Desmontagem Da Pulsão Na Toxicomania: A Prevalência Do Objeto

LUÍS FERNANDO DUARTE COUTO

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Introdução

 

A psicanálise acompanha o mundo, suas modificações e seus efeitos na subjetividade. Nas últimas décadas, passamos de uma civilização em que os ideais da cultura traziam alguma ordem para um novo mundo, em que o que prevalece é o objeto mais-de-gozar. Essa mudança trará uma nova maneira de se pensar a toxicomania, a partir das consequências advindas da prevalência do objeto na cultura. A oferta incessante de objetos, fruto da aliança do discurso da ciência e do discurso capitalista, incluirá todos na lógica do consumo, obedientes ao imperativo que ordena consumir, gozar. Podemos pensar, assim, em uma lógica toxicômana para o mundo atual (BENETI, 2014).

É a partir das considerações acerca da prevalência do objeto que propomos, neste trabalho, a retomada do conceito de pulsão em sua montagem e desmontagem, que terá agora, na imensa oferta de objetos, a promessa da garantia de sua satisfação.

 

A montagem da pulsão em Freud e Lacan

 

As investigações freudianas acerca da pulsão aparecem com maior riqueza de descrições e elaborações em “As pulsões e suas vicissitudes” (FREUD, 1915/2006). Nesse texto, Freud afirma que se trata de um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático e irá diferenciá-lo dos estímulos externos. Descreve, assim, os quatro componentes da pulsão.

A pressão (Drang) é definida como o motor da montagem pulsional, sua própria essência. É um conceito importante que nos ajuda a pensar o circuito pulsional na toxicomania, uma vez que não há possibilidade de anular a pressão pulsional – a não ser com a morte. O segundo elemento da pulsão é o alvo (Ziel), ou a sua finalidade, que diz respeito à satisfação. Uma terceira parte dessa montagem é a fonte (Quelle), que, para Freud, corresponderia à parte somática, processo que ocorreria em uma parte do corpo (FREUD, 1915/2006). Podemos pensar, com Lacan, que a fonte da pulsão está nos buracos do corpo, regiões que se diferenciam por sua estrutura de borda (LACAN, 1964/2008). Por fim, o último elemento da pulsão é o objeto (Objekt) que será alguma coisa, por meio da qual a pulsão atingirá sua satisfação. Para Freud, esse será o elemento mais variável da pulsão (FREUD, 1915/2006).

Lacan, ao retomar o conceito de pulsão em Freud, afirma que toda sua elaboração vai contra a ideia de que esta estaria no registro orgânico e nos apresenta uma constatação lógica da teoria freudiana: a pulsão é impossível de ser satisfeita. Freud traz as bases para essa afirmação, uma vez que a pressão é uma força constante e que exigirá sempre satisfação. Lacan afirma que nenhum objeto, de nenhuma necessidade, irá satisfazer a pulsão. Nesse sentido, o circuito pulsional não atinge o objeto, mas passa por ele, contorna-o. “Contorno” ganha aí um duplo sentido, na medida em que a pulsão dá borda ao objeto e o escamoteia (LACAN, 1964/2008).

 

O circuito da pulsão na toxicomania

 

Na medida em que o objeto não satisfaz a pulsão, Lacan destaca o impossível em relação ao princípio do prazer. Retomamos em Freud que o desprazer corresponde a um aumento na quantidade de excitação e, o prazer, a uma diminuição. De acordo com sua teoria, o aparelho mental se esforça para manter a excitação nele presente tão baixa quanto possível (FREUD, 1920/2006).

Mais uma vez, Freud dará as bases para a constatação lacaniana. A partir dessas duas ideias apresentadas em “Além do princípio do prazer”, Freud desenvolverá sua investigação buscando lidar com a contradição presente em suas duas premissas: afinal, se o prazer é decorrente dos baixos níveis de excitação, e o nível de menor excitação é o estado inorgânico – ou seja, a morte –, conclui que todo o caminho do homem visará a esse retorno ao inorgânico. Aparece então, pela primeira vez em sua obra, o conceito de pulsão de morte, sendo que identifica que a energia das pulsões de vida e morte tem a mesma natureza, a saber, sexual. Afasta, então, o conceito de sexualidade – ou de pulsão sexual – de uma função exclusivamente reprodutora.

Nesse sentido, podemos pensar a pulsão como uma montagem por meio da qual a sexualidade participa da vida psíquica (LACAN, 1964/2008, p. 173) ou, de outro modo, será uma montagem que serve para contornar um vazio. O vazio a ser contornado pode, às vezes, surgir como intervalo. Essa frase está em Lacan, ao abordar a pulsão parcial e seu circuito: “No intervalo, a sexualidade” (LACAN, 1964/2008, p. 173). Há uma economia libidinal em jogo no intervalo, o que pode torná-lo insuportável para o toxicômano diante da exigência de satisfação da pulsão. Há que se pensar o funcionamento do circuito pulsional no intervalo. Afinal, a pulsão insiste entre uma pedra e outra, e talvez se possa apostar em uma abertura para a fala, naquilo que ela comporta a dimensão do gozo. Nesse sentido, o intervalo na toxicomania pode ser sustentado pela possibilidade do gozo de falar com o Outro (ALVARENGA, 2014).

As tentativas de intervenção do Outro ganham um acento na prática com toxicômanos por poderem provocar alguma mudança no circuito pulsional. Lacan nos adverte que não há relação de ligação ou de maturação entre as pulsões parciais. Não se passaria, por exemplo, da pulsão oral à anal por um processo de maturação. A retificação possível está no nível da satisfação (LACAN, 1964/2008) e pode ter sua chance com a entrada do Outro. Para Lacan, “o sujeito se aperceberá de que seu desejo é apenas vão contorno da pesca, do fisgamento do gozo do outro – tanto que, o outro intervindo, ele se aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer” (LACAN, 1964/2008, p. 180).

Para Miller (1989), a droga permite obter um gozo sem passar pelo Outro. Assim, não se pode fazer dela um objeto causa de desejo, mas causa de gozo. A droga se apresenta em sua positividade, ao contrário do objeto a, que, em sua negatividade, pode mobilizar o desejo. A produção de excedente de gozo que não passa pelo Outro e não é mediado pelo falo se apresenta como solução para o toxicômano, na medida em que permite não colocar o problema sexual. A transferência pode surgir aí, para intervir nesse circuito autoerótico. De acordo com Miller, “no fundo, o analista deveria ser um dealer da droga da palavra” (MILLER, 1989, p. 29).

 

Circuito pulsional e laço social

 

É interessante pensar o circuito pulsional no uso de drogas em sua relação com o Outro; em que medida o sujeito mobilizará a pulsão no sentido do laço social ou, por outro lado, em que medida se satisfará autisticamente. Podemos assim diferenciar um circuito pulsional que irá contornar o objeto, tentando buscá-lo no campo do Outro, ou, uma segunda possibilidade, um circuito que lançará mão da droga e do corpo próprio para a sua satisfação. Podemos discutir a pertinência de uma aproximação entre o circuito pulsional e o laço social a partir das elaborações sobre a teoria da pulsão e a teoria do discurso.

Assim, uma hipótese de aproximação diz respeito a como podemos localizar os elementos da pulsão em relação aos elementos do discurso. O discurso, segundo Lacan, será formado a partir de quatro elementos que se dispõem em quatro lugares e farão a articulação do sujeito ao Outro, possibilitando, assim, algum laço social (LACAN, 1969-1970/1992). O lugar da verdade provoca o agente a se dirigir ao Outro, e este irá produzir algo.

Uma questão que merece ser investigada é se podemos localizar o circuito pulsional, em sua vertente de laço com o Outro, dentro da montagem do discurso. Essa hipótese, que deve ser verificada, conferiria à pulsão uma estrutura discursiva ou, de outro modo, a inscrição da pulsão no laço social.

Nesse sentido, a fonte, enquanto buraco do corpo, seria o que mobiliza a força motriz (pressão) em direção a um objeto, supostamente no campo do Outro, produzindo satisfação (alvo). É interessante notar que a satisfação, nesse caso, está também no campo do sujeito, e não no campo do Outro. Lacan exemplifica esse ponto ao afirmar que “o alvo não é ave que vocês abatem, é ter acertado o tiro e, assim, atingido o alvo de vocês” (LACAN, 1964/2008, p. 176). O paradoxo na toxicomania é que se acredita no logro do objeto, mas não no Outro, de forma que todo o circuito pulsional passa pela tentativa de contornar o objeto no próprio corpo, sem se lançar ao Outro. Freud afirma que, no autoerotismo, tratar-se-ia de uma só boca que beija si mesma. Lacan questiona se não seria ela uma boca fechada, costurada, “em que vemos na análise, apontar ao máximo em certos silêncios, a instância pura da pulsão oral, fechando-se sobre sua satisfação” (LACAN, 1964/2008, p. 176).

 

Caminhos para a satisfação da pulsão

 

procurou o CMT[1] há alguns anos, em um quadro de excitação maníaca. Estava usando crack em grande quantidade, vendendo tudo o que tinha em casa. Os familiares “fugiram” dele indo para o interior, tendo ele ficado um curto período de tempo na rua. Nos atendimentos, exalta suas qualidades dizendo ser um dos melhores jogadores de futebol, poeta, líder comunitário, um exemplo para a comunidade – mesmo com o uso da droga. Afirma que o prazer do crack é sexual e rejeita medicações, por lhe suprimirem a libido.
Em atendimentos seguintes, diz ser bombeiro, eletricista, pedreiro, sempre ressaltando suas habilidades. Considera-se um “dependente cínico”, e não um dependente químico, por se considerar um “malandro”. “Sou dependente cínico sem ser hipócrita”: sabe que “as drogas estão aí em qualquer lugar” e que as usa por malandragem.

Em alguns momentos, a malandragem lhe traz incômodo, por ter perdido muito com o uso da droga. Durantes os atendimentos, surge uma construção, fruto de uma intervenção, da qual ele se apropria e traz consigo ainda hoje, passados mais de cinco anos: malandragem é um outro nome para inteligência. Apostando em sua inteligência, passa a escrever seus poemas e identifica-se ao “poeta”. Leva seus escritos para os atendimentos e abandona suas outras qualidades: “Já fui jogador, soldado do exército, hoje sou poeta”. Interessa-se pela escrita cada vez mais e passa a produzir incessantemente. Seus textos abordam com frequência os temas referentes a sexo, amor, mulheres e drogas – principalmente as mulheres. Publica um primeiro livro com a ajuda do Centro de Convivência e permanece, nos últimos anos, às voltas com seus textos, que têm como marca a presença do gozo na escrita.

Podemos pensar, a partir desse caso, as respostas singulares que cada sujeito encontra e, no caso de R., como a pulsão toma outro caminho, passando de um circuito restrito ao próprio corpo para um outro circuito, que inclui o gozo na escrita, e que pode ser, de alguma forma, socializado. O objeto, dessa vez, está no campo do Outro, na medida em que a produção dos livros possibilita o laço social. R. coloca suas obras para venda em bancas de revista, oferta seu produto em uma praça da cidade, convida os trabalhadores para lançamentos e é convidado para saraus e divulgação de seus livros. Há um outro circuito pulsional, que não desconsidera o gozo, e que pode fazer algum laço. É interessante que R. tenha sustentado seu lugar de poeta há mais de cinco anos.

Freud afirma que “todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico pode ser salvo” (FREUD, 1930/2006, p. 91). Miller nos indica um caminho da salvação pelos dejetos em contraposição a uma salvação pelos ideais. Ele toma o termo “salvação pelos dejetos’’ de Paul Valéry, que assim define o surrealismo (MILLER, 2011). É curioso notar que Lacan irá definir a pulsão como uma colagem surrealista, em que as partes não estão naturalmente articuladas (LACAN, 1964/2008).

Sendo o surrealismo uma arte, Miller a define como a estetização do dejeto. Essa é a operação de sublimação da pulsão: dar estética ao dejeto, para que ele possa se entrelaçar ao discurso do Outro. Assim, o gozo do Um, sempre autista, pode se inscrever no laço social, sendo que, por outro lado, algo do gozo resta insocializável. Penso que Miller nos apresenta, nesse texto, uma orientação importante para a condução do tratamento com os toxicômanos, na medida em que precisamos considerar o gozo no tratamento que o sujeito inventa para si. O gozo deve estar contemplado em sua resposta, sendo esta a operação de sublimação da pulsão.

O toxicômano monta um aparelho pulsional que dispensa o Outro, o que conhecemos como o gozo cínico (SANTIAGO, 2017) – como bem explica nosso paciente R. Lacan afirma que, na medida em que a pulsão obtém alguma satisfação, com ela, os sujeitos se contentam. Questiona, então, por que nós nos metemos com isso. A partir de nossas considerações sobre a desmontagem da pulsão, percebemos que há outras vias para a satisfação, que podem ser menos mortíferas.

 


 

Referências
ALVARENGA, E. “As mulheres e suas drogas”. In: MEZÊNCIO, M. et al (Orgs.) Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
BENETI, A. “A toxicomania não é mais o que era”. In: MEZÊNCIO, M. et al (Orgs.) Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREUD, S. (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol.VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. P.59-60.
FREUD, S. (1911) “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, S. (1915) “Os instintos e suas vicissitudes”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, S. (1920) “Além do princípio do prazer”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, S. (1930) “O mal-estar na civilização”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. (1969-1970) Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MILLER, J.A. (1989) “Para uma investigação sobre o gozo autoerótico”. Pharmakon digital. V.02. p.29.
MILLER, J.-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre o desejo e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
SANTIAGO, J. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. 2.ed. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017.
[1] CMT: Centro Mineiro de Toxicomania, instituição da FHEMIG na cidade de Belo Horizonte/MG.



Para Além Do Encanto Pelas Palavras, A Indisciplina Dos Professores

VIRGÍNIA CARVALHO / BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE / ANA LYDIA SANTIAGO

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
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BELO HORIZONTE

 

A “VI Manhã de Trabalhos do CIEN Brasil” propõe pensarmos sobre “o que colocamos em jogo quando falamos”. Tal convite encontra eco na indicação de Laurent, de que cabe aos Laboratórios do CIEN testemunhar o corte que produzem ao buscar reintroduzir a dimensão psíquica nos lugares em que foi eliminada. Ele lembra que, se em um primeiro momento de seu ensino, em 1953, Lacan privilegia o “dom da palavra”, posteriormente, em 1973, evidencia o “gozo do blá-blá-blá”. Nesse deslocamento, fica evidente que “não há necessidade de dar a palavra, porque o ser falante tagarela como a aranha tece seu fio e goza disso, sem necessidade de ninguém e sem poder parar” (LAURENT, 2017, p. 40). A ideia de abrir espaço para a palavra – muito em voga na contemporaneidade – pode servir como mais uma oferta de gozo, reforçada pelo apoio nas “palavras especializadas”.

A psicanálise se separa dessa “psicoterapia de massa” quando faz uma aposta na Conversação, também uma prática da palavra que serve para tratar o que não vai bem e que é formulado por meio das queixas (SANTIAGO, 2011). A Conversação é uma metodologia de orientação psicanalítica que se refere a uma aposta: não há sucesso garantido. Laurent destaca que a primeira aposta que se faz nessa prática é a de “saber que, quando falamos, deixamos de ficar aliviados” (2017, p. 42). Uma Conversação ocorre quando há um corte que promove um desajustamento das identificações nas quais os sujeitos se encontram alojados. Nesse sentido, a associação livre coletivizada que se propõe no dispositivo não equivale a uma roda livre para “dar um suplemento de alma ao mundo técnico” (LAURENT, 2017, p. 47).

 

Uma despatologização através da Conversação

 

“Docentes doentes: deixe-os falar!” foi o nome dado ao Laboratório do CIEN que surgiu a partir da observação de um professor, em uma Conversação, de que os docentes estão todos doentes e que ninguém os deixa falar sobre suas questões. É uma contradição em termos, já que costumam se queixar muito sobre sua atividade docente. Trata-se, portanto, de uma aposta para que um corte nesse gozo do blá-blá-blá seja produzido, promovendo uma posição diferente da vitimização.

Nesse blá-blá-blá, escutamos que os docentes adoecem pela indisciplina dos alunos. Assim, o Laboratório tomou o tema da indisciplina, trazido por um grupo de educadores como ponto de partida para uma Conversação. Traziam muitas queixas, com vozes alteradas, rostos enrubescidos e pernas inquietas. Levaram casos de alunos indisciplinados e deixaram claro como essas crianças e jovens afetavam seus corpos. O corte que se buscou nessa falação adveio da pergunta proposta pela animadora: “alguém aqui já foi indisciplinado?”

Tal corte se constituiu como abertura para um segundo tempo nessa Conversação, o de uma implicação subjetiva no problema coletivo. Começaram a se lembrar de momentos em que foram indisciplinados e experimentaram um certo “gosto por fazer algo errado”. A revelação da professora de que, na infância, fora encaminhada à direção para “aquietar a periquita” surpreendeu. Ao mesmo tempo, revelou o quanto a indisciplina tem a ver com esse “fogo” que cada um tem no corpo. Abriram-se para a dimensão pulsional, chegaram à constatação de que “nem sempre a indisciplina é para chamar a atenção” e concluíram que “é preciso ler a indisciplina como algo que não está bem enquadrado” e “é impossível ter o controle de tudo”. Olharam para a indisciplina incluindo-se nela, o que fez uma diferença em sua maneira de lidar com isso que escapa ao controle disciplinar dos corpos. Ficaram interessados em ouvir seus alunos no que é indisciplinável: o desejo. Após a Conversação, duas das professoras que haviam levado casos de seus alunos nos procuraram. Uma delas disse que o aluno melhorou sensivelmente. A outra afirmou que seu aluno ainda deixava seu corpo atormentado e nos pediu auxílio para que ela pudesse dar um tratamento às suas questões subjetivas.

 

O “professor tarado”: não varrer o resto para debaixo do tapete[1]

 

Em uma outra experiência de Conversação, a produção desse corte somente foi possível a partir do momento em que os animadores se propuseram a ir mais além do encanto pelo “dom da palavra”. Trata-se de uma intervenção realizada com uma turma tida como o “resto” da escola, em que se encontravam os piores e mais indisciplinados alunos do 7º ano. Eram alunos que desrespeitavam os professores, gritavam o tempo todo e mantinham a sala imunda: “nossa sala é um lixo”, diziam. Esses jovens queixavam-se de serem desrespeitados e não escutados por seus professores, que, sem medir as palavras, entravam na sala “dando bronca”. Eles “descontam problemas pessoais nos alunos, não ouvem e falam xingando”.

As primeiras sessões de Conversação produziram efeitos visíveis: alunos que, no discurso dos professores, eram “analfabetos”, passaram a escrever; “futuros bandidos” demonstraram interesse por línguas estrangeiras e elencaram desejos por profissões. Os alunos que, antes, expressavam com seus corpos o que era dito a respeito deles pela direção – “essa sala é o resto que não coube, juntou só o pior” –, ao tomar a palavra, puderam se separar disso, deixar de responder e atuar como restos. A partir de um deslocamento inicial em relação a essa identificação, se puseram, literalmente, a limpar a sala diante dos animadores. Usando vassouras e pás, varreram o lixo, encenando uma evidente mudança de posição. Um encanto! O ambiente ficou lindo, agradável aos olhos de todos e favorável ao processo escolar.

No entanto, esse lixo tinha sido varrido, sim, mas para debaixo do tapete! Foi o que se evidenciou no momento da supervisão dessa Conversação. A equipe de animadores acreditou, por um momento, que tudo estava resolvido: os alunos trataram a sujeira com a limpeza, usando da maquiagem estética, lançando mão da ordem para a captação da beleza sensível, que é um semblante importante da civilização. Porém, esse tratamento tinha sido apenas uma encenação que interpretava e questionava, ao mesmo tempo, a forma como os adultos daquela instituição tratavam o “lixo”. Eles o escondiam, não queriam saber do que não devia aparecer; dissimulavam o que não davam conta de falar; ignoravam as denúncias dos alunos, dizendo que iam ver, mas não faziam nada a respeito. Assim, a limpeza da sala realizada no final de uma sessão de Conversação podia ser tomada tanto como um passo dado pelos alunos na direção de preparar o terreno para falar como uma forma de interrogar os animadores da Conversação sobre a relação deles com a palavra. Um aluno afirma: “Desde que vocês estão vindo, a sala está bem melhor, mais quieta”. Outra aluna complementa: “Depois que vocês forem embora, vai acabar o respeito e continuar tudo a mesma bosta de sempre”. Assim, explicita-se a necessidade de ir além da faxina.

Os animadores da Conversação tiveram que dar um passo a mais, a despeito da sublimidade da organização da sala de aula. Além do encanto, retomaram a conversa propondo novamente aos alunos o tema do “lixo”, do resto que insistia e que se mostrava evidente nos palavrões falados por eles. Apenas nesse momento puderam escutar e abordar o que os alunos já haviam dito na primeira Conversação: a existência de um “professor tarado”, que encostava com desrespeito nas meninas. Uma aluna relata: “O cabelo da menina é grande, foi passando a mão no cabelo dela e chegou no peito dela, passou a mão no peito dela”. Pela primeira vez, explicita-se o motivo da tanta gritaria: “Com os outros professores, a gente chega na mesa deles, conversa. Com ele não: a gente fica gritando do nosso lugar, a gente prefere gritar do que chegar perto dele; tomamos nojo da cara dele”. As alunas ficam gritando do fundo da sala para se protegerem, para ele não se aproximar. Uma vez que a escola não as escuta sobre esse ponto, restava-lhes o grito!

A última supervisão foi crucial para os animadores não adotarem a mesma estratégia dos docentes da instituição. Temiam ser denunciados ao falar do problema, expulsos da escola ou sofrer a ação da polícia. “Proibir o fazer, permitir o falar”. Tal orientação, dada pela supervisora, já era conhecida, mas, naquela circunstância, parecia impraticável. Na “entrevista devolutiva”, contudo, ao mencionarem o problema dos alunos do 7º ano, produziu-se, de imediato, um corte temporal: todos já sabiam, insistiam em deixar escondido debaixo do tapete, e o professor, naquele momento, responsabilizando-se, assume sua fraqueza e pede indicação para se tratar.

As duas experiências ensinam que falar numa Conversação, para além do blá-blá-blá, é um esforço de dizer algo sobre o ineducável da pulsão, sobre o ponto em que a sexualidade faz furo no real. Incluir o intraduzível do gozo, o “fogo do corpo” que se mostra por meio da indisciplina e da falta de respeito, permitiu, em cada uma das experiências, reintroduzir a dimensão psíquica em jogo nessa fronteira entre o anímico e o somático. Dimensão esta que o campo da educação tenta eliminar calando – ainda que pelo falatório. A Conversação se mostra, assim, uma operação de palavra capaz de criar um espaço radical, em que o irreconciliável pode ganhar lugar e em que se pode tocar naquilo que é da ordem do impossível de tudo dizer.

 


REFERÊNCIAS
LAURENT, E. (2017). “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. Brown, N.; Macedo, L.; Lyra, R. In: Trauma, Solidão e Laço na Infância e na adolescência. BH: EBP.
SANTIAGO, A. L. (2011). “Entre a saúde mental e a educação: abordagem clínica e pedagógica de sintomas na escola nomeados por dificuldades de aprendizagem e distúrbios de comportamento” In: Santiago, A. L; Campos, R. H. de F (org). Educação de crianças e jovens na contemporaneidade: pesquisa sobre sintomas na escola e subjetividade. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas.
[1] As Conversações com a turma em questão foram animadas por Libéria Neves, Ana Carolina Ribeiro e Bruna Albuquerque, com supervisão de Ana Lydia Santiago.

VIRGÍNIA CARVALHO / BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE / ANA LYDIA SANTIAGO
VIRGÍNIA CARVALHO Psicanalista, mestre e doutoranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG), professora substituta da UFMG e pesquisadora do NIPSE da FaE-UFMG. Responsável pelo Laboratório “Docentes doentes: deixe-os falar!”, do CIEN. vivscarvalho@yahoo.com.br BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE Psicanalista, mestre em Psicopatologia e Estudos Psicanalíticos (Université de Strasbourg), doutoranda em Conhecimento e Inclusão Social em Educação (FaE-UFMG), pesquisadora do NIPSE. bruquerque@gmail.com ANA LYDIA SANTIAGO Psicanalista, AME da EBP e da AMP. DEA do Campo Freudiano/Universidade de Paris VIII. Doutora em Psicologia Clínica/USP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: conhecimento e inclusão social da FaE-UFMG. Coordenadora do NIPSE. analydia.ebp@gmail.com As Conversações com a turma em questão foram animadas por Libéria Neves, Ana Carolina Ribeiro e Bruna Albuquerque, com supervisão de Ana Lydia Santiago.



Sobre A Cólera De Aquiles

JEAN-PIERRE VERNANT

 

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida,
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueuse
tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.[1] 

 

Logo no primeiro canto da Ilíada, Aquiles, em sua cólera, se afirma como o homem da solidão, do heroísmo individual. Para preservar a ideia elevada de que ele tem do ideal heroico, postulado como absoluto de honra, ele se separa de seu grupo. Ao fazê-lo, retira-se da guerra que era sua razão de ser. Situação sem saída da qual sairá por motivos estritamente pessoais, para saciar sua sede de vingança contra aquele que, ao vencer Pátroclo, fez morrer um outro de si mesmo. Ao contrário de Heitor, Aquiles se afasta dos outros gregos associados a ele no combate para preservar até o fim sua identidade de herói singular, quase estranho à condição humana pela elevação de sua coragem e pela superioridade de sua força, para não falar em seu nascimento semidivino. Quando volta para a batalha, não aparece como um campeão do lado aqueu; é uma potência de destruição sem rédeas que guerreia como respira, naturalmente e sem esforço. Só sabe matar, matar sempre, até sua própria morte, não só prevista e aceita, como também assumida como a face secreta, o reverso de seu personagem heroico – essa visão lúcida do mundo da morte ao qual o herói se dedica ao escolher a glória e priva o jogo guerreiro de seu prestígio falacioso. A consciência desabusada de não passar de uma criatura perecível como as outras, até na façanha, torna fútil e derrisória a oposição entre vencido e vencedor, reunidos por destinos semelhantes. Ao contrário de Heitor, Aquiles não é um herói trágico em si: não sucumbe sob o peso de seus próprios erros, de suas ações. Porta-voz do ideal heroico, é mais uma voz que o relato empresta para dar a ouvir sua mensagem trágica, para sugerir, no fim da narração, como uma constatação final, a incompreensibilidade, a vaidade da existência humana mesmo quando, iluminada pelos fogos de artifício da glória, brilha com um esplendor que parece igualar aos deuses.

Entretanto, por ser expressa em uma obra que, devido a sua organização formal, constitui um mundo fechado e harmonioso, um cosmos, essa insignificância da vida humana, ao se ofertar à inteligência estética, é, ao mesmo tempo, deslocada e superada. Deslocada: doravante olhamos para ela de outro ponto de vista, como se estivéssemos ao mesmo tempo dentro e fora da vida, próximos e engajados como um homem, distantes e afastados como um deus. Superada: a insignificância do vivido sofre, na experiência imaginária da arte, uma transmutação, torna-se significação trágica. A desordem, a confusão, o disforme que toda cultura se esforça em rejeitar para fora dela na natureza, sem nunca conseguir plenamente, fornece aos homens a matéria para uma criação original em que tudo é ordem, forma, beleza, porque tudo está organizado no plano da ficção.

O relato da Ilíada, em sua progressão, ilustra o duplo movimento de desorganização e de reorganização, o ir e vir entre a ordem aparente da vida e a desordem que nela se dissimula e entre a desordem assim revelada e uma ordem nova, de um tipo muito diferente. No decorrer da intriga, assistimos a uma espécie de decomposição do mundo heroico. Seguindo a inclinação natural da violência, a guerra, primeiro nobre e cavalheiresca, com seu ideal elevado, suas regras, seus interditos, abre-se para o desencadeamento progressivo da selvageria. Quando a bestialidade a invadiu por inteiro, os heróis dos dois campos se transformam em animais selvagens, em aves de rapina predadoras que, em sua fúria guerreira, não tratam mais o inimigo como um parceiro em um confronto leal, como um homem diferente, mas como uma coisa, uma presa cuja carne crua se quer devorar. A carnificina que a guerra dissimula aflora, de certa forma, nas falas e nas condutas dos heróis que não se contentam em triunfar no combate, mas que maltratam o vencido, mutilam-no, despedaçam-no, dispersam seu corpo, privam-no de sepultura, entregam-no aos cães e às aves por não poder devorá-lo eles mesmos, como se, na guerra, a questão fosse menos vencer, ou até mesmo matar, e sim destruir no inimigo até o último rastro de seu aspecto humano, acabar com seu ser social e pessoal lançando-o para sempre para fora da cultura a que pertence, em um não-ser de caos.

 

[1] Homero, “Canto I”. In: Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 4ª. ed., 2010.



Primeau, Joyce, Wolfson E As Falas Impostas

GISELLE GONÇALVES MATTOS MOREIRA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Lacan, em O seminário, livro 23: o sinthoma, afirma que o doente vai mais longe que o homem saudável no que concerne ao testemunho da incidência do parasitismo da fala e se indaga: “Como é que todos nós não sentimos que as falas das quais dependemos são, de algum modo, impostas?” (LACAN, 1975-76, p. 92). Essa questão surge em seu seminário logo após uma apresentação de paciente conduzida pelo próprio Lacan no hospital Sainte-Anne, cujo paciente em questão ficou conhecido por Gerard Primeau. Ao fim da entrevista, Lacan diz aos ouvintes que eles acabavam de testemunhar uma “psicose lacaniana” e chama a atenção para a experiência que o próprio paciente nomeou “falas impostas”. Entretanto, o agravante – que deixa Lacan pessimista em relação ao caso – é o destino dado a essa imposição da fala: Primeau, em um segundo tempo, formula frases reflexivas a partir das falas impostas, mas essas reflexões escapavam de seu controle e podiam ser registradas por outras pessoas. Primeau não podia ajustar sua própria mente, e seus mais íntimos pensamentos estavam a descoberto; ele se diz um “telepata emissor”, e essa construção o leva ao pior.

 

O automatismo mental

 

Gaëtan Gatian de Clérambault, psiquiatra francês designado por Lacan como seu único mestre em psiquiatria, em seu conhecido artigo “Automatismo mental e cisão do Eu” (1920), desenvolve a noção de ‘automatismo mental’, a partir do relato de três casos de sua clínica. Na sua concepção, esse fenômeno teria uma primazia em relação à formação do delírio, ou seja, a construção delirante seria uma reação (interpretativa ou imaginativa) do paciente ao movimento automático das palavras. Portanto, para Clérambault, seria fundamental fazer uma distinção entre “o fato primordial, isto é, o automatismo mental” e “a construção intelectual secundária, a única a merecer o nome de delírio de perseguição” (CLÉRAMBAULT, 1920, p. 166). Nesse sentido, diferentes elaborações ou concatenações podem surgir como tentativas de explicação desse mesmo “material imposto pelo inconsciente” (idem, p. 167), a depender da constituição de cada sujeito.

 

Nota-se que essa concepção da primazia do automatismo mental trabalhada por Clérambault parece cara a Lacan em sua forma de conceber as repercussões das falas impostas presentes no caso de Gerard Primeau, como em suas elaborações sobre a dimensão da linguagem advindas dessa apresentação de paciente e desenvolvidas em O seminário, livro 23: o sinthoma: “A questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é uma forma de câncer pela qual o ser humano é atingido.” (LACAN, 1975-76, p. 92). Lacan insiste em ressaltar o caráter de parasitismo da fala, colocando ênfase nessa relação da imposição das palavras que, vindas do campo do Outro, “atingem” o ser. Portanto, nessa concepção da fala como parasita, o “falasser” seria, “em seu corpo, hospedeiro do uso da palavra” (LAIA, 2001, p. 120).

 

Gerard Primeau testemunha sua experiência com as falas impostas e, a pedido de Lacan, dá exemplos de frases que emergem na sua cabeça desvinculadas de um significado imediato. Nas palavras de Primeau: “Ele vai me matar o pássaro azul. É um sistema anárquico. É um assassinato político (…) um ‘assastinato’ político, que é a contração das palavras ‘assassinato’ e ‘assistência’, que evoca a noção de assassinato” (LACAN, 1976, p. 6). Durante a entrevista, Lacan retorna a esse ponto – a essa mistura sonora que se dá por um deslizamento entre assassinato e assistência –, ao que Primeau esclarece que essas palavras “emergem” “espontaneamente”, como “explosões”. Ao evocar essa fala de Primeau em seu seminário, Lacan dirá que vemos muito bem que “o significante se reduz aí ao que ele é, ao equívoco, a uma torção de voz” (LACAN, 1975-76, p. 92). Mais adiante Primeau recorre a outro exemplo: “’Eles querem governar meu intelecto’ é uma emergência. ‘Mas a realeza está derrotada’ é uma reflexão” (LACAN, 1976, p. 12). Desse modo, a partir de uma frase imposta, Primeau acrescenta um “mas” que introduz sua reflexão, numa tentativa de neutralizar a frase anterior.

 

Essas reflexões poderiam ser uma defesa contra a experiência perturbadora com as falas impostas, entretanto, Primeau não conseguia mais ajustar sua própria mente, e seus mais íntimos pensamentos estavam a descoberto: ele se diz um “telepata emissor”. Essa construção o expunha, causando grande “ansiedade”, a ponto de provocar uma tentativa de suicídio.

 

Uma reflexão escrita

 

A partir da experiência de Gerard Primeau com as falas impostas, Lacan evoca o escritor James Joyce ao perceber que a relação do escritor com as palavras também refletia um caráter de imposição: “é difícil não ver que uma certa relação com a fala lhe é cada vez mais imposta (…), a ponto de ele acabar por dissolver a própria linguagem” (LACAN, 1975-76, p. 93). Se, por um lado, a defesa reflexiva de Primeau fracassa, por outro, Lacan localiza que Joyce, no progresso da sua obra, opera uma reflexão ao nível da escrita:

 

Sem dúvida, há aí uma reflexão ao nível da escrita. É por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é o caso de se livrar do parasita falador (…) ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala.(LACAN, 1975-76, p.93)

 

Banhado pelos murmúrios da língua, o ato de Joyce é – por intermédio da escrita – o de quebrar, desfigurar as palavras que lhe são impostas, e, no próprio ato de decomposição, reatar o nó, produzindo uma amarração sintomática. Como lê Ram Mandil, há “uma dupla dimensão do sinthoma através desse procedimento da escrita: de uma defesa frente ao ‘parasita falador’, mas, ao mesmo tempo, fonte de uma nova satisfação, de ‘deixar-se invadir… pela polifonia das palavras’” (MANDIL, 2018).

 

Deixar-se atravessar por essa língua desmantelada, gozar da desfiguração das palavras e, por fim, fazer uma tessitura com os pedaços quebrados. Mas essa trama vai além da linearidade da história, se aproximando mais de um encadeamento borromeano, ou, como quer Lacan, de um “trançamento de terra e de ar” (LACAN, 1975-76, p. 163). Cada elemento é tomado em sua cardinalidade: cada palavra é escrita de forma “particularíssima”, ainda que o sentido comum se perca.

 

Podemos notar essa dissolução da linguagem por intermédio da escrita (em que a sonoridade e o ritmo ganham uma prevalência em detrimento do sentido), na seguinte epifania de Joyce:

 

Sr. Vance – (chega com uma vara)… Oh, a senhora entende, ele tem que pedir desculpas, Sra. Joyce.

Sra. Joyce – Oh sim… Ouviu isso, Jim?

Sr. Vance – Senão – se ele não se desculpar – as águias vêm tirar os olhos dele fora.

Sra. Joyce – Oh, mas tenho certeza de que ele vai se desculpar.

Joyce – (embaixo da mesa, para si mesmo)

– Os olhos dele fora

Agora

Agora

Os olhos dele fora.

 

Agora

Os olhos dele fora

Os olhos dele fora

Agora.

(JOYCE, 2018, p. 9)

 

O Schizo e as línguas

 

Depois de recolher algumas pistas sobre a experiência com a imposição da fala em Primeau e Joyce, passemos a Louis Wolfson, escritor norte-americano, autor do livro Le Schizo et les langues (1970). Wolfson se nomeia sempre no impessoal: “o jovem homem esquizofrênico”, “o doente mental” ou, ainda, “o estudante de línguas esquizofrênico”. Trata-se, para o autor, de escrever em livro exatamente o procedimento no qual ele submete a língua, sendo este quase um empreendimento científico.

 

Wolfson opta por escrever em francês pelo fato de o inglês, sua língua materna, lhe causar as maiores perturbações. Deleuze, no prefácio que escreve ao livro Le Schizo et les langues, descreve bem o “procedimento linguístico de Wolfson”, que vai além de uma simples tradução do inglês para o francês:

 

O que o estudante faz é o seguinte: dada uma palavra da língua materna, encontrar uma palavra estrangeira com sentido similar, mas que tenha sons ou fonemas comuns (de preferência em francês, alemão, russo ou hebraico, as quatro línguas principais estudadas pelo autor) (DELEUZE, 1970, p. 17).

 

Como localiza Deleuze, o procedimento de Wolfson consiste em fazer uma tradução que não privilegia apenas o sentido das palavras, mas que busca encontrar, em outras línguas, sons semelhantes, fazendo uma combinação fonética. Para não precisar de se servir do inglês, Wolfson diz preferir fazer uma língua “original dele mesmo” (WOLFSON, 1970, p. 221).

 

Do livro Le Schizo et les langues, retiro a descrição de uma situação em que determinadas palavras são de algum modo impostas ao estudante de línguas. Trata-se de grandes caracteres vermelhos escritos em inglês: “sore throat”. Esse enunciado, que acompanha a propaganda de um remédio, se encontrava espalhado por toda a cidade e atraia involuntariamente os olhos de Wolfson, causando um estado de estupor. Imediatamente uma antiga lembrança infantil era despertada: o prelúdio de uma amigdalectomia, em que sua mãe se dirige a uma enfermeira elogiando sua “baguette mágica”. A obsessão por esse pensamento paralelo fazia com que seu cérebro se tonasse um órgão oco. Desse modo, o termo “sore throat” deixava sua mente dominada. Wolfson encontra uma possível saída para essa perturbação através de seu procedimento linguístico. Ele diz:

 

Mas finalmente – como por quase todas as outras palavras inglesas que o chateava ou o angustiava – o estudante de línguas esquizofrênico encontra os vocábulos estrangeiros, ou ele se lembra deles, nos quais ele poderia pensar por obter o grande alívio quando se aborrece pela expressão sore throat (WOLFSON, 1970, p. 118).

 

Aplicando seu procedimento, Wolfson converte sore (dor) nas palavras alemãs: schmerzhaft, schmerzlich, schmervoll, substituindo o s da palavra inglesa pelo sch alemão, de forma que o sentido e o som fossem considerados. Ele desliza essa substituição até encontrar souffrant na língua francesa, passando ainda por palavras do hebraico, do russo, etc. Desse modo, Wolfson tenta barrar o que ele mesmo nomeia “pensamentos parasitas”, recorrendo aos vocábulos estrangeiros e deformando – a seu modo irônico – a língua inglesa (WOLFSON, 1970, p. 121).

 

Como localiza Deleuze, o estudante de línguas vive com distanciamento a conversão da palavra de origem no novo vocábulo estrangeiro, sustentando sempre um tom protocolar e impessoal, intensificado pela escrita em terceira pessoa: “O procedimento linguístico gira em falso e não reagrega um processo vital capaz de produzir uma visão (…). Em Wolfson o procedimento é ele mesmo seu próprio acontecimento” (DELEUZE, 1970, p. 21). Portanto, o “procedimento linguístico” seria um fazer, ou mesmo uma ajuda contra a construção delirante e contra a voz da mãe, “empurrada” sobre sua cabeça através de palavras injuriosas. Podemos pensar nessa função, mesmo que ele ainda esteja preso, como ressalta Deleuze, às semelhanças de som e sentido entre as palavras de origem e às palavras transformadas pelas línguas estrangeiras, faltando-lhe uma sintaxe criadora.

 

Wolfson diz encontrar um grande prazer no estudo das línguas, assim como na escrita detalhada de seu procedimento: “Mas, mesmo a sua maneira louca, senão imbecil, era agradável estudar as línguas!” (WOLFSON, 1970, p. 70). Ou, ainda, quando questionado por tamanho trabalho, ele reconhece não receber nenhum dinheiro por isso, e diz: “Mas eu existo!” (p. 192). Por fim, Wolfson localiza que seu procedimento linguístico – ou nas suas palavras “o saber ativo, em ato, em operação” (p. 249) – lhe retirava da paralisia que a experiência com as falas impostas lhe causava. Por meio de seus estudos, ele diz se deparar com o belo e, mais ainda, com a possibilidade de ‘gozar da vida’.

 

Três loucuras absolutamente distintas?

 

A partir das diferentes experiências com o parasitismo da fala em Primeau, Joyce e Wolfson, fica evidente como cada um encontra uma solução diferente e absolutamente própria para esse fato primordial que é o automatismo mental, descrito desde Clérambault.

 

Sobre Primeau, temos o registro da entrevista conduzida por Lacan no hospital Sainte-Anne, diante de um público de analistas e psiquiatras. Durante a entrevista, Lacan aposta na habilidade do paciente em operar com a ambiguidade significante, dizendo que ele seria “incontestavelmente um poeta”. Entretanto, essa tentativa de nomeação (um poeta) parece não se sustentar, e Lacan não localiza um saber apontado por Primeau, a partir do qual pudesse regular a perturbadora experiência com as falas impostas. A tentativa de construir uma defesa reflexiva frente ao gozo da língua parece fracassar.

 

Em Joyce, é a partir de sua obra, como de sua biografia, que Lacan percebe que a relação do escritor com as palavras também apontava para esse caráter de imposição. Se, a partir das falas impostas, Primeau faz uma reflexão ao nível do pensamento, de outra forma, a reflexão de Joyce se dá ao nível da escrita. Se Joyce encontra um ponto de amarração sintomática – no caso sua obra, essa “coisa tão particular” –, Lacan não diz o mesmo de Primeau. Ainda em O seminário, livro 23: o sinthoma, Lacan retoma a relação de Joyce com as epifanias, que é também uma técnica da escrita joyceana: “É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem” (LACAN, 1975-76, p. 151). Para Lacan, a epifania é uma consequência do erro do nó, falha que solta o Imaginário. Desse modo, através de sua obra, Joyce faz um laço estreito entre simbólico e real, ou uma “tessitura das palavras impostas”, como quer Sérgio Laia (2001).

 

Por fim, Wolfson. Como destaca Deleuze, seu livro não é nem uma obra de arte nem um experimento cientifico legítimo; seu aspecto original está no fato de ser um “protocolo de experimentação”. Se Joyce se deixa invadir pela polifonia da fala, Wolfson, por intermédio de seu “procedimento linguístico”, tenta destruir a língua materna. Por vezes, Wolfson se culpa por gozar através de suas investigações linguísticas, duvidando da moralidade de suas façanhas intelectuais. De uma oposição radical entre vida e saber, Wolfson, por fim, toma seu procedimento como condição de sair da paralisia e consente com a possibilidade do saber se tornar meio de vida.

 

Seriam três loucuras absolutamente distintas? Primeau, Joyce e Wolfson encontram diferentes soluções diante da experiência com as palavras impostas, seja através de uma defesa reflexiva ao nível do pensamento no caso Primeau, da obra como reflexão escrita em Joyce, seja de um protocolo de experimentação, como faz Wolfson. Entre amarrações e desamarrações, Wolfson, Joyce e Primeau, cada um a seu modo, lançam mão de recursos que tratam, compensam ou mesmo fracassam em fazer uma defensa frente ao gozo da língua.

 


Referências
CLÉRAMBAULT, Gaëtan. (1920) “Automatismo mental e cisão do Eu (Apresentação de pacientes)”, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo: vol.2 n.1, 1999, p. 160-168.
DELEUZE, Gilles. (1970) “Louis Wolfson, ou o procedimento”, In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
JOYCE, James. Epifanias. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
LACAN, Jacques. (1975-1976) O seminário, livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.
LACAN, Jacques. (1976) “Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques Lacan”. In: Opção Lacaniana. São Paulo, abril/2000, p. 5-16.
LAIA, Sérgio. Os escritos fora de si – Joyce, Lacan e a loucura. Belo Horizonte: Autêntica/FUMEC, 2001.
MANDIL, Ram. “Los signos discretos de la locura en James Joyce”, Revista Mediodicho, Córdoba. No prelo.
WOLFSON, Louis. (1970) Le Schizo et les Langues ou la Phonétique chez le psychotique. Paris: Gallimard, 1970.

GISELLE GONÇALVES MATTOS MOREIRA
Mestranda em Letras (Estudos Literários) pela UFMG. Aluna do Curso de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental – MG. Rua Manaus, 341/103 giselegmm@gmail.com



O Que A Histérica Quer Saber?

GRACIANA GUIMARÃES

 

 

Neste trabalho pretendo investigar a posição em que a histérica se coloca frente a sua busca por saber. Na tentativa de localizar o saber no Outro, a histérica esquiva-se do seu próprio saber sobre seu gozo, como tentaremos averiguar a seguir.

 

O saber em psicanálise

 

A palavra ‘saber’ deriva do latim sapere, que se refere a “ter conhecimento, ciência, informação ou notícia” e “ter sabor, agradar ao paladar” (CUNHA, 1982, p. 695). No decorrer do ensino de Lacan, essa palavra adquire um sentido diferente, se afastando dos termos ‘conhecimento’, ‘ciência’ e ‘informação’ para, então, o saber flertar com o ‘sabor’ da verdade.

 

O saber em psicanálise difere do conhecimento, e é isso o que Lacan explicita em “o que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação”. O saber está relacionado a um encadeamento significante, “trata-se precisamente de algo que se liga, em uma relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2”, e não ao acúmulo de conhecimento, informações acerca de uma realidade (LACAN, 1969-70/1992, p. 30).

 

Lacan, no seminário 17, explica que “saber é coisa que se diz, que é dita… o saber fala por conta própria – eis o inconsciente” (LACAN, 1969-70/1992, p. 73). Nesse sentido, saber e inconsciente se parelham, podendo sugerir que o saber é inconsciente, um saber que não se sabe. É pela surpresa, quando o sujeito se sente ultrapassado, pelo que Freud denominou fenômenos do inconsciente, que esse saber aparece. Nesse tropeço, nessa hiância, produz-se um achado, que, para o sujeito, tem um valor único, de verdade (LACAN, 1964/2008).

 

Também nesse seminário 17, Lacan estabelece os quatro discursos, importantes para a compreensão do que pretendemos neste trabalho, sendo eles o discurso do mestre, o discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso do analista. Luiz Henrique Vidigal, em Ensaios sobre os discursos em Lacan (sd), lança luz sobre como esses discursos são constituídos. Em cada um desses discursos observa-se que se delimitam quatro lugares ocupados por quatro letras diferentes. Essas letras circulam na mesma orientação e ocupam lugares de acordo com o discurso a que se referem, como pode ser visto abaixo:

 

 

O S1 corresponde ao significante mestre; S2, ao saber; $, ao sujeito; e a letra a corresponde ao mais-de-gozo. Os lugares são de agente, de Outro, de produção e de verdade, que se posicionam da seguinte forma:

 

 

O lado esquerdo, onde estão os lugares de agente e verdade, pode ser entendido como sendo o campo do próprio, do íntimo, daquele que sustenta o discurso. O lado direito sendo o campo da alteridade, onde estão os lugares do Outro e da produção (VIDIGAL, sd).

 

No seminário “O avesso da psicanálise”, como explicita Vidigal, “Lacan substitui o campo do Outro pela bateria de significantes (S2) que forma um campo não disperso, já estruturado de um saber” (VIDIGAL, sd, p. 16). Um significante externo (S1) intervém no campo já constituído de outros significantes (S2), e a articulação desses significantes faz surgir $, denominado sujeito dividido. Desse trajeto de S1 a S2 aparece algo definido como uma perda, designado pela letra a como objeto a, mais-de-gozo (LACAN, 1969-70/1992).

 

Essa articulação de significantes importa para compreender as nuances do saber. O saber deriva do traço unário, em que um significante S1 faz uma primeira marca e, a partir daí, se liga a um outro significante S2. Essa ligação S1-S2, de uma articulação significante, de um saber em trabalho, instaura a dimensão do gozo. O saber trabalhando produz uma entropia, uma perda introduzida pela repetição, em que se estabelece um mais-de-gozar a recuperar. O gozo seria um movimento de recuperação dessa perda, de algo que se perdeu por esse trabalho do saber instaurado na articulação significante. Como tentativa de preencher essa perda, surgem então objetos (objeto oral, anal, escópico e vocal) denominados objetos a. É a partir do saber como meio de gozo que se busca um sentido, mencionado por Lacan como um sentido obscuro, que é o da verdade (LACAN, 1969-70/1992).

 

Lacan, em Radiofonia, nos diz “É que, da verdade, não temos que saber tudo. Basta um bocado…”, e ainda, “o real não é antes de mais nada para ser sabido” e “a verdade situa-se por supor o que do real faz função no saber” (Lacan, 1970/2003, p. 442 e 443). Uma verdade que só é acessível por um semidizer, alerta Lacan no seminário 17, que não pode ser dita por inteiro, porque, para além de sua metade, é indizível (LACAN, 1969-70/1992).

 

Também em Radiofonia, Lacan ironiza que com a verdade não se pode estabelecer relação amorosa possível, a não ser a qual ele garante ser segura, com a castração (LACAN, 1970/2003). “O amor à verdade é o amor a essa fragilidade cujo véu nós levantamos, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração”. Então, a verdade se liga à impotência. O amor à fraqueza, à impotência, isso é a essência do amor, é dar o que não se tem a fim de reparar essa fraqueza original (LACAN, 1969-70/1992, p. 54).

 

A histérica e o saber

 

Nos quatro discursos elaborados por Lacan, o saber, S2, ocupa diferentes lugares em cada um deles, e neste trabalho deterei principalmente nos discursos do mestre e da histérica, os quais nos ajudarão a compreender, de certa forma, a relação da histérica com o saber.

 

No discurso do mestre, o saber está essencialmente no lugar do Outro, o do escravo, que possui um saber-fazer referente à produção de gozo. E o mestre, por sua vez, busca extorquir o escravo a fim de recuperar o resto de um gozo perdido (NAVAEAU, 2017).

 

No discurso histérico, o saber está colocado no lugar de gozo, e o mestre é quem trabalha para produzi-lo. A histérica se embaraça, interroga o mestre, S1, sobre sua relação com o saber, S2, como visto no seu discurso essa relação sugerida, S1/S2. Esse questionamento remete-se ao valor de a, sobre o que ela mesma seria, uma pergunta lançada no campo do Outro sobre algo que está no seu próprio campo, $/a, e o que escapa ao saber (NAVAEAU, 2017).

 

Ela quer que o Outro seja um mestre, daí S1 situado à direita acima, no discurso da histérica, e que esse mestre saiba de muitas coisas, mas não tantas a ponto de acreditar ser ela o prêmio máximo de todo o seu saber. Ela quer um mestre sobre o qual ela reine e ele não governe (LACAN, 1969-70/1992).

 

No discurso histérico está instituída a pergunta sobre o que vem a ser a relação sexual, de como um sujeito pode sustentar ou não essa relação. Colocando o Outro como lugar desse saber, o sujeito histérico mostra-se estranho ao que de fato está em jogo no saber sexual, permanecendo, assim, um saber recalcado (LACAN, 1969-70/1992).

 

O sujeito histérico se aliena do significante-mestre o qual efetua a divisão do sujeito e se recusa a dar-lhe corpo, explicitado por Helenice de Castro (2018) como “uma recusa do corpo ao efeito de castração determinada pela incidência do S1”. Na recusa do corpo, o sujeito não se coloca como escravo frente ao significante-mestre. A histérica faz a seu modo, então, uma espécie de greve, como disse Lacan no seminário 17, e não entrega o seu saber. Ela desmascara a função do mestre, mas permanece solidária valorizando o que há de mestre no que é o Um, esquivando-se, assim, de ser objeto de desejo (LACAN, 1969-70/1992).

 

Para a histérica, o não saber ser a mulher a coloca em uma posição de enunciação, na qual o gozo do homem é posto como um saber da mulher. E que ela, por sua vez, acredita não saber como proceder nem o que é preciso fazer para o gozo do homem. E, ainda, acredita existir a mulher detentora desse saber. O problema para a histérica não é o gozo feminino, mas sim o gozo masculino. “É saber se o homem é um homem, se ele sustenta o Um”, se ele não tem medo da castração, se ele consegue ser um mestre e se é capaz de colocar em jogo o Um da vida. Então se direciona à outra que ela julga ter esse saber, do gozo do homem, e a faz seu objeto de admiração e adoração (NAVAEAU, 2017, p. 165).

 

A hiância entre a histérica e a mulher, a que sabe, instaura um conflito em que mesmo a histérica não alcançando o gozo todo da mulher, que é impossível, não se cansa de desejar esse todo, permanecendo o seu desejo sempre insatisfeito e recusando os gozos relativos.

 

Nesse sentido, a histérica se vê dividida entre o gozo e o desejo, caracterizado pela relação que ela estabelece com a mulher. A histérica não é nem a mulher, a que sabe, nem uma mulher, a única de um homem (NAVAEAU, 2017).

 

O saber de Dora: o que ela nos ensina?

 

O caso Dora, publicado por Freud em 1905, exemplifica a relação da histérica com o saber, e é relembrado por Lacan em diversos momentos em que aborda a temática da histeria. Dora chega a Freud levada pelo pai. A perda da consciência após uma breve discussão com esse pai foi o acontecimento último que, mesmo relutante, a fez aceitar o tratamento. As intrigas em que Dora se envolveu na relação que se estabeleceu entre ela, o Sr. K., a Sra. K. e seu pai diz da forma como ela conseguiu lidar com cenas nomeadas por Freud como traumáticas – a cena do lago, em que o Sr. K. faz uma investida amorosa a Dora, e uma cena anterior, quando esta tinha quatorze anos, em que o Sr. K. a imprensa num vão de janela e a beija. Associado a isso, o pai, que mantém um caso amoroso com a Sra. K. e é visto basicamente pela filha, enquanto a mãe pouco aparece, envolvida apenas com as tarefas domésticas (FREUD, 1905/1996).

 

A relação estabelecida entre a Sra. K. e seu pai faz sustentar para Dora o desejo do pai idealizado. Lacan, no seminário 17, relembra a situação delicada de saúde do pai de Dora, que escancara o homem castrado, e isso inclusive em relação a sua potência sexual. O pai, em sua destinação simbólica, como um ex-combatente, ex-genitor, está sempre em potência de criação. Esse papel-mestre que o pai ocupa no discurso da histérica, sob a perspectiva de potência de criação, é o que faz sustentar sua posição em relação à mulher, mesmo esse pai estando fora de forma, como disse Lacan (LACAN, 1969-70/1992). Como aquele que já não possui e, ao mesmo tempo, possui o órgão, faz com que o pai não possa ser castrado, pois já o é desde sempre. A histérica mantém o pai nessa posição idealizada, tirando-o do combate, o que faz sustentar a crença de acesso a um gozo absoluto. Com o vislumbre ao gozo absoluto, a histérica recusa o gozo sexual, já que, neste, ela se depara com o gozo relativo que surge do embaraço da relação com o outro, dos entraves da questão da potência e impotência do órgão masculino (CASTRO, 2018).

 

Não é o órgão de Sr. K. que Dora disputa com a Sra. K., mas sim a joia que seu pai, impotente, dá a sua amante. No caso de Dora, a Sra. K. ocupa a posição de suposto saber, em que ela dirige sua admiração e adoração. A Sra. K. é a mulher que sabe o que fazer para o gozo do homem, nesse caso, o de seu pai, e é a ela em que Dora se interroga sobre o que é o gozo. Dora demonstra como a transferência na histérica é orientada em direção à mulher e como esse amor se endereça ao saber (NAVEAU, 2017).

 

Na cena do lago, algo que se sustentava na relação entre o quarteto Sr. e Sra. K., Dora e seu pai, se desmorona. Quando Dora questiona o Sr. K. sobre sua mulher, e este diz “minha mulher não é nada para mim”, ela se depara com duas situações. Tem-se, então, a queda da mulher, quem ela julgava ter o saber sobre o gozo e quem sustentava o desejo do pai idealizado. E também, nesse momento, o gozo do Outro é ofertado diretamente a ela, o que ela rapidamente recusa, esbofeteando o Sr. K., porque, na verdade, o que ela quer é o saber como meio de gozo (LACAN, 1969-70/1992).

 

No segundo sonho de Dora, seu pai está morto, e ela é convidada a comparecer ao enterro. Ela até tenta ir, mas se vê em sua casa vazia, folheando um grande livro, um dicionário. Nesse sonho, observa-se a passagem pelo pai idealizado: o pai está morto, e evidencia-se a manobra histérica de instalar o saber como meio de gozo quando Dora escolhe folhear o dicionário. Dora encontra um substituto para esse pai em um livro, um livro em que se ensina o que diz respeito ao sexo, como salienta Lacan. E isso demonstra que o que de fato importa a Dora, para além inclusive da morte de seu pai, é o que ele produz de saber, de um saber sobre a verdade (LACAN, 1969-70/1992). Dora, ao fazer confusões com as intrigas envolvendo seus familiares, é levada a Freud como mentirosa, e é no percurso da análise que ela pôde fazer valer a sua verdade (LAURENT, 2007 apud CASTRO, 2018). “Isto é o que lhe bastará da experiência analítica. Essa verdade em que, preciosamente, Freud a ajuda” (LACAN, 1969-70/1992, p.102).

 

Esse momento, como salienta Helenice de Castro (2018), teria sido uma virada na análise de Dora que, caso tivesse continuado, poderia ter construído um saber que a aproximasse de seu modo particular de gozo, desvinculado daquele ligado à privação em que ela se encontrava.

 

Conclusão

 

A partir da escrita deste trabalho foi possível verificar que esse questionamento da histérica ao Outro, de buscar o saber no campo do Outro, só a faz distanciar mais do seu próprio saber sobre o seu gozo. A histérica, então, não quer saber nada sobre o seu próprio gozo, e isso, de certa forma, seria uma defesa. Ao sustentar um mestre potente, detentor de um saber total, a histérica esquiva-se de deparar com a impotência, com a castração. Com a possibilidade de um trabalho em análise, como visto no caso Dora, essa figura de mestre pode se esvair aos poucos. Com isso, é possível dar lugar à construção de um saber sobre a própria verdade, sobre o que há de particular no gozo de cada histérica.

 


Referências
CASTRO, H. de. (2018) Neurose sem Édipo: Enxame#1. Disponível em: <http://jornadaebpmg.blogspot.com/2018/05/enxame-2-2-pingos-nos-is.html> Acesso em: 13 jun. 2018.
CUNHA A. G. da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1882.
FREUD, S. (1905) ”Fragmento da análise de um caso de histeria”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
______ (1964) O Seminário, Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
______ (1970) “Radiofonia”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 403-447.
NAVEAU, P. O que do encontro se escreve. Estudos Lacanianos. Belo Horizonte: EBP, 2017.
VIDIGAL, L. H. Ensaios sobre os discursos em Lacan. Belo Horizonte: Editora Tahl, sd.

GRACIANA GUIMARÃES
GRACIANA GUIMARÃES Aluna do curso de psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental – MG