Desmontagem Da Pulsão Na Toxicomania: A Prevalência Do Objeto
LUÍS FERNANDO DUARTE COUTO
IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE
Introdução
A psicanálise acompanha o mundo, suas modificações e seus efeitos na subjetividade. Nas últimas décadas, passamos de uma civilização em que os ideais da cultura traziam alguma ordem para um novo mundo, em que o que prevalece é o objeto mais-de-gozar. Essa mudança trará uma nova maneira de se pensar a toxicomania, a partir das consequências advindas da prevalência do objeto na cultura. A oferta incessante de objetos, fruto da aliança do discurso da ciência e do discurso capitalista, incluirá todos na lógica do consumo, obedientes ao imperativo que ordena consumir, gozar. Podemos pensar, assim, em uma lógica toxicômana para o mundo atual (BENETI, 2014).
É a partir das considerações acerca da prevalência do objeto que propomos, neste trabalho, a retomada do conceito de pulsão em sua montagem e desmontagem, que terá agora, na imensa oferta de objetos, a promessa da garantia de sua satisfação.
A montagem da pulsão em Freud e Lacan
As investigações freudianas acerca da pulsão aparecem com maior riqueza de descrições e elaborações em “As pulsões e suas vicissitudes” (FREUD, 1915/2006). Nesse texto, Freud afirma que se trata de um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático e irá diferenciá-lo dos estímulos externos. Descreve, assim, os quatro componentes da pulsão.
A pressão (Drang) é definida como o motor da montagem pulsional, sua própria essência. É um conceito importante que nos ajuda a pensar o circuito pulsional na toxicomania, uma vez que não há possibilidade de anular a pressão pulsional – a não ser com a morte. O segundo elemento da pulsão é o alvo (Ziel), ou a sua finalidade, que diz respeito à satisfação. Uma terceira parte dessa montagem é a fonte (Quelle), que, para Freud, corresponderia à parte somática, processo que ocorreria em uma parte do corpo (FREUD, 1915/2006). Podemos pensar, com Lacan, que a fonte da pulsão está nos buracos do corpo, regiões que se diferenciam por sua estrutura de borda (LACAN, 1964/2008). Por fim, o último elemento da pulsão é o objeto (Objekt) que será alguma coisa, por meio da qual a pulsão atingirá sua satisfação. Para Freud, esse será o elemento mais variável da pulsão (FREUD, 1915/2006).
Lacan, ao retomar o conceito de pulsão em Freud, afirma que toda sua elaboração vai contra a ideia de que esta estaria no registro orgânico e nos apresenta uma constatação lógica da teoria freudiana: a pulsão é impossível de ser satisfeita. Freud traz as bases para essa afirmação, uma vez que a pressão é uma força constante e que exigirá sempre satisfação. Lacan afirma que nenhum objeto, de nenhuma necessidade, irá satisfazer a pulsão. Nesse sentido, o circuito pulsional não atinge o objeto, mas passa por ele, contorna-o. “Contorno” ganha aí um duplo sentido, na medida em que a pulsão dá borda ao objeto e o escamoteia (LACAN, 1964/2008).
O circuito da pulsão na toxicomania
Na medida em que o objeto não satisfaz a pulsão, Lacan destaca o impossível em relação ao princípio do prazer. Retomamos em Freud que o desprazer corresponde a um aumento na quantidade de excitação e, o prazer, a uma diminuição. De acordo com sua teoria, o aparelho mental se esforça para manter a excitação nele presente tão baixa quanto possível (FREUD, 1920/2006).
Mais uma vez, Freud dará as bases para a constatação lacaniana. A partir dessas duas ideias apresentadas em “Além do princípio do prazer”, Freud desenvolverá sua investigação buscando lidar com a contradição presente em suas duas premissas: afinal, se o prazer é decorrente dos baixos níveis de excitação, e o nível de menor excitação é o estado inorgânico – ou seja, a morte –, conclui que todo o caminho do homem visará a esse retorno ao inorgânico. Aparece então, pela primeira vez em sua obra, o conceito de pulsão de morte, sendo que identifica que a energia das pulsões de vida e morte tem a mesma natureza, a saber, sexual. Afasta, então, o conceito de sexualidade – ou de pulsão sexual – de uma função exclusivamente reprodutora.
Nesse sentido, podemos pensar a pulsão como uma montagem por meio da qual a sexualidade participa da vida psíquica (LACAN, 1964/2008, p. 173) ou, de outro modo, será uma montagem que serve para contornar um vazio. O vazio a ser contornado pode, às vezes, surgir como intervalo. Essa frase está em Lacan, ao abordar a pulsão parcial e seu circuito: “No intervalo, a sexualidade” (LACAN, 1964/2008, p. 173). Há uma economia libidinal em jogo no intervalo, o que pode torná-lo insuportável para o toxicômano diante da exigência de satisfação da pulsão. Há que se pensar o funcionamento do circuito pulsional no intervalo. Afinal, a pulsão insiste entre uma pedra e outra, e talvez se possa apostar em uma abertura para a fala, naquilo que ela comporta a dimensão do gozo. Nesse sentido, o intervalo na toxicomania pode ser sustentado pela possibilidade do gozo de falar com o Outro (ALVARENGA, 2014).
As tentativas de intervenção do Outro ganham um acento na prática com toxicômanos por poderem provocar alguma mudança no circuito pulsional. Lacan nos adverte que não há relação de ligação ou de maturação entre as pulsões parciais. Não se passaria, por exemplo, da pulsão oral à anal por um processo de maturação. A retificação possível está no nível da satisfação (LACAN, 1964/2008) e pode ter sua chance com a entrada do Outro. Para Lacan, “o sujeito se aperceberá de que seu desejo é apenas vão contorno da pesca, do fisgamento do gozo do outro – tanto que, o outro intervindo, ele se aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer” (LACAN, 1964/2008, p. 180).
Para Miller (1989), a droga permite obter um gozo sem passar pelo Outro. Assim, não se pode fazer dela um objeto causa de desejo, mas causa de gozo. A droga se apresenta em sua positividade, ao contrário do objeto a, que, em sua negatividade, pode mobilizar o desejo. A produção de excedente de gozo que não passa pelo Outro e não é mediado pelo falo se apresenta como solução para o toxicômano, na medida em que permite não colocar o problema sexual. A transferência pode surgir aí, para intervir nesse circuito autoerótico. De acordo com Miller, “no fundo, o analista deveria ser um dealer da droga da palavra” (MILLER, 1989, p. 29).
Circuito pulsional e laço social
É interessante pensar o circuito pulsional no uso de drogas em sua relação com o Outro; em que medida o sujeito mobilizará a pulsão no sentido do laço social ou, por outro lado, em que medida se satisfará autisticamente. Podemos assim diferenciar um circuito pulsional que irá contornar o objeto, tentando buscá-lo no campo do Outro, ou, uma segunda possibilidade, um circuito que lançará mão da droga e do corpo próprio para a sua satisfação. Podemos discutir a pertinência de uma aproximação entre o circuito pulsional e o laço social a partir das elaborações sobre a teoria da pulsão e a teoria do discurso.
Assim, uma hipótese de aproximação diz respeito a como podemos localizar os elementos da pulsão em relação aos elementos do discurso. O discurso, segundo Lacan, será formado a partir de quatro elementos que se dispõem em quatro lugares e farão a articulação do sujeito ao Outro, possibilitando, assim, algum laço social (LACAN, 1969-1970/1992). O lugar da verdade provoca o agente a se dirigir ao Outro, e este irá produzir algo.
Uma questão que merece ser investigada é se podemos localizar o circuito pulsional, em sua vertente de laço com o Outro, dentro da montagem do discurso. Essa hipótese, que deve ser verificada, conferiria à pulsão uma estrutura discursiva ou, de outro modo, a inscrição da pulsão no laço social.
Nesse sentido, a fonte, enquanto buraco do corpo, seria o que mobiliza a força motriz (pressão) em direção a um objeto, supostamente no campo do Outro, produzindo satisfação (alvo). É interessante notar que a satisfação, nesse caso, está também no campo do sujeito, e não no campo do Outro. Lacan exemplifica esse ponto ao afirmar que “o alvo não é ave que vocês abatem, é ter acertado o tiro e, assim, atingido o alvo de vocês” (LACAN, 1964/2008, p. 176). O paradoxo na toxicomania é que se acredita no logro do objeto, mas não no Outro, de forma que todo o circuito pulsional passa pela tentativa de contornar o objeto no próprio corpo, sem se lançar ao Outro. Freud afirma que, no autoerotismo, tratar-se-ia de uma só boca que beija si mesma. Lacan questiona se não seria ela uma boca fechada, costurada, “em que vemos na análise, apontar ao máximo em certos silêncios, a instância pura da pulsão oral, fechando-se sobre sua satisfação” (LACAN, 1964/2008, p. 176).
Caminhos para a satisfação da pulsão
procurou o CMT[1] há alguns anos, em um quadro de excitação maníaca. Estava usando crack em grande quantidade, vendendo tudo o que tinha em casa. Os familiares “fugiram” dele indo para o interior, tendo ele ficado um curto período de tempo na rua. Nos atendimentos, exalta suas qualidades dizendo ser um dos melhores jogadores de futebol, poeta, líder comunitário, um exemplo para a comunidade – mesmo com o uso da droga. Afirma que o prazer do crack é sexual e rejeita medicações, por lhe suprimirem a libido.
Em atendimentos seguintes, diz ser bombeiro, eletricista, pedreiro, sempre ressaltando suas habilidades. Considera-se um “dependente cínico”, e não um dependente químico, por se considerar um “malandro”. “Sou dependente cínico sem ser hipócrita”: sabe que “as drogas estão aí em qualquer lugar” e que as usa por malandragem.
Em alguns momentos, a malandragem lhe traz incômodo, por ter perdido muito com o uso da droga. Durantes os atendimentos, surge uma construção, fruto de uma intervenção, da qual ele se apropria e traz consigo ainda hoje, passados mais de cinco anos: malandragem é um outro nome para inteligência. Apostando em sua inteligência, passa a escrever seus poemas e identifica-se ao “poeta”. Leva seus escritos para os atendimentos e abandona suas outras qualidades: “Já fui jogador, soldado do exército, hoje sou poeta”. Interessa-se pela escrita cada vez mais e passa a produzir incessantemente. Seus textos abordam com frequência os temas referentes a sexo, amor, mulheres e drogas – principalmente as mulheres. Publica um primeiro livro com a ajuda do Centro de Convivência e permanece, nos últimos anos, às voltas com seus textos, que têm como marca a presença do gozo na escrita.
Podemos pensar, a partir desse caso, as respostas singulares que cada sujeito encontra e, no caso de R., como a pulsão toma outro caminho, passando de um circuito restrito ao próprio corpo para um outro circuito, que inclui o gozo na escrita, e que pode ser, de alguma forma, socializado. O objeto, dessa vez, está no campo do Outro, na medida em que a produção dos livros possibilita o laço social. R. coloca suas obras para venda em bancas de revista, oferta seu produto em uma praça da cidade, convida os trabalhadores para lançamentos e é convidado para saraus e divulgação de seus livros. Há um outro circuito pulsional, que não desconsidera o gozo, e que pode fazer algum laço. É interessante que R. tenha sustentado seu lugar de poeta há mais de cinco anos.
Freud afirma que “todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico pode ser salvo” (FREUD, 1930/2006, p. 91). Miller nos indica um caminho da salvação pelos dejetos em contraposição a uma salvação pelos ideais. Ele toma o termo “salvação pelos dejetos’’ de Paul Valéry, que assim define o surrealismo (MILLER, 2011). É curioso notar que Lacan irá definir a pulsão como uma colagem surrealista, em que as partes não estão naturalmente articuladas (LACAN, 1964/2008).
Sendo o surrealismo uma arte, Miller a define como a estetização do dejeto. Essa é a operação de sublimação da pulsão: dar estética ao dejeto, para que ele possa se entrelaçar ao discurso do Outro. Assim, o gozo do Um, sempre autista, pode se inscrever no laço social, sendo que, por outro lado, algo do gozo resta insocializável. Penso que Miller nos apresenta, nesse texto, uma orientação importante para a condução do tratamento com os toxicômanos, na medida em que precisamos considerar o gozo no tratamento que o sujeito inventa para si. O gozo deve estar contemplado em sua resposta, sendo esta a operação de sublimação da pulsão.
O toxicômano monta um aparelho pulsional que dispensa o Outro, o que conhecemos como o gozo cínico (SANTIAGO, 2017) – como bem explica nosso paciente R. Lacan afirma que, na medida em que a pulsão obtém alguma satisfação, com ela, os sujeitos se contentam. Questiona, então, por que nós nos metemos com isso. A partir de nossas considerações sobre a desmontagem da pulsão, percebemos que há outras vias para a satisfação, que podem ser menos mortíferas.