, 1993). Para lutar contra tudo o que pode nos destruir, Spinoza opõe à cólera cega a coragem da animositas, “desejo que leva cada um de nós a fazer um esforço para conservar seu ser na virtude dos mandamentos únicos da razão” (SPINOZA, 1993a).

Michaux (1963, p. 131) e Artaud (1976, p. 47-46) a quiseram poética – Podemos escrever em estado de cólera? –, debruçando-se sobre as relações entre a cólera e a literatura. Mas é possível ser um artista missionário da cólera coletiva? Uma versão romanesca da cólera é levada à incandescência por Musil e Nizan (BOYER-WEINMANN, s/d).

Erguendo-se contra uma neurofisiopatologia nascente da cólera, que inscreve hoje as emoções em um sistema límbico e demonstra que a estimulação hipotalâmica desencadeia a cólera, Jean-Paul Sartre dota a cólera de uma eficácia pragmática, e mesmo criadora, ao fazer dela uma emoção mutante relacionada com o medo (SARTRE, 2000). Roland Barthes, que se dizia pouco sujeito à cólera, descreveu em seu Seminário sobre o Neutro – “o Neutro definido como aquilo que contraria o paradigma… O paradigma sendo a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido” (BARTHES, 1977-1978, p. 31) – a cólera como o antineutro. Ele nos dá três versões: a cólera como fuga (recusa de uma situação de espera, de uma situação transferencial – médicos, dentistas, bancos, aeroportos); a cólera como higiene ou como utilidade (teatralizar sua cólera para controlar o não-controle); e a cólera como fogo (que remete a um ardor, a um desejo, como a cólera do ciumento, ou a uma ira, como a cólera de Deus).

 

A cólera justa

 

Algumas cóleras parecem justas, como as de Freud, ao enfrentar fisicamente os antissemitas que insultaram sua família (LÉVY, 2008, p. 135-154). A cena é relatada por Martin Freud. Depois de um primeiro aviso, que permitiu a Freud dizer a seus filhos que aquela situação ameaçadora se repetiria, o grupo antissemita foi para cima deles, e Freud se lançou, bengala em punho, para os dispersar, o que conseguiu fazer. Como não evocar aqui a lembrança do pequeno Sigmund, vendo seu pai humilhado por um ato antissemita? A cólera que se apossa dele é equivalente à passagem ao ato daquele que não se deixa aviltar e coloca a covardia do lado do agressor. A cólera reclama um castigo que parece muito frequentemente como justo, e, por essa mecânica, cultivada até a ambiguidade, a cólera social se exprime por colocar a justiça e a legitimidade do seu lado.

Uma exposição recente no Instituto Húngaro em Paris sobre O tempo dos asilos me lembrou a reação de Freud, interpretando o atraso para responder a Istvan Hollos, que lhe enviara um exemplar do seu Recordações da Casa Amarela. O antissemitismo o havia expulsado desse lugar original de responsabilidade pela loucura, em que a produção sintomática, artística dos psicóticos, era valorizada. A cólera de Freud na carta a I. Hollos (FREUD, 1984, p. 23-28), apresentada na Ornicar? em 1985 e retomada por Jacques-Alain Miller em seu curso em 2008[1], é objeto de uma sessão de autoanálise:

 

Mesmo apreciando seu tom caloroso (…), encontrei-me, contudo, numa espécie de oposição que não era fácil de compreender. Tive finalmente de confessar que a razão era que eu não gostava desses doentes; de fato, eles me deixam encolerizado, eu me irrito por senti-los tão distantes de mim e de tudo o que é humano. Uma intolerância surpreendente, que faz de mim um mau psiquiatra.

 

J-A. Miller nota que, por meio dessa carta de Freud, é o recalque que é visado nele, seu não-quero-saber-nada-disso acerca da psicose. Freud é surpreendido por um afeto, cuja mola não compreende. A confidência de J.-A. Miller, nessa ocasião, sobre a função dos encontros semanais do curso, sobre seu combate a sua resistência em admitir – a cólera, por vezes –, faz parte desse não-quero-saber-nada-disso.

 

A cólera-sintoma

 

As crises de cólera das crianças pequenas aparecem como manifestações de afirmação, de oposição à frustração, daquilo que exige delas sua perda de autonomia em relação aos pais. Elas podem tomar configurações diversas, endereçar-se à voz grossa paterna, ao corpo a corpo materno ou, ao contrário, ter força de apelo dessa voz ou dessa proximidade perdida ou jamais encontrada. A cólera pode aparecer como uma passagem inevitável num processo de individuação e de separação ou para arrancar-se da Hilfslosigkeit freudiana, da imbecillitas descrita por Santo Agostinho e retomada por Lacan várias vezes. O fort-da é uma resposta a essa cólera da impotência da criança pequena que mostra, assim, sua capacidade de mobilizar o simbólico para fazer face a ela.

As crises de cólera podem se sistematizar em função do peso que têm na economia familiar, e reencontramos aqui a conjuntura descrita por Lacan na sua “Nota sobre a criança” (LACAN, 2001, p. 373). A dimensão agressiva ou passiva da pulsão é colocada em jogo no exercício da cólera infantil e modela sua expressão sádica ou masoquista na fantasia em germe. Passaremos ao largo de uma parte nada negligenciável da questão ao não evocar as consequências das cóleras parentais, da sua ausência ou seu excesso. Indicação de um limite transposto pela exigência todo-poderosa da criança ou confissão de impotência parental que a cólera pode tentar apagar.

 

Hans

 

O jovem Hans sabia algo sobre isso e o testemunhou junto a Freud, por intermédio de seu pai, pela manobra para provocá-lo e para tentar ativar o agente da castração. Hans diz a seu pai que ele fica encolerizado, o que este refuta. Hans insiste. Hans, longe de seguir as afirmações, quer de Freud, quer de seu pai, traça sua via. O próprio Freud sublinha: “Hans segue seu próprio caminho e não chega a lugar nenhum quando queremos desviá-lo”. Trata-se de “deixar o garotinho exprimir seus próprios pensamentos”. A sequência da análise mostrará que Hans, longe de ter medo do pai, o chama, ao contrário, para estar presente e o convoca em sua cólera: “Por que você fica encolerizado?” pergunta ele a seu pai, ao que este responde: “Mas não é verdade”, e Hans lhe lança este apelo: “Sim, é verdade, tu ficas encolerizado, eu sei disso. Isso deve ser verdade” (FREUD, 2003, p. 351). Como nota Lacan, “é a chave da observação […]. Trata-se de que o pequeno Hans encontra uma suplência para este pai que se obstina em não querer castrá-lo” (LACAN, 1994, p. 365). Se, num primeiro tempo, a suplência é a fobia, Hans, na sequência da sessão de 30 de março, graças a Freud, mas também apesar de Freud, prossegue na sua elucidação da fobia e procura diferentes soluções para suprir a carência do pai e fazer entrar a mãe no sistema significante, para fazer dela um elemento equivalente aos outros, suscetível ele também de entrar na dialética significante.

 

Élise

 

Desde sempre, Élise se dizia sujeita a arrebatamentos passionais. Encontrar um analista foi para ela a tentativa de limitar sua aspiração a essa forma de vida que a fazia sofrer. Ela oscilava entre uma vida de razão, sem paixão, que era sem sabor, e as paixões, que a torturavam. A visão de uma satisfação autoerótica de seu parceiro tinha exacerbado a sua divisão sob o golpe de cólera que ela não sabia como apaziguar. O fio de suas associações a conduziu a evocar os berros que acompanhavam seu furor de vencer os combates esportivos que encarava e dos quais fizera sua profissão. Era como uma segunda natureza, que mal se distinguia de seu desejo de lutar com um parceiro que ela procurava sem parar. A trama de um cenário fantasmático veio à luz por meio de um sonho, repetido da infância, de castração das zonas erógenas de um parceiro que a fazia evocar um irmão. A visão do pênis ereto a colocara numa cólera que alimentava, reconstituía seu cenário fantasmático.

Essa cólera de menina indicava sua reação completamente freudiana ao constar o pênis no menino. Penisneid sem dúvida, mas também questionamento sobre essa emoção específica que as qualidades características do pai não puderam apaziguar. O nascimento dos filhos também não havia estabilizado a oscilação, e a cólera se transmutara em traço de caráter que obscurecia seu cotidiano familiar.

Mais do que uma emoção ou um afeto diante da impotência de sustentar um desejo, a cólera, em seu caráter repetitivo, à flor da pele, pode se tornar um estilo, um modo de reação à confrontação do Outro e, nessa medida, um sintoma.

Do mesmo modo que o afeto depressivo assume aspectos diferentes em relação à estrutura do sujeito – melancolia – ansiedade-depressão – fadiga – desmoronamento – abandonar-se –, a cólera se manifesta de diferentes maneiras: não está presente num bom número de passagens ao ato? O crime das irmãs Papin dá um exemplo disso. É uma forma de mau humor, cólera permanente a mínima, que toca no real, nos diz Lacan, enquanto aquilo que não convém (LACAN, 2001a, p. 527).

 

Melancolia

 

Em alguns casos clínicos, Freud constata que a autodepreciação não tem nenhuma relação com a situação real, e resulta disso que a autocrítica do melancólico não é marcada pela vergonha; o sujeito busca cobrir-se de vergonha, mas não a sente. Além do mais, ele não esconde sua desestima, exprime-a para todas as pessoas a seu redor – e às vezes numa ladainha incessante.

Suas autocríticas são, na verdade, destinadas a outrem, quer dizer, a um objeto perdido, mas por um mecanismo de identificação de queixas que caem sobre o eu do sujeito. Eis porque quando o sujeito busca rebelar-se contra o objeto, gritando-lhe sua cólera quando o insulta, ele se insulta e se desvaloriza a si mesmo. “A sombra do objeto tombou assim sobre o Eu” (FREUD, 1968, p. 156). Essas pessoas estão em rebelião e é por isso que quebram as pernas daqueles a seu redor.

 

Cavilhas e furos

 

As definições da cólera dadas por Lacan pertencem à primeira parte de seu ensino. Em outras palavras, a cólera testemunha aquilo que do real se coloca em oposição aos empreendimentos do desejo. Recentemente, uma colega me liga para mencionar que está dando continuidade a uma atividade que começamos juntos, mas que, sendo ela a responsável, mudou tudo para chegar à situação em que precederá de minha intervenção. Um afeto de cólera me submergiu, ocasionando algumas dificuldades para manter a calma que geralmente acompanha nossas relações de trabalho. Reconheci nela o caráter das raras cóleras que me afetam. A tradução física desse afeto o distingue radicalmente daquilo que dá irritação, da reação revoltada ou da indignação frente a uma situação que parece injusta ou contrária à sua opinião.

Uma primeira definição é dada por Lacan no Seminário VI, O desejo e sua interpretação (LACAN, 2013, p. 172): um afeto fundamental como a cólera não é nada além disso; o real que chega no momento em que fizemos uma belíssima trama simbólica, em que tudo vai muitíssimo bem, a ordem, a lei, nosso mérito e nosso bem querer. Percebemos de repente que as cavilhas não entram nos furinhos. É esse o reino do afeto da cólera, retomado em A ética da psicanálise: “como uma reação do sujeito a uma decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real. Em outras palavras (…) – é quando as pequenas cavilhas não cabem nos furinhos” (LACAN, 1986, p. 123).

Que o afeto seja do corpo, Lacan o retoma de Freud, corpo como lugar do Outro. O corpo é o “lugar do Outro” (LACAN, 2001b, p. 409), é o lugar onde o simbólico toma corpo para ali se incorporar, mas esse lugar tem por propriedade o gozo. A estrutura é o efeito de linguagem sobre o gozo. E o efeito primeiro é de perda: “de afeto, há apenas um, e é o objeto a” (LACAN, 2001a). Único afeto que não engana, a angústia: “Na angústia, (…) o sujeito é afetado pelo desejo do Outro. Ele é afetado por isso de uma maneira que devemos chamar de imediata, não dialetizável. É aí que a angústia está, no afeto do sujeito, o que não engana” (LACAN, 2005, p. 70).

Os diferentes exemplos expostos, pela diversidade de sua ocorrência e de seu desencadeamento, mostram que a cólera, no caso do semblante, se desdobra sobre um fundo de eu-não-quero-saber-nada-disso e não evita o logro, a menos que encontre a angústia no “encolerizado” ou no seu parceiro, dando-lhe, assim, sua bússola.

Se o mistério do falasser é que ele fala sem saber o que diz, como foi recordado quando do último congresso da AMP, fazendo do inconsciente freudiano o mistério desse corpo falante, é bem o nó da linguagem, do corpo e do inconsciente que a cólera sublinha ao lhe dar suas diferentes cores.

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Letícia Soares

 


Referências
ARTAUD, A. “L’ombilic des limbres” (1925) In: Œuvres complètes, Paris: Gallimard, 1976, p.46-47.
BARTHES, R. Le Neutre: notes de cours au Collège de France (1977-1978), Paris: Seiul, p.31.
BORTEYROU, X. BRUCHON-SCHWEIRZER M., SPIELBERGER C. D., “Une adaptation française du STAXI-2, inventairede colère-trait et de colère-était de C. D. Spielberger” In: L’encéphale, disponible sur internet.
BOYER-WEINMANN, M. “Thymotique d’une ordinaire: em quoi la colère est-elle littérairement féconde?” In: Fabula, Les colloques.
DESCARTES, R. Les Passions de l’âme. Paris: Le Livre de poche, 1990.
FREUD, S. Deuil et mélancolie. Paris: Gallimard, 1968, p. 156.
FREUD, S. “Lettre à Istvan Hollos” In: Ornicar?. n 32, 1984, p. 23-28.
FREUD, S. “Analyse d’une phobie d’un petit garçon de cinq ans” In: Cinq psychanalyses. Paris: PUF, 2003, p. 351.
LACAN, J. Le Séminaire, livre VII: l’éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 123.
LACAN, J. Le Seminaire, livre IV: La relation d’objet. Paris: Seuil, 1994, p. 365.
LACAN, J. “Note sur l’enfant” In: Autres Écrits. Paris: Seiul, 2001, p. 373.
LACAN, J. “Télévision” In: Autres Écrits. Paris: Seiul, 2001a, p. 527.
LACAN, J. “Radiophonie” In: Autres Écrits. Paris: Seiul, 2001b, p. 409.
LACAN, J. Des Noms-du-père. Paris: Seiul, 2005, p. 70.
LACAN, J. Le Séminaire livre VI: Le désir et son interprétation. Paris: La Martinière / Le Champ freudien, 2013, p. 172.
LÉVY, D. “La canne de Freud at autres moments de colère” In: Che vuoi?, n 29, 2008, p. 135-154.
MICHAUX, H. “Mouvements de l’être intérieur”, “Difficultés” (1930) In: Plume, précédé de Lointain intérieur. Paris: Gallimard, 1963, p.131.
SARTRE, J-P. Esquisse d’une théorie des émotions. Paris: Le livre de poche, 2000.
SPINOZA B. Éthique III. Paris: Garnier-Flammarion, 1993.
SPINOZA B. Éthique IV. Paris: Garnier-Flammarion, 1993a.
[1] MILLER, J.-A., “L’orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse”, enseignement prononcé dans le cadre du Departement de psychanalyse de l’université Paris VIII, cours du 26 novembre 2008, inédit.

JEAN-DANIEL MATET
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana. MILLER, J.-A., “L’orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse”, enseignement prononcé dans le cadre du Departement de psychanalyse de l’université Paris VIII, cours du 26 novembre 2008, inédit.



Pixo É Protesto, É Indignação

JULIANA FLORES

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

ENTREVISTA SOBRE O CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE DE BELO HORIZONTE – COM JULIANA FLORES

POR LUDMILLA FÉRES FARIA E MICHELLE SENA

 

JULIANA FLORES

 

ALMANAQUE: O que é o CURA?

JULIANA FLORES: O CURA – Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte – é um festival de arte urbana, esta que é inserida dentro da arte pública. Na arte pública, todas as linguagens são possíveis – esculturas, instalações, pinturas, murais, grafites. Porém, o CURA tem o foco, até o momento, na pintura.

ALMANAQUE: De onde partiu essa iniciativa?

JULIANA FLORES: O CURA surgiu de um desejo de duas produtoras culturais (Janaína Macruz e eu) e uma pintora (Priscila Amoni) de criar um festival de pintura de empenas, que são essas laterais cegas dos edifícios. É raro uma cidade que tenha tantas grandes empenas como Belo Horizonte. Essas laterais podem ser vistas como inúteis, um legado cinza, mas, para nós, são grandes telas à espera de uma obra. Com isso, também queríamos colocar Belo Horizonte no circuito mundial de street art, fomentar a cena e promover a cidade, que tem excelentes artistas, como uma cidade potente dentro da arte urbana.

Depois veio a ideia de um ponto único de contemplação: primeiro, porque Belo Horizonte tem vários mirantes, pela sua geografia. E, segundo, porque convivemos com arte urbana, com grafite, com ‘pixo’ no dia a dia e muitas vezes vemos, mas não paramos para contemplar. Então, para nós, fez sentido criar um espaço, assim, de fruição artística, de contemplação, de respiro: para você parar, olhar, observar e apreciar. Foi daí que surgiu a ideia de fazer esse mirante de arte urbana na Rua Sapucaí. E, pelas nossas pesquisas, é o primeiro mirante de arte urbana do mundo. Iniciamos o trabalho do festival em julho de 2015; a primeira edição aconteceu em julho de 2017; houve uma edição especial também em dezembro desse ano e, a última edição, em novembro de 2018.

 

ALMANAQUE: Por que o nome CURA?

JULIANA FLORES: O CURA é o nome do festival: Circuito Urbano de Arte. É uma brincadeira com a palavra ‘cura’. Eu, por exemplo, não acredito que a arte cure a cidade, acho que o que cura a cidade é a justiça social, a educação, outras coisas.

O que nós queríamos era criar um circuito pelo qual as pessoas pudessem andar a pé pelos murais, ou de bicicleta; fazer esse passeio no Centro para apreciar os murais, que hoje são dez. Ou seja, a ideia era a de incluir as pessoas. Embora depois tenhamos percebido que é um festival que também exclui muito. Se BH tem, pelo menos, cinquenta artistas ótimos, que poderiam pintar no CURA, até hoje só cinco pintaram. Salvo a Empena de Letras[1], em que foi possível inserir um número maior: foram 21 artistas.

Essa exclusão deu início às reivindicações. A Empena de Letras, por exemplo, foi da galera do grafite raiz, artistas que fazem letra, que fazem vandal. Aqueles que muitas vezes são artistas de periferia, que pintam a periferia de Belo Horizonte, mas que também têm um espaço no festival. Junto com essa, tivemos outras reivindicações. Uma reinvindicação muito legítima foi a das mulheres negras, das artistas, que perguntavam: Por que a mulher negra está sendo representada, mas não é autora?

 

ALMANAQUE: E de que forma vocês abordaram essas reivindicações?

JULIANA FLORES: Nossa resposta foi discutir essas reivindicações no festival. Então, assim como temos a curadoria do festival, da pintura das empenas, temos a curadoria da programação[2], que é onde vamos discutir esses temas.

Nesse sentido, convidamos vários artistas para debater sobre a ausência de negrxs nas artes e sobre a participação das mulheres nas artes visuais para falar da história do grafite. Achamos muito relevante discutir sobre a Empena de Letras, pois a letra não é um grafite menor nem se confunde com o ‘pixo’, e, para nós, é importante valorizar os grafite-writers, que fazem a arte fundadora do grafite. É uma postura política e estética colocar letra no festival.

Também percebemos a importância de fazer uma galeria de arte urbana para fomentar o mercado, porque BH tem ótimos artistas, mas alguns deles, que até então só tinham pintado no muro, puderam vender pela primeira vez as suas obras. Foi quando surgiu a Fluxo Galeria de Arte Urbana, que acontece junto à programação do festival.

 

ALMANAQUE: Como foi a escolha das pinturas?

JULIANA FLORES: A ideia foi fazer uma coleção que tivesse diversidade, que representasse vários estilos que estão na cena. Nessa edição tivemos a Empena de Letras, pintada por 21 artistas; a empena pintada por Criola[3], que tem seu trabalho marcado pelas cores vibrantes e pela pesquisa de matrizes africanas; a empena pintada pela artista argentina Hyuro[4], um dos principais nomes do muralismo contemporâneo, que abordou a questão da liberdade feminina; e também uma empena feita pelo Comum[5], com stencil[6], em que temos o chamado “jeguerê”, que é a imagem de quatro pichadores fazendo uma escada humana para pichar no alto.

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE BELO HORIZONTE

 

ALMANAQUE: Duas empenas foram pichadas durante o festival. Quais os efeitos disso para o CURA?

JULIANA FLORES: O fato de termos duas empenas pichadas trouxe o ‘pixo’ para o centro das nossas discussões.

A primeira pichação feita na Empena de Letras foi muito simbólica, porque foi feita na faixa vermelha, acima de toda a obra. Dentro do universo do ‘pixo’, é como se ele tivesse quebrado a empena, no sentido de que “eu fui maior do que esses vinte artistas que estão embaixo de mim. Eu que fui no vandal, quebrei esses vinte artistas que foram convidados pelo festival”. Em menos de 24 horas nós apagamos o ‘pixo’ da Empena de Letras e isso deu uma repercussão. Essa empena tinha curadoria de dois artistas e também o artista que estava esperando sua vez, e pintaria no lugar onde foi feito o ‘pixo’. Se os três decidiram que queriam continuar com o plano e apagar, a gente respeitou. Pela primeira vez eu percebi que a cidade ficou do lado do pichador. Porque, quando um festival grande apaga o ‘pixo’, e é um festival de arte, as pessoas começam a refletir: “Uai, mas ele está reivindicando o espaço dele”, “mas por que vocês estão apagando, se vocês valorizam as intervenções urbanas?”.

Após esse primeiro ‘pixo’ ter sido apagado, o mesmo pichador foi para a empena ao lado. Também foi muito simbólico, pois o que está representado nessa empena é o chamado “jeguerê” e uma gaivota. A gaivota é o símbolo do ‘pixo’: significa que se chegou muito alto, como um “salve”, dizendo que se está lá em cima. Novamente, o pichador, no vandal, pichou acima, mostrando que chegou mais alto, acima da gaivota. Esse ‘pixo’ não foi apagado.

 

ALMANAQUE: O que é o ‘pixo’?

JULIANA FLORES: Para mim é um grito de “eu existo”, um grito de “eu estou aqui”, um grito de “eu estou reivindicando um lugar que não me foi dado, mas eu vou ocupar esse lugar”. E o CURA não deu espaço nessa edição para o ‘pixo’, e não sei também se temos que dar, se interessa para um pichador pintar com balancinho, seguro de vida e autorização.

 

ALMANAQUE: O ‘pixo’ é vandal?

JULIANA FLORES: O ‘pixo’ é pichar onde você não pode pichar. É protesto, é indignação… é uma mensagem, é um grito! Então será que faz sentido fazer empena de ‘pixo’? Como seria uma empena de ‘pixo’? Simbolicamente é muito mais forte o pichador ganhar a parede dele, ou seja, ir lá e pintar sem autorização nenhuma, garantir o seu “lugar”, do que ser convidado pelo festival. Se ele estivesse na Empena de Letras como convidado, saiba que não teria a mesma repercussão que ele ter ido lá e pichado o topo. Não teria mesmo.

O ‘pixo’ também é aparecer, porque são pessoas que estão invisíveis na sociedade e picham grande, picham alto, picham uma empena maravilhosa: eles estão sendo vistos. Pra eles é muito importante serem vistos, isso que é o ‘pixo’. Então, no CURA inteiro, o pichador que mais chamou atenção foi o que fez o vandal, e não os que participaram com cinto de segurança, com balancinho, com seguro de vida.

É uma guerra que não é de armas, mas existe uma disputa na cidade, disputa por território.

 

ALMANAQUE: De que forma a questão do ‘pixo’ foi abordada nas edições anteriores do festival?

JULIANA FLORES: Na edição de aniversário da cidade, duas das empenas escolhidas tinham ‘pixos’ icônicos. Quando mostramos na internet, começaram os comentários contra. Eram ‘pixos’ difíceis, em que as pessoas arriscaram a sua vida, e isso, dentro do ‘pixo’ é valorizado: o risco. Isso gerou um debate e a participação de todos os artistas[7] e pichadores das empenas[8].

Em uma delas, a ideia foi fazer uma textura inteira. Eram quase 2.000 m2 de empena, a maior empena do CURA, só com ‘pixo’. Então são duas mulheres nuas dançando (representa uma homenagem às bruxas de antigamente, que tinham o poder e o conhecimento sobre o próprio corpo, que seriam as feministas de antigamente) em uma textura inteira de ‘pixo’. Eu acho que ficou uma empena maravilhosa. É uma das minhas preferidas. Mas, quando essa estética do ‘pixo’ é absorvida por um mercado – querendo ou não, o CURA representa mercado, um lugar institucional, por mais que seja um festival de arte de rua –, é ‘pixo’ ou é um trabalho de arte com a estética do ‘pixo’? Não sei dar essa resposta.

 

ALMANAQUE: O que representa o vestido pintado no mural da Hyuro?

JULIANA FLORES: É um voal e é muito delicado. A Hyuro tem uma arte muito feminista, mas muito sutil. Não é todo mundo que lê o feminismo dos murais dela. Essa obra se chama O que fica e fala sobre as mulheres que fizeram aborto ilegal. Na Europa, o cabide tem a mesma conotação, o mesmo símbolo das agulhas de crochê na América Latina: as mulheres na América Latina abortavam com agulha de crochê. Na Europa elas abortavam com um cabide; abriam um cabide e se fazia um instrumento de aborto. Ela, ao pendurar um vestido num cabide, tá falando disso… ela tá falando de aborto.

 

ALMANAQUE: Como podemos pensar a política no festival?

JULIANA FLORES: Este ano achamos importante levantar bandeiras. O que foi feito no material produzido pela nossa equipe de comunicação, que abordava a diversidade religiosa, a questão LGBT, a criminalização das drogas, a questão feminista.

É um trabalho político. A gente viu que não dava pra fingir que não tem que pensar em política. Ao contrário, num momento como este que a gente vive, a gente precisa marcar a posição sim, assumir posições… Eu acho que quem se excluir das discussões, ficar em cima do muro, não quiser criar desconforto, vai se arrepender no futuro. Não dá pra fingir que não tem nada acontecendo, então a gente quis ser político sim.

 

 


https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/11/08/interna_gerais,1004227/confira-as-atividades-gratuitas-do-cura-para-esse-fim-de-semana.shtml
[3] Edifício Chiquito Lopes – Rua São Paulo, 351. 30m de largura X 45,50m de altura.
[4] O que fica. Amazonas Palace Hotel – Avenida Amazonas, 120. 26,50m de largura X 40m de altura.
[5] Edifício Satélite – Rua da Bahia, 478. 8,65m de largura X 65,70m de altura.
[6] Stencil é uma técnica que usa máscaras de recortes de papel aplicadas no vazado. Na empena foram usadas mais de 500 máscaras.
[7] Milu Correch e DMS.
[8] Edifício Príncipe de Gales – Rua Tupinambás, 179, Centro. Artista: Davi Melo Santos; e Garagem São José – Rua dos Tupis, 70, Centro. Artista: Milu Correch

JULIANA FLORES
LUDMILLA FÉRES FARIA MICHELLE SENA



Entrevista Damasia Amadeo De Freda

DAMASIA AMADEO DE FREDA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE
NOVEMBRO/2018

DAMASIA

CIEN MINAS: O CIEN, em sua especificidade, consiste em apreender, via conversação, o ponto de real ao qual se está confrontado nas diversas disciplinas diante do esforço de normatização. Você salienta em vários textos que os jovens, atualmente, apresentam um “não sabe por quê” que não é proveniente de uma verdade oculta no sintoma. Esse “não sabe por quê” parece se referir a uma desorientação pela ausência de coordenadas identificatórias sólidas. Qual é o desafio que os adolescentes colocam para a prática do CIEN atualmente?

 

DAMASIA FREDA: O que é possível extrair da clínica com adolescentes e crianças para o CIEN, a partir da particularidade que encontrei – o “não saber o que se passa” –, é acompanhado de uma grande preocupação por parte das escolas e de instituições sociais. Há uma imensa preocupação por parte dos agentes sociais em relação a certos sintomas que crianças e adolescentes apresentam. Essa preocupação por parte dos agentes, por não saberem o que fazer, leva à proposição de uma normatização via protocolos dentro das escolas. Isso é uma tendência da sociedade, é uma tendência dos governos também: a normatização de incluí-los, crianças e adolescentes, dentro de protocolos de comportamentos, devido a essa desorientação que há também entre os adultos, por não saberem, por não entenderem determinadas condutas nas crianças nos adolescentes. E, atualmente, em minha prática institucional, na universidade, onde temos centros de atenção às crianças e adolescentes, o que mais me chama a atenção é a quantidade de demandas das escolas pelo que se chama de hiperatividade ou síndrome de déficit de atenção nas crianças, por lhes atribuírem uma falta de atenção, uma falta de concentração associada a uma hiperatividade. Ou que essa hiperatividade faz com que não possam se concentrar nas tarefas que se acredita serem as centrais. É importante notar que crianças vistas com base nessa catalogação não apresentam essa hiperatividade no consultório nem distração às perguntas que são feitas. Há uma normatização. Colocam-se nomes em mudanças que se apresentam na cultura, mudanças de gerações, mudanças que ocorrem com a entrada no novo milênio. Crianças que chegam a partir do ano 2000 são hoje os adolescentes tardios. Para os que nascem em 2010, 2011, por exemplo, temos que pensar que as configurações são muito distintas. Já são nascidas no mundo virtual, nas novas tecnologias; têm uma facilidade e destreza para manejar os aparatos eletrônicos que a maioria dos adultos não tem. Isso faz com que tenham uma relação distinta com o conhecimento, muito diferente da imagem que tínhamos. Há muitas informações que podem buscar simultaneamente. Apresentam, assim, uma capacidade de atenção muito distinta daquela que se pretende, de que prestem atenção ao professor ou ao educador, a essa figura do saber. Esse problema faz com que o professor ou o educador, como agente do saber, como sujeito suposto saber, como chamamos nós, psicanalistas, já não funcione mais. A instituição escolar é primitiva para essas crianças e adolescentes.

Há que se considerar que há uma mudança de paradigma no século XXI e que as crianças são os protagonistas que encarnam esse novo paradigma, e, nesse sentido, estão mais adiantadas que nós, adultos, que pertencemos a uma geração anterior. Nesse sentido, creio que os adultos estão mais desorientados que as crianças.

 

CIEN MINAS: Então a desorientação está mais do lado dos adultos, dos educadores?

 

DAMASIA FREDA: Em relação a isso, sim. Além disso, creio que – isso é uma hipótese – se há uma desorientação ou se há condutas que manifestam alguns adolescentes que respondem a uma desorientação, os adultos não estão mais orientados que eles. Essa desorientação está localizada numa ruptura que existe entre a cultura e a sociedade no século XIX e no século XX, sede dessa transição até uma nova configuração social. Antes havia o que era chamado de instituições sólidas, a ideia de Pai ou de qualquer figura de autoridade para, de alguma maneira, representar essa figura patriarcal, como chamam algumas correntes. Desde a psicanálise – não só a psicanálise, mas a sociologia, a história, a antropologia –, classificaram o século XX como o século em que essa figura da autoridade foi desaparecendo, abrandando, se dessolidificando para que passássemos ao que chamamos de uma sociedade líquida. Essa é uma hipótese e continua sendo, de alguma maneira. Essa noção que nós, na psicanálise, chamamos de Pai. Freud chamou de Pai essa ideia central, o núcleo central do Complexo de Édipo, que podia ser descoberto a partir do sintoma, desarticulando-o e descobrindo as condições edípicas de cada um, cujo fator principal era o Pai. Lacan, cujas ideias seguimos, traz o significante Nome do Pai. Tudo isso é o que foi desarticulado durante o século XX, chegando a sua forma mais contundente no século XXI. Minha ideia, minha hipótese, é a de que a desorientação, ou, dizendo de forma afirmativa, a orientação dada pelo Pai, foi perdida. A perda dessa bússola deu lugar a uma desorientação. Observamos mais essa desorientação nos adolescentes, mais que nos adultos e mais que nas crianças. Por que mais na adolescência que em outras faixas etárias? Porque, como Freud dizia, seguramente com razão, na infância, recorria-se ao Pai como elemento, sobretudo, de identificação. Para Freud, o Pai era a primeira figura de identificação; a primeira forma de identificação era com a figura paterna, ou com o Pai como noção. Por outro lado, Freud destacava em seus outros textos que o adolescente se separava do Pai para eleger outro – os professores, tutores, enfim, os orientadores de seu futuro –, para concluir a etapa da adolescência e passar à vida adulta. Se essa noção de Pai está afetada desde o início, na adolescência, por haver essa passagem de uma figura a outra, se a figura orientadora está afetada, nos deixa nessa desorientação. Essa era minha ideia. Essa desorientação manifestada no “não sei o que me passa, não sei o que faço aqui… o que se passa comigo não tem nenhum sentido digno de ser tratado pela palavra…” se faz presente também nos agentes envolvidos com os adolescentes, porque não sabem o que fazer com eles. Então estamos todos desorientados, devido a essa crise. O orientador, essa noção de Pai, não é mais regulador das famílias, dos governos. Não encontramos mais isso.

 

CIEN MINAS: Recentemente, no CIEN Minas, em uma conversação com professores, educadores e familiares, ficou evidente o recurso à medicalização de crianças e adolescentes como saída para impasses enfrentados no campo da educação: os professores dizem que não sabem mais o que fazer com problemas que são da família, e os familiares, por sua vez, dizem que estão solitários, sem apoio. Em outra conversação com profissionais do campo do Direito, é marcada a situação na qual, primordialmente, pré-adolescentes e adolescentes, quando adotados, são devolvidos, como mercadorias, porque não “agradam” as famílias adotivas. Uma pré-adolescente considerada insuportável faz uma peregrinação por algumas famílias. Como trabalhar com esses impasses na conversação?

 

DAMASIA FREDA: Primeiro, a medicalização de crianças e adolescentes e, depois, a adoção de adolescentes que são devolvidos como objetos de mercadoria. O que chama mais atenção é como é natural para as famílias medicar as crianças, por exemplo, dar um sedativo para que não incomodem à noite; como as famílias consideram normal medicar uma criança ou adolescente porque um neurologista indica por considerar que haja um déficit de atenção. É consequência do progresso da ciência a forma quase planetária que assumiu o sistema capitalista, no qual o que se ambiciona como objetivo a ser alcançado é a mercadoria. Se há algo que designa um valor humano, algo que designa uma pessoa, já não é o que se sabe, a autoridade que se impõe, mas sim os objetos que tem. Daí as pessoas passam a ser mercadorias. Isso se vê muito claramente nas adoções. Os pais, quando vão adotar, querem uma criança com determinadas características, como objetos. As tecnologias já permitem manipular os genes não para evitar doenças, mas porque pessoas querem ter filhos com determinadas características, como objetos. Isso faz com que eu possa devolver uma criança, como um produto num supermercado, porque não me satisfaz, porque não funciona.

 

CIEN MINAS: Em seu livro El adolescente actual você comenta sobre a conversação no subtítulo “La conversación y lá lengua desarticula”. Você diria que, na atualidade, os adolescentes continuam falando entre si, mas numa falação sem se dirigir ao Outro, de forma desarticulada em relação ao Outro?

A conversação poderia propiciar ao adolescente fazer uma nova articulação com algum Outro?

 

DAMASIA FREDA: Sim. Não digo que não. Os adolescentes conversam entre eles ou não, na medida em que conversam com os aparatos eletrônicos, conectados com muitos outros adolescentes. Teríamos que ver essas conversações também, já que hoje em dia predominam as conversações virtuais, e não a conversação com grupos de amigos.

 

CIEN MINAS: Teria um efeito distinto quando um analista convida para um espaço de conversação?

 

DAMASIA FREDA: O que creio é uma ideia, porque também sou docente, na universidade, de alunos que também são adolescentes, de uma adolescência prolongada, porque são jovens. Creio que há uma crise de desejo de saber como a academia o propõe, tal como Freud considerava. O bom encontro com um professor era determinante para Freud. O desejo de saber, nesse sentido, está muito modificado. Os adolescentes atuais têm uma relação distinta com o saber. Eles sabem. Não é que eles não saibam, mas têm uma relação diferente. Necessitam do Google para saber as disciplinas, para saber história, geografia. O problema não é que não saibam; é que há uma ruptura com o Outro encarnado como figura de saber, como tesouro de saber. Se nós procurarmos a conversação para rearticular isso, não me parece ser recomendável, porque o paradigma está mudado. Me parece que é mais positivo entender como os adolescentes interpretam a sociedade contemporânea do que como os interpretarmos.

 

CIEN MINAS: Nossa última pergunta é sobre o projeto que vimos ali da rua Sapucaí, que é o CURA, sobre os grafites. O modo como o adolescente se apresenta no mundo muitas vezes passa por algo marginal, fora da Lei. A pichação, diferentemente do grafite, é vista como algo marginal, fora da Lei. O que você poderia nos dizer sobre a manifestação dos adolescentes em relação a esses dois modos de agir na cidade, tanto a pichação quanto o grafite?

 

DAMASIA FREDA: A pichação, diferentemente do grafite, sempre foi uma manifestação política dos jovens e adolescentes com um compromisso social que os adolescentes atuais não mostram. As pichações estavam sempre relacionadas a manifestações políticas de oposição, reivindicação… já o grafite é uma arte. Não posso dizer muito dos murais da cidade de BH, que são charmosos e me encanta que se cubram enormes paredes de edifícios. São grafites. Recordo-me do caso de um adolescente que fazia grafites. É claro que os grafites têm essa característica de utilizar os muros, as paredes. Quando entra o município, o governo, perdem o encanto (risos). Recordo que o adolescente me relatava que saía de noite com amigos para procurar espaços diferentes, entre eles, vagões de metrô. Havia trechos com leis muito específicas, que diziam que não poderia, que proibia grafitar os monumentos históricos e os patrimônios da humanidade. Respeitavam determinados espaços. A arte é sempre transgressora; não é possível fazer arte quando sou incapaz de inovar, fazer algo novo. A transgressão – e a arte é isso também – é instalar uma Lei nova, uma nova regra dentro desse movimento artístico. Quando está muito normatizado, é difícil que a criatividade surja. A arte é, sobretudo, liberdade de expressão.

Na ditadura militar argentina, os comandantes decidiram pintar de branco os troncos das árvores até um metro e meio de sua altura. Então, eram todas iguais.

Aqui se passa o contrário. Na paisagem da cidade há essas figuras enormes, diferentes… esse vestido, por exemplo. Creio que é um tema interessante que o Brasil perceba se os grafites e as pichações continuarão existindo. Seria bom tirar fotografias. Os grafites nos dizem se a cidade transpira arte ou não. Pessoalmente, me encantam os grafites e as pichações de jovens e adolescentes no Brasil e, sinceramente, espero que não as pintem de branco.




A Violência Na Civilização

SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Em O mal-estar na civilização, Freud anuncia que a civilização abriga em si seu obstáculo mais poderoso: a inclinação para a agressão como ineliminável à natureza humana e principal derivado e representante da pulsão de morte. Freud afirma a impossibilidade de erradicar essa “maldade constituinte do humano” e descreve a evolução da civilização como uma luta entre Eros e a Morte.

 

A violência, como uma manifestação atual desse mal-estar humano, assume formas extremas e invade a totalidade da vida social. Seu incremento não anula seu caráter atemporal e inerente à civilização. Freud fez do assassinato do pai primevo o fundamento da sociedade dos irmãos e da lei da proibição do incesto, e suas análises sobre a guerra ensinam que “a violência é a civilização” (BROUSSE, 2017, p. 10).

 

Freud e a guerra

 

Os horrores da Primeira Guerra Mundial levaram Freud a interpretar a cultura, seu mal-estar, o futuro de suas ilusões e a psicologia de suas massas. Em Reflexões sobre os tempos de guerra e morte, ele destaca como o progresso científico não moderara a violência, dotando-a, pelo contrário, de armas que ampliavam seu alcance. Mais tarde, em Por que a Guerra?, ele afirma que uma comunidade se mantém unida pela força coercitiva da violência e pelas identificações que ligam seus membros entre si. Freud propõe uma evolução da civilização que vai da violência ao direito. A lei, que, originalmente, era a dominação pela força bruta de um único indivíduo, passa a representar a união do grupo, sem deixar de ser violência pronta a se voltar contra quem a ela se opor. Sua teoria das pulsões estabelece que as ações humanas “surgem da ação confluente ou mutuamente contrária” de Eros e Thanatos, reafirmando que “de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens” (FREUD, 1932, 254).

 

Da psicologia dos grupos ao mal-estar na civilização

 

Segundo Miller, Psicologia dos grupos é uma teoria política que introduz o Outro sob a forma do Ideal do eu e mostra o poder apaziguador do significante mestre na coesão amorosa da humanidade. O mal-estar na civilização, por sua vez, corrige essa teoria ao testemunhar o fracasso da identificação simbólica e do amor fundado nessa identificação para resolver o problema do gozo e ao fazer surgir, nesse lugar, a figura do supereu (MILLER, 2010, p. 15-17).

 

Nesse percurso “do amor à morte” (MILLER, 2010b), trata-se do destino do gozo pulsional na ordem social. É pela via do amor que Freud constrói, em dois tempos, o conceito de supereu: no primeiro, não há supereu, mas dependência do amor do Outro e, no segundo, o supereu é a introjeção do Outro que sabe e do qual nada pode ser escondido, resultando na culpa universal.

 

Para Miller, essa gênese do supereu a partir da introjeção simbólica do Outro é retomada por Freud do lado do gozo, em um confronto direto entre as pulsões e o supereu, quando afirma que este se nutre da satisfação pulsional à qual se renunciou por amor. Quanto mais se renuncia ao gozo, mais se goza dessa renúncia e mais culpado é o sujeito, sendo o gozo a face cruel das exigências do supereu. Não há renúncia no nível do gozo, pode-se experimentá-lo diretamente ou através de sua renuncia. Formula-se a crueldade sádica do supereu e conclui-se que as exigências da consciência moral se sustentam de exigências pulsionais. Toda moral, ao tentar eliminar o mal, só faz revelá-lo. Freud se detém, então, diante da mais elevada exigência moral da civilização, o mandamento “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, e enuncia que é “porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo” (FREUD, 1929, p. 132-133).

 

Para Lacan, o que detém Freud é a presença dessa maldade profunda que habita em cada um: “E o que é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o do meu gozo, do que não posso me aproximar?” (LACAN, 1988, p. 227).

 

A violência do significante e a lógica lacaniana do laço social

 

Em sua origem, a psicanálise é confrontada com uma violência que Freud interpretou como crime a partir da lei, fundando a família e a sociedade nos crimes do parricídio e do incesto, com os mitos de Édipo de Totem e tabu, ambos regidos pela interdição paterna. Lacan, por sua vez, formalizou o Édipo a partir das leis da linguagem com o conceito de metáfora paterna. Ele fez do Nome-do-Pai o operador simbólico, que ordena as relações do sujeito com a linguagem, e do objeto a, um conceito que permite deslocar a castração e o recalque do interdito paterno para a própria linguagem. Com Lacan, a castração é deduzida da linguagem como uma violência inerente ao significante, expressa no axioma da fantasia “bate-se numa criança”. Bater “é o modo de funcionamento do significante sobre o corpo, o que bate no corpo é o significante” (BROUSSE, 2017, p. 24).

 

Suporte da língua e de suas formas de satisfação pulsional, o significante é a primeira violência exercida sobre o corpo (BASSOLS, 2018). O gozo proveniente do encontro contingente entre as palavras e o corpo faz irrupção no campo do simbólico como um gozo que lhe escapa. Lacan assinala esse ponto onde reina a violência: “Acaso não sabemos que nos confins onde a fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali mesmo sem que a provoquemos?” (LACAN, 1998, p. 376). O domínio da violência começa onde se rompe o pacto simbólico da palavra, e a pulsão aparece como pura pulsão de morte.

 

No campo do significante, Lacan diferenciou o efeito de sentido, resultante da articulação significante, do efeito de gozo, correlato da ex-sistência do S1 sozinho, fora do sentido, fora da lei, que opera onde não há representação. O S1 sozinho não é um significante do discurso universal nem do discurso do inconsciente, mas um significante impossível de negativizar, que tem valor de real, que não é do Outro, mas do Um (MILLER, 2003, p. 11). O gozo se inscreve a partir do Um sozinho como uma satisfação singular, surgida do que não se partilha, do gozo do corpo próprio, gozo autoerótico que dispensa o Outro. “O corpo ‘se goza’ sozinho e [por isso] o encontro com o sexual faz furo, troumatisme” (SOLANO-SUAREZ, 2018, p. 16) constituinte de uma forclusão generalizada.

 

No fim do seu ensino, Lacan inverte sua perspectiva inicial, a do Outro, para centrar-se no mais singular a cada um. O essencial passa a ser o Um do gozo, que não tem contrário, segundo a máxima lacaniana de que, no nível da pulsão, “o sujeito é sempre feliz”. Para Miller, passa a haver “apenas percursos, arranjos e regimes de gozo” (MILLER, 2011, p. 11).

 

A lógica do laço social será construída a partir desse troumatisme, dessa primeira rejeição pulsional decorrente da entrada no universo simbólico, rejeição estrutural do gozo, presente como uma alteridade radical interna ao Outro e suporte das singularidades de gozo que não são universais nem universalizáveis, mas inclassificáveis. “Todo conjunto humano comporta (…) um gozo deslocado, um não saber sobre o gozo” e, nessa lógica, “o crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de aniquilar aquele que encarna o gozo que eu rejeito” (LAURENT, 2014).

 

Lacan propõe um regime de laço social que não passa pela identificação a um traço comum, mas funciona como um “corpo que faz laço com outros corpos, para além das identificações, por uma experiência de gozo comum” (LAURENT, 2017, p. 39). Freud parte da ‘interdição’ paterna, e Lacan constata que é ‘impossível’ gozar do corpo do Outro, o comum sendo a discórdia entre o corpo e o Outro, que não existe. O que existe é o corpo afetado pela linguagem, na medida em que a palavra condiciona seu gozo. Nesse nível, o Outro é o corpo. Nenhum discurso é capaz de capturar esse gozo opaco às tentativas de significação do Outro, pois a supremacia do Um provém da própria linguagem e configura um núcleo de solidão ineliminável. Não há universal que elimine o trauma implicado no gozo ou apazigue a discórdia entre o corpo e o Outro.

 

Esse furo no fundamento de todo laço social, constituído pela ‘extimidade’ do gozo, implica um impossível que se traduz como ódio ao gozo do Outro suposto subtraí-lo do sujeito. Se o Outro é Outro dentro de mim mesmo, em posição de ‘extimidade’, esse ódio ao gozo do Outro é o ódio ao meu próprio gozo (MILLER, 2010c, p. 43). “Nada concentra mais ódio do que esse dizer onde se situa a ex-sistência” (LACAN, 1985, p. 164), cujo suporte é o Um da diferença absoluta. A essência da violência é essa rejeição primordial do gozo, que designa o real do Outro. As violências são tentativas, sempre falidas, de recuperar o que foi expulso e perdido, de alcançar esse Outro gozo (HOLGUIN, 2016, p. 60).

 

A violência e a época

 

Com o modelo edipiano de regulação do gozo, referido ao interdito paterno, Freud interpretou a sociedade disciplinar de sua época e fez da neurose uma norma. Lacan reconheceu essa função do Pai freudiano na estrutura da sexuação masculina como a matriz de uma relação hierárquica constituída como um todo incompleto. Segundo Miller, a sociedade da globalização deixou de viver sob esse regime paterno e cedeu à inconsistência do não-todo feminino, em que nada existe em posição de interdito e um ’enxame’ de possibilidades é introduzido, “uma constelação de significantes, mais do que uma unicidade do significante-mestre” (MILLER, 2011b, p. 15). Um S1 passa a valer tanto quanto qualquer outro, e esse enxame de S1s sozinhos, correlatos da inexistência da relação sexual, faz da norma edípica um regime de gozo entre outros.

 

Na clínica do Um sozinho, o sintoma torna-se o regime próprio do gozo que não pode ser negativizado, “o sujeito experimentando-o necessariamente” como uma satisfação substitutiva no lugar de uma satisfação não interditada, mas impossível de ser alcançada: a da relação sexual, que não existe. Essa metaforização do gozo na língua permite soluções que prescindem da função paterna e se dão com os recursos do sintoma numa articulação direta entre gozo e significante, ligada ao corpo (DRUMMOND, 2018). O sinthoma torna-se o equivalente da função do pai: “um operador de consistência que mantém juntos o corpo, a palavra e o real” (SOLANO-SUAREZ, 2018, p. 16). O Outro que não existe tem um corpo como lugar do gozo e ponto de inserção do aparelho significante de onde o discurso se origina como laço social, não havendo discurso que não seja do gozo.

 

Lacan dá conta do modo singular do funcionamento do significante sobre o corpo pela presença de um gozo infiltrado em toda comunicação humana e confirma a tese de que não há comunicação, mas mal-entendido. A prática analítica passa a depender do real tal como ele advém em cada época (LACAN, 2011, p. 19).

 

Para M-H Brousse, a violência é um significante mestre da civilização atual, quando a articulação entre castração e NP deixou de funcionar em termos de sentido. Para ela, essa ascensão da violência à posição de S1 deve-se à ascensão atual da categoria do real. A violência não é mais capturada pelos significantes que lhe davam o sentido do sacrifício, da culpa, do castigo, mas surge sem a lei e constitui um sentido mínimo dado a esse real (BROUSSE, 2017, p. 18-19).

 

Brousse observa que, na fantasia “bate-se numa criança”, a atribuição do gozo ao pai, que dá sentido de amor ao bater, permite que seja por amor que o gozo condescenda ao desejo. Hoje, quando esse Outro responsável pelo gozo desfalece e o gozo deixa de ser-lhe atribuído, passamos da heterossexualidade ao autoerotismo generalizado. Verifica-se uma dissociação entre o gozo do corpo e o amor pelo Outro e, como consequência, uma impossibilidade de localizar esse real.

 

Brousse isola dois novos tratamentos dessa marca do gozo no corpo, que não passam pelo pai: o tratamento pelo ego e o tratamento pela crença na fantasia. No tratamento pelo ego, recorre-se à imagem mais que ao significante para fazer-se um corpo à medida. São práticas de corte com o gozo que implicam a passagem da violência ao imaginário do corpo sem recurso ao Outro: o corpo tatuado, o corpo cortado ou escarificado, o corpo customizado. Quanto à crença na fantasia, fortalece-se seu uso público. A fantasia passa de simbólico-imaginário a real. Apaga-se seu uso como marco da realidade, e esta é invadida pela fantasia. O sujeito identifica-se com o objeto de gozo em uma posição masoquista e, a propósito da violência, transforma-se em vítima (BROUSSE, 2017b, p. 27-28).

 

Vivemos a contradição de uma época na qual o respeito às diferenças convive com um processo de homogeneização cuja magnitude faz desaparecer a categoria do Outro e dá lugar a uma subjetividade embotada pelo gozo, de narcisismo crescente e desejo minguante, surgida na passagem do direito ao gozo à obrigação de gozar (BARROS, 2016, p. 97).

 

Essa era pós-patriarcal nasce com o capitalismo que, ao operar pela destituição da autoridade, se torna paradoxalmente um poder totalitário sem precedentes, abrigado no interior das democracias mais liberais. Com a ajuda da ciência, o Um tirânico do capitalismo não se limita a tirar a vida, mas a produz, administra e controla. Nunca o poder teve tanto poder como agora, sendo tanto mais poderoso quanto mais prescinde da autoridade, isto é, quanto mais acéfalo ele for. A obediência sem autoridade está implícita na fórmula do discurso capitalista que faz pensar que o objeto de gozo cura a divisão subjetiva. O supereu é a verdade desse sujeito consumidor que não necessita obedecer a uma autoridade, pois sua exploração é uma autoexploração. Ele obedece aos imperativos do supereu, purificado e aperfeiçoado pela destituição da autoridade paterna (BARROS, 2016, p. 102).

 

A permissão de gozar não muda nada quanto à estrutura do gozo, da mesma forma que não faz falta o pai que interdita para explicar seus excessos. Interessa-nos o que Miller destaca no texto Crianças violentas sobre a violência como pura irrupção da pulsão de morte, quando esses Erzats do gozo, que são a fantasia e o sintoma, não operam e, mais além do ódio e do amor, a maldade do Outro se realiza.

 

A essa desordem no real, característica da época, a psicanálise faz valer o real sem lei e fora do sentido como o lugar no qual cada Um pode alojar seu sintoma, sua solidão e seu exílio próprio à linguagem. Nessa desordem do mundo, a psicanálise lê o não-todo e separa o real sem lei de toda tentativa de retificação subjetiva de massa. Ela opera a partir do “há Um” como o que jamais constituirá um conjunto unificado. Ela vai contra o universal e a dominação, preferindo sempre o Outro ao Um. Seu uso do simbólico é antissegregativo e se opõe à homogeneização promovida pela união da ciência com o mercado, permitindo que cada um encontre a solução para o traumatismo do significante e fazendo valer a verdadeira autoridade, a do significante mestre, que transcreve no simbólico a divisão do sujeito face à pulsão. É, ainda, orientando-se por esse real que ela resiste às tentativas que visam segregá-la ou reduzi-la a uma terapêutica, indo contra a diferença absoluta e a dignidade do sujeito que ela promove.

 

 


REFERÊNCIAS
BARROS, M. Obediencia sin autoridad: o sadismo nuestro de cada día. Violencia y radicalización, Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016, p.95-102.
BASSOL, M. “Acto de violencia”. Rayuela, n. 4, agosto 2018.
Disponível em :
http://www.revistarayuela.com/es/004/template.php?file=Notas/Acto-de-violencia.html
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BOUSSE, M-H. “Violencia en las famílias” In: Bitácora lacaniana, Buenos Aires, Grama Ediciones, número extraordinário, p.21-36, abril 2017b.
DRUMMOND, C. “Que nomeação advém da queda do falocentrismo” In: Polifonias #4, Boletim do XXII Encontro da EBCF, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em:
encontrobrasileiro2018.com.br/16908-2/
FREUD, S. Reflexões para o tempo de guerra e morte (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIV), p. 310-341.
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FREUD, S. Por que a guerra? (1932). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXII), p. 237-259.
HOLGUIN, C. M. “Por que nos odiamos? La brutalidad opaca de la vida” In: Violencia y radicalización, Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016, p.55-62.
LACAN, J. (1954) Introdução ao comentário de Jean Hypolite In: Escritos, rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 370-382.
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VERAS, M. “En la multitud estamos siempre solos”. IX Jornadas da Nel, outubro 2016, Guayaquil, Equador. Disponível em:
http://ix.jornadasnel.com/template.php?file=Textos-Videos-y-Entrevistas/Textos/16-08-29_En-la-multitud-estamos-siempre-solos.html

Sandra Maria Espinha Oliveira
SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA Analista praticante (AP) EBP/AMP Rua Santa Rita Durão, 321 / 407 (31) 3227-7527 (31) 99973-2680 sandra_espinha@uol.com.br



Parque De Justiça – Urso Branco: Um Campo De Distorção Da Realidade

JOSÉ HONÓRIO DE REZENDE / GIULIANA ALVES FERREIRA DE REZENDE

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

O termo ‘campo de distorção da realidade’ foi usado em 1981 por Bud Tribble, da velha guarda da Apple, para se referir ao poder pessoal de Steve Jobs de encantar as pessoas pelos seus projetos (ISAACSON, 2011, p. 135 e ss.). A ideia que passa é a de criação de uma nova realidade a partir de elementos de razão cuidadosamente apresentados. Identifica uma lógica que se impõe naturalmente. Define comportamentos, gostos, sentimentos e desejos. Significa a criação de uma nova realidade, em determinado contexto de tempo e espaço. Mas é uma realidade planejada, controlada. Daí a ideia de distorção.

A teoria pode ser aplicada a todos os campos em que a argumentação se apresenta como ferramenta necessária. Todos os campos que exigem convencimento para determinar atitudes constituem espaço para a sua aplicação. Pode-se dizer que mistura lógica com sentimentos. Por isso o enorme potencial de alcance que projeta. É o convencimento pela sedução.

A sua aplicação ganha terreno farto nas ciências argumentativas. E o Direito é campo natural para sua aplicação. De natureza dialética e marcado por grau de indeterminação que possibilita a apreciação de qualquer argumento, o direito pode se dizer livre para construção (BUSTAMANTE, 2013, p. 275-276).

Cada tempo, cada povo estabelece as suas regras segundo o que melhor lhe convém. Essa é a Humanidade indispensável ao estudo do Direito (GROSSI, 2006, p. 7). Por isso não se pode estudá-lo sem que se lance mão do recurso da história, da filosofia, da sociologia, da antropologia, da psicologia social e da psicanálise.

Cada uma dessas ciências, na verdade, investiga o ser humano, o seu fazer, individual ou coletivo, criando, contudo, campos de realidade. Como não são ciências de fenômenos naturais, repetidos sempre do mesmo modo, a princípio, o poder de criação é total. Estará sempre em contínuo movimento, fazendo-se e desfazendo-se o tempo todo.

A interpretação das ciências mencionadas vai sempre exigir contextualidade, a fim de se aproximar com mais precisão de seu objeto, e isso também se projeta para arranjos futuros, isto é, em projeções de como poderiam se organizar. Esse esforço criativo, contrastado com a realidade, garante a sua perpétua modificação. O limite passa a ser a própria mente humana. Pode-se dizer, então, que não há limites.

Interessa-nos aqui tecer algumas considerações no campo do Direito. Num rápido movimento histórico, encontramos, aos nossos olhos de hoje, as mais absurdas barbaridades perpetradas sob o beneplácito da ordem jurídica. Matanças, escravidões e violências sexuais já foram compreendidas como comportamento natural e legitimadas pelo Direito. Tudo faz parte de um tempo que acreditamos não voltar, mas não há remédio que garanta isso. O Direito será sempre uma ordem criada pelo próprio povo.

A propósito de projeções de construções do Direito, o episódio da série Black Mirror “Urso Branco” nos faz pensar muito. Nesse episódio, o castigo psicológico não é apenas admitido. É, na verdade, um entretenimento público para toda a família, ao estilo showbiz.

Melhor compreensão do episódio não percebi do que a de ‘campo de distorção da realidade’. Para se chegar ao estágio de naturalidade com que se castiga o outro, um longo caminho de convencimento se faz necessário. Somos, por natureza, dialéticos. Pelas diferenças que exibimos, vivemos e projetamos o tempo todo. A formação de consensos sempre é um caminho árduo (ALMEIDA, 2013, p. 166). Fixado o consenso – a reprogramação de comportamento –, a adesão é impressionante. Lembro, a propósito, do filme A onda. A realidade é um campo que pode ser distorcido, e podemos não perceber essa assimetria, a depender de como tudo vem apresentado e formalizado.

No episódio “Urso Branco”, a protagonista acorda em suplício, que é renovado o tempo todo, sem descanso. A plateia também se renova. Ávidos pelo gozo, pelo prazer de assistir o sofrimento real, sem distorção.

A protagonista é acusada de coautoria de um homicídio. Ela e o namorado matam uma criança. Ela filma a cena. É presa. O namorado se suicida. Ela é punida. No sistema de punição, também passa a ser filmada num local chamado “Parque da Justiça”.

A punição adota a técnica de desconstituição do sujeito. Propositalmente, e com a ciência ao lado, retiram-lhe a memória: não sabe quem é. Não sabe onde está. Não sabe o que se passa nem por que se passa. Resta-lhe um único instinto: o da sobrevivência.

Quando a protagonista acorda, já se desespera por não saber nada de si, nada do que acontece. Movimenta-se para buscar algo e é confrontada pelo comportamento estranho de seus pares. Ninguém a toca, ninguém com ela conversa ou interage, todos somente a filmam. Os que se aproximam para interação vestem-se em caricatos trajes e a perseguem com intento de morte. Começa a fugir. Recebe uma ajuda, que indica solidariedade. Agarra a essa ajuda. Mas é uma fuga alucinada. Não sabe de nada. Não sabe o que deve fazer. Não sabe para onde vai. Segue qualquer sinal que lhe indique possível salvação. E os horrores se multiplicam. No final, a surpresa: para todos que participavam do ritual, era um espetáculo de entretenimento. Menos para a protagonista. E menos para quem assistia ao episódio.

Quando tudo é revelado, fica o choque. Começa-se então a juntar as partes do episódio, de modo a criar um ambiente de segurança lógica que permita o conforto de entender tudo. A montagem de todas essas partes vai revelando um aspecto cada vez mais sombrio do que o episódio revelava. O desconforto gerado no momento em que o episódio vai se desenvolvendo é substituído por nova tensão: descobre-se o que de fato acontecia. E aí surge então todo um espaço de reflexão. O episódio desafia a essa reflexão.

Temos então uma forma de intervenção em quem comete um crime livre. Pareceu-me que o sistema de punição daquela sociedade depende de consensos. Vamos punir, mas de que modo? Pode-se punir de qualquer forma. No caso do episódio, foi a exibição pública do sofrimento mental da condenada. Temos um parque da justiça criado para isso. E as pessoas que ali comparecem tomam parte do ritual de punição. E tudo indica que estamos diante de uma situação natural, construída por consensos.

Há no episódio um momento em que a protagonista é ajudada. Cria-se um campo de humanização, mas logo é desfeito. Há uma espécie de recondução à condição humanitária da protagonista quando é ajudada. Mas essa ajuda só revela a perversão do modelo punitivo. Humaniza-se para que se possa sentir a força da punição, e todo o sistema reverbera esse propósito.

Pouco parece importar que a protagonista tenha história além do crime cometido, tanto que, ao final, lhe dizem “vamos te levar de volta para onde você veio”: o quarto onde o show recomeça. Menos ainda que ela possa vir a ter um futuro posteriormente, já que é privada de qualquer hipótese de presente real, em que esse futuro poderia se construir. Destituída de três direcionadores da vida humana, torna-se objeto, preservado, exclusivamente, para o gozo alheio.

Pouco importa também que ela signifique aquele momento como punição por seus atos e que possa, com base nisso, reabilitar-se, uma vez que passa grande parte do episódio sem compreender por que aqueles males lhe acometem. Sua súplica pela morte, ao final, não surte efeito, e nem poderia. O sistema já não é somente sobre ela e sua punição, é também sobre o prazer coletivo em vê-la sofrer. Fosse presa, sofreria pouco. Fosse morta, sofreria até o momento final e não mais. Elaborou-se então um modelo no qual se mantém o corpo pela potencialidade quase infinita de sofrimento, não pelo indivíduo que nele existe.

A grande distorção de realidade no episódio, por fim, é engenhada pelo showbiz que se desenvolveu ao redor do “Parque do Urso Branco”. De suas pequenas telas de celular, ou no ambiente controlado do parque, quem assiste não racionaliza o que vê. A indústria manipula e anestesia os sentidos, e a única reação possível é aplaudir.

Ao final, a pergunta de dois gumes: como tudo aquilo pode acontecer?

Historicamente, essa é a pergunta que nunca cessou em todas as sociedades que um dia tentaram entender seus criminosos. Em geral, entende-se que o criminoso é o “Outro”, aquele diferente de si, que tem e age por motivos escusos e que, por isso, não merece o status de cidadão (JAKOBS, 2007, p. 35-36). Ao final do episódio, a dupla tensão: a criminosa era a protagonista, embora, para quem assista, acompanhar suas agruras torne difícil tê-la como inimiga; os cidadãos eram os demais personagens, ainda que, pela maior parte do episódio, eles tenham sido o inimigo, perseguindo e aterrorizando sem motivo compreensível. Como a protagonista pôde? Como os demais puderam? Dissolve-se, por um instante, a distinção entre vítima e criminoso, entre o cidadão e o Outro, e essa ausência de certeza causa enorme desconforto.

Algumas lições podemos apresentar a respeito do episódio:

A construção de consensos numa sociedade não pode perder a premissa de que há direitos os quais não se pode subtrair dos sujeitos, sob pena de desconstituí-los. O direito à vida digna, entendida como aquela que tem valor em si mesmo, e que tem prerrogativa de determinação de si e de suas potencialidades (DWORKIN, 2003, p.99 e ss.), é um deles. Essa é a certeza para resolver o desconforto apresentado. Era preciso dar uma resposta à conduta da protagonista, mas a resposta subtraiu-lhe a humanidade, a potencialidade e a capacidade de autodeterminação. Essa resposta, então, não pode servir em uma sociedade que se pretenda civilizada.

As bases do direito foram erguidas quando fomos capazes de perceber que, independentemente da conduta, não se cria o sujeito sem direitos. Esse processo foi uma longa evolução na história humana, e estamos em um tempo em que o sujeito de direitos se universalizou. É o espírito do nosso tempo. Quando permitimos a criação de sujeitos sem direitos, por qualquer motivo que seja, retrocedemos no tempo. Perdemos a dimensão do direito como natural e de todos. Isso significa que precisamos de limites que se formam pela condição humana.

Tudo isso já estava muito claro para os gregos. Na tragédia de Sófocles, em que Antígona enfrenta as leis da cidade e seus juízes para enterrar o irmão traidor da pátria, temos a manifestação de que os erros não podem criar o “não sujeito de direito”, o homo sacer. O direito então se apresenta como de todos e se manifesta em todas as situações. É a busca pela sua universalização uma necessidade permanente para a nossa humanidade.

A necessidade de dar uma resposta diante de condutas que se entendam como crimes é uma exigência da própria condição humana. As sociedades, de qualquer tempo, sempre vão exigir algum tipo de resposta. O limite dessa resposta, contudo, é que definirá o nível de civilidade de cada tempo. A pura retribuição do mal pelo mal, a anulação do sujeito e sua objetificação para fins sociais, sejam quais forem eles, não civiliza, mas aproxima ainda mais da barbárie, nem satisfaz, pois o castigo não encontrará limites.

Não se pode esquecer de que as leis são para todos. O sentido das leis será sempre de fortalecer a nossa humanidade. Quando caminha em sentido contrário, estará errada.

É preciso ter todo o cuidado para não se deixar seduzir pelos campos de distorção da realidade. As leis guardam potencial natural para ser esse lugar. Não nos deixemos ser levados pelo gozo pela dor do outro.

 

Post scriptum

Ao leitor especial: qual é o nome da protagonista? De propósito, não mencionamos o nome de Victoria em momento algum do texto. Esse, senhoras e senhores, é um campo de distorção da realidade, no qual não importa o sujeito, somente o objeto de análise. Vitória foi, novamente, o não sujeito de direitos. Indignado?

 


REFERÊNCIAS
A ONDA. Produção de Dennis Gansel. Berlim: Constantin Film e Highlight Film, 2008. 1 DVD.
ALMEIDA, Marco Antônio Bettine de; GUTIERREZ, Gustavo Luis. Teoria da ação comunicativa (Habermas): estrutura, fundamentos e implicações do modelo. Revista Veritas, v. 68, n.1, 2013.
BLACK MIRROR. Urso Branco. Produção de Carl Tibbetts. 2º epsódio da 2ª temporada. Londres: Netflix, 2013.
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Sobre o caráter argumentativo do direito: uma defesa do pós-positivismo de MacCormick. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 106, 2013.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução:
Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre Direito. Tradução: Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
ISAACSON, Walter. Steve Jobs: A biografia. Tradução: Berilo Vargas, Denise Bottmann e Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
JACKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas.
Organização e Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2.ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007.
SÓFOCLES. Antígone. Tradução de J.B. de Mello e Souza. Online: EbookBrasil, 2005.

José Honório De Rezende / Giuliana Alves Ferreira De Rezende
Juiz de Direito jose-honorio@uol.com.br (31) 3285-3577 Graduanda em Direito pela UFMG. Estagiária da Divisão de Assistência Judiciária da UFMG giulianaafrezende@hotmail.com (31) 3285-3577