Expediente Almanaque On-line Março/2020

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EDITORIAL – ALMANAQUE Nº25

PATRÍCIA RIBEIRO

Trajeto II – diário. Bárbara Schall

É com enorme satisfação que lhes apresentamos a 25ª edição do Almanaque Online, cujos trabalhos abordam um tema que nos foi inspirado pelo XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, O feminino infamiliar, dizer o indizível. Neste número, trataremos do infamiliar nos laços sociais indagando como ele se insere nessa dimensão das relações dos sujeitos com o Outro. Por essa razão, e como não poderia deixar de ser, esta edição contempla também o momento atual, marcado por essa absoluta infamiliaridade na qual vivemos em decorrência da pandemia do novo coronavírus.

Abrimos, com a rubrica Trilhamentos, trazendo a contribuição de Gustavo Dessal em um texto contundente sobre o célebre personagem de Herman Melville, Bartleby, mostrando, com extrema fineza, o que o autor americano pode nos transmitir ao criar esse “nosso inquietante irmão de melancolia”. Dessal nos desvela que o verdadeiro protagonista desta história é a própria humanidade, isto é, que o nosso próximo, esse estranho, estrangeiro, nada mais é “que o núcleo de nós mesmos”, do qual “não ousamos aproximar”. Ainda nessa seção, Marina Lusa traça os caminhos percorridos por Freud para apreender isso que nos surge como inapreensível, como infamiliar e que, no entanto, tem “o familiar como tela de fundo (…), no qual ele faz furo”, o avesso e o direito de uma mesma coisa.

Nossa convidada da rubrica Entrevista é a professora e pesquisadora do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG Santuza Teixeira, que conosco conversa sobre o trabalho que ela e sua equipe do Centro Tecnológico de Vacinas estão desenvolvendo em relação à epidemia da Covid-19. Paralelamente, Santuza nos traz suas impressões sobre os desdobramentos das decisões políticas ligadas às pesquisas no Brasil e como, a seu ver, isso tem provocado uma fragilização da produção científica, especialmente em sua área.

Em Encontros, privilegiamos tratar dos efeitos da pandemia, articulando-a à noção freudiana do infamiliar, trazendo a leitura que fazem as psicanalistas Mariana Schwartzman e Hélène Bonnaud. Mariana associa o infamiliar ao conceito lacaniano de extimidade e percebe que, no atual cenário, o estranho penetra a intimidade de nossas casas. Hélène, por sua vez, parte da investigação dos efeitos desse real, “cuja natureza inesperada e invasiva muda a rotina de nossas vidas”. Em seu texto, ela analisa algumas consequências do isolamento social colocando em primeiro plano o sentimento de solidão, que, conforme esclarece, é diferente da sensação de isolamento, tomado este último como um registro distinto de relação ao Outro.

Em Incursões, apresentamos textos dos colegas dos espaços de investigação do IPSM-MG cujo enfoque, neste semestre, foi O infamiliar e suas incidências na prática psicanalítica. Nessa perspectiva, Frederico Feu examina a relação do infamiliar no âmbito das psicoses para esclarecer “como a emergência do infamiliar afeta a nossa apreensão da realidade e os laços sociais por ela circunscritos” e quais as conexões possíveis “entre o infamiliar e o sentimento de estranheza que assinala a perda da realidade em algumas formas da psicose”. Andrea Eulálio localiza em seu texto como as transformações ocorridas nos novos modos de organização das famílias têm deixado as crianças mais expostas ao Um sozinho, a esse gozo desenlaçado do Outro, gozo Unheimlich, cujas consequências na infância e na adolescência são retratadas em sua vinheta clínica. O texto de Jeaninne Narciso, também fundamentado em sua leitura do texto freudiano sobre o infamiliar, indaga, a partir de sua experiência clínica, quais podem ser os efeitos do encontro de crianças que se tornam imigrantes com o infamiliar da linguagem. Ivan Vitova Junqueira, em trabalho decorrente de um projeto de pesquisa com uma população encarcerada que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico, coloca em discussão e indaga se os sentimentos de angústia e terror que localiza nesses atendimentos, não estariam articulados ao infamiliar assim como ao conceito de dejeto, tal como foi proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”.

Por fim, temos, em nossa rubrica De uma nova geração, dois interessantes textos de alunos do IPSM-MG em torno do tema do gozo feminino. Aspectos da biografia de São João da Cruz são levantados por Rodrigo da Matta Machado para elucidar o motivo pelo qual Lacan tomou-o como “um exemplo precioso na exploração da noção de gozo não-todo”. Lívia Azzi busca localizar em seu texto a disjunção entre histeria e feminilidade a partir das descrições dos personagens Henry e June no diário de Anaïs Nin.

Antes de convidá-los à leitura, gostaria de agradecer a valiosa contribuição da artista plástica mineira Bárbara Schall, que nos cedeu belas imagens para ilustrar esta edição. Agradeço também aos autores e a toda a equipe de publicação da revista Almanaque, cuja parceria foi essencial para a sua concretização.


Bárbara Schall (1984) é bacharel em Artes Plásticas pela Escola Guignard, da Universidade Estadual de Minas Gerais, e possui especialização em fotografia pela Akademie der Bildenden Künste München (DAAD). Começou a desenvolver seu trabalho em 2010, quando passou a participar regularmente de salões, exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior. Seu trabalho integra coleções do Mac Niterói, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Centro Cultural Dannemann e do Museu de Arte de Ribeirão Preto. Para conhecer melhor seu trabalho de fotografias, vídeos, bordados e instalações, acesse https://barbaraschall.cargo.site.



BARTLEBY, O REAL[1]

GUSTAVO DESSAL
Psicanalista, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise. ELP/AMP

Resumo
O autor se apoia no conto “Bartleby, o escrivão”, de H. Melville, para desenvolver a noção de estranho a partir da singularidade do personagem principal e indica como a presença dessa opacidade real participa de toda a existência e da própria humanidade. Sua análise é dividida em três tempos e perspectivas — ironia, dimensão ética e tragédia — e destaca a posição subjetiva de Bartleby frente ao laço social. Bartleby representa esse real excluído da dimensão simbólica, que não cessa de se escrever, não sem consequências, e, ironicamente, expõe a inutilidade essencial da existência e sua condição de semelhança que afeta a todos.

Palavras-chave: real, estranho, existência, laço social.

Bartleby, the real

Abstract: The author relies on the tale Bartleby, the scrivener of H. Melville, to develop the notion of stranger based on the singularity of the main character and indicates how the presence of this real opacity participates in all existence and in humanity itself. His analysis is divided into three times and perspectives — irony, ethical dimension and tragedy — highlighting Bartleby’s subjective position in relation to the social bond. Bartleby represents this real excluded from the symbolic dimension, which never ceases to be written, not without consequences, and ironically exposes the essential uselessness of existence and its condition of similarity that affects everyone

Keywords: real, strange, existence, social bond.

 

Trajeto I – diário. Bárbara Schall

 

 

 

Ele preferiria não… e sua resposta enigmática e famosa às solicitações do advogado que o emprega estava sujeita a todo furor interpretativo. Mas quem é verdadeiramente Bartleby, o escrivão que assombra o novo epônimo de Melville? E ele simplesmente não seria nosso semelhante, nosso inquietante irmão de melancolia?

 

No estilo lacônico e límpido que lhe é próprio, Jorge Luís Borges finaliza o prefácio de sua tradução de “Bartleby, o escrivão” com uma frase que revela o segredo do texto: “’Bartleby’ é mais do que um artifício ou um ócio da imaginação onírica; é, fundamentalmente, um livro triste e verdadeiro que nos mostra essa inutilidade essencial, que é uma das ironias cotidianas do universo” (BORGES, 2009, s/p.).

Inutilidade: aqui está a palavra-chave, um dos nomes próprios da existência. Borges sublinha que ela é essencial para que não percamos de vista que a inutilidade não é contingente, senão necessária, no sentido aristotélico do termo: não pode não ser. Não se trata mais, para Borges, de fazer desse romance a ilustração da loucura ou do capricho de um indivíduo perturbado; ele se encarrega de apresentar a inutilidade como uma ironia cotidiana — bem longe de uma excentricidade estranha à nossa experiência cotidiana, ela é consubstancial à própria vida. Preferiríamos não ter de admitir, preferiríamos acreditar que Bartleby é um espécime particular, uma exceção às leis razoáveis do universo, mas Borges insiste: o universo não é razoável, mas irônico.

A magnitude dessa obra na literatura é inversamente proporcional ao seu tamanho. A natureza caleidoscópica da história suscitou milhares de comentários e de interpretações para cada uma de suas páginas. Qualquer conceito filosófico pode encontrar um lugar latente ou manifesto em um canto do texto. Como o próprio Melville o subentende na conclusão de seu livro, a própria humanidade é a protagonista dessa história. Ter conseguido lhe dar lugar em tão poucas páginas é, sem nenhuma dúvida, um feito literário insuperável.

Ironia     

Desde as primeiras frases, a ironia está lá. “Sou um homem que desde a juventude sempre teve a mais firme convicção de que a forma de vida mais fácil é a melhor” (MELVILLE, 2007, p. 14). Sobre essa “firme convicção”, Melville — para sublinhar a estranha convivência que um sujeito pode manter com suas contradições mais absurdas — nota que ser um advogado de Wall Street não era a melhor maneira de alcançá-la.

A singularidade de Turkey e Nippers, apelidos dos dois outros empregados copistas do escritório, pode se misturar na ordem geral. Extravagantes, cada um à sua maneira, mutáveis e um pouco loucos, eles encarnam uma excentricidade admissível e permitida a todos. Não comprometendo o bom-senso, nem mesmo abandonando por um instante os limites do previsível, sua originalidade acaba por despertar a simpatia. Algumas qualidades de observação bastam ao narrador e, por consequência, ao leitor, para se familiarizar com esses personagens. “Em suma, a verdade é que Nippers não sabia o que queria” (MELVILLE, 2007, p.20-21), conclui seu chefe, em uma síntese fechada ao que é próprio do sujeito ordinário: não saber o que ele quer. Herdeiros do coro grego, representantes da doxa, da opinião fundada sobre o significante comum das coisas, Turkey e Nippers, bem como Ginger Nut, se encontram convocados duas vezes pelo narrador, que se refere a eles enquanto testemunhas e fiadores da opinião justa no momento em que ele teme que sua ação e sua consciência se enfrentem em um combate embaraçoso. Pois, o narrador quer compreender, pelo recurso à sensatez, a opacidade que surgiu no centro de sua realidade com Bartleby. Para ele, a compreensão não é um simples reflexo da razão, mas a extensão do bem e da consciência moral. Ele se questiona sobre o bem: até que ponto podemos exercê-lo sem pretender querer nada em troca? O altruísmo é um ingrediente da natureza do bem? E como podemos ter certeza que seu exercício é realizado em benefício de nosso próximo?

Num dia de inverno, presenteei Turkey com um antigo casaco muito respeitável de minha propriedade, cinza, forrado e quente, com botões do joelho ao pescoço[…]. Achei que Turkey gostaria desse presente […]. Mas não. Creio que o fato de abotoar aquele casaco quente e confortável de cima a baixo teve um efeito pernicioso sobre ele […]. Era um homem a quem a prosperidade fazia mal” (MELVILLE, 2007, p. 22).

Essa observação ressoa com a profunda objeção levantada por Freud, contra o mandamento de amar seu próximo como a si mesmo. Quem é nosso próximo, senão o núcleo de nós mesmos, de quem não ousamos nos aproximar? Como São Martinho, esse advogado que, querendo partilhar seu manto com seu próximo, verifica imediatamente os efeitos paradoxais de seu ato.

Dimensão ética 

“Bartleby” é, sem dúvida alguma, uma reflexão sobre a dimensão ética da vida. Borges, como outros autores e críticos, viu na história de Melville uma prefiguração das intuições de Kafka, o grande profeta do absurdo, o radiologista do insensato primordial da existência. Melville antecipa Kafka com a apresentação devastadora da modernidade como cataclismo do ser.

Quem é Bartleby? O que é Bartleby? Para analisá-lo, convém introduzir o artifício de uma divisão entre o ponto de vista do narrador e a perspectiva da estranha criatura que, um belo dia, penetra no pequeno mundo do escritório de advocacia. Bartleby não tem origem nem destino, não possui história e não emite as mínimas afirmações. Ele não tem modelos, raízes nem lugar. Ele se situa na existência como um ser em si. Sua solidão nua, sua absoluta nudez subjetiva, porta o reflexo dessa incurável angústia que marca a condição humana. Sua tragédia, aquela que o gênio de Melville conduzirá até a metáfora do “Departamento de Cartas Devolvidas” (MELVILLE, 2017, p. 77)[2], é aquela de se saber condenado antecipadamente ao silêncio do Outro, à não resposta, à fatalidade do vazio no qual se precipita todo pedido de ajuda, à carta que nunca chega ao seu destino. E se a cadeia da demanda é, para esse homem, quebrada desde o princípio, como ele poderia consentir ao apelo do Outro? De onde a célebre fórmula incurável — “Eu preferiria não” —, figura de uma repetição que, longe de se erigir como uma vontade de rebelião, desnuda a confissão de uma derrota originária. Bartleby não desafia nada nem ninguém. Sua obstinação, seu negativismo, não são a afirmação de qualquer desafio; o uso da condicional é deliberadamente posto lá para enfatizar a fragilidade de sua enunciação. Não se trata de uma preferência, nem de uma escolha, nem de uma forma de oposição. Sua fórmula é aquela de alguém que, desconectado de todo laço humano, resiste, ainda, à queda final, agarrando-se à vida como um inseto em um galho. É escrevendo que ele resiste. Uma escrita, incessante e mecânica, que copia sem reclamação. Dedica-se a essa escrita de maneira absoluta, recusando a parte coletiva de sua tarefa, recusando-se a ingressar na comunidade dos homens, pois isso implicaria uma dialética, uma negociação para a qual ele não foi feito. Bartleby só pode se sustentar com essa escrita mecânica de escrivão, paradigma de uma solidão morta, como aquelas cartas rejeitadas que ninguém receberá jamais. Ele não é escritor, mas copista. Não há pensamento, fantasia ou ação criadora nele. Interrompê-lo na inércia mecânica de sua tarefa é empurrá-lo em direção ao precipício, ao nada abissal. Por consequência, sua única possibilidade é resistir:

Ora, num domingo de manhã, fui à igreja de Trinity, para escutar um pregador famoso, e, encontrando-me na rua um pouco antes da hora, pensei em ir até meu escritório. Por sorte, tinha minha chave comigo; mas, ao colocá-la na fechadura, encontrei resistência do outro lado” (MELVILLE, 2007, p. 39-40).

A fechadura, o real que resiste, é, obviamente, a metonímia do impenetrável Bartleby.

Tragédia

É precisamente nesse ponto crucial que a narrativa opera uma reviravolta da perplexidade inicial para a tragédia do desfecho. Podemos, então, nos colocar no lugar do narrador, que, de prontidão, experimenta o surgimento dessa presença vinda para perturbar sua aspiração ao princípio do prazer, sua inclinação para seguir o que lhe serve de máxima — “a melhor maneira de viver é a de preocupar-se tão pouco quanto possível” (MELVILLE, 2007, p. 14). O estilo de Melville não é a forma fantástica de Maupassant, que, com seu Horla, testemunha o surgimento no mundo familiar de algo que se apresenta como uma estranheza radical. Em Bartleby, nada de mágico. A presença de outra coisa veio virar do avesso a realidade, mas é uma presença permanente, que não se move, não se ausenta, nunca abandona seu lugar. Bartleby, o real, se encontra eternamente em si, como o exprime o narrador em seu monólogo interior: “ele estava sempre ali” (MELVILLE, 2007, p. 38).

“Para um ser sensível, a piedade é quase sempre uma dor. Quando afinal percebe que tal piedade não significa um socorro eficaz, o bom senso compele a alma a desvencilhar-se dela” (MELVILLE, 2007, p. 45). O que é surpreendente não é apenas a fórmula de Bartleby, mas o fato de que sua presença irrevogável produz uma espécie de campo magnético, um espaço intransitável, um limite sagrado que o advogado não ousa ultrapassar. Ao narrador não falta lógica nem a piedosa compaixão da qual certas almas são capazes diante da miséria humana. No entanto, não são seus argumentos, nem sua sede de compreensão, nem seu senso de misericórdia que o detêm e o incapacitam de cruzar o limite que cerca essa outra coisa. “Mas havia algo em Bartleby que não apenas me desarmava, como também me comoveu e desconcertou, de maneira assombrosa” (MELVILLE, 2007, p. 30). Como Hamlet, o advogado adia seu ato. Ele adia o problema para outro dia, é novamente a urgência do cotidiano que se impõe e atrasa a decisão de dar o passo. Não obstante, quer ele saiba disso, quer não, sua vida já é governada pela distância dessa coisa que ele deve regular. Às vezes lhe acontece de esquecer sua firme intenção de não a incomodar, de não perturbá-la, de não assediá-la, para lhe permitir existir fora do sentido. Na experiência de subjetivação do mundo, e daqueles que estão à nossa volta, ocorre irremediavelmente uma divisão: uma parte se torna acessível à luz da representação e do pensamento enquanto outra permanece subtraída do nosso reconhecimento, constituindo-se a partir daí em alteridade absoluta, fora da dimensão simbólica, relutante às exigências do princípio do prazer. No cerne do que pensamos entender, permanece um núcleo irredutível à fala, à razão, ao significado, à consciência, ao bem e a tudo o que usamos para expressar a ilusão de que a realidade é transparente a si mesma.

Não obstante, esse corpúsculo íntimo e enigmático também nos pertence, mas não é fácil abordá-lo: “Apesar de ofendido pelo seu comportamento e resolvido a demiti-lo quando chegasse ao meu escritório, sentia uma espécie de agouro invadindo o meu coração, que me impedia de cumprir o meu propósito” (MELVILLE, 2007, p. 47).

Por que o narrador protege Bartleby? Por que ele o defende, mesmo contra o ataque de seus outros funcionários, que não hesitariam em lhe dar um tapa e expulsá-lo a pontapés? O advogado não é simplesmente um homem que preferiria evitar as complicações práticas e morais de uma demissão. Sua prudência incompreensível obedeceu ao fato de que ele sentia que a existência de Bartleby não lhe era completamente estranha. Faltou a ele apenas descobrir que essa criatura vivia dentro do seu escritório. É a partir desse momento que a história assume uma potência inesperada. Até então, estávamos quase à beira da comédia. Melville precisaria de alguns toques de estilo para converter essa primeira parte em uma peça burlesca. Mas isso tomará outro rumo, pois a descoberta da manhã de domingo é o que nunca deveria ter acontecido para que tudo pudesse continuar no mesmo tom de ligeira excentricidade. Essa distância, essa manutenção de uma barreira proibida que garantiu a estabilidade do casal formado pelo narrador e Bartleby, irá se decompor. O advogado então obedecerá ao primeiro e único pedido que Bartleby lhe dirige, o de fazer alguns passeios pelo bairro e voltar mais tarde.

Ora, a presença absolutamente inesperada de Bartleby, num domingo de manhã, no meu escritório, com sua cadavérica e elegante nonchalance, mas ao mesmo tempo firme e segura, teve um efeito tão estranho sobre mim que de pronto me retirei da minha própria porta, fazendo o que ele queria” (MELVILLE, 2007, p. 40).

A partir desse momento, muita luminosidade foi introduzida na sagrada intimidade de Bartleby. É tarde demais para evitar o desencadeamento de uma extraordinária inversão especular. Não apenas o narrador não será capaz de expulsar Bartleby de seu domínio, mas é ele próprio quem se tornará o expulso — “foi aqui que Bartleby se estabeleceu” (MELVILLE, 2007, p. 42), descobre surpreso nosso narrador. Então,

[…] pela primeira vez na minha vida fui invadido por um sentimento opressivo e angustiante de melancolia. Antes havia apenas tristeza, mas nada tão desagradável. Uma obrigação moral levava-me à depressão. Uma melancolia fraternal! (MELVILLE, 2007, p. 42).

O estranho, o estrangeiro, essa outra coisa insondável e incrível, revelou ser uma parte do meu próprio ser ignorado. É por essa razão que o narrador — o único cujo nome não sabemos —, apesar de sua fuga, nunca se afastará de Bartleby.

O que se segue, a morte de Bartleby, nada mais é do que a consequência lógica do que acontece quando a fatalidade ou o excesso de compreensão profanam os limites do sagrado. Essa é a razão pela qual algo do enigma de Bartleby não cessa de nos acompanhar: porque convém nunca resolver completamente seu mistério e nos contentarmos em aceitar essa ironia do universo.

 

Tradução: Fayga Paim e Tereza Facury
Revisão: Michelle Santos Sena de Oliveira

Referências:
BORGES, J. L., “Prólogo”, In: MELVILLE, H., Bartleby, el escribiente, prefácio e tradução em espanhol de Jorge Luis Borges. Barcelona: Siruela, 2009.
MELVILLE, H. (1853) Bartleby, o escrivão. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2007.
[1] Texto originalmente publicado em La Cause du Désir, nº 102, jun. 2019. p. 141-146.
[2] “Dead Letter Office, no original Literalmente, Departamento de Cartas Mortas. (N. da E.)” (MELVILLE, 2007, p.77)



O INFAMILIAR FREUDIANO[1] [2] 

MARINA LUSA
Psicanalista.  Membro da Escola da Causa Freudiana – ECF/AMP

Resumo

Como se construiu, em Freud, o conceito de Unheimlich? Quais caminhos Freud pega emprestado para apreender esse inapreensível que, entretanto, marca nossa experiência? O texto propõe uma arqueologia desse conceito, assim como o contexto e as referências que Freud trabalhou para fazer emergir, na psicanálise, o infamiliar, que, por si só, faz ressoar o movimento das profundezas com as quais o sujeito se confronta. O estudo de Ernest Jentsch (1906), Schelling e a decifração do conto de Hoffmann, “O homem da areia”, são alguns dos pontos que Freud vai com, contra e/ou além para a investigação desse fenômeno angustiante.

Palavras-chave: Infamiliar; familiar, inconsciente, Freud.

Abstract

How was the concept of Unheimlich constructed in Freud? What ways does Freud borrow to apprehend this unapprehensible that, however, marks our experience? The text proposes an archeology of this concept, as well as the context and references that Freud worked to bring out, in psychoanalysis, the infamiliar, which, by itself, resonates the movement of the depths with which the subject is confronted. The study by Ernest Jentsch (1906), Schelling and the deciphering of Hoffmann’s short story, “The Sandman”, are some of the points that Freud goes with, against and / or beyond to investigate this distressing phenomenon.

Keywords: Uncanny; familiar, unconscious; Freud

 

Trajeto I – diário. Bárbara Schall

 

Em maio de 1919, as hostilidades tinham acabado de terminar. Logo após a guerra, as condições de existência se tornaram muito difíceis na Áustria. Mas Sigmund Freud não era homem de reclamar. Para esse trabalhador incansável, o trabalho é o melhor remédio contra a inquietude e as contrariedades. Assim, em 12 de maio daquele mesmo ano, escreveu a Ferenczi: “Eu não só terminei o projeto de ‘Além do princípio do prazer’, que será reproduzido para vocês, mas também retomei esse pequeno nada sobre o ’Infamiliar’ e tentei, através de uma ideia simples, dar uma base Ѱα à psicologia das massas” (FREUD/FERENCZI, 1996, p. 391-392).

Acompanhando Ernest Jones, “esse pequeno nada” é um artigo antigo encontrado em uma gaveta que Freud decidiu retomar, a fim de preencher suas poucas horas de folga antes de sua partida para Bad Gastein (JONES, 2006, p. 44). “Das Unheimliche”, provavelmente redigido entre maio e junho, foi publicado pela primeira vez no outono de 1919, pela revista Imago. “Então houve um primeiro projeto” (Ibid, p. 451), sugere Jones. O que quer que seja, sabemos somente que essa dimensão do infamiliar já preocupava Freud na época em que ele concebeu “Totem e tabu” (1913). A nota adicionada a seu texto de 1919 o mostra bem: “Parece que nós conferimos o caráter de Unheimlich às impressões que tendem a confirmar toda potência de pensamentos e o modo de pensamento animista em geral, quando já nos afastamos deles no julgamento”.

Por que das Unheimliche?

Freud avisa o leitor na sua introdução: a estética, considerada a “teoria das qualidades da nossa sensibilidade” (Ibid, p. 213), não é o campo habitual de pesquisa da psicanálise. Mas, observa Freud, é possível fazer com que o psicanalista se interesse por um domínio particular da estética, aquele que se situa na abertura negligenciada pela literatura especializada. O Unheimliche, sublinha ele assim, é um desses domínios.

No final do século XVIII e no começo do século XIX, alguns epítetos (eerieuncannyweird) de origem anglo-saxônica ou escocesa entram em circulação na língua inglesa. Elas servirão para definir esses lugares ou coisas que inspiram uma onda de horror. Em alemão, esses epítetos são perfeitamente traduzidos pela palavra unheimlich [3].

A esse respeito, reconhecendo a dificuldade de dar uma definição precisa da palavra unheimlich, trata-se, mais frequentemente, de uma aproximação com o que provoca a angústia em geral. “Não há nenhuma dúvida de que (o infamiliar) diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror” (FREUD, 2019, p. 23), explica Freud. O infamiliar é um fenômeno angustiante que não poderia ser confundido com a angústia. Dito isso, acrescenta: “pode-se esperar que exista um determinado núcleo específico” que justifique “a utilização de um termo conceitual” (Ibid, p. 23) que lhe é associado. Para Freud, trata-se, desde então, de elucidar o que é esse “núcleo específico” reenviando, ao seio do que é angustiante, esse ponto que se distingue como um estranhamento inquietante[4]. É esse ponto obscuro que ele tenta elucidar entregando-se a uma pesquisa psicanalítica longa e minuciosa, a fim de extrair a verdadeira origem do que provoca o sentimento do infamiliar. Sobre esse tema, constata Freud, não encontramos quase nada nas obras consagradas à estética. Essa última prefere se ocupar de objetos que provocam os sentimentos belos, atraentes, positivos, em vez daqueles difíceis, que inspiram uma intensa repulsa. Há nisso uma lacuna. Por outro lado, pelo lado da psicologia médica, Freud cita um estudo “substancial, mas não exaustivo”, lançado em 1906, intitulado “Sobre a psicologia do infamiliar”, do psiquiatra alemão Ernest Jentsch, ao qual confronta sua própria teoria. Todo o ensaio de Freud pretende ser uma recusa da tese de Jentsch, que mostra, por assim dizer, uma psicologia descritiva e cognitiva do infamiliar.

Antes de explicitar suas apreciações sobre o ensaio de Jentsch, Freud apresenta as duas vias de pesquisa que seguiu para abordar seu estudo de 1919. Primeiramente, a análise linguística do sentido que a evolução da língua testemunhou na palavra unheimlich. Em segundo lugar, a aproximação de todos os acontecimentos, experiências vividas e situações que despertam em nós o sentimento do infamiliar, a fim de deduzir daí o caráter comum. Nos dois casos, sublinha ele, o resultado é o mesmo. Essa constatação o leva a dar uma primeira definição do fenômeno: “de que o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo” (FREUD, op. cit. p. 33). O inquietante se destaca — é necessário o cernir — tendo o familiar como tela de fundo o tempo todo, no qual ele faz furo. De onde vem a questão: em quais condições o familiar pode se tornar subitamente tão estranho, tão inquietante?

Depois de ter lembrado que, na língua alemã, heimlich significa, por vezes, o que faz parte da casa, do familiar, íntimo e secreto, mantido escondido, querendo dissimulá-lo nos outros, Freud defende que a palavra unheimlich é manifestadamente o oposto do heimlichheimischvertraut, na medida em que designa o que não é conhecido, o novo. Ou, em seguida a essa lógica, seremos tentados a concluir que uma coisa é inquietante justamente porque não é conhecida nem familiar, escreve Freud. No entanto, a experiência o contradiz. Com efeito, nem tudo o que é novo, insólito, não familiar é assustador ou causa incerteza. Alguma coisa deve necessariamente vir se acrescentar ao novo, ao não-familiar, para que ele se torne infamiliar (FREUD, op. cit. p. 33). O que é, então, esse elemento?, interroga-se Freud.

Uma análise etimológica do termo heimlich lhe dá a solução. Ao final dessa investigação linguística, a fronteira entre heimlich e unheimlich se encontra apagada. É notável, formula Freud, que a palavra heimlich, aplicando-se, sobretudo, a isso que é familiar, tenha vindo através de mudanças graduais do uso da linguagem para designar o que pertence à esfera estritamente íntima, ao que está escondido, secreto, dissimulado. Em outras palavras, aquilo que é unheimlich. A “inquietante estranheza freudiana, sublinha Jacques-Alain Miller, (…) repousa inteiramente sobre o fato que duas palavras contrárias possam querer dizer a mesma coisa: Heimlich/ Unheimilich” (MILLER, 1984, s/p.).

Heimlich e unheimilch são apenas o direito e o avesso de uma só e mesma coisa. Ei-nos informados: o heimlich está no coração do unheimlich[5]. Sem integrar o heim(lich) em seu coração, parece difícil saber a particularidade e a complexidade desse fenômeno, observa Freud. A esse propósito, ele se depara com uma observação de Schelling: seria unheimlich tudo o que deveria permanecer um segredo (Geheim), na sombra, e que saiu dali (FREUD, 2019, p. 47). Em uma perspectiva psicanalítica, e de acordo com a definição do filósofo, das Unheimlich se manifesta quando um conteúdo inconsciente retorna bruscamente à consciência. Nessa perspectiva, “nada tem realmente de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento” (FREUD, 2019, p. 85). Lá onde foi recalcado, isso se manifesta alhures numa linguagem cifrada, em outro registro, o do sintoma. O recalcamento é inseparável do “retorno do recalcado” (LACAN, 2018, p. 45). É por isso que Freud anuncia que se “todo afeto de uma moção de sentimento, de qualquer espécie, transforma-se em angústia por meio do recalque, entre os casos que provocam angústia deve haver então um grupo no qual se mostra que esse angustiante é algo recalcado que retorna” (FREUD, 2019, p. 85). O Unheimlich pertenceria, consequentemente, a esse tipo de fenômeno angustiante, cujo cerne é constituído pelo retorno do recalcado. Relacionar o infamiliar[6] com o retorno do recalcado permite a Freud compreender por que o uso linguístico faz passar o heimlich para seu contrário, o unheimlich, dado que a inquietude se sustenta não na natureza de algo que seria inquietante em si, mas em um retorno. Além disso, a relação com o recalque dá luz a uma nova possibilidade na definição de Scheling: o infamiliar seria da ordem do familiar, recalcado “que deveria permanecer oculto, mas que veio à tona” (FREUD, 2019, p. 87). Concebido assim, o corolário do infamiliar decorre disso. O prefixo negativo “un” da palavra unheimlich nada mais é do que a marca do recalcamento do heimlich. O infamiliar é o heimlich/heimisch que sofreu um recalcamento e retornou. Dito isso, o enigma do infamiliar não está, entretanto, decidido por essa delimitação (FREUD, 2019, p. 95), sublinha Freud.

Freud com, contra e além Jentsch 

O texto que Jentsch consagrou, em 1906, ao estudo do infamiliar permitiu a Freud dar um passo suplementar na decifragem e na elaboração do conceito do unheimlich. Freud concede a E. Jentsch a pertinência de sua crítica quanto à dificuldade de poder definir um sentimento tão dificilmente compreensível. Isso pelo fato de que uma mesma impressão não exerce necessariamente um efeito infamiliar em cada um. Além disso, sublinha Jentsch, a mesma percepção não reveste sempre, ou pelo menos de forma idêntica, uma marca inquietante para um mesmo indivíduo (JENTSCH, 1998, p. 37). Das unheimliche é uma experiência precisa, singular.

Assim, sugere Jentsch, para aproximar a essência do infamiliar, é preferível, em vez de procurar uma definição, examinar como se produz, no nível psicológico, a excitação emocional que esse sentimento subentende. Segundo ele, o homem alimenta afetuosamente uma familiaridade com tudo o que é da ordem da tradição, do costume ou da herança ancestral. Ao contrário, o novo, o insólito, são percebidos com desconfiança, desconforto, e até mesmo com certa hostilidade. É compreensível, continua ele, que, na associação psíquica “antigo-conhecido-familiar” (JENTSCH, 1998, p. 46) corresponda a um correlato “novo-estranho-hostil” (JENTSCH, 1998, p. 47). Nesse último caso, a ausência de referência e a falta de domínio intelectual podem facilmente se revestir com a nuança do infamiliar. Assim, Jentsch localiza a condição essencial da emergência de um sentimento do infamiliar na incerteza intelectual produzida por um desajuste da atividade associativa no indivíduo. Essa incerteza que retira sua origem de uma impressão inquietante faz vacilar os indicadores simbólicos e imaginários do sujeito provocando o mal-estar e a inquietude. Mas Freud recusa essa interpretação geral e se separa radicalmente desse ponto de vista sublinhando o caráter parcial dessa explicação. O infamiliar não é equivalente ao que não é conhecido, ao não familiar. Não se trata de uma falta de referência, e, portanto, de uma alteração perceptiva. A hipótese cognitiva da “incerteza intelectual” (FREUD, 2019, p. 59), como causa essencial e suficiente do Unheimlich, é decididamente pouco convincente para Freud. Ela é simplesmente descritiva e passa ao lado do recalcado.

Em meio a todas as incertezas psíquicas susceptíveis de produzir um efeito incontestável do infamiliar, Jentsch isola um em particular: “Trata-se da impressão de que um ser vivo poderia ser um objeto, e inversamente, que um objeto inanimado poderia ter uma alma” (JENTSCH, Ibid., p. 41). Além disso, indica ele, experimentamos um incômodo comparável na presença de loucos ou de pessoas em uma crise epilética, pois todas induzem o expectador à dúvida que um processo automático ou mecânico poderia se esconder atrás da imagem habitual que fazemos da ação da alma e de suas propriedades (JENTSCH, Ibid., p. 46). Entretanto, acrescenta ele, “logo que uma explicação racional da situação é dada, essa tonalidade emocional de inquietante estranheza desaparece” (JENTSCH, Ibid., p. 47). Desse fato, o objeto torna-se familiar e perde facilmente seu aspecto assustador (JENTSCH, Ibid., p. 42).

Assim, graças ao discurso da razão, seria possível explicar tudo, tudo compreender, tudo controlar. Que seja. Mas, dessa forma, não se leva em conta o inconsciente, que não obedece à lógica da razão e do bom senso.

Jentsch se refere, então, ao efeito indizível e desagradável provocado pelas figuras de cera, das bonecas artificiais ou dos autômatos sofisticados sem vida, mas que parecem ser dotados dela. O Unheimlich está aqui ligado a um indecidível que se situa entre o animado e o inanimado-mecânico.

Essa ambiguidade foi utilizada repetidamente na literatura, a fim de produzir efeitos estranhamente inquietantes. A título de ilustração literária, Jentsch se refere a Ernest Theodor Amadeus Hoffmann, notadamente no conto fantástico “O Homem da areia”, sem o citar. Freud aprova essa escolha sensata. A seus olhos, esse autor é “o inigualável mestre do infamiliar na literatura” (FREUD, 2019, p. 67). Por isso, ao mesmo tempo que se afasta da leitura que Jentsch fez de Hoffmann, Freud faz, por sua vez, uma decifração da narrativa de Hoffmann que ficará na história.

Jentsch considera que o sentimento de inquietude no conto de Hoffmann é devido à incerteza em que ele deixa o leitor quanto ao estatuto de um personagem: trata-se de uma personagem viva ou de um autômato? Assim, Jentsch coloca o elemento determinante do efeito de inquietude na qualidade do autômato da bela, lacônica e imóvel Olympia, quem o professor Spalanzani, no entanto, afirma ter dotado de vida. Se isso se trata de um ponto de partida, o motivo central se localiza alhures, segundo Freud: o sentimento do infamiliar se relaciona diretamente à figura do Homem da Areia, “que arranca os olhos das crianças” (FREUD, 2019, p. 51), consequentemente, “à representação de que os olhos devem ser roubados” (FREUD, 2019, p. 59). Uma incerteza intelectual não tem nada a ver com esse efeito de infamiliar (FREUD, Ibid.). A experiência psicanalítica nos previne que “uma angústia assustadora das crianças é o medo de machucar ou perder os olhos” (FREUD, Ibid.). O inquietante nesse caso está ligado à angústia do complexo de castração infantil (FREUD, 2019, p. 61).

Por outro lado, sublinha Freud, o efeito de mal-estar suscitado pela narrativa de Hoffmann não se situa tanto no lado do indecidível entre o vivente e o autômato, mas sim, e de modo bem mais inquietante, naquilo que encontramos em nós mesmos, pela luneta ou telescópio do optometrista demoníaco. É algo que nos concerne e que faz vacilar nossas referências colocando em causa o próprio sujeito. Oscilação, desconforto, infamiliar: não é mais uma questão de incerteza intelectual.

“Não me admiraria ouvir que a psicanálise, ocupada em descobrir essas forças misteriosas, tornou-se, ela mesma, infamiliar para muitas pessoas” (FREUD, 2019, p. 91), escreveu Freud.

O inconsciente é, com efeito, a noção mais perturbadora, mais subversiva aparecida no domínio do pensamento. A invenção freudiana guarda sempre sua dimensão perturbadora e revela ao homem algo que ele não deseja saber. O infamiliar é o próprio inconsciente.

Tradução: Luciana Silviano Brandão
Revisão: Letícia Soares

Referências:
BORGES, J. L. Neuf essais sur Dante, Paris: Gallimard, 1987, p. 81.
FREUD, S./FERENCZI S. Correspondance 1914/1919. Paris: Calmann-Lévy, 1996.
FREUD, S. O infamiliarBelo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
JENTSCH E. “À propôs de l’inquiétant étrangeté”. (trad. para o francês de Frank Felgentreu e Pascal Le Maléfan). In: Études psychothérapeutiques, nº 17, jan. 1998. p. 37.
JONES E. “Les dernières annés 1919-1939”, t. III. La vie et l´oeuvre de Sigmund Freud. Paris: PUF, 2006.
MILLER J-A., “L’orientacion lacanienne. Des réponses du reel”, aula proferida no departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII. jan. 1984, inédito.

[1] Texto originalmente publicado em La Cause du Désir, nº 102, jun. 2019. p. 71-77.
[2] Em francês, “infamiliar” é traduzido como “inquietante estranheza”.
[3] Cf. BORGES, 1987, p. 81.
[4] NT: A autora inverte aqui a expressão utilizada para traduzir o infamiliar (inquietante estranheza) por estranheza inquietante.
[5] Cf. FREUD. op. cit. p. 221-223. “é o fato de que a palavrinha ‘familiar’ [heimlich] entre as diversas nuances no seu significado, também aponta coincidente com seu oposto ‘infamiliar’ [unheimlich]. […] de tal modo que heimlich assume o sentido que normalmente tem unheimlich […] Em suma, familiar [heimlich] é uma palavra cujo significado se desenvolveu segundo uma ambivalência, até se fundir, enfim, com seu oposto, o infamiliar [unheimlich]. Infamiliar é, de certa forma, um tipo de familiar.
[6] NT: No original em francês foi usada a expressão “estranhamente inquietante”, mas preferimos utilizar o “infamiliar”.



Entrevista com Santuza Teixeira

 

 

A cor da romã I. Bárbara Schall

 

Almanaque entrevista Santuza Teixeira, mineira de Belo Horizonte. Graduada e mestre em bioquímica na Universidade de Brasília, fez doutorado na Universidade de Lausanne, na Suíça, e pós-doutorado na Universidade de Iowa, nos EUA. Professora e pesquisadora do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, atua no departamento de Bioquímica e Imunologia coordenando pesquisas em genômica e parasitologia e no desenvolvimento de vacinas. Em dezembro de 2019, foi eleita membro titular da Academia Brasileira de Ciências.

 

ALMANAQUE: Gostaria que você nos falasse um pouco sobre seu trabalho e de sua equipe no Centro Tecnológico de Vacinas da UFMG no que diz respeito à pandemia do coronavírus.

SANTUZA RIBEIRO TEIXEIRA: Somos uma equipe de aproximadamente 30 pessoas, entre professores, pesquisadores, técnicos, alunos de graduação e de pós-graduação, todos bolsistas com diferentes níveis de treinamento em várias áreas das Ciências Biológicas. Temos experiência no desenvolvimento de testes de diagnóstico e vacinas, pois, ao longo de mais de 10 anos, vínhamos desenvolvendo projetos voltados para o controle de doenças como leishmaniose, malária e doença de Chagas e viroses como dengue e chikungunya. Com a chegada da Covid-19, todos os nossos esforços passaram a ser voltados para três frentes de trabalho que acreditamos poder contribuir para o controle desta pandemia: (i) a testagem por PCR a partir de amostras colhidas em hospitais de Belo Horizonte, para fins de diagnóstico e também para detectar pessoas assintomáticas que têm a infecção ativa e que podem disseminar o vírus; (ii) o desenvolvimento e a aplicação de um teste de diagnóstico sorológico a partir de amostras de sangue de pessoas que tiveram contato com o vírus e que podem ter desenvolvido imunidade e, (iii) o desenvolvimento de uma vacina baseada na modificação genética do vírus influenza atenuado, que seria capaz de proteger ao mesmo tempo contra a gripe comum e contra a Covid-19.

 

A.: Esse vírus irrompeu inesperadamente e se impôs em nossas vidas, surpreendendo e atemorizando a humanidade. Nesse contexto, a pressão por soluções urgentes para pôr fim à pandemia, igualmente, se impôs em todo o mundo, convocando, especialmente, os cientistas que trabalham no campo de pesquisas em biotecnologia. Vimos como o anseio por uma resposta rápida levou a precipitações, como bem demonstrou a recente polêmica em torno do uso da cloroquina, ressaltando o impasse entre a urgência e prudência. Sabemos que a produção de conhecimento científico requer tempo — além do aporte contínuo de recursos orçamentários —, tornando inviável atender a essa expectativa de uma solução a curto prazo, como a oferta de uma vacina. Como tem sido para você trabalhar sob essa pressão?

S.R.T.: Na nossa carreira, estamos acostumados a trabalhar sob pressão, mas, obviamente, essa pressão está mais evidente agora. Entretanto, essa sensação de trabalhar sob pressão é aliviada por outros sentimentos que surgiram em função da urgência e da relevância do desafio que se impõe. Parece que o sentimento preponderante — e penso que posso falar não somente por mim, mas pela equipe toda — está mais associado ao fato de termos pela frente uma tarefa importante, para a qual nós fomos preparados ao longo de muitos anos de estudo e trabalho. Esse sentimento é muito positivo e estimulante. Desde que comecei a estudar biologia na Universidade de Brasília, minhas pesquisas sempre foram voltadas para estudos sobre patógenos humanos. No entanto, o foco foi sempre no conhecimento básico, ou seja, buscando entender a biologia desses patógenos. Esse tipo de estudo é extremamente importante, mas é pouco reconhecido pela sociedade, que muitas vezes tem a impressão de que se trata de dinheiro e esforços jogados fora. Na realidade, esse tipo de pesquisa básica é a força motriz da Ciência e sabemos que os países que têm uma “ciência avançada” são aqueles que investiram em pesquisa básica, obviamente preocupando-se com a qualidade dos projetos que são financiados. Somente após ter sido formada uma base científica sólida, que inclui não somente o conhecimento, mas a existência de uma rede de pesquisadores muito bem treinados, é que se pode pensar em propor um projeto de uma nova vacina, como a de Covid-19, por exemplo. Temos, portanto, hoje, na UFMG, uma equipe capaz de propor um projeto como esse acreditando que temos chances de alcançar bons resultados em um tempo relativamente curto, como o que se impõe agora, tanto quanto os grupos que trabalham nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Ou seja, graças aos investimentos em pesquisa que foram feitos ao longo dos últimos 30 anos no Brasil (eu mesma recebi, em 1986, uma bolsa do governo brasileiro para fazer meu doutorado no exterior), nós somos capazes de desenvolver nossos próprios kits de diagnóstico e — tomara! —, capazes de produzir a nossa própria vacina anti-Covid19. Voltando à pergunta, portanto, a sensação de trabalhar sem ter o reconhecimento da importância do seu trabalho é muito mais dolorosa. Isso estava acontecendo até três meses atrás, quando os cientistas brasileiros pareciam ter que implorar para continuar desenvolvendo suas pesquisas. Esse sentimento de descaso trouxe graves consequências, especialmente para pesquisadores jovens, alunos de pós-graduação e bolsistas em início de carreira, que se viram totalmente desestimulados. É muito gratificante ver essas mesmas pessoas chegando ao laboratório todas as manhãs, vestindo seus jalecos e indo trabalhar com uma dedicação, entusiasmo e compromisso admiráveis.

 

A.: Nós, psicanalistas, temos lidado, em nossa clínica, com os desdobramentos subjetivos da pandemia, tais como aqueles provocados pelo confinamento e os modos singulares como as pessoas a ele reagem, sejam elas adultas, sejam crianças, sejam adolescentes. Nesse sentido, você poderia nos dizer como tem percebido esses efeitos no seu trabalho junto à sua equipe?

S.R.T.: Como disse antes, fiquei bastante surpreendida com a atitude dos alunos e jovens pesquisadores que se ofereceram para trabalhar nesses três projetos do laboratório, mesmo sabendo não somente do enorme desafio e do volume de trabalho, mas também dos riscos que qualquer um está correndo por não estar em isolamento nas suas casas. Lembrando que o laboratório recebe uma grande quantidade de amostras de pacientes, o que requer um cuidado e uma concentração muito grande durante todas as etapas de manipulação, para se eliminar o risco de contaminação. Mesmo assim, eles estão lá todos os dias e, quando nos demandam os resultados de testes no final de semana — pois os hospitais não podem esperar chegar segunda-feira —, nunca tenho qualquer dificuldade em encontrar pessoas para irem comigo fazer os testes no sábado ou no domingo. São essas as mesmas pessoas que estavam pensando em deixar a carreira científica porque viviam sob uma enorme sombra de dúvida com relação às suas perspectivas de trabalho no Brasil. De fato, nunca tivemos uma discussão envolvendo essas questões subjetivas relacionadas ao momento que cada um está vivendo, mas creio que a ideia de um desafio comum, aliada à sensação de participar de um esforço tão urgente, pode estar tendo um efeito muito positivo sobre essas pessoas.

 

A.: A pandemia do coronavírus está produzindo uma série de consequências que extrapolam o campo da ciência e da saúde, tocando em questões psíquicas, políticas e éticas! Em algum momento você pensou que um vírus nos convocaria para um debate tão extenso? Caso afirmativo, que novos contornos esse acontecimento tem apontado no seu campo de atuação? E que mundo você imagina pós-pandemia?

S.R.T.: Nós todos pensamos sobre isso todos os dias, cada vez que saímos e vemos as ruas vazias em plena quarta-feira ou ficamos trancados em casa sem poder ir ao cinema na sexta. De fato, pensar que um vírus é capaz de transformar a vida no planeta e nos convocar para um debate tão intenso, tão inesperado e tão sui generis confere ainda mais poder a essa partícula impressionantemente simples, formada por uma única molécula de RNA, 29 proteínas e uma fina camada de gordura! Ou, se olharmos para o outro lado, pensar como que o Homo sapiens vai à Lua, descobre água em Marte, investiga, um a um, todos os seus 20 mil genes e cura inúmeros tipos de câncer, mas não consegue evitar as mortes de 400 mil indivíduos em pouco mais de 4 meses por causa de um vírus! Novamente, o principal elemento que essa partícula tem nos apontado é a ideia de que a Ciência não pode ser vista como um passatempo divertido a que algumas pessoas se dedicam, muitas delas com uma tenacidade e comprometimento impressionantes. Todos, independentemente das tendências políticas, religiosas ou time de futebol do coração, estão voltados para as páginas dos jornais, TV e outras mídias que falam de novos tratamentos e vacinas para a Covid-19. Ao mesmo tempo em que expõe nossa fragilidade, a pandemia revela a confiança no conhecimento científico como nossa única arma. Que mundo eu imagino pós-pandemia? Um mundo certamente melhor, que deverá surgir como consequência de um esforço obrigatoriamente capaz de superar divergências para que possamos concentrar nas soluções necessárias para viabilizar nossa sobrevivência no planeta.

Entrevista feita por: Giselle Moreira, Letícia Mello, Renata Mendonça e Thiago Bellato.




OS DIAS DO UNHEIMLICH  FAMILIAR[1]

 

 

MARIANA SCHWARTZMAN
Psicanalista. Membro da Escola de Orientação Lacaniana EOL/AMP

Resumo
Esta crônica relaciona a epidemia do coronavírus e suas consequências na vida cotidiana ao conceito freudiano de infamiliar [Unheimlich] e ao conceito de extimidade, proposto por Jacques-Alain Miller. Esses conceitos são abordados enquanto uma chave de leitura possível do momento atual e de seus efeitos infamiliares em cada sujeito, na sua relação com o que lhe seria mais familiar: sua casa.Palavras-chave: estranho; familiar; infamiliar; extimidade; coronavírus.

Abstract: This chronicle refers to the coronavirus epidemic and its consequences in everyday life as a freudian concept of Unheimlich and as a concept proposed by Jacques-Alain Miller of ex-timete. These concepts are approached as a possible reading key for the current moment and its effects, uncanny, on each subject in their relationship with what would be most familiar to them: their home.

Keywords: strange, familiar, uncanny; ex-timate; coronavirus.

 

Posso me ver nos teus olhos- Barbara Schall

Posso me ver nos teus olhos- Barbara Schall

 

Como, desde que nasci, falo alemão, sempre senti esse conceito bastante “familiar”. Mas isso tem o problema de, às vezes, acreditarmos compreendê-lo demais. Até que algo “exterior” irrompe e se faz necessário revisá-lo um pouco. Foi a partir da irrupção do coronavírus e da quarentena que voltei a ler o texto de Freud (1919/2019) “O infamiliar”, para tentar articulá-lo de algum modo com o que acontece no momento atual.

Freud escreve esse artigo em 1919. Com o Unheimlich, refere-se ao familiar que se torna aterrorizante, sinistro. Ao realizar uma investigação linguística sobre esse vocábulo em diferentes dicionários, descobre-se que Heimlich (que, em alemão, representa o doméstico, o familiar, o íntimo, o lar, a casa em sentido amplo) e Unheimlich (o alheio, lúgubre, sinistro ou incômodo de um lar) coincidem em várias das definições. É a definição de Schelling que chama a atenção de Freud principalmente. Ali, a palavra Heimlich assume ambas dimensões: algo relacionado ao familiar, ao lar, mas também ao contrário: “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona” (FREUD, 1919/2019, p. 45). Referindo-se a essa definição, Freud assinala que o familiar coincide “com seu oposto, o infamiliar” (FREUD, 1919/2019, p. 47-48).

Há uma melhor definição que a freudiana para explicar o que se sente nestes dias?

O familiar, o caseiro, o lar, tornou-se estranho: encarnamos a voz dos professores de nossos filhos transmitindo (inclusive traduzindo, corrigindo) o dever de casa; nossos parceiros trabalham e fazem conference calls de nossa sala de estar (muito perto de nós); instalamos o consultório no nosso quarto[2]; vemos nossos rostos ao fazer sessões por Skype (rostos que, ao escutar o paciente deitado no divã, permaneciam ocultos, velados ao nosso próprio olhar); recebemos a toda hora “chamadas em grupo” de amigos estrangeiros que, por causa do vírus e dessa causa em comum, desejam estar mais próximos, penetrando em nosso dia a dia familiar, o tempo todo… Outras coisas habituais e rotineiras se tornaram ameaçadoras, sinistras: sair à rua, as compras de supermercado, nas quais borrifamos álcool e água, respirar quando estamos fora — com medo de inalar o vírus —, etc., etc., etc., etc.

O íntimo tem se tornado um estranho. O estranho penetra em nossa intimidade.

O que a psicanálise pode oferecer? Além da brilhante e lúcida escrita de Freud, que nos serve para pensar o que estamos vivendo, gostaria de ressaltar outro conceito e articulá-lo com a escuta que um psicanalista poderia oferecer. Diz respeito ao conceito lacaniano de extimidade. É um neologismo de Lacan que Jacques-Alain Miller, em seu curso do mesmo nome, explora ao longo de várias páginas. “Extimidade”, diz-nos Miller, baseia-se na palavra intimidade. Ele usa a descrição do termo segundo o Robert[3], que qualifica a intimidade desta maneira: “encanto de um lugar onde se sente em casa, livre do mundo exterior” (MILLER, 2010, p. 15, tradução nossa). Miller localiza: “(…) a extimidade é, para nós, uma fratura constitutiva da intimidade. Colocamos o êxtimo no lugar onde se espera, se aguarda, onde se acredita reconhecer o mais íntimo. (…) Em seu foro mais íntimo, o sujeito descobre outra coisa. (…) o mais próximo, o mais interior sem deixar de ser exterior” (2010, p. 17, tradução nossa).

O interessante desse conceito lacaniano é que ele não deixa de expor como o interior é exterior e vice-versa. Algo interior que aparece no exterior, mas que, por sua vez, não deixa de sê-lo.

Será o momento de escutar como cada sujeito (que vinha falar no consultório, ou, talvez, novas vozes que nos demandem escutá-las) dará conta do que de seu interior irrompeu no exterior… de suas próprias casas.

 

Tradução: Ernesto Anzalone
Revisão: Michelle Santos Sena de Oliveira

Referências
FREUD, S. (1919). ”O Infamiliar / Das Unheimliche”. In: O infamiliar / Das Unheimliche / Sigmund Freud; seguido de O Homem da Areia / E. T. A. Hoffman (Obras incompletas de Sigmund Freud; 8). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010.

[1] Texto originalmente publicado em Crónicas XXI, n. 12, Grama Ediciones, em abril de 2020. Disponível em: https://vo.mydplr.com/a69434b74753925c46ebf32d01f9655e-ce69bbe059e210a75023e795d3e2594b
[2] Alguns colegas o fizeram na sua varanda. Outros têm, como único lugar “íntimo”, seu carro.
[3] Dicionário Sper Editorial.



CONFINAMENTO FAMILIAR: FAMÍLIAS, QUESTÕES CRUCIAIS[1]

 

 

HÉLÈNE BONNAUD
Psicanalista. Membro da Escola da Causa Freudiana  ECF/AMP

Resumo
A crônica de Hélène Bonnaud explora a relação entre a pandemia do coronavírus e o confinamento dos sujeitos em casa. Consequentemente, a angústia diante da incerteza que acomete a todos irrompe diante desse real. As novas rotinas domésticas e laborais, a convivência aumentada com a família, a aposta midiática na prática de meditação e o aumento de divórcios são alguns efeitos deste momento que são ressaltados e examinados pela autora. Pela evidente amplificação do sentimento de solidão, a autora propõe um paralelo entre isolamento e solidão, levando em conta, contudo, as diferenças entre os dois.

Palavras-chave: coronavírus, família, angústia, solidão, isolamento.

Abstract: Hélène Bonnaud’s chronicle explores the relationship between the coronavirus pandemic and subjects’ confinement at home. Consequently, the anguish at the uncertainty that affects everyone breaks out in the face of this reality. The new domestic and work routines, the increased coexistence with the family, the media focus on meditation practice and the increase in divorces are some effects of this moment that are highlighted and examined by the author. Due to the evident amplification of the feeling of loneliness, the author proposes a parallel between isolation and loneliness, taking into account, however, the differences between the two.

Keywords: coronavirus, family, anguish, loneliness, isolation.

 

Posso me ver nos teus olhos – Barbara Schall

 

 

Se houvesse apenas uma coisa para comemorar neste período de pandemia e, portanto, de angústia de morte, é que as crianças não sucumbem ao coronavírus. Mesmo sendo portadores, o vírus não causa o dano causado em adultos, especialmente em idosos. Se acreditarmos nos números, o coronavírus mata mais idosos do que jovens. A escala de idade encontra seus direitos. Há uma enorme diferença entre as gerações. Esse é um lembrete útil? Sim e não, já que muitos jovens se sentiram invulneráveis ​​no início do confinamento e o recusaram, pensando que isso não os afetaria.

A juventude sempre esteve inconsciente, dizem. Esse é o seu ponto fraco, ou o seu ponto forte, dependendo do objeto com o qual ela não se importa. No que diz respeito à doença, ela sempre parece distante, e o sentimento de ter um corpo perfeitamente saudável engana a própria ideia de mortalidade. Mas, atualmente, o coronavírus tem mostrado que pode ser bastante virulento com certos jovens e que é necessário proteger-se dele, definitivamente, independentemente da idade. O caso da jovem Julie, 16 anos, infelizmente tornou minha previsão real; ela morreu após a escrita deste texto[3].

A injustiça, que atinge cegamente, é o signo do real sem lei com o qual estamos lidando. Ela se manifesta nessa lógica implacável de que ser jovem não é uma certeza nestes momentos em que a vida e a morte colapsam, e menos ainda uma garantia, mas, isso, já sabíamos. Sem dúvida, poderíamos ler ali o efeito do caput mortuum do significante de que Lacan (1966/1998, p. 55) fala em “Seminário sobre ‘A carta roubada’” e que constitui um furo no simbólico[4].

As restrições do confinamento

Estamos entrando na segunda semana de confinamento na França. A mídia nos inunda com seus conselhos sobre a melhor maneira de o suportar, seja em família, seja em casal, seja sozinhos. De fato, a família deve suportar a convivência a longo prazo; gerenciar as angústias de todos; encontrar soluções para garantir que o horário de trabalho de pais e filhos seja respeitado, sem mencionar a organização necessária para preparar refeições e resolver problemas de espaço compartilhado, etc. Casais com filhos pequenos estão reinventando a “guarda compartilhada” diariamente, cada um se revezando no cuidado com os filhos enquanto o outro trabalha. A vida profissional em casa obriga a redobrar sua concentração, e a vida familiar sem sair de casa pode se transformar em um pesadelo. A perspectiva de uma duração indeterminada do confinamento também causará picos de angústia ou raiva, medo e exaustão.

A sublimação é, sem dúvida, o processo de maior contenção. Muitos o utilizam: cozinhar, pintar, bricolagem, poesia, cantar, dançar, escrever, arrumar a casa e, mais prosaicamente, praticar esportes, “o grande protetor de nossa saúde física e mental”.

E os conselhos da mídia

A mídia nos explica, através de seus especialistas psiquiatras ou psicoterapeutas mais reconhecidos, que estamos diante de uma situação sem precedentes, em que a angústia de contrair a doença se manifesta como um trauma cujo principal sintoma, o atordoamento, penetra a capacidade de pensar, cristalizando o medo, que surge de um evento fora de sentido, fazendo vacilar as certezas sobre as quais cada um constrói seu mundo.

De fato, diante desse real, cuja natureza inesperada e invasiva muda a rotina de nossas vidas, cada sujeito deve encontrar uma solução para lidar com esse novo elemento, objeto invisível e ainda intrusivo, circulando sem o nosso conhecimento, verdadeira figura do contágio em larga escala, infiltrando-se principalmente através dos orifícios respiratórios nariz e boca. O isolamento necessário nos afasta uns do outros e dá consistência aos uns-sozinhos que somos.

A família, nesse sentido, é uma entidade particularmente sensível a essa catástrofe sanitária, porque os pais têm o dever de proteger seus filhos que devem, portanto, suportar as novas regras que lhes são impostas, tanto em termos de higiene quanto de convivência. Mas crianças pequenas e adolescentes não apresentam os mesmos problemas. Os primeiros estão sujeitos às ordens dos pais e podem apenas levar em consideração suas novas medidas. Para os adolescentes, a restrição do confinamento é mais difícil de suportar. “Como explicar essas restrições aos adolescentes?”, perguntou Léa Salamé a Serge Hefez[5] durante uma entrevista matinal. E isso para evocar a noção de “sacrifício” que os adolescentes devem consentir para proteger os mais velhos ​​como sendo uma resposta que os ajudará a aceitar seu confinamento. Sacrificar-se pelo Outro, de certa forma.

Salientamos que essa ideia é encontrada em Freud, que associou o sacrifício à renúncia pulsional e, por conseguinte, tornou o sacrifício quase equivalente a uma restrição necessária do princípio do prazer em favor do princípio da realidade. Para estarmos juntos, devemos admitir que todos devem sacrificar algo de seu gozo. Esse princípio permite que a comunidade se organize para transformar sua produção habitual em novos objetos dedicados a salvar os doentes, apoiar os cuidadores e ajudar os mais frágeis. Diante do real, o desejo se coloca a serviço da causa comum pela sobrevivência do grupo. É justo!

A meditação revelada a si mesma

O mediático Christophe André[6] também apoiou a população confinada, defendendo os benefícios da meditação. Certamente, esta tem o mérito de ser uma terapia para esvaziar os pensamentos e oferece um tratamento que se parece muito uma “pausa” da mente. Mas, quando há superexposição, como é o caso atualmente, às angústias da doença e da morte pode-se perguntar como alcançar seu rumo em direção ao zen. E, se nossos pensamentos podem ser suspensos pela meditação, resta, porém, a questão de se saber como fazer quando eles retornarem.

De fato, como bem sabemos enquanto analistas, a compulsão de pensar é uma defesa contra o real e, como todo delírio, permite contornar o buraco do vazio que poderia sugar alguns. É assim que a análise, cuja prática consiste em ir duas ou três vezes por semana ao seu psicanalista, permite um esvaziamento de pensamentos, mas um esvaziamento de sentido orientado pelo desejo de saber, um esvaziamento operando em direção a uma historicização de sua vida psíquica. Essa experiência de palavras produz sua ordenação e elaboração simbólica e, de modo mais profundo, atinge o gozo ao encontrar maneiras de canalizá-lo e de tratar o excesso.

Trata-se de um trabalho que aprendemos com Freud, um esforço para dizer o mais próximo possível o que se passa. Os pensamentos, portanto, não se intrometem mais como fenômenos perturbadores que carregam muita angústia, mas servem para nomear a coisa. Um paciente, que vivia já confinado devido a um luto patológico, pôde me dizer que a frase que teve o efeito de chamá-lo para uma solução fatídica: “Gostaria que a Terra parasse para cair”[7] — extraída de uma canção escrita por Serge Gainsbourg e cantada por Jane Birkin, agora faz limite à sua tristeza porque, de fato, o mundo parou. Ele próprio se encontra aliviado porque não está mais sozinho em confinamento. O mundo do qual ele se defendeu excluindo-se não o ameaça mais. Os uns-sozinhos que são seus amigos juntaram-se a ele. O confinamento não o exclui mais. Ele se juntou ao Outro na privação da liberdade obrigatória.

E previsão de divórcios

Outros nos contam sobre a epidemia de divórcios que se segue ao confinamento na China e prevêem que esse confinamento a dois terá repercussões nesse aspecto. Certamente, estar sujeito à tensão de compartilhar a vida cotidiana 24 horas por dia pode ser a ocasião para fixações no comportamento de um ou de outro. Críticas furiosas, acessos de raiva ultrajantes e insultos guardados do “que estava no coração e o que não foi dito”, a situação pode se tornar explosiva. Os conflitos conjugais — traições passadas ​​ou atuais, discórdia permanente, ameaças de separação, alcoolismo e adições diversas para falar apenas dos sintomas mais visíveis de um ou de outro — reaparecem nestes momentos de questionamento da vida, pois o confinamento leva a atualizar seu passado para pensar em seu futuro. O tempo presente suspenso assume um significado diferente dia após dia.

Há uma desregulação da temporalidade ligada à interrupção da vida “normal”. A própria noção de casal pode aparecer como uma entidade ilusória, pois cada um defende seu território, seu lugar adquirido à custa do outro, seus interesses de gênero e gozo pessoal. Enfim, o casal é um microcosmo a dois que pode ser explosivo, e, a saída pelo divórcio, a solução mais confiável.

Resta a solidão

A solidão está em primeiro plano. A sensação de estar sozinho pode ser acompanhada de uma angústia de abandono ou, pelo contrário, de isolamento forçado pela vontade de um Outro mau. Pensa-se especialmente nos idosos que vivem sozinhos, privados de visitas de seus filhos e netos. Mas existem todas as outras formas de solidão.

O confinamento convoca cada um a encontrar a distância certa de seu sentimento de solidão. Como Philippe La Sagna (2007) diz em seu notável texto “Da solidão ao isolamento”, no qual muitas frases fazem eco ao que estamos passando, a solidão e o isolamento não são do mesmo registro: “Para estar separado, é necessário ter uma fronteira comum. Temos uma fronteira comum com o Outro quando estamos em solidão, enquanto que, no isolamento, não há fronteira. O isolamento é um muro. E estamos na era da construção de isolados, já que cada um não sabe mais onde começam e onde terminam as fronteiras”.

Não sabemos onde começam nem onde terminam as fronteiras. O coronavírus pode mudar esse modelo de globalização. Mas, entre o isolamento e a solidão, há um muro.

 

Tradução: Michelle Santos Sena de Oliveira
Revisão: Luciana Silviano Brandão Lopes

Referências
LACAN, J. (1966). “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. In: Escritos.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LA SAGNA, P. “De l’isolement à la solitude”. In: La Cause freudienne, n° 66, p. 43-49, 2007.

[1] Texto originalmente publicado em Lacan Quotidien, n. 877, publicado em 30 de março de 2020 . Disponível em: https://www.lacanquotidien.fr/blog/2020/03/lacan-quotidien-n-877/
[2] https://www.lepoint.fr/societe/on-n-aura-jamais-de-reponse-julie-a-16-ans-morte-du-coronavirus-en-france-27-03-2020-2368993_23.php#
[3] Cf. MILLER J.-A., « L’orientation lacanienne. Des réponses du réel », cours du 16 novembre 1983, inédit : « C’est ce que Lacan appelle un trou – un trou au niveau du symbole : “un trou s’ouvre que constitue un certain caput mortuum du signifiant” » (citation de Lacan J., « La lettre volée », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 50).
[4] https://www.franceinter.fr/emissions/l-invite-de-7h50/l-invite-de-7h50-19-mars-2020
[5] https://www.bfmtv.com/mediaplayer/video/le-medecin-psychiatre-christophe-andre-donne-ses-conseils-pour-gerer-la-peur-du-coronavirus-1232606.html
[6] http://www.frmusique.ru/texts/g/gainsbourg_serge/quoi.htm



A PSICOSE, O INFAMILIAR E O INTRADUZÍVEL

 

 

FREDERICO FEU DE CARVALHO
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
Resumo

O infamiliar é trabalhado por Freud como a emergência no campo da realidade de algo íntimo e secreto, que deveria permanecer oculto, e que é experimentado em seu oposto, ou seja, como algo estranho — infamiliar. O surgimento de alguma coisa que produz essa inquietante estranheza modifica, por um momento, nossa percepção da realidade. É possível se perguntar, por meio dessa palavra-conceito expressa por Freud, quais relações aproximativas podem ser feitas entre o infamiliar, o sentimento de estranheza e a “perda da realidade” na psicose.

Palavras-chave: Infamiliar; inconsciente; intraduzível; psicose

Abstract: The uncanny is a a word chosen by Freud to designate the emergency of something intimate and secret that should have remained hidden in the field of reality and that is experienced by the subject in its opposite form, that is, like something odd or uncanny. The emergency of something that produces this unsettling strangeness modifies, for an instant, our perception of reality. Through this word-concept proposed by Freud, one might ask what the possible relations between the uncanny and the loss of reality in psychoses are.

Keywords: Uncanny; unconscious; untranslatable; psychoses

 

Coletoras - Barbara Schall

Coletoras – Barbara Schall

 

No início de seu artigo “O infamiliar”, de 1919[1], Freud evoca o tratamento diferenciado que a disciplina da Estética dedica àquelas percepções que não pertencem ao campo do belo e do sublime e que, ao contrário, despertam a angústia e o horror. Entre essas percepções, Freud se dedica a investigar como aquilo que nos é íntimo ou familiar pode surgir, em determinadas ocasiões, como o seu oposto, ou seja, como estranho a nós, como algo que nos é infamiliar, provocando a angústia. No âmbito desse artigo, gostaria de examinar o estatuto teórico dessa palavra-conceito (Begriffswortes), como se expressa Freud, e como a emergência do infamiliar afeta a nossa apreensão da realidade e os laços sociais por ela circunscritos, na medida em que definimos a realidade como um compartilhamento de semblantes sociais. Nesse sentido, cabe perguntar que relações aproximativas podemos conjecturar entre o infamiliar e o sentimento de estranheza que caracteriza a relação com a realidade em algumas formas da psicose, por efeito do que Freud denomina “perda da realidade”, e que se reflete em falas como “eu não me reconheço neste mundo” ou “eu não consigo habitar este mundo”.

O ensaio “O infamiliar” é contemporâneo de “Além do princípio do prazer” e de “Psicologia das massas e análise do eu” e retoma um tema que Freud teria deixado na gaveta desde seu outro ensaio, “Totem e tabu”, de 1913, isto é, a sobrevivência da visão animista do homem primitivo na época da razão e da ciência. O ano de redação de “O infamiliar” é marcado pelo fim da Primeira Guerra Mundial e pela epidemia da gripe espanhola. A Europa estava, então, assombrada por uma sucessão de mortes, ora provocadas pelas pulsões destrutivas e pela intolerância de regimes totalitários fundados no amor ao pai, ora pela intrusão de um ser biológico invisível que ameaçava a espécie humana.

A angústia provocada pelo infamiliar, no entanto, não remete diretamente a uma angústia real diante da iminência da morte derivada de uma causa externa, como a guerra ou a epidemia. O infamiliar designa, antes, uma forma de manifestação da angústia, em geral transitória, associada a alguma coisa que nos é íntima e secreta, mas que, como a outra face de uma mesma moeda, surge inesperadamente no campo da realidade, quando deveria permanecer oculta. A longa meditação linguística desenvolvida por Freud no segundo capítulo desse artigo tem como objetivo mostrar o sentido antitético do termo alemão Das Unheimliche, ou seja, o fato de “infamiliar” derivar de “há muito familiar”, daquilo que se tornou íntimo e que, por meio de um deslocamento, passa a designar o que é oculto ou escondido. É essa derivação que o leva a associar a angústia do infamiliar ao retorno do recalcado inconsciente e, de uma forma genérica, à sobrevivência de crenças primitivas e complexos infantis em nossa apreensão da realidade.

Tal como ocorre no conto de Franz Kafka, “A preocupação do pai de família”, em que somos obrigados a conviver com o estranho ser chamado Odradek em nossa casa sem que possamos saber muito a seu respeito, sem que possamos capturá-lo. E, quando pensamos que ele se foi, Odradrek reaparece como que do nada, nas ocasiões mais insólitas, para nos lembrar de que não somos senhores em nossa própria casa; que somos habitados pelo estrangeiro em nós mesmos, apesar de nosso narcisismo original querer afirmar sempre o contrário, isto é, que, em nossa casa, somos soberanos.

Do ponto de vista fenomenológico, o sentimento do infamiliar pode ser comparado a outras formas de desencadeamento da angústia, como o susto, o medo e o pânico[2], levando-se em conta, por exemplo, a sua dimensão temporal, a sua intensidade ou as condições de sua irrupção. Freud busca discernir, nesse ensaio, o traço diferencial do infamiliar reivindicando uma leitura psicanalítica desse fenômeno, o que culmina na aproximação entre o infamiliar e o recalcado.

O que distingue o sentimento do infamiliar da angústia, em geral, no campo de nossas percepções, é a emergência de alguma coisa que produz uma inquietante estranheza, que “desrealiza”, por um momento, por assim dizer, nossa percepção da realidade. Segundo Freud, a relação com a realidade depende de uma operação psíquica: a substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade, obtida graças à moeda de troca da fantasia. A fim de que a realidade possa ser adequadamente enquadrada e funcionar como um semblante, é preciso que o objeto de gozo seja localizado na fantasia, e não no campo da realidade. Lacan nomeia essa operação “extração do objeto”. Em termos freudianos, a extração do objeto do campo da realidade equivale, portanto, à elaboração da fantasia inconsciente, ou seja, à configuração de uma Outra cena, graças ao investimento de objeto na fantasia, como condição para que a cena do mundo, sustentada pelo princípio de realidade, possa operar adequadamente.

O artigo “A negação”, de 1925[3], nos permite esclarecer em que consiste essa extração do objeto do campo da realidade. A tese de Freud, depois retomada por Lacan, sustenta que a realidade deve ser enquadrada pelo sujeito, não sendo, portanto, uma simples extensão de nossos sentidos. Freud sugere que as nossas primeiras cisões psíquicas, influenciadas pelo “Eu prazer”, modelam o campo da realidade incorporando ao Eu as representações agradáveis, ao passo que as representações desagradáveis são excluídas do Eu e se tornam, então, hostis a ele. Tal distorção será depois corrigida pela evolução psíquica do princípio de realidade, que impõe uma visão mais ajustada e menos vinculada ao princípio do prazer em nossa apreensão da realidade. Mas o princípio de realidade incide sobre um real já modelado, segundo a disposição inicial do “Eu prazer”, ou seja, por uma exclusão primária que recorta determinada região do real como inassimilável, fora do campo da representação.

Nesse artigo de 1925, Freud distingue a negação que caracteriza o recalque (Verdrägung) — que afeta as representações psíquicas inconscientes — daquela que resulta em exclusão do Eu — operação à qual ele deu o nome de Ausstossung —, que se refere a um núcleo real que permanece estranho a ele pelo fato de não se vincular a nenhuma representação psíquica, mesmo que recalcada. Para tratarmos das relações entre o infamiliar e a psicose, teríamos que nos reportar a essa primeira diferenciação. De fato, se, na neurose, podemos remeter o infamiliar ao recalcado inconsciente, àquilo do qual o neurótico nada quer saber, mas que surge no campo da realidade como uma intromissão da Outra cena na cena do mundo, na psicose, por sua vez, o infamiliar parece habitar o próprio campo da realidade pelo fato desta não estar enquadrada pela fantasia.

No entanto, apesar de Freud associar, na terceira parte de seu ensaio, o infamiliar e o recalcado, o infamiliar não é tratado ali como uma formação do inconsciente típica, vinculada à estrutura da linguagem e condensadora de sentidos (Sinn). O infamiliar evoca, ao contrário, uma forma inabitual do retorno do recalcado, sendo mais próximo do retorno no real que caracteriza a psicose. De fato, o tipo de fenômeno que interessa a Freud investigar em “O infamiliar” não se estrutura a partir do retorno da cadeia significante, mas da presença de um objeto que se comporta como um signo de gozo, como índice de um real, ou seja, que não se estrutura a partir da cadeia significante do sintoma como uma formação de compromisso, mas como algo intrusivo, como uma emergência de um real que retorna desde fora.

Esse índice do real, se tomamos como paradigma a neurose, tem como referente (Bedeutung) o objeto da fantasia, ou seja, o núcleo real que a fantasia encapsula com sua vestimenta significante e cuja presença no campo da realidade suscita angústia, borrando a fronteira entre a cena do mundo e a Outra cena. Trata-se aqui da emergência real de um objeto que havia sido extraído do campo da realidade, que volta a se apresentar onde deveria faltar para que então pudesse causar o desejo na neurose, no lugar da falta que condicionou a construção da cena do mundo e o enquadre da realidade devido à extração do objeto e do seu investimento na fantasia inconsciente.

É essa presença no real de um signo de gozo que satura o campo da realidade na psicose, conferindo-lhe uma aura de estranheza. A “perda da realidade” na psicose, evocada por Freud em 1924, na esteira das reformulações de sua segunda tópica, é uma consequência dessa saturação, se definimos o enquadramento da realidade a partir da extração do objeto da fantasia. A percepção da realidade, assim como o laço social, pressupõe o esvaziamento do gozo e sua redução ao objeto a, ou seja, ao objeto da fantasia que condensa, condiciona e particulariza esse gozo, que passa, assim, ao inconsciente. Quando o psicótico se queixa de estar ouvindo vozes ou de estar sendo olhado, perseguido ou vigiado, ele testemunha, justamente, a presença excessiva do objeto voz e do objeto olhar, que perturbam a relação com a realidade. A perplexidade da “vivência delirante primária”, descrita pela psiquiatria clássica, poderia ser, nesse sentido, comparada ao infamiliar generalizado e radicalizado que aponta para a presença de um signo de gozo no campo perceptivo que desencadeia a angústia e provoca o desmoronamento do sentido que suportava, para o sujeito em questão, a construção da realidade.

Podemos sustentar que a angústia suscitada por um filme de suspense ou de terror depende, igualmente, da expectativa de intromissão do infamiliar na realidade. Mas essa intromissão do infamiliar na realidade está resguardada pela ficção cinematográfica. Os efeitos assustadores de um filme de terror ou de suspense dependem da evocação de formas típicas do estranho que povoam o nosso imaginário, como os fenômenos de duplicação, de animação de seres inanimados, de ressuscitação de mortos ou, ainda, de emergência desmedida do gozo do Outro, que deveria permanecer aplacado pelas exigências da civilização que garantem a manutenção dos semblantes discursivos. A angústia em um filme de terror ou suspense se nutre, portanto, da expectativa do surgimento de um objeto na cena ficcional cuja falta permanece resguardada no campo da realidade graças à estrutura discursiva do laço social.

Essa estrutura discursiva se impõe a todo ser falante e tem como condição a renúncia ao gozo e o recalcamento daquelas representações que se vinculam ao gozo interdito. Como efeito dessa renúncia, o gozo interdito prolifera no inconsciente. Devido à estrutura de linguagem que caracteriza o inconsciente, a angústia pode, por exemplo, ser condensada em um objeto fóbico, com a conhecida proliferação de sentidos dessa formação do inconsciente e com a ajuda da qual se torna possível delimitar, no campo da realidade, aquilo que se deve evitar ou aquilo de que se deve defender. A fobia é, nesse sentido, uma forma suplementar de extração do objeto do campo da realidade que visa compensar as fragilidades do Nome-do-pai para levar a bom termo a interdição do gozo e sua redução inconsciente à fantasia.

Em uma vertente paralela, teríamos o objeto fetiche da fantasia perversa, que localiza a vontade de gozo do sujeito tamponando, ao mesmo tempo, o furo da castração. Uma das diferenças evidentes entre o objeto fóbico e o objeto fetiche pode ser assim formulada: na fobia, observamos a transmutação característica da angústia em medo a partir do trabalho metafórico e metonímico do inconsciente sobre o gozo, que leva à eleição do objeto fóbico; no fetichismo, ao contrário, o trabalho do inconsciente, como uma espécie de metáfora estancada, se detém diante de um objeto que desmente a castração e que captura a vontade de gozo do sujeito.

O objeto que podemos qualificar como infamiliar se distingue, por sua vez, tanto do objeto fetiche, que captura a vontade de gozo de um sujeito, quanto do objeto fóbico, ao qual podemos atribuir o “querer dizer” que caracteriza as formações do inconsciente. O infamiliar designa um objeto intraduzível, não recoberto pela vestimenta da cadeia significante, embora possamos referi-lo ao modo singular de gozo de um falasser. Nada se pode dizer do olhar vivificado da boneca Olympia, no conto de E.T.A. Hoffmann, comentado por Freud em seu artigo, a não ser que esse olhar obseda o personagem Nathanael. Olympia nada diz a Nathanael a não ser um balbucio, um rudimento de linguagem em tom de assentimento, sem que se possa atribuir a esse rudimento um valor metafórico ou metonímico. O objeto infamiliar poderia ser tomado, nesse sentido, como fora do simbólico — embora ele possa ser associado, eventualmente, ao recalcado —, na medida em que ele retorna no real sem a moldura da fantasia. Esse retorno no real, tão característico da psicose, acontece aqui sem se vincular a uma estrutura definida. O que é uma regra na psicose pode, assim, ser observado como uma contingência na neurose. Em outros termos, o valor conceitual do infamiliar consiste em demonstrar uma forma transestrutural do retorno no real que transtorna, mesmo que de maneira contingente, nossa apreensão da realidade e os semblantes sociais a ela referidos.

Em suma, na psicose, o infamiliar parece potencialmente associado ao desencadeamento da angústia em função do encontro no real de um signo de gozo que não se ligou a uma representação inconsciente. Por essa razão, o campo da realidade se mostra, nas psicoses, envolto em uma aura de estranheza generalizada, mais difícil de enquadrar, mais ameaçado pela onipresença do signo de gozo não desdobrado na cadeia significante da fantasia. O mundo na psicose é um mundo infamiliar, por assim dizer, na medida em que aquilo que foi uma vez excluído do Eu não encontrou seu retorno pela via da fantasia inconsciente e permaneceu inassimilável. Na neurose, teríamos que associar o infamiliar à possibilidade de o objeto da fantasia se apresentar inesperadamente onde deveria faltar, ou seja, de forma desvinculada da ficção da fantasia, sem o suporte da cadeia significante, na modalidade da disjunção que articula, entre outras possibilidades — conforme o matema lacaniano da fantasia $ <> a —, o sujeito barrado e o objeto.

Visto a partir da perspectiva do infamiliar, o tratamento das psicoses vai ao encontro daquilo que as soluções psicóticas evidenciam, ou seja, que esse objeto pode ser, por vezes, encapsulado ou, conforme a analogia lacaniana, posto no bolso. Isso não corresponde a uma “externalidade-interna” do objeto, como poderíamos esperar do investimento na fantasia inconsciente que faz desse objeto a causa do desejo na neurose. O objeto no bolso designa, na terminologia lacaniana, o objeto do qual o psicótico não se separa, ao qual ele permanece aderido, e que retorna no real como o signo da presença desse gozo inassimilável e para sempre intraduzível. Mas a possibilidade de colocá-lo no bolso pode ser pensada, no tratamento da psicose, como uma maneira de circunscrever esse objeto, seja através de uma construção delirante, ou de um objeto de arte, seja através de alguma outra invenção que possa operar como uma forma de suplência para a não extração do objeto e que lhe permita minimamente enquadrar a realidade, ou seja, proteger a realidade da presença insidiosa do gozo intraduzível, que torna o mundo tão infamiliar.


Referências
FREUD, S. “O infamiliar” In: Obras Incompletas de S. Freud, v. 8. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2019. p. 27-115.
FREUD, S. “A perda da realidade na neurose e na psicose”. In: Obras Incompletas de S. Freud. v. 5. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016. p. 279-284.
KAFKA, Franz. “A Preocupção do Pai de Família”. In: Um Médico Rural – pequenas narrativas. Trad. Modesco Carone. São Paulo: Companhia das letras, 1999

[1] Tradução proposta para Das Unheimliche pelo editor e tradutores das Obras Incompletas de Sigmund Freud da Editora Autêntica.
[2] O susto evoca a irrupção de uma angústia súbita diante de um perigo tomado como real, mesmo que depois ele se mostre imaginário; o medo remete a uma expectativa angustiante diante de um perigo, real ou imaginário, que poderá emergir a qualquer momento no campo perceptivo, associado a um determinado acontecimento ou objeto, que tanto podem ser verdadeiros como imaginários; o pânico evoca uma angústia desencadeada como um perigo iminente, sem que o acontecimento ou o seu objeto possam ser claramente circunscritos no campo da realidade.
[3] FREUD, S. “A negação”. In: Obras Incompletas de S. Freud, v. 5. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016, p. 305-310.



O FEMININO INFAMILIAR: DIZER O INDIZÍVEL

 

 

ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA
Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFMG. Membro da EBP/AMP. andrea.eulalio@hotmail.com

Resumo

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que não pode ser interpretado. Um fragmento clínico elucida como que, no mais íntimo de cada língua familiar, existe uma língua estranha, estrangeira, cujo encontro retorna, segundo Freud, como “inquietante estranheza”.

Palavras-chave: Infamiliar, inconsciente, língua familiar, gozo.

Abstract:

Both the word and the Unheimlich experience refer to an enigmatic point that is of the order of the unspeakable and the unspeakable, to something irreducible and not mediated by the symbolic and that cannot be interpreted. A clinical fragment that elucidates as if in the most intimate of each familiar language, there is a strange, foreign language whose encounter returns, according to Freud, as “disturbing strangeness”.

Keywords: Uncanny, unconscious, familiar language, jouissance.

 

Coletoras – Barbara Schall

 

Logo de início, em seu famoso texto “Das Unheimliche”, publicado em 1919 e traduzido para o português como “O estranho”, Freud adverte o leitor acerca das circunstâncias sob as quais é possível que o familiar se converta no lugar do mais estranho, do mais estrangeiro, do mais alheio e ignorado para cada ser falante.

Na primeira parte desse texto, Freud (1919, p. 277) apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o uso semântico do termo heimlich (doméstico, íntimo, conhecido, amistoso) e de seu antônimo unheimlich (misterioso, oculto, secreto, estranho, inquietante, sinistro).

A pesquisa sobre o uso linguístico do termo heimlich revela que essa palavra não deixa de ser ambígua, pertencendo a dois conjuntos de ideias, as quais, mesmo não sendo contraditórias, são muito diferentes e significam, por um lado, aquilo que é familiar e agradável e, por outro, o que está “oculto da vista” (FREUD, 1919, p. 280). Freud aponta que, entre os diversos significados da palavra heimlich, há um que coincide com o seu oposto, unheimlich, e que, de um modo ou de outro, representa uma subespécie de heimlich.

Segundo Bassols (2017, p. 39), se tivéssemos que transpor literalmente a expressão Das Unheimliche para nossa língua, seria melhor falarmos “o infamiliar”, como se encontra agora traduzido pela Editora Autêntica (2019), “sendo que o ‘in’ pode ser tanto a negação do familiar como também o mais interior a ela” (BASSOLS, 2017, p. 39).

A indicação bastante precisa de Freud, segundo a qual o exterior está presente no interior, vai ao encontro ao termo “êxtimo”, cunhado por Lacan. A estrutura da extimidade relaciona-se à constante vacilação da identidade do sujeito consigo mesmo revelando o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Esse “in” que se transforma em “ex” indica que quanto maior a proximidade do familiar, mais ele se transforma em estranho. Indica que ele é, ao mesmo tempo, interior e estranho.

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem-nos a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que, por isso mesmo, não pode ser interpretado. Mesmo no encontro originário com a língua, Freud ressalta a dimensão paradoxal da experiência do Unheimlich, na qual o encontro com o mais íntimo retorna enquanto “inquietante estranheza”.

Reencontraremos a partícula “Un”, que designa o inconsciente, presente em Das Unbewusste e em  Das Unheimliche, em Lacan, (1971-1972, p.132) no “Um” sem Outro, sem alteridade possível, no “Um” sozinho do gozo, que faz do seio familiar a sua morada e que vem transformando a estrutura familiar clássica (BASSOLS, 2017, p. 39).

A família é a possibilidade de cada ser falante dar uma resposta, uma versão sintomática, nos melhores casos, a esse gozo do Um sozinho que aparece como Outro estranho e se encarna ali onde não há relação sexual entre um homem e uma mulher.

Como encontramos a incidência desse gozo bárbaro, demoníaco, do Um sozinho nas novas configurações familiares e diversidades sexuais?

As transformações e remodelações em torno da estrutura familiar, com implicações para o parentesco e para a filiação, atestam que a criança se tornou o fundamento da família, e não mais o seu efeito, restando a ela escolher o seu lugar em uma diferença sexual que se pluralizou. Os pais se redefiniram em termos dos cuidados com a criança, e não mais em termos da diferença sexual, e a incidência da função fálica que possibilita o ser falante nomear-se como ser sexuado encontra-se submetida às novas versões de nomeação e a autonomeações. Devemos considerar também a impossibilidade de habitar um corpo e fixar uma imagem. Enfim, uma série de transformações que têm deixado a criança muito mais exposta ao Um sozinho, esse Um do Unheimlich desenlaçado do Outro, e a uma “infância desregulada e disruptiva” [1].

A dificuldade que aparece ao tratarmos do assunto “família”, independentemente do discurso da qual ela se depreende, já se encontra explicitada numa passagem de O semináriolivro 23, sobre “o sinthoma”, na qual Lacan afirma: “Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto. Somos falados e, por cauda disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado” (LACAN, 1975-1976, p. 158-159).

Segundo Bassols (2017, p. 46), cada sujeito é servo do discurso familiar, no sentido de que é a língua familiar que nos fala sobre aquilo que nos determina como sujeitos. Ou seja, é a língua dos significantes mestres fundamentais na história de cada um de nós, os quais servem para nos identificarmos com os outros e entre os outros. Contudo, a transmissão simbólica está marcada por um furo, que passa não só pelos significantes já articulados na linguagem mas, sobretudo, pela lalíngua própria a cada um.

Devemos identificar, então, a língua do Outro, a família do Outro, como o lugar que encarna o Outro de cada sujeito e também da criança. É o estrangeiro, o bárbaro enquanto signo daquilo que rechaçamos como radicalmente diferente e que está, ao mesmo tempo, no lugar mais familiar, mais íntimo e próximo de nossa realidade e da nossa forma de vivê-la.

Em qual língua a família nos fala? Qual é essa língua familiar para cada um? Em qual língua somos realmente falados pela família?

Penso que, nesse sentido, a conferência A língua familiar, de Miquel Bassols, nos orienta quando diz que cada um é um bárbaro em sua própria língua familiar. O termo bárbaro, tal como o termo heimlich, comporta dois sentidos ambivalentes. Pode tanto designar o mais estranho e intrusivo para a língua familiar quanto algo que experimentamos como um grande prazer, de acordo com nossa forma de gozar. E o analista também deve ser um bárbaro da língua para escutar o sujeito, ou seja, deve escutar aquilo da família que o fala quando o sujeito quer falar dela.

Para Bassols, a criança sempre chega à família como um verdadeiro bárbaro inesperado, como um intruso para o casal parental. Esse dizer de Bassols pode ser elucidado em Freud quando este trata a existência da sexualidade infantil como um gozo perverso e polimorfo, descentrado, o qual nunca será unificado, introdutor de uma dificuldade particular: não há código que permita ao sujeito decifrar o que lhe ocorre, e nem mesmo a mãe ou o pai sabe muito bem o que fazer com esse gozo. Sendo assim, a criança encarna esse lugar do bárbaro tanto para o adulto como para ela própria.

A criança surge como um bárbaro na língua familiar porque sua tagarelice é, com efeito, o tagarelar de um bárbaro que ninguém entende. Lacan, ao abordar esse real do gozo da língua, nomeou esse “tagarelar bárbaro” lalangue. A mãe e o pai costumam ser os encarregados de interpretar a língua do bárbaro — inventada a partir das particularidades “linguageiras” de cada um e desprendida do compromisso com a comunicação —, dando-lhe um sentido e supostamente civilizando a língua familiar. “O problema é que esta língua familiar supostamente civilizadora é ela mesma um dialeto da língua bárbara do gozo perverso e polimorfo da própria infância dos pais, que também foram bárbaros em seu momento” (BASSOLS, 2017, p. 46). Há, portanto, um mal-entendido inaugural e permanente que não cessa de se escrever entre a língua amorosa e terna dos adultos e a língua do gozo infantil, esse gozo opaco, indizível e enraizado no corpo.

Geralmente, o melhor que pode ocorrer aí é a criança fazer o seu sintoma ao se fazer representante da verdade do casal parental como “a verdade do bárbaro que está na origem da sua língua familiar”, tal como Lacan (1969) observou em “Nota sobre a criança” (LACAN, 1969, p. 369). Podemos tratar a noção de verdade no contexto familiar como aquela que implica o encontro sexual que concerne ao gozo e ao desejo do casal parental. A outra possibilidade, muito mais sinistra, é a criança encarnar o objeto do fantasma materno, “e não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto” (LACAN, 1969, p. 369).

Outro momento decisivo que envolve o Outro familiar e a língua do Outro se dá quando o bárbaro se depara com o real da puberdade. Ao representar-se como ser sexuado, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava sua identificação e seu sentimento de vida. As modificações do corpo causam um sentimento de estranheza que o adolescente enfrenta como algo intraduzível na língua do Outro. Quando esse ponto de apoio vacila, o sujeito se confronta com algo que faz “furo no real”, reenviando-o a um vazio de significação. Essa delicada passagem se converte, novamente, em um momento de mal-entendidos absolutos, incertezas e inquietudes e de uma grande confusão de línguas no seio familiar.

“Tudo isso que foi dito nos indica que não é nada fácil discernir o que e qual é a língua familiar do sujeito. Sobre que linguagem, como aparato simbólico, o ser falante elucubra para situar o real em jogo de cada língua?” (BASSOLS, p. 46).

A seguir, apresento um fragmento de caso no qual o encontro com o real da puberdade traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem e com a língua, deixando-o exilado em seu próprio gozo.

Esse estranho que me habita

“Ele é o único em nossa família a ter problemas”. Foi desse lugar do estranho que um adolescente me foi apresentado por sua mãe em nosso primeiro encontro. A família paterna do garoto é estrangeira e os poucos contatos que ele tem com esses familiares são permeados pelos mal-entendidos. Ele não sabe dizer o porquê de ser tratado com tamanha rispidez e intolerância por seus familiares.

Quando Lacan diz que somos filhos do mal-entendido e que somos atravessados pelos mal-entendidos que proliferam na confusão dos laços e das línguas faladas entre nossos ascendentes, ele indica que, por não haver “revelação ou dissolução possível, resta-nos incorporar esse mal-entendido” (GROISMAN, 2016, p. 47). É isso que esse adolescente vem tratando em sua análise: desse gozo estranho que o acomete no corpo e que é vivido com muita estranheza. Afinal, nada é mais familiar e mais estranho que a experiência do próprio corpo.

A cada discussão familiar que se vê envolvido, o garoto é tomado por uma sensação de estranheza, por um afeto que o ultrapassa, e a sua forma de responder a isso é uma cisão entre o eu e o corpo real de seu ser. Ele se vê vendo, como se estivesse enquadrado na cena de um filme. O mundo fica estranho — lugares e situações familiares ficam diferentes —, dando-lhe a sensação de que ele “já não é o mesmo”; sua voz também lhe soa estranha, irreconhecível, tudo fica no automático, como se ele “não mais fizesse parte da vida”.

Sabemos que o “eu” se sustenta em determinações simbólicas e pela extração do objeto a no real. A vacilação das identificações simbólicas do sujeito consigo mesmo e a consequente perda dos pontos de referência imaginários revelam o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Sendo assim, o lugar que o sujeito havia encontrado para si no Outro, seu lar, seu Heim, se torna então Unheim, estranho. Com relação a esse ponto do estranhamento, Lacan afirmará, em O seminário, livro 23, que “A inquietante estranheza, incontestavelmente, provém do imaginário” (LACAN, 1975-1976, p. 47).

Em uma análise, tentar dissolver o mal-entendido só o alimenta, diz Lacan. Será preciso que o sujeito possa reencontrar, em sua própria fala, as fontes desses mal-entendidos não como o que escutou ou entendeu mal, mas como aquilo que encerra em si a opacidade do desejo que lhe deu origem, deixando, assim, uma via para invenção (REGO, BARROS, 2016, p. 41).


Referências
BASSOLS, M. O bárbaro: transtornos da linguagem e segregação. Opção Lacaniana onlineano 9, n. 25 e 26, mar.-jul. 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_Barbaro_Transtornos_de_linguagem_e_segregacao.pdf. Acesso em: 8 mar. 2020.
BASSOLS, M. A língua familiar. Opção lacaniana, n. 79. Conferência apresentada no VIII Enapol, em Buenos Aires, em setembro de 2017.
FREUD, S. “O estranho” (1919). In: Freud, S. Obras completas, volume 14, São Paulo: Cia das Letras, 2010.
FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche]. – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019). Obras Incompletas de Freud, Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
GROISMAN, A.T. O mal-entendido que entre pelos Ouvidos. Opção Lacaniana, n. 72, p. 47, mar. 2016.
La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n. 2. Lettre d’information de L’institut psychanalytique de l’enfant.
LACAN, J. Nota sobre a criança. (1969). In: Lacan, J.Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975/1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior.1971-1972. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
RÊGO BARROS, M. R. O mal-entendido e a não relação sexual. Opção Lacaniana, n. 72, p. 41, mar. 2016.

[1]La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n.2. Lettre d’information de L’Institut psychanalytique de l’enfant.



O ESTRANHO FAMILIAR: UMA LEITURA A PARTIR DE FREUD

JEANNINE NARCISO
Psicóloga e psicanalista, especialista em Saúde Mental. Membro da EBP-MG/ AMP. jannarciso31@gmail.com

Resumo

Este texto apresenta um ensaio de Freud, no qual aparece um novo significante, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia e aponta o esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro. Retoma-se a questão com Miller ao dizer que, para Lacan, o “infamiliar” resulta na noção da extimidade. Aborda-se a relação do sujeito com a linguagem como o que faz furo no real.

Palavras-chave: infamiliar, familiar, angústia, linguagem, extimidade.

The familiar stranger: a reading from Freud

Abstract: This text presents the essay by Freud in which a new signifier appears, which concerns the terrifying, causes anguish and points to the fading of the domains between the familiar and the foreign. This text resumes the question raised by Miller once more, when he states that for Lacan, the “Unheimliche”, results in the notion of “extimité”. The work addresses the subject’s relationship with language as being what makes a hole in reality.

Keywords: Uncanny, familiar, anguish, language, ex-timate.

Coletoras – Barbara Schall

 

O Estranho em Freud

O encontro com o texto de Freud se deu em três diferentes traduções, a saber, “O estranho”, “O inquietante” e “O infamiliar” — tradução esta de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares —, cujas particularidades aparecem em cada percurso de tradução. No ensaio, entre outras obras, Freud cita Hamlet, texto de Shakespeare sobre o qual a tradutora comenta: “traduzir Hamlet se mostra uma tarefa para sempre inacabada, infinita, aberta a novas interpretações, compreensões, traduções, como é praxe de sua leitura, da fruição elíptica de nosso solilóquio mais insuspeito ao longo da vida: amor e morte, amor e morte” (BEBER, 2019, p. 6).

Freud e o infamiliar

Segundo Iannini, em Freud (2019), Das unheimliche é uma palavra e um conceito; a palavra-conceito é o título do escrito de Freud. E mais: é o nome de um sentimento aterrorizante, um domínio desprezado pela pesquisa estética e o efeito da leitura de certos contos fantásticos. Para Iannini, o que Freud pretendia era convocar o psicanalista a não perder de vista o real que a palavra unheimliche recorta. Assim, entrega um significante novo e intraduzível, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia. A equipe tradutora optou por traduzir unheimliche, do alemão, por um aparente neologismo, “infamiliar”, e mostra que essa tradução causa problema. “’O infamiliar’ mostra que o muro entre as línguas não é intransponível, mas que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (FREUD, 2019, p. 40). “É uma marca visível da impossibilidade da tradução perfeita” (FREUD, 2019, p. 42).

A palavra unheimliche, usada por Freud, é formada pelo prefixo de negação un, um índice de castração, e o adjetivo heimliche, que exprime aquilo que é “familiar e íntimomas que pode evocar o que é secreto e desconhecido” (FREUD, 2019, p. 205) e deriva do substantivo Heim (lar, morada).

Em Freud (2019), Iannini aponta como fundamental, no ensaio freudiano, o movimento de descentramento subjetivo, de esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro:

como respondemos àquilo que um estrangeiro nos aporta, especialmente quando este algo é absolutamente familiar e doméstico para ele, mas claramente exótico e ameaçador, pelo menos da perspectiva de nossa suposta integridade identitária, que resiste a assimilar o estrangeiro. Os nexos profundos entre tradução e política não tardam a aparecer (FREUD, 2019, p. 102).

O infamiliar

Para Freud (2019), o termo é peculiar. Relaciona-se com o que é assustador, com o que provoca medo e horror; é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho e, há muito, familiar. Mas, ao mesmo tempo, o infamiliar seria algo do qual nada se sabe. Freud consulta vários dicionários para buscar encontrar algum novo significado para além da equivalência infamiliar (não conhecido).

O efeito infamiliar pode ser criado, na literatura, nos contos que colocam o leitor diante da incerteza “se ele tem diante de si, uma determinada figura, uma pessoa ou um autômato” (FREUD, 2019, p. 1012). Dessa maneira, o leitor fica com uma incerteza intelectual diante de algo que não sabe como abordar de fato. No conto “O homem da Areia”, E.T.A. Hoffmann estabeleceu essa manobra psicológica. O tema “O homem da Areia”, aquele que arranca os olhos das crianças, foi considerado por Freud como central no conto. Portanto, não é Olímpia, a boneca aparentemente viva, que causa o efeito infamiliar do conto nem as elucubrações fantasísticas do jovem estudante Natanael.

O sentimento do infamiliar será provocado pela figura do Homem da Areia, que deve roubar os olhos e substitui o temido pai, de quem se espera a castração. Na experiência psicanalítica, aparece a angústia da criança de se machucar ou de perder os olhos — que aparece também nos adultos. Tanto que existe o dizer sobre aquilo que se protege como a “menina dos olhos”. O medo de ficar cego é correlativo à angústia de castração, assim como, no mito de Édipo, há o ato punitivo de cegar a si mesmo.

Freud investiga vários fatores que provocam o efeito infamiliar, e alguns desses provêm de fontes infantis e de fases específicas do desenvolvimento do Eu. No tema do duplo, o Eu se forma e instâncias singulares aparecem: a “consciência moral” — contrapondo ao restante do Eu, que serve de censura psíquica — e, nos casos patológicos, o delírio de se ser observado.

O fator da repetição do mesmo, outra fonte do sentimento do infamiliar, aparece nos sonhos e nas situações de desamparo. Freud conta algo que aconteceu com ele em uma quente tarde de verão, enquanto caminhava pelas ruelas de uma cidadezinha italiana, acabou voltando, por três vezes, a um mesmo trecho, onde haviam mulheres maquiadas debruçadas nas janelas das pequenas casas. Nesse momento, ele diz ter experimentado o sentimento do infamiliar e ficou feliz por ter renunciado a fazer outras descobertas. A repetição involuntária pode derivar da vida anímica infantil e exprime a compulsão à repetição, ligada à natureza das pulsões.

Freud propõe a aproximação de casos que validariam a hipótese do infamiliar apresentando a história clínica de um neurótico obsessivo que quer ocupar um quarto em uma clínica, mas este está ocupado por outro paciente, e então diz: “que ele morra de infarto” (FREUD, 2019, p. 1200). Dias depois, isso ocorre. Para o paciente, foi uma vivência “infamiliar”.

Nesse ensaio, Freud ainda cita outros fatores a partir dos quais o angustiante se torna infamiliar. Na sequência, faz duas observações consideradas essenciais. Em primeiro lugar, que “todo afeto de uma moção de sentimento — de qualquer espécie, transforma-se em angústia por meio de recalques — este angustiante é algo recalcado que retorna” (FREUD, 2019, p. 1230).

Em segundo lugar, aponta que “o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliaruma vez que esse infamiliar nada tem de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento” (FREUD, 2019, p. 1230).

O infamiliar no mundo em que a gente vive

Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/2010) diz que, se os avanços tecnológicos não tivessem acontecido, o filho não deixaria a cidade natal, o amigo não viajaria para longe e não precisaríamos dos meios de comunicação para acalmar a nossa inquietude. Na atualidade, a aviação comercial possibilitou cruzar os oceanos. Mas, ainda hoje, ser um estrangeiro, ser um imigrante, traz algo do infamiliar. Para Bassols, “É o estrangeiro (…) que encarna, para cada um, um gozo estranho, segregado, alheio (…) que nós, psicanalistas, designamos às vezes como ‘o real’, sempre inquietante” (FREUD, 1930/2010, p. 6).

Afinal, como o infamiliar se apresenta no mundo em que a gente vive? A família moderna apresenta um estatuto extremamente reduzido; a redução das solidariedades familiares deixa o sujeito desatado da sabedoria tradicional. Nos casos atendidos na clínica, aparecem a família da época da ciência e também a da época da psicanálise, em um mundo onde o discurso da ciência dessubjetiva o significante e introduz a universalização, desatando o sujeito da sabedoria tradicional. E o real do trauma, por sua vez, irrompe na modalidade temporal das urgências. É o tempo do inconsciente real, um inconsciente sem recalque, ou com pontos em que o Nome-do-pai (NP) não incidiu, de onde advêm os fenômenos que não obedecem às leis da linguagem e cujo conteúdo que retorna não poderá ser historiado pelo sujeito.

Desde Freud, os psicanalistas não deixam de pensar o sujeito na sua relação com a linguagem. Lacan chama de falasser a relação do falar com o ser: “a linguagem está ligada a alguma coisa que faz furo no real. Aliás, a linguagem come o real” (LACAN, 2007, p. 31). Portanto, uma pergunta é formulada: como se dá o encontro de uma criança que imigra com o infamiliar da linguagem? Brousse (2007) considera que o bebê não nasce falando, mas é exposto à alteridade da linguagem e será um sujeito falante quando souber as palavras e puder devolvê-las ao Outro. Para o psicanalista, o encontro com a história de vida de uma criança se dá a partir da entrevista inicial com os pais e será no a posteriori que se verá como cada criança ressignificará o vivido.

Vejamos como esse encontro ocorre atualmente: quando imigra, no primeiro ano de vida, a criança tem seu nome próprio — Tainá[1]. Lacan (2007) diz que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer mais que um S1. Se dirige rumo S2, onde se “acumula o que concerne ao saber” (LACAN, 2007, p. 86). A pronúncia do nome da criança, de origem indígena, causa a preocupação dos pais. No entanto, o que provoca a angústia é a irrupção do real, que advém com o seu primeiro adoecimento, quando começa a ir à creche. Ou seja, quando o infamiliar emerge, o encontro com aquilo que é invasivo convoca, no pai, a tentativa de dar um sentido, lançando mão do simbólico, para lastimar contra os malditos microrganismos — vírus e afins — e ao custo de uma vida social[2].

Quando outra criança se muda de país enquanto está aprendendo a falar, normalmente rompe com as rotinas com as quais tinha intimidade. Após algum tempo, quando convocada, a criança não consegue falar com desenvoltura sua língua materna nem a segunda língua, mas, ao seu modo, diz do medo de ficar sozinha. Miller (2011, p. 15) vai dizer que “intimidad es estar calentito” [3] e que, do lado íntimo, está o interior mais pessoal.

Ao imigrar, uma criança tem que aprender uma terceira língua, que possui certa dificuldade, mas pode não mostrar interesse em participar das aulas nem progredir na seriação escolar. Tal dificuldade pode impedir o acesso à universidade, despertando a angústia dos pais.

O infamiliar faz surgir a angústia mobilizando o sujeito quando o gozo invasivo emerge e deixa aparecer o que é da ordem do real. O infamiliar, para Freud, toca o limite entre o interno e o externo. Para Lacan, resulta na noção da extimidade, isso que é o mais interior sem deixar de ser exterior (MILLER, 2011). Segundo Miller (2011), a extimidade, o falar “do Outro de dentro”, aponta para a questão da imigração, termo considerado relativamente novo, contemporâneo da revolução industrial. O sujeito, ao vivenciar a perturbação de estabelecer-se em um país estrangeiro, faz cálculos “para saber se deverá abandonar sua língua, suas crenças, suas vestimentas, sua forma de falar, se trata do fato de saber em que abandonará o Outro gozo” (MILLER, 2011, p. 55). Em psicanálise, ser um imigrante é o estatuto do sujeito. “O sujeito como tal definido por seu lugar no Outro, é um imigrante… O problema do sujeito precisamente é que este país estrangeiro é seu próprio país” (MILLER, 2011, p. 43).

Na modernidade, com o objeto a que “es tan êxtimo al sujeito como al Otro” (MILLER, 2011, p. 22), no zênite, com o declínio do NP, temos duas vias para pensar a angústia trazida pelo infamiliar. Segundo Sérgio de Castro (2020), na via da angústia de castração, temos um unheimliche passível de ser interpretado e que traz a marca do NP, apreensível pela linguagem. O sujeito sustentado pelo NP poderá decodificar, compreender um certo mal-estar, lançando mão do simbólico. Na via da angústia lacaniana, quando o objeto se presentifica, quando falta a falta, aparece um unheimliche, um real que remete ao campo do gozo, que tem algo de invasivo. O sujeito, sem a sustentação fálica e sem a mediação simbólica, pode se ver sem a possibilidade de dar um sentido àquilo.


REFERÊNCIAS
BASSOLS, M. O bárbaro: Transtornos de linguagem e segregação. Opção Lacaniana online, São Paulo, n. 25/26, 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/texto2.html. Acesso em 30 out. 2019.
BEBER, Bruna. (2019), Hamlet. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
BROUSSE, Marie-Hélène. (2007) Objets ètranges, objets immatériels: pourquoi Lacan inclut la voix et le regard dans la série des objets freudiens? Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 59, n. 2, p. 287-293, dez. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672007000200017. Acesso em 8 abr. 2020.
CASTRO, Sérgio de. Seminário ministrado em Montes Claros – MG em 13 fev. 2020.
FREUD, Sigmund. (1919). O Estranho. In: Obras completas, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990.
FREUD, Sigmund. (1919) O Infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019): Seguido de “O homem da areia” de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte, MG: Editora Autêntica, 2019.
FREUD, Sigmund. “O Inquietante”, In: Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. (1930) “O Mal-estar na civilização”, In: Obras completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HOFFMANN, E.T.A. ”O homem de areia”, In: Contos Fantásticos do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O sinthomaRio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ,2007.
MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011.

[1] Nome fictício.
[2] Este texto foi escrito antes de a OMS declarar a pandemia do coronavírus, em 11 mar. 2020.
[3] “Intimidade é estar quentinho” (tradução nossa).