O tempo faz sintoma no inconsciente à céu aberto – Fernando Casula

Resumo
A partir das premissas freudianas, o texto recupera e descreve o conceito lacaniano de “inconsciente a céu aberto” como modo de funcionamento do inconsciente psicótico. Disserta sobre a noção de tempo em psicanálise e busca delimitar a incidência do tempo nesse inconsciente que está descoberto da metáfora paterna.
Palavras-chaves: Inconsciente a céu aberto, psicose, metáfora paterna, tempo.

Abstract
From Freud’s premises, the text recovers and describes the Lacanian concept of “unconscious in the open sky” as a way of functioning of the psychotic unconscious. It discusses the notion of time in psychoanalysis and seeks to delimit the incidence of time in this unconscious that is uncovered from the paternal metaphor.

Keywords: Unconscious in the open sky, psychosis, paternal metaphor, time.

 

Foto de Antônio Augusto Gomes Batista

 

 

FERNANDO CASULA
Psiquiatra, mestre em Psicologia (FAFCH-UFMG),
psicanalista membro da EBP e da AMP | fernando.casula@hotmail.com

O momento histórico que vivemos é marcado pela máxima capitalista que equivale o tempo ao dinheiro. A voz do coelhinho de Alice não cessa de nos atormentar: “é tarde, é tarde”… Estamos sempre em atraso. Ao mesmo tempo, somos confrontados com os efeitos do tempo em nosso corpo biológico e convocados a responder ao apelo social da supervalorização de uma eterna juventude. A quantidade e a velocidade frenética com que circulam as informações não deixam de impactar as subjetividades de nossa época. Se esses fatores são vistos por alguns como motivos suficientes para provocar a angústia existencial, para a psicanálise, a angústia provocada pelo tempo é de outra ordem.

Éric Laurent (2017), no editorial da Revue de la Cause freudienne, número 26, dedicada à temática do tempo, diz que a psicanálise captura seu objeto na incidência (do tempo) sobre a diferença dos sexos, no ponto onde esse faz sintoma. Ou seja, antes de considerar o tempo em sua relação direta com a angústia, a psicanálise considera o ponto onde se inscreve como linguagem e o modo como se dá essa inscrição.

Então, podemos dizer que o impacto clínico do tempo para a psicanálise se solidifica no ponto onde esse faz sintoma. Se revela, por vezes, na forma mais peculiar da inscrição significante e seus paradigmas recorrentes de acordo com as estruturas clínicas.

Se a medida do tempo é verificada de forma objetiva — da mesma maneira que se dá a medida do espaço, por uma norma que dita o número de instantes dentro de uma duração finita —, tal convenção não é reconhecida pelo inconsciente: “O inconsciente não conhece o tempo”. Essa assertiva de Freud está escrita no texto “A interpretação dos sonhos” e é retomada e desenvolvida com requintes em seus textos metapsicológicos de 1915, “O inconsciente” e “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”. Nestes, o conceito de regressão temporal é substituído e faz contraponto ao conceito de regressão topográfica. Temos, então, o inconsciente, o pré-consciente e a consciência, cada um regido por regras próprias. Enquanto o tempo inscreve suas marcas junto com a linguagem e com a representação das palavras no pré-consciente, no inconsciente o tempo é eterno, compatível com o tempo imemorial do mito. Assim, ele recebe a descrição topográfica não como uma medida cronológica de dados de memória, e sim como espaço deformado em torno de buracos e substituições de traços desordenados de memória.

A tese freudiana sobre o tempo e o inconsciente permitiu que Lacan desenvolvesse o estatuto lógico dessas cadeias de memória e estabelecesse como a única medida conhecida pelo inconsciente: o falo. Este não determina a identidade sexual, mas permite o cálculo de uma identificação.

Dessa forma, o ensino de Lacan apresentará as modalidades de articulação da memória inconsciente e o aparecimento temporal do sujeito: buracos de memória, defeitos de medida temporal, persistência inquietante, esquecimentos marcantes, esquecimentos de esquecimentos. Todas essas lacunas e tropeços são materiais que denotam uma lógica do tempo em psicanálise.

Encontramos essa lógica formulada em três momentos distintos do ensino de Lacan. A primeira vez, em seu sofisma “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. Mais tarde, em suas fórmulas na lógica da alienação e separação, no fechamento e abertura do inconsciente (Seminário 11), e, finalmente, em sua topologia com o título de um seminário que reúne as duas dimensões do espaço e do tempo: “A topologia e o tempo”, o último proferido por Lacan, ainda não estabelecido. Retomaremos esses momentos mais adiante, ao articulá-los ao inconsciente, porém não antes de fazer uma certa digressão, na qual tentarei precisar o termo “inconsciente a céu aberto”.

Habitualmente, os analistas utilizam o termo “inconsciente a céu aberto” quando se referem ao inconsciente psicótico. Face à adjetivação do inconsciente freudiano, ao lado do inconsciente transferencial e inconsciente real, mais do que nunca, é tempo de empenharmos em um programa de pesquisa para delimitá-los. Pois Freud, ao descobri-lo, não o fez, embora deixasse pegadas a serem rastreadas e sistematizadas.

O termo “inconsciente a céu aberto” surge em meados dos anos 50, em seu Seminário 3: as psicoses. Na lição de 14 de dezembro de 55, ao se referir a uma apresentação de paciente, Lacan diz que aquele caso clínico “fazia o inconsciente funcionar a descoberto” (1985, p. 73). Cabe pontuar que o texto original francês diz “jouer à ciel ouvert” (ibid., p. 71), equivalente a jogar, representar, funcionar a céu aberto. É interessante notar que Lacan se serve de um caso de neurose para apresentar o tema. Esse paciente, em sua dificuldade de entrar no discurso psicanalítico, fazia o inconsciente funcionar a céu aberto, porque “tudo o que em outro sujeito haveria entrado no recalque, encontrava-se nele suportado por uma outra linguagem” (ibid., p. 73). O motivo desse funcionamento é que ele fora criado em Paris por pais que falavam entre si um dialeto corso. O paciente acabou aprendendo duas línguas e, com isso, criou para si dois mundos: um familiar e outro compartilhado com o mundo externo. Esse dialeto acabou se tornando seu mundo familiar, um dialeto em que se depositavam todas questões relacionadas a sua infância. Para esse paciente, Lacan equivale o dialeto corso ao sintoma como expressão do recalcado, no caso do neurótico. Logo adiante, na mesma lição do seminário, recorre ao texto de Schreber e diz este “faz o mesmo sem necessitar de um dialeto”. Ele escreve claramente o que se passa em seu sistema delirante usando palavras do idioma que é conhecido por todos. Aqui, sim, podemos falar do inconsciente a céu aberto enquanto uma forma específica de estruturação do discurso, no qual o sujeito se localiza fora dele e é invadido, habitado e tagarelado pelo Outro.

Interessante notar que Freud tomou o modo de funcionamento do esquizofrênico para avaliar e validar as teorias do inconsciente e o suplemento metapsicológico à teoria do sonho, ambas de 1914. Segundo Freud, há uma peculiaridade de funcionamento do esquizofrênico: tratar as palavras como coisas. Não há uma comunicação entre as representações das coisas e das palavras. A leitura de Freud por Lacan, pela sua teoria do significante, permitiu dizer que há algo na constituição subjetiva do psicótico que não foi simbolizado: “o que fora rejeitado (do interior) do simbólico retorna no (exterior) no real” (1985, p. 158). A alucinação é o exemplo mais claro disso. “No real” não deve ser entendido como localização, e sim como modalização, ou seja, maneira como algo se apresenta: com um caráter de intrusão e de “céu aberto”. Não se trata, no caso da psicose, de o inconsciente ser mais primitivo, mais original ou infantil. É porque, nessa estrutura, o que o neurótico peleja para velar apresenta-se ali com mais clareza.

Na entrevista[1] sobre o tema das psicoses ordinárias, concedida a Jacques Munier, Éric Laurent (2017) responde:

Jacques Munier: Interpretar a psicose é ter um olhar sobre o inconsciente a céu aberto…
Éric Laurent: Sim, é um inconsciente cujo céu não está coberto pelo que Freud chamou de o complexo de Édipo. O essencial já não é a tragédia de Sófocles, onde o menino quer matar seu pai para ter sua mãe pra ele sozinho e dormir com ela… É, além disso.
M.:O Nome-do-Pai?
É. L.: Sim, este Nome-do-Pai faz um ponto de amarração, um ponto de capitón, diz Lacan. Mas é precisamente esse ponto que não existe na psicose. Então, como é que isso para? Como funciona a certeza que existe na psicose? É assim que se faz a passagem da psicose extraordinária para a psicose ordinária”
(Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2017/10/22/a-psicose-ordinaria-1/?lang=pt-br).

Importante notar que Éric Laurent correlaciona o inconsciente a céu aberto à ausência do Nome-do-Pai, sintetizando todo o esforço empreendido por Lacan ao longo do Seminário 3 e no escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Lembremos que o significante Nome-do-pai é a leitura lacaniana do Édipo freudiano. Um significante capaz de instituir a linguagem como discurso para o sujeito (entrada do sujeito no simbólico) e possibilitar a função fálica. Podemos considerá-lo um divisor de águas entre as estruturas neurose e psicose. É o que Lacan (1957/1998, p. 582) formula em “De uma questão preliminar…”:

“[…] é num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere a psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose”.

Ao definir o mecanismo da Verwefung (foraclusão), Lacan destaca uma temporalidade peculiar à estruturação psicótica. O termo jurídico foraclusão implica, precisamente, a impossibilidade de fazer uso de um direito quando não exercido no prazo prescrito.

O modo de negação colocado em jogo na Verwefung destrói a coisa no momento mesmo em que a faz existir: “Não só exclui as possibilidades vindouras e fere o futuro, mas também expressa um desejo que lesa o passado” (RABINOVITCH, 2001, p. 19).

Ao se defrontar com a não-inscrição da metáfora paterna como ponto de basta, o psicótico estaria submerso em um abismo temporal, desprovido de balizas simbólicas, pois não ocorre uma ordenação possível no nível da cadeia significante. Nas psicoses, estaríamos confrontados com tal infinitização, estando o tempo do significante eternizado.

Diante dessa dimensão temporal fundante, na qual encerra a possibilidade de que, entre o campo do sujeito e do Outro, possa se estabelecer um intervalo pulsátil, um ritmo capaz de colocar em cena certa duração no tempo, encontramos na psicose a impossibilidade de escansão da voz materna, do Outro primordial, pois não houve a simbolização da ausência da mãe.

Lacan formula a noção de inconsciente enquanto instância pulsátil, intrinsecamente subjugada à dimensão temporal, no Seminário 11, em que podemos ler: “Vocês compreendem que, se lhes falei do inconsciente como do que se abre e se fecha, é que sua essência é de marcar esse tempo pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido” (LACAN, 1964/1988, p. 188). Nota-se uma temporalidade atrelada ao movimento no circuito pulsional. Segundo Lacan, “a transferência é o meio pelo qual se interrompe a comunicação do inconsciente, pelo qual o inconsciente torna a se fechar” (p. 125). Assim, a transferência atualizaria o ponto de fechamento do inconsciente, onde a interpretação do analista incide no ponto onde o inconsciente já fizera a interpretação. O movimento pulsátil do inconsciente — abrir e fechar — permite a criação das suas formações pelo neurótico: sintomas, atos falhos, sonhos e chistes, além das resistências durante a análise. No psicótico, a falta da barra proporcionada pela foraclusão do Nome-do-pai impede esse fechamento. Daí a articulação com a proposta de Lacan de um inconsciente a céu aberto, na perspectiva de um tempo eternizado.

No Seminário 3, Lacan indicará uma maneira do psicótico já desencadeado colocar a barra, por uma via diferente daquela do neurótico, e recobrir o inconsciente. Na falta da metáfora paterna (foraclusão do Nome-do-pai no simbólico), resta a construção de uma metáfora delirante, que cumpriria essa função. É o que nos mostra Schreber em seu texto retomado por Lacan. A metáfora delirante “A-Mulher-de-Deus” é construída como uma solução elegante que dará sentido a uma série de fenômenos alucinatórios invasivos e delirantes. Essa solução também fará uma escanção no tempo infinito do delírio e organizará o campo da realidade para o sujeito. Com essa feita, o tempo, para Schreber, pôde ser demarcado: tempo para escrever o livro; cuidar de seus afazeres sociais e familiares; entregar-se aos caprichos divinos etc. Cabe ressaltar que esse trabalho de Schreber não foi favorecido por um laço transferencial com um analista. A transferência nas psicoses é complicada, dado que não é instaurada no tempo do fechamento do inconsciente e, dessa forma, não se estabelece a posição do sujeito suposto saber. Há que se conduzir o tratamento por parte do analista com bastante cautela, pois, no cerne da relação do sujeito, encontra-se a certeza do Outro gozador. A relação de Schreber com seu psiquiatra ilustra bem isso. Flechsig é tomado como perseguidor e acusado por várias atrocidades expostas pelo seu sistema delirante alucinatório. Mesmo assim, Lacan orienta os analistas a não recuar diante da psicose e localiza a posição que deverão assumir ao conduzir um caso dessa estrutura: o de secretário do alienado. Nessa época de seu ensino, Seminário 3, cabe à função de secretário, além de testemunhar as soluções delirantes, orientar o tratamento rumo à construção possível de uma metáfora delirante. Estamos aí no tempo do ensino de Lacan no qual ele prioriza o tratamento do real pelo simbólico.

O inconsciente psicótico sempre fora um ponto de estudo para Lacan, de Schreber a Joyce. No decorrer de seu ensino, a questão da loucura passou a ser abordada não mais como um déficit, mas a partir da forma original de linguagem.

Nos últimos anos de seu ensino, a ênfase dada por Lacan não mais será da partição entre as categorias de psicose extraordinária e neurose clássica. Será em um continuum que a questão será colocada. Lacan manterá o inconsciente e seus modos de distribuição nas categorias do real, do simbólico e do imaginário. Podemos resumir da seguinte maneira: o imaginário é o corpo; o simbólico são as palavras que se diz; e o real são os efeitos que tem o gozo no corpo e os acontecimentos que atravessam esse corpo tomado pela substância gozante. Não haverá mais a primazia do simbólico. Isso é o que nos aponta Laurent quando estende a função do Nome-do-Pai ao sentido topológico, como ponto de amarração, de capiton, para além das psicoses extraordinárias às psicoses ordinárias. Esse dado me parece muito importante, pois, assim sendo, nos permite estender características abarcadas pela noção de inconsciente a céu aberto incluindo, aí, o impacto específico do tempo aos sujeitos que constroem soluções de amarração para além — ou apesar — de estarem na condição de impossibilidade de acessá-lo (Nome-do-Pai enquanto significante). Laurent responde ainda sobre uma variante do “inconsciente a céu aberto” nas psicoses ordinárias ao se referir à relação com a linguagem de forma nua.

“É uma variante do ‘a céu aberto’ que Freud instalou. Não há mais proteção. Não há mais cobertura, não há mais garantias de que as palavras querem dizer alguma uma coisa, porque, em última análise, foi dito pelo pai, com a declinação do Nome-do-Pai e da tradição. Há uma conversação que não deve encerrar-se no fechamento delirante, mas sim permitir uma abertura, um percurso sobre o significado da experiência” (LAURENT, 2017, s/p.).

A partir desses referenciais, caberá ao analista atuar para além de ser o secretário do alienado, isto é, não mais conduzir o tratamento rumo à construção de uma metáfora delirante, e sim um saber fazer mais generalizado com as disrupções de gozo. Nesse sentido, espera-se do ato analítico a instituição, de maneira contingencial, de escanções temporais moderadoras de gozo em um inconsciente desprovido das amarras temporais condicionadas pela ausência do Nome-do-pai enquanto ponto de capiton.

 

 

 


Referências
ROBERT. Dictionnaire du français primordial. Paris. Dictionnaires Le Robert, 1986. Apresenta a expressão “a céu aberto” como uma das significações do verbete Ouvert: “disposto de maneira a deixar comunicar com o exterior. […] A céu aberto”. Em Francês, “Disposé de manière à laisser communiquer avec l’extérieur. […]. À ciel ouvert. p. 1751.
FREUD, S. (1915). “O inconsciente”. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIV, 1976.
FREUD, S. (1915). “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIV, 1976.
LACAN. J. (1957-1958) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Escritos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1955-1956) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1964-1965) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1988.
LAURENT, E. (2017). Entrevista. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2017/10/22/a-psicose-ordinaria-1/?lang=pt-br. Acesso em: 5 dez. 2019.
LAURENT, E. “Le savoir inconscient et le temps”. In: Revue La Cause freudienne, nº 26. Paris: fev. 1994. CD-ROM.
RABINOVITCH, S. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[1] Transcrita em português e estabelecida no jornal da FAPOL Lacan XXI, 22 out. 2017.



O tempo e o inconsciente – Guilherme Ribeiro

Resumo
Este trabalho aborda o manejo do tempo no tratamento psicanalítico, as orientações de Freud sobre a duração das sessões e as elaborações de Lacan sobre o tempo lógico. Também pretende estudar como as modulações do tempo das sessões analíticas permitem entender o inconsciente como efeito de discurso.

Palavras-chave: tempo, lógica, inconsciente, escansão.

Abstract
Time and the unconcious
This paper delas with time management in psychoanalytic treatment, Freud’s orientations on session’s time, and Lacan’s elaborations on logical time. It also intends to study how the time modulations of the analytic sessions allow us to understand the unconscious as a discourse effect.

Keywords: Time, logic, unconscious, scansion.

 

Foto do Museu Mineiro

 

GUILHERME CUNHA RIBEIRO
Psiquiatra e psicanalista, membro da EBP e da AMP 

Para começar a falar sobre o tempo e a psicanálise, é importante dizer que não há como definir um standard, um padrão para o tempo no tratamento, seja para o tempo das sessões, seja para a duração do tratamento. As orientações nesse sentido — aquelas ditadas por Freud ou as que partiram do ensino de Lacan — são recomendações para que a direção do tratamento se dê caso a caso. Quando Freud trouxe contribuições a respeito do tempo em psicanálise, o fez como recomendações que não foram tratadas por ele como princípios fundamentais da psicanálise. Lacan aportou suas contribuições ao incluir o tempo dentro de uma lógica do tratamento. Éric Laurent (2007) nos mostrou de maneira muito clara que o único standard da psicanálise é o do caso a caso, o da singularidade. Portanto, o ensino e a prática da psicanálise nos mostram que o manejo do tempo é essencial para seguir em direção do que é singular.

A ausência de standard no tratamento ganha um estatuto de princípio do ato analítico, e uma das justificativas para tanto, em especial no que concerne ao tempo das sessões ou à duração do tratamento, é que a psicanálise reconhece a incidência do tempo nas manifestações do inconsciente. A consequência dessa incidência é que o manejo do tempo é indissociável da política da psicanálise.

É preciso considerar que a psicanálise mudou com o tempo. Miller (2002) faz um percurso da psicanálise no tempo e indica que Freud inventou a psicanálise nos tempos da sociedade disciplinar, que interditava a sexualidade. O que escapava ao interdito e às regras da sociedade foram objeto do trabalho de Freud. Na releitura de Freud feita por Lacan, temos o uso do Nome-do-Pai, do recalque, da castração e dos conceitos de metáfora e metonímia para formalizar o inconsciente. Lacan, mais além dessa releitura da obra de Freud, aponta que é a própria linguagem que opera a interdição: pluraliza o Nome-do-Pai e revela um novo operador, o objeto a, que obtura a falta. Mais ainda, Lacan aponta a inexistência do Outro e indica que o gozo não faz mais oposição ao desejo e passa a ser o operador que indica que, no nível da pulsão, “o sujeito é sempre feliz”. Miller assinala que é esse o campo do inconsciente em nosso tempo, recuperando a máxima lacaniana “o inconsciente é a política”.

Portanto, o inconsciente orienta o tempo no tratamento, seja em suas manifestações sintomáticas, seja nos sonhos, lapsos ou chistes, assim como aponta para o real, como podemos apreender a partir dos avanços que Lacan trouxe no seu último ensino.

Em sua teorização sobre o inconsciente, Freud (1915) propõe que “os processos do sistema Ics são atemporais”, ou seja, não se alteram nem fazem referência ao tempo. Essa referência ao tempo só ocorre no sistema consciente. Os mecanismos de manifestação do inconsciente se dão pela condensação e pelo deslocamento, com ligação aos materiais ideativos no nível consciente. Esse material se manifesta por meio de sintomas, sonhos, chistes e atos falhos, revelando o infantil. Portanto, para Freud, a passagem do tempo não interfere no material inconsciente, que pode estar disponível com a suspensão do recalque.

Ao falar sobre o início do tratamento, Freud (1913) propõe como recomendação um princípio pessoal: que o tratamento tenha um início considerado provisório, “por um período de uma ou duas semanas”, para que se possa avaliar as condições e a pertinência de tratar ou não o paciente. Esse tempo seria aquele necessário para uma avaliação diagnóstica da possibilidade do tratamento. Lacan nomeou como preliminar o momento do tratamento que visa a estabelecer se há um sofrimento articulado a uma posição de gozo, sendo a localização desse gozo o trabalho nesse tempo. Cabe ao analista saber transmitir ao candidato à análise uma questão sobre esse gozo, o que dá ao tratamento a direção para o inconsciente. Essa localização de gozo indica que o tratamento deixou o tempo preliminar para abrir-se à possibilidade do que é atemporal, o material inconsciente, e passar a ser contado no tempo.

Sobre a prática da psicanálise propriamente dita, Freud (1913) revelou como manejava o tempo no tratamento. Ele dedicava, a cada um de seus pacientes, uma hora de sessão, abrindo espaço para uma variação do tempo quando alguns pacientes “gastam a maior parte dessa hora para se extroverter e tornar-se comunicativos”. Ele considerou que o tempo que o psicanalista dispõe para cada paciente é de responsabilidade do paciente, que deve estar presente e pagar por sua presença ou ausência, não importando a razão de sua falta. Freud não vacila mesmo com doenças que possam ocorrer. Ele abre exceções quando a doença impede a presença, mas, nesse caso, o tratamento só é retomado com a total disponibilidade do paciente. Freud atendia, diariamente, de seis a oito pacientes, seis vezes por semana, permitindo uma redução para três atendimentos semanais em “casos leves ou continuações de tratamentos bastante avançados”.

Quanto à provável duração do tratamento, Freud expressou que essa questão “praticamente não pode ser respondida”, mas o que ele assevera é que, na psicanálise, “trata-se sempre de longos períodos, semestres ou anos inteiros”. Como vemos, desde o início, a duração do tratamento sempre foi prolongada. Freud costumava limitar os tratamentos em meses ou poucos anos. Hoje em dia, a duração é ainda maior, podendo ser contada em décadas. As experiências relatadas pelos analistas que puderam testemunhar sobre o término de sua análise nos revelam que é sempre assim. De qualquer forma, tanto a entrada quanto a saída estão a cargo do paciente; ele é o senhor da decisão de terminar uma análise, assim como foi dele a decisão de entrar. Cabe ao analista se posicionar em relação ao final, de acordo com cada um.

Em certa ocasião, Freud encontrou uma razão para modificar suas orientações em relação ao tempo de tratamento. No caso do Homem dos Lobos, ao constatar que o paciente se mantinha em uma apatia, sem avançar, sem conseguir abordar seus sintomas, Freud fixou um momento para encerrar a análise. Ele informou ao paciente que a análise terminaria em uma determinada data, não importando o quanto houvesse progredido. Essa proposta executada por Freud foi a forma encontrada para que o sujeito pudesse achar uma saída para o que parecia ser infinito, o gozo pulsional experimentado pelo paciente. Essa experiência vai ser repetida e sistematizada por Lacan ao teorizar sobre o tempo lógico nas sessões de análise.

A elaboração de Lacan (1945) sobre o tempo lógico orientou sua teoria sobre a duração das sessões no tratamento analítico. Destaco que, além dos tempos lógicos — instante de olhar, tempo de elaborar e momento de concluir —, Lacan expressa a presença de acontecimentos que fazem parte dessa lógica. A lógica que orienta o tempo das sessões é extraída a partir da análise de um sofisma que já é bem conhecido: três prisioneiros são informados pelo diretor da prisão que um deles poderá ser liberado diante da apresentação da solução de uma questão. Os três presos em uma sala receberão um disco cada um, branco ou preto, de um total de cinco discos, sendo três brancos e dois pretos. Cada um deles poderá ver os discos dos outros e poderá sair da prisão quando concluir e explicar logicamente qual é a cor do seu disco. No desenvolvimento do sofisma, todos os três detentos recebem discos brancos e, após algumas escansões temporais, todos saem ao mesmo tempo.

A solução para esse sofisma é a seguinte: toma-se o prisioneiro A como o sujeito real e os prisioneiros B e C como sujeitos refletidos, pois todos eles estão com discos brancos. Quando A vê o disco branco em B e em C, ele pensa que tem duas soluções possíveis, dois brancos e um preto ou três brancos. No momento inicial, a única solução que traria uma resposta imediata é “diante de dois pretos, sabe-se que se é branco”. Fora disso, o problema é insolúvel se não se considerar uma modulação do tempo, abrindo-se um tempo para compreender. Aqui tem que se levar em conta a inércia do outro, quando B e C não saem assim que veem os discos dos semelhantes, o que um deles faria se estivesse diante de dois pretos. A inércia do outro, ou seja, uma modulação do tempo, é um acontecimento que se traduz na forma de escansões temporais atreladas à procrastinação. Após as escansões temporais, o sujeito A se apressa em sair para se afirmar branco. Junto com ele saem os sujeitos refletidos B e C.

O primeiro acontecimento é a escansão do tempo quando, no instante do olhar, se conclui que o problema é inicialmente insolúvel, pois a proposição necessária para a conclusão imediata está ausente. Essa escansão fornece um fato contingente: o de ser preciso compreender como cada um dos sujeitos refletidos irão agir; o tempo para compreender. O segundo acontecimento é a dúvida apresentada pelos três sujeitos quando caminham em direção à saída para dizer qual é a sua cor, no momento de concluir, não sem antes verificar que os outros dois também pararam.

Os acontecimentos do sofisma indicam o manejo do tempo na sessão analítica. Temos a escansão no tempo e o corte. Na escansão do tempo, a elaboração significante remete o sujeito a um sentido, S2, que interpreta o discurso do inconsciente, S1. Já o corte da sessão pelo analista produz uma interrupção na elaboração significante, tomada como procrastinação do saber, com o corte indicando para a posição de objeto. A função do corte visa a apressar essa elaboração de saber.

O sofisma apresentado nos mostra que, para a compreensão do tempo pela psicanálise, é preciso levar em conta que se trata de uma questão de lógica. Mas, além disso, ele contribui para Lacan progredir na definição de inconsciente em seu último ensino. Em “Televisão” (LACAN, 1973), Miller indaga Lacan sobre o inconsciente ao dizer: “Inconsciente — que palavra esquisita!”. A resposta de Lacan é que Freud não encontrou outra melhor. Mas, se no inconsciente freudiano trata-se de suspender o recalque para retirar o sujeito da atemporalidade, o inconsciente lacaniano se revela na escansão do tempo. No entanto, Lacan (1976) continua a avançar e diz que “quando o esp de um laps — ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso — já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos a certeza de estar no inconsciente”.

Lacan ultrapassa o inconsciente freudiano, sustentado pelo recalque instituído pelo Nome-do-Pai, para falar de um inconsciente como sua razão no “espaço de um lapso”. Aqui, o inconsciente não mais se sustenta na atemporalidade, numa eternização que só é suspensa quando o recalque é desvelado pela interpretação. O inconsciente surge no lapso de tempo, no intervalo do discurso, entre os significantes, fora do sentido e fora da interpretação. O inconsciente só se verifica por estar em um discurso, e a modulação do tempo decorre do efeito da estrutura significante.

À guisa de conclusão, volto à estrutura do tempo lógico, que está enlaçada com o conceito de inconsciente. Além dos tempos lógicos, nomeados como instante de olhar, tempo para compreender e momento de concluir, o sofisma apresenta a modulação do tempo em dois momentos: na espera pela elaboração significante e na urgência em concluir. Essas modulações são efeitos de linguagem, são efeitos da estrutura significante. Jésus Santiago (2004) aponta que é a estrutura significante que determina a posição subjetiva da espera, essencial na erótica da sessão analítica. Além disso, do lado do analista, a estrutura significante exige a modulação temporal da urgência. Essa exigência se impõe para que o analisante não se mantenha eternamente em uma elaboração, para que ele não se mantenha na procrastinação, na evitação, na demora em saber sobre sua posição de gozo. A urgência em concluir trabalha contra essa procrastinação e aponta para o objeto a, abrindo a possibilidade de um saber sobre sua posição de objeto. Santiago reforça que “para um analista lacaniano importa mais a suspensão do que a duração da sessão”. Portanto, se, no momento em que Miller o indaga sobre o nome “inconsciente”, Lacan vacila em encontrar um novo nome, posteriormente, o lapso é um significante que ele encontra para dizer de um inconsciente que não leva em conta a significação, um inconsciente articulado com o real.

 

 

 


Referências
FREUD, S. (1915). “O inconsciente”. In: Obras completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, escritos sobre a metapsicologia e outros trabalhos – 1914–1916. Rio de Janeiro: Imago, vol. 14, 1969.
FREUD, S. (1913). “Sobre o início do tratamento”. In: Fundamentos da clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.
LACAN, J. (1945). “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1973). “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1976). “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, E. “Princípios diretores do ato analítico”. In: A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007.
MILLER, JA. Intuições Milanesas 1. 2011. Disponível em:
<http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero6/texto1.html>. Acesso em 30/11/2019.
SANTIAGO, J. “A sessão lógica: extrair o tempo de sua duração”. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n1/textob.asp>. Acesso em 31/11/2019.



A temporalidade do inconsciente na clínica das toxicomanias – Cláudia Generoso

Resumo

Elegendo o eixo de investigação a temporalidade do inconsciente (ICS) e sua incidência nas toxicomanias, o artigo propõe interrogar alguns fenômenos que surgem na clínica com toxicômanos, tais como a temporalidade do ICS no ato de se drogar e na fissura, bem como suas correlações com a passagem ao ato, o acting-out e a iteração do Um sozinho.

Palavras-chave: temporalidade do inconsciente (ICS), passagem ao ato, acting-out, fissura, toxicomania.

Abstract
ICS temporality in a drug addiction clinic
Choosing as a research axis the temporality of the ICS and its incidence in drug addictions, the article proposes the questioning of some phenomena that arise in the clinic with drug addicts, such as the temporality of the ICS in act of drugging and drug craving and its correlations with the passage to the act, the acting out, the iteration of the One alone.

Keywords: ICS temporality, passage to act, acting out, drug craving, drug addiction.

 

 

Foto de Nelson de Almeida

 

CLÁUDIA MARIA GENEROSO
Coordenadora do Núcleo de Toxicomania IPSM-MG (2018-2019),
doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos (UFMG),
psicóloga no CAPS-AD Betim e professora da PUC-Minas.
claudia.generoso@yahoo.com.br


No Núcleo de Toxicomania do 2º Semestre de 2019, orientamos nossas investigações em torno do tema dos afetos e da temporalidade do inconsciente (ICS) na clínica das toxicomanias. Interrogamos como é a temporalidade do ICS na fissura e no ato de se drogar, assim como suas correlações com a passagem ao ato, o acting-out, a iteração do Um sozinho e as soluções possíveis encontradas por cada sujeito para lidar com o mal-estar da vida.

Sendo assim, como pensar a temporalidade do ICS na clínica das toxicomanias? Antes, vamos destacar alguns pontos da relação do ICS com o tempo. No artigo “O inconsciente”, Freud (1915) o conceitua a partir da relação com o material psíquico recalcado, sustentando que nem tudo que é psíquico é consciente. O ICS tem suas próprias características, entre elas o desconhecimento da negação, dos contrários e do tempo. Por ser atemporal, o ICS desconhece a passagem do tempo referente à cronologia, à sucessão dos acontecimentos. Dessa forma, os processos inconscientes não são modificados pelo tempo: “A passagem do tempo não modifica o desejo e isso se revela nas manifestações do inconsciente” (SALUM, 2019).

Em Lacan, podemos delimitar duas formas de pensar o ICS: pela via do sentido, do simbólico; e pela via do real, do gozo. Nessas duas concepções, o tempo também se apresenta de forma diferente. Na via do simbólico, o ICS é estruturado como uma linguagem, uma articulação significante e suas leis da linguagem — metáfora e metonímia. O tempo será concebido a partir do Nachträglich freudiano, o só depois (efeitos retroativos), uma reversão temporal. Uma temporalidade pulsátil que Lacan nomeia de “pulsação de borda”, referente à abertura e fechamento da hiância do ICS, que tem a função estruturante de uma falta, instaurando o tropeço, “a descontinuidade na qual alguma coisa se manifesta como vacilação” (LACAN, 1964, p. 30-31). No ordenamento temporal da cadeia significante, no intervalo entre S1 e S2, há o surgimento do desejo, do sujeito do ICS através de suas formações, tais como os atos falhos, os sonhos e os sintomas passíveis de decifração de um sentido.

A outra via relaciona o ICS ao real, e será pensado não apenas como uma articulação significante, mas como um enxame de S1, situando-o fora do sentido e conectado à lalíngua e ao falasser. Ao status de sujeito como operação significante que surge fugazmente, Lacan acrescentou o corpo como falante, o falasser, instituindo o corpo como o lugar de um sujeito e também sua consistência de gozo. Trata-se do ICS como escrita que cifra o gozo fora do sentido, tendo uma relação com a temporalidade diferente.

Entre as formações do ICS, o sintoma difere das outras pelo seu caráter de constância. É devido a essa característica que Miller (2016) dirá que “o sintoma é o que de mais real a psicanálise nos dá”, carregando a conjunção de duas faces: sentido e real. Ou seja, o que é interpretável e um resto que resiste. Algo decifrável e restos sintomáticos referentes ao núcleo real do sintoma que precisam ser confrontados, e não interpretados, fazendo importante outras formas de intervenção. Mahjoub nos indica que o tempo de fazer vacilar o gozo remete a uma pulsação de borda concernente aos orifícios corporais, possibilitando outras saídas, pois, “se deixarmos o sujeito entregue ao seu gozo, não há nenhuma chance de tocar um real sob as formas do objeto a, essa redução do gozo que não é de forma alguma dócil ao tempo” (2014, p. 347). Há, assim, uma dimensão do objeto a, do gozo, para se pensar a temporalidade, ao contrário da temporalidade fugaz referente às manifestações do sujeito do ICS decifrável.

Nessa perspectiva, Miller (2000, p. 64) evidenciará uma outra modalidade do tempo do discurso, que Lacan nomeará “presente espesso” e que se refere à libido. Se, por um lado, temos o sujeito dividido ($), pontual e fugaz, por outro, temos o objeto a relacionado à libido, à inércia, à consistência que indica “o lastro de uma retirada de uma parte do corpo: objeto anal, vocal (…)”, apontando para a vertente do gozar (MILLER, 2000, p. 66). Considerando essa via é que Lacan acrescentou o corpo ao status do sujeito, instituindo o falasser — que não é o sujeito, mas o corpo falante —, que tem sua consistência e duração próprias (MILLER, 2000, p. 67). Ele nos indica que há certa necessidade de o objeto a ser depositado, absorvido, exemplificando que isso pode acontecer pela arte, como a pintura e a música, como possibilidade de absorção ou depósito do objeto a, insinuando outra forma de manejo clínico, que vai além da interpretação. Desse modo, verificamos a necessidade de ir além da escuta, incluindo saber ler o sintoma que condiz mais com a clínica dos modos gozos (MILLER, 2016).

A partir desses elementos, interrogamos como pensar a temporalidade do ICS nas toxicomanias. Muito já foi debatido sobre a relação dos toxicômanos com o ICS se referir a uma tentativa de obturar a falta, a hiância estrutural do sujeito que remete à castração. Como vimos, é nessa hiância que o ICS se manifesta, instaurando um desencontro e a impossibilidade de satisfação plena da pulsão. Mas, como indica Freud, apesar dessa impossibilidade, haverá sempre uma exigência para a descarga da pulsão que busca insistentemente uma satisfação.

Hugo Freda (2010) destaca algumas referências de Lacan à toxicomania ao longo de sua obra e faz uma aproximação de Freud e Lacan na concepção de que a droga é uma solução, e não um sintoma (Freud, com “Mal-Estar na Cultura”, e Lacan sobre a droga, em 1975). Mas Freda, junto com Bernard Lecoeur, afirma que a toxicomania é uma nova forma de sintoma mais congruente ao mundo contemporâneo, sendo um protótipo desse momento na civilização. O autor ressalta que, nas primeiras observações de Lacan, até 1960 (“Subversão do sujeito e dialética do desejo do sujeito no inconsciente freudiano”), na perspectiva da prevalência do simbólico, “a intoxicação seria uma resposta não sintomática que tenta anular a divisão, a marca de uma posição subjetiva caracterizada por um não querer saber nada do ICS. (…) um tipo de resposta do sujeito ante o reconhecimento da existência do ICS”, visando apagá-lo (FREDA, 2010, p. 305).

Já nas observações posteriores de seu ensino (“Psicanálise e Medicina” [1966], “Os não tolos erram”/”Os nomes do pai” [1973/74] e “Discurso de fechamento das jornadas de carteis da EFP” [1975)], Lacan aponta para uma mudança de concepção a partir da clínica borromeana, estando mais afinado com a ideia de ICS na perspectiva do real, do gozo implicado no sintoma. Nessa via, a toxicomania será pensada no embaraço que surge da relação da angústia com a castração, sendo a droga uma resposta eficaz para romper essa relação (“a droga é o que permite romper com o pequeno pipi”), um rompimento com a função fálica, com o gozo do corpo. Freda (2010) evidencia também que, no toxicômano, mais do que romper com essa relação, há nele uma identificação com a nomeação de ser toxicômano cerceando a possibilidade de o ICS fazer um sintoma.

Diante da dificuldade que se coloca frente ao sintoma como uma formação do ICS decifrável, como pensar as formações do ICS nas toxicomanias? Formações tais que podem causar uma surpresa, uma questão, e não apenas a prática reiterada de se drogar? Como diz Freda (2010), essa nomeação rígida — sou um toxicômano — dá outra dimensão ao uso da droga, como referência a uma prática (toxicomania) e à pessoa que consome como um personagem, e não como um sujeito. Afirma ainda que “a toxicomania é uma nova forma do sintoma na medida em que define o sujeito por uma prática, mas não por seu sintoma” (FREDA, 2010, p. 307). Nesse sentido, o toxicômano é um personagem da modernidade que, a partir de sua prática, quer provar que o ICS não existe. Não por acaso, podemos observar o aumento do uso de medicações psicotrópicas que também entram nesse movimento de aniquilar o mal-estar na cultura, a falta do ser falante — que é estrutural.

Podemos pensar a prática, o ato incessante de se drogar dos toxicômanos e sua relação com o ICS a partir do que Jésus Santiago (2017) diz, que, nos toxicômanos, há uma perturbação do ato diferenciando-o do ato falho, que revela uma manifestação do ICS. Dessa forma, “os tropeços e equívocos que cometem não fazem enigma, mas são remetidos à ordem de um não saber maciço” (p. 222). É comum observamos, na clínica, que esses pacientes não conseguem fazer uma associação do ato de se drogar com algum acontecimento de sua vida, uma localização de uma experiência perturbadora em seu percurso, sendo difícil a criação de uma questão e a instauração do SSS que possa levar a uma demanda de tratamento, ou, como diz Santiago, a um “equívoco do pensamento”. O autor diz que a prática metódica não se confunde com a manifestação da mensagem do sintoma endereçada ao Sujeito Suposto Saber do ICS, pois o que se testemunha na clínica é a presença massiva de acting-outs e passagens ao ato. Há mais o ato do que o pensamento.

Miller (2014), em seu artigo “Jacques Lacan: observações sobre o conceito de passagem ao ato”, nos ajuda a entender as especificidades da passagem ao ato e do acting-out. Segundo o autor, Lacan faz a diferença entre dois atos: o bem-sucedido e o falho. E Miller indaga: “O que é o ato falho, senão o pensamento inconsciente que emerge no pensamento consciente, na fala, no corpo, e desloca o ato, faz com que diga outra coisa?”. Na experiência analítica, Lacan toma o ato verdadeiro a partir do paradigma da passagem ao ato suicida, havendo um “suicídio do sujeito”. O autor diz que a passagem ao ato desvela a estrutura do ato analítico, uma vez que o sujeito pode renascer de forma diferente a partir desse ato. Nessa perspectiva, “todo ato que marca, que conta, é transgressão. (…) uma ultrapassagem de um código, de uma lei, de um conjunto simbólico que ele infringe, e é a infração que permite que esse ato tenha a oportunidade de remanejar essa codificação”. Faz uma diferença entre ato e ação, agitação motora, pois “é preciso que haja também um dizer que enquadre e fixe esse ato. (…) para que haja ato, é preciso que o sujeito nele seja modificado por esse franqueamento significante” (MILLER, 2014, s/p.).

Já o ato suicida alcança o gozo em curto-circuito e, ao mesmo tempo, exclui o mundo subjetivo, o franqueamento significante. Nesse ponto, o ato visa o cerne do ser, que é o gozo. O suicídio atinge o mal encarnado pelo gozo, “essa coisa que o habita, que o corrói, e nesse momento o destrói”. E é por isso que o ato visa ao gozo. O sintoma traz esse gozo que faz mal ao sujeito, mas também o sustenta. Um gozo tal que “(…) quando se autonomiza, é até a morte” (ibid.).

Nesse viés, o ato suicida referente a uma passagem ao ato leva ao movimento curto-circuitado do gozo e é uma resposta ao embaraço em que se encontra o sujeito, que sai da cena. “O sujeito se subtrai, digamos, aos equívocos da fala como a toda dialética do reconhecimento; ele coloca o Outro em um impasse, e é por aí que o propósito do ato propriamente dito não é cifrável” (ibid.). Nesse sentido, o ato é o que separa do Outro e “o sujeito está eventualmente morto”. E, diversamente, no acting-out, há um enquadramento em um apelo, uma demanda endereçada ao Outro, uma cena “que é a fala, e o sujeito se põe a agir diante do Outro nessa cena. É preciso o Outro, é preciso o espectador”. Miller nos dirá que “a clínica da passagem ao ato nos lembra a inscrição temporal inevitável do ato — especialmente sob a forma da urgência” (ibid.), assim como “é no tempo precipitado que esconde a incidência do gozo” (MILLER, 2000, p. 69).

É com esses elementos que nos perguntamos qual é a temporalidade que concerne mais ao funcionamento dos toxicômanos com suas formas de agir e seus fenômenos, tais como a fissura e o ato de se drogar compulsivamente. Quando o ato de se drogar é uma passagem ao ato ou uma atuação? Quando o ato de se drogar é uma separação do Outro, apagando o sujeito? Quando o ato de se drogar pode ser um suicídio não violento, conforme diz Lacan (1938) sobre a toxicomania? Observamos que esses sujeitos estão sempre numa urgência configurada pela satisfação imediata, não se importando nem mesmo por preservar suas vidas, tal como na fissura. Ou, então, encontram-se na monotonia tanto do seu ato quanto da fala sobre a droga. O gozo do sintoma mais congruente com a toxicomania, que remete a sua iteração, pode ser um operador clínico para trabalharmos situações que surgem, tal como a fissura, ao pensá-la como um imperativo de gozo do supereu em que o sujeito é identificado ao seu ser de gozo (ALVARENGA, 2006). A angústia também é um operador clínico nessas situações na medida em que surge sem um gozo circunscrito.

Algumas situações em nossa prática nos chamam a atenção quanto ao agir dos pacientes. Entre elas, é comum, nas instituições que acolhem toxicômanos, aqueles que usam drogas dentro desses espaços, levando-nos a perguntar sobre a natureza desse agir: seria uma atuação? Nesse caso, qual endereçamento está sendo feito à equipe e o que não está sendo escutado? Seria todo uso de drogas dentro das instituições da ordem de uma atuação? Sendo assim, entender as situações a partir do caso a caso é imprescindível.

Enfim, as experiências vivenciadas pelos toxicômanos nos colocam diante do tempo a partir da urgência do gozo, da satisfação imediata, encontrando-se em um movimento de iteração incessante com um objeto artificial, que é a droga. Como fazer vacilar o tempo de urgência da satisfação do gozo na toxicomania e abrir um intervalo no tempo curto-circuitado do gozo? Nessa relação interceptada dos toxicômanos com o ICS na via do simbólico e suas formações, seria mais apropriado nos valer mais da concepção do ICS real para o manejo no tratamento com esses sujeitos?

 

 

 

[1] Abertura do Núcleo de Toxicomania, 2º semestre de 2019.

 

 

 


Referências
ALVARENGA, E. Fissura e crise. Álcool e outras drogas: escolhas, impasses e saídas possíveis. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 87-92
FREDA, H. (MILLER, J-A). La secta y la globalisación. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 303-324.
FREUD, S. O inconsciente (1915), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1987, Imago, vol. XIV, p. 183‑233.
LACAN, Jacques. O inconsciente e a repetição [1964]. O Seminário, Livro XI: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979b. p.23-65.LACAN, Jacques. Complexos familiares [1938]. Outros escritos
MAHJOUB, L. Sessão curta. Um real para o século XXI. Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p. 347.
MILLER, J-A. A erótica do tempo. Latusa. EBP. Rio de Janeiro, 2000, 79p.
 MILLER, J-A (2011). Ler um sintoma. http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br>. Acesso em: 28/07/2019.
MILLER, J-A. Jacques Lacan: observações sobre o conceito de passagem ao ato: Opção Lacaniana online (13), março de 2014. <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_13/Passagem_ao_ato.pdf.> Acesso em: 28/07/2019.
SALUM, M. J. G. O manejo do tempo da sessão analítica. 2019, Lapso 01. Disponível em: <http://www.jornadaebpmg.com.br/index.php/2-uncategorised/46-manejot.> Acesso em: 29/07/2019.
SANTIAGO, J. Vontade de ser infiel ao gozo fálico e conclusão. A droga do toxicômano – uma parceria cínica na era da ciência. Belo Horizonte, Relicário, 2017, p. 189-229.



A solidão e o isolamento nas psicoses – Fernanda do Valle

Resumo
A partir das noções de isolamento, estabelecidas por La Sagna (2017), e de desordem mais íntima no sentimento de vida do sujeito, trazida por Lacan (1958), este trabalho discute o estado de solidão como possível índice de desencadeamento nas psicoses. Também estabelece a diferenciação entre a solidão como fenômeno e como ponto de estrutura do ser na linguagem, indicando-a como uma forma de segregação do ser do sujeito e, nas psicoses, como índice de ruptura com o campo do Outro. Encontra como resultados a correlação da solidão nas psicoses à melancolia, bem como ponto de estabilização em alguns casos de psicose.
Palavras-chave: psicoses, solidão, melancolia, segregação.
Abstract
From the notion of isolation established by La Sagna (2017) and of a more intimate disorder in the subject’s feeling of life brought by Lacan (1958), this paper discusses the states of isolation and loneliness as possible indexes of triggering in psychoses. It also establishes the differentiation between loneliness as a phenomenon and as a point of structure of being in language, indicating it as a kind of segregation of the subject’s being and, in psychoses, as an index of rupture with the Other’s field. It finds as a result the correlation of loneliness in psychosis to melancholy, as well as stabilization point in some cases of psychosis.
Keywords: psychoses, loneliness, melancholy, segregation.

 

Foto do Museu Mineiro
FERNANDA DO VALLE
Aluna do IPSM-MG (2017/19)

 

 

Solidão e isolamento são significantes que recolhemos da experiência clínica cotidiana. Pacientes relatam sentimentos de estarem sozinhos, vivendo vidas infelizes em função de serem deixados de fora dos laços sociais ou submetidos a um exílio do qual não conseguem escapar.

Contudo, para a psicanálise, não é propriamente das pessoas que o sujeito se isola e nem é por isolar-se que se torna solitário. Para Philippe La Sagna (2017), por exemplo, isolamento e solidão indicam formas com que o simbólico se coloca para cada sujeito e como cada um se enlaça a ele. Ele propõe o isolamento como correlato a um mais-de-gozar contemporâneo, indicativo do que denomina “suave segregação” (p. 74), uma forma individualista e consentida de nos mantermos separados de todos. Ao fazer ver que o isolamento implica exclusão do Outro, sua proposição nos permite ler que, para além da estrutura clínica, “isolar-se é evitar a solidão”. Em uma solução precária frente ao muro da linguagem, que dificulta o estabelecimento dos laços sociais, o sujeito busca o isolamento recorrendo a um objeto que o estimule — uma droga, uma fantasia ou um delírio —, “sem que se tenha a mínima realização da solidão”. A seu turno, a solidão seria o testemunho de que somos seres de fala e de linguagem e uma tentativa de dar sentido ao ser de falta.

Sendo assim, no sentido de um afastamento ou mesmo de uma ruptura com o laço e o convívio sociais, podemos recorrer à proposição de existência de uma ordem fenomênica para o isolamento e para a solidão. Sobre esta, podemos também recorrer à proposição de uma ordem estrutural. Tal ordem se torna índice de inserção e desinserção do sujeito no Outro da linguagem. Trata-se de uma questão válida tanto para a neurose quanto para a psicose, estrutura que se tornou um paradigma clínico para Lacan, uma vez privilegiada a relação do sujeito com o real e com o gozo no decorrer de seu ensino.

Em tempos do Outro que não existe e partindo da premissa que o psicótico está inserido na linguagem, porém está fora do discurso, nos interrogamos: a partir de quais balizas conceituais podemos pensar a solidão, face à frágil relação do sujeito psicótico com o simbólico? Se a solidão em Schreber nos indica o tempo de seu desencadeamento, como pensá-la em casos em que ela se torna um aparente resquício desse processo?

 

Solidão estrutural

 

A solidão não é um conceito estabelecido ou investigado por Lacan dentro de sua doutrina. Contudo, em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, tempo da primeira clínica, vemos Lacan abordá-la a partir dos heróis trágicos de Sófocles, trazendo a história de Antígona como um paradigma. Antígona se lança a uma ruptura social radical em que a solidão se apresenta como “uma morte em vida”. Para Lacan, os heróis sofoclianos sempre participam do seu isolamento, havendo uma espécie de fora dos limites que os mantém “arrancados por algum lado da estrutura” (1960/1997, p. 328), bem como confrontados com uma fixidez que “indica a posição do sujeito numa zona em que a morte invade a vida” (LACAN, 1960/1988, p. 344). Nessa morte em vida, tal como indica Lacan, o ser está só, está “na-finda-linha” de uma ausência de representação da cadeia significante, numa suspensão da relação do seu de sujeito à linguagem.

A nosso ver, se estabelece uma suspensão do ser do sujeito que o coloca em um deslizamento metonímico em relação ao Outro. O que se recolhe é uma busca incessante pelo sentido do ser, numa relação iminente do sujeito com a vertente simbólica da linguagem. Trata-se de uma falha a ser recoberta pelo sentido.

No Seminário 20, tempo da segunda clínica e de estabelecimento do estatuto do gozo e da verdade inconsciente, Lacan situa a solidão como algo inerente àquilo que fala, àquilo que não pode se escrever. Ao afirmar que o eu não é um ser, mas apenas suposto a quem fala [1], Lacan afirma que a solidão se coloca do lado do ser em relação ao saber inconsciente. Como índice da relação do sujeito com o significante, ela é aquilo que “não pode se escrever”, de um furo no real que o simbólico não recobre de todo. A solidão é estabelecida como um traço de gozo daquilo que, referido ao saber inconsciente, não se escreve. Lacan indica, nessas formulações, que o sujeito está sempre isolado e exilado de si mesmo. Na relação entre o sujeito e o Outro, há sempre um objeto estabelecido como resto, como traço de gozo — exílio do sujeito do significante e interrupção da relação do eu ao seu ser e, portanto, em relação ao Outro. O UM, segundo Lacan, indica o gozo extraído da linguagem, sendo, ao mesmo tempo, o representante da solidão do ser do sujeito.

Seguindo Lacan no Seminário 20, Marcelo Veras afirma que é na condição de falasser que se “experimenta a linguagem em seu limite último, exilada de toda e qualquer significação” (VERAS, 2017, p. 91) e que tal experiência se refere a um núcleo de solidão e incomunicabilidade sobre o qual se funda o ser a partir dos restos pulsionais que incidem sobre seu corpo.

De acordo com Heloísa Prado Teles (2019), a experiência da solidão somente se constitui a partir da articulação de uma presença ou ausência do Outro simbólico, indicando a existência de uma questão bascular do sujeito em relação à separação do desejo do Outro. Dessa forma, para a autora, em relação às psicoses, a solidão se constitui como uma “dor de existir”, ao passo que nas neuroses ela seria o indicativo das paixões do ser. Seguindo as indicações de Miquel Bassols (2009), Teles (2009 s/p) afirma que “na psicose a solidão está mais referida ao silêncio das pulsões ou à experiência de uma solidão extrema” e nos remete à experiência de abandono por Deus, relatada por Schreber.

 

Solidão, forclusão e disjunção nas psicoses

 

A propósito do desencadeamento da psicose de Schreber, Lacan (1958) indica, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que o momento do anúncio do assassinato de sua alma corresponde a uma ordem simbólica cuja afirmação primordial é percebida de forma original a partir da inscrição de um signo. A Verwerfung desse signo resulta na não inscrição do significante fálico. Lacan nos esclarece que a marca da forclusão é um furo feito no lugar da significação fálica, o qual se estabelece em razão de uma carência de um efeito metafórico. Nas psicoses, seu efeito é uma espécie de ritornelo no que toca às tentativas de significação, em função da exclusão do sujeito para fora do campo do Outro.

No início do adoecimento de Schreber, diante da solidão do impossível de significar o furo da forclusão, é possível verificar um ponto de recuo dos laços sociais e de isolamento do sujeito nos fenômenos elementares que o desencadeamento produz. Sérgio Laia (2000), a partir dos pressupostos estabelecidos por Lacan no escrito de 1958, elucida que, nas psicoses, cujas irrupções se fazem através de uma ruptura do simbólico, provém um desastre crescente do imaginário. Trata-se, nos dizeres de Laia, de uma desamarração, ou desalinhavo, no ponto denominado por Lacan como ponto de capitonê. A retroação do eixo metafórico se mostra incapaz de dar ou de manter a estabilidade de sentido ao conjunto de significantes. Logo, o enigma do sentido produzido pela forclusão pontual de um significante ordenador é obturado pela produção de fenômenos que organizam a realidade do sujeito de forma particular.

Exilado de um significante que faça ancoragem na junção significante e reordene seu sentimento de vida, Schreber está só. Restam-lhe os fenômenos elementares, a partir dos quais ele tentará ordenar o sentido que lhe escapa por meio da captura de um deslizamento metonímico particular, e a perturbação em seu ser, denominada por Lacan de “desordem na junção mais íntima no sentimento de vida”. Tal sentimento é o que exprime o ser do sujeito. Como ponto de exílio do ser do sujeito em relação ao Outro, a solidão na psicose diz respeito à disjunção que afeta o sentimento de vida do sujeito.

Em 1998, em A convenção de Antibes, Jacques Alain-Miller retorna a essa noção da “junção mais íntima ao sentimento de vida” para dizer de quadros de psicose em que tal desordem, apesar de presente, não chega a produzir fenômenos elementares. Miller indica que a noção de sentimento de vida não somente está colocada para todos os sujeitos em todas as estruturas, como também todos são passíveis de experimentar alguma desordem nesse sentimento, de forma mais ou menos intensa, com ou sem a presença de fenômenos elementares.

 

Solidão e melancolia

 

“Minha solidão é não ter uma linguagem com a qual eu posso dizer quem eu sou”. “Eu sou um nada! Sou um lixo! Sou como Sísifo, condenado a rolar a mesma pedra”. “Acho que nunca fui normal. Eu gosto de falar com as pessoas. Prefiro ficar sozinha”.

Essas passagens, escutadas cotidianamente em nossa prática clínica, revelam que a questão da melancolia se apresenta para alguns pacientes, seja em sua versão de estado melancólico, seja como uma posição melancólica do ser, como indicativos, segundo Sophie Marret-Maleval, da presença de uma desordem na junção mais íntima no sentimento de vida. Em sua investigação em torno dessa noção, Marret-Maleval a considera um ponto de forclusão que faz do humor “a base contínua da existência subjetiva” (2017, s/p). Portanto, a autora propõe certa associação entre tal desordem, a melancolia e a solidão, e, para reforçar sua tese, aponta que, ao aproximar a forclusão das variações de humor, Miller faz dessas variações um ponto de referência fundamental da desordem na junção mais íntima do sentimento de vida. Em consequência, ele as direciona à concepção de um fundo melancólico nas psicoses.

Tal posicionamento de Marret-Maleval pode ser entendido também a partir do que Teles (2019) postula a respeito da solidão nas psicoses como uma dor de existir. Nas psicoses, essa dor pertinente à desordem do sentimento de vida adquire os tons da melancolia, muitas vezes impeditivos do engajamento do sujeito ao laço social e de difícil manejo clínico. Em situações assim, o sujeito não só se retira do convívio social como também presentifica a exclusão de seu ser do Outro em uma suave segregação (La Sagna, 2017), manifestada sob a forma do silêncio, do isolamento ou de uma reinvindicação melancólica. Aqui, a solidão aparece como um ponto da linguagem exilado de significação, que empurra o sujeito a uma espécie de ritornelo no que toca às tentativas de significação, lá onde o simbólico não se inscreve e o real se apresenta como um furo. Verifica-se o empuxo do ser a uma morte em vida, a um estar “na-finda-linha”, tal como nos indica Lacan em relação a algo que marca uma ausência de representação ou, nos termos de Laia, um vazio correlato à ausência de ligação entre um significante e seu referente, própria à forclusão e à forclusão generalizada. Se, para Schreber, a solidão aparece como índice do desencadeamento, para alguns pacientes, ela se mostra como um possível ponto de ancoragem, apesar dos embaraços que lhes causam tal exílio. Acreditamos que as psicoses (desencadeada ou ordinária) nos apresentam essa experiência de forma radical.

Sendo assim, a solidão pode ser considerada a partir tanto da desordem que atinge a junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito, no momento de um desencadeamento, quanto como seu aparente ponto de ancoragem, caso o analista consinta com a construção de uma forma do ser que inclua, na experiência analítica do paciente, o estar a sós com seu furo e com um bordejamento que lhe seja possível.

 

 

 

[1] Referência também encontrada na aula de 20 de maio de 1959, do Seminário 6: o Desejo e sua interpretação (1959), em que Lacan afirma que o ser só pode ser encontrado em intervalos, a partir do corte que a linguagem opera no real. A partir dessa referência, Marcos André Vieira (1998) recorta três ideias mais ampliadas a respeito da noção do ser em Lacan, quer sejam: o ser só existe na linguagem; o ser é resultado da operação da linguagem no real; o ser é o simbólico no real.

 

 

 


REFERÊNCIAS
BASSOLS, M. “Soledades I e II”. Disponível em: http://miquelbassols.blogspot.com/search?q=soledades+II. Acesso em 20 set. 2019.
LACAN, J. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958). In:____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 537-590.
LA SAGNA, P. “Do isolamento à solidão, pela via da ironia”. In: Curinga. Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 44, jul./dez. 2017, p. 73-78.
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1997.
LAIA, S. “Psicose unplugged: os desligamentos do Outro”. In: Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 14. abr. 2000. p. 100-109.
MARRET-MALEVAL, S. “A junção mais íntima do sentimento de vida”. In: Opção Lacaniana online – nova série. Ano 8, nº 23, jul. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/A_juncao_intima_do_sentimento_de_vida.pdf. Acesso em 16 set. 2019.
MILLER, J. “Efeito retorno sobre a psicose ordinária”. In: BATISTA, M.C.D; LAIA, S. (org.) A psicose ordinária: a convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012. p. 339-428.
TELES, H. P. “Quem fala só tem a ver com a solidão”. In: https://ebp.org.br/sp/jornadas/ix-jornadas/perspectivas-do-tema-ix-jornadas/. Acesso em 16 set. 2019.
VERAS, M. “O avesso da segregação”. In: Curinga. Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, nº. 44, jul/dez. 2017. p. 87-93
VIEIRA, M. A. “O ser das paixões”. In: LUTTERBACK-HÖLCK, A.L.; SOARES, C.E.L.V. (orgs.). As paixões do ser: amor, ódio e ignorância/KALIMEROS. Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998. p. 80.



Psicanálise nas instituições: relato de experiência Pai-PJ do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – Kelen Cristina Silva

Resumo
O presente trabalho apresenta o relato de experiência no Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, programa de orientação lacaniana e de atenção integral para acompanhamento dos pacientes judiciários. O objetivo desta escrita é mostrar, através do fragmento de um caso acompanhado pelo Programa, a importância da prática da psicanálise nas Instituições, bem como os princípios que norteiam nosso trabalho.
Palavras-chave: Psicanálise Aplicada, Instituição.
Abstract
This paper presents the report of an experience in the Judicial Patient Comprehensive Care Program (PAI-PJ) of the Minas Gerais Court of Justice, a Lacanian orientation and comprehensive care program to assist judicial patients. The purpose of this writing is to show through fragments of two cases accompanied by the Program, the importance of the practice of psychoanalysis in the institutions; its guiding principles that guide our work.
Keywords: Applied Psychoanalysis, Institution.

 

Foto do Museu Mineiro
KELEN CRISTINA SILVA
Aluna do IPSM-MG (2017/2019) 

 

O PAI-PJ é pioneiro no Brasil e no exterior no atendimento aos infratores portadores de sofrimento mental e tem como objetivo conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social. Segundo Fernanda Otoni de Barros-Brisset, coordenadora e idealizadora do Programa,

“O PAI-PJ é um lugar de interface, afetado por diversos campos, é um lugar mediador quando realiza a mediação entre a clínica, o ato jurídico e o social, caracterizado como um programa pioneiro no campo da Justiça, na medida em que se diferencia radicalmente das práticas tradicionalmente instituídas para com os ‘loucos infratores’. Tem sido possível um outro olhar a estes casos”. (BARROS-BRISSET, p. 10, 2010).

Implantado em março de 2000 e transformado em Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator em dezembro de 2001, através da Portaria Conjunta nº 25/2001, o trabalho pode ser definido como a assistência jurisdicional aos loucos infratores que cometem algum tipo de crime. A intervenção é determinada pelos juízes das Varas Criminais de Belo Horizonte, que, auxiliados pela equipe interdisciplinar do PAI-PJ, definem a melhor medida judicial a ser aplicada e promovem a articulação do tratamento na rede pública ou particular em saúde mental, bem como a responsabilização pelo ato cometido e a reintegração social do louco. O Programa se orienta pelos princípios da Reforma Psiquiátrica, instituída pela Lei 10.216/2001.

No ano de 2006, ingresso no PAI-PJ e, hoje, finalizando o curso de formação em psicanálise, a partir da temática estudada na unidade IV, “Ação Lacaniana nas Instituições”, trago aqui um relato da minha experiência de trabalho nesse programa de orientação lacaniana e de atenção integral para acompanhamento dos pacientes judiciários. A metodologia de atenção integral visa a garantir, a cada cidadão em situação de sofrimento psíquico — independentemente do crime, delito ou ato infracional cometido —, responder pelo justo processo legal em condições de acessibilidade aos recursos necessários para o tratamento de seu sofrimento, sem perder de vista o aspecto singular e individual de cada caso e sem prejuízo de seus direitos e deveres estabelecidos por Lei.

Essa metodologia de atenção integral tem alcançado o que está indicado em seu próprio nome, por meio do trabalho de equipes interdisciplinares empenhadas na execução de diversas ações de atenção continuada ao processo desenvolvido pelo paciente judiciário. Vários servidores — equipe de referência de cada caso — estudam a situação particular daquele indivíduo, em seu aspecto jurídico, clínico e social, e promovem sua inserção na rede pública de saúde mental e em sua comunidade de convívio social, acompanhando seu percurso e suas respostas ao tratamento ao lado dos profissionais da rede municipal de saúde, bem como de seus familiares.

Desta forma, estabelecemos uma conversação permanente com os diversos atores sociais e assistenciais do poder executivo sobre as respostas do paciente ao tratamento em saúde mental e seu processo de inserção social e recolhemos o que o paciente diz sobre seus impasses e saídas possíveis nesse percurso.

A equipe responsável pelo acompanhamento do caso, no PAI-PJ, por meio dessas conversações intersetoriais, faz a leitura do detalhe singular em jogo para cada caso, transmitindo à autoridade judicial os relatórios que registram tal acompanhamento, fazendo, assim, a mediação necessária entre o sistema de justiça no qual o paciente cumpre uma medida judicial e os outros setores da sociedade em geral, sem os quais a medida jurídica não conseguiria alcançar a sua finalidade última, a saber, a integração do indivíduo à sua realidade social.

Para alcançar esse objetivo, o acompanhamento do processo judicial não se faz apenas a partir de ofícios e documentos a serem enviados, via impressa ou virtual, aos demais setores da sociedade. Nesse detalhe reside o diferencial do PAI-PJ, que se serve da ação humana para realizar a complexa interação entre o paciente judiciário e os diversos setores e variáveis que se enodam à situação de cada caso em particular.

A metodologia de atenção integral exige que a equipe de acompanhamento do paciente judiciário esteja em contato permanente e em constante discussão, tanto com o indivíduo e sua família como com outros atores da rede social, educacional, de saúde e de justiça (promotores, defensores, juízes e demais operadores do direito) envolvidos em cada caso.

A experiência do PAI-PJ ensina que, sem essa costura cotidiana, de formação e construção de redes de cuidado e atenção, a vinculação do paciente a seus processos terapêutico e judicial pode se desamarrar. Quando isso acontece, pode se instalar uma crise: a engrenagem jurídica se interrompe, as relações familiares e sociais se esgarçam e o paciente pode entrar em intenso sofrimento e desordem pela ausência de laço social que o acolha. Nesses casos, a probabilidade de o paciente judiciário, devido à crise por seu sofrimento psíquico, se envolver em atos que coloquem seu corpo em risco, bem como o corpo social, ou mesmo a tentativa reiterada de buscar anestesiar sua dor com o uso de substâncias entorpecentes, via de regra, pode ser a resposta mais usual à falta de seu engendramento aos recursos da sociedade em que vive e que, para tanto, necessitam da articulação da rede jurídica, clínica e social na atenção desses casos.

A história comprova que encerrá-los no manicômio judiciário por tempo indeterminado — solução francamente inconstitucional — foi, nos últimos anos, a resposta mais cômoda das instituições a situações de crise.

Miller, no texto “Rumo ao Pipol 4”, publicado no Correio da EBP, traz o conceito de “Lugar Alfa” e indaga: há, na Instituição, um lugar analítico possível? Um lugar que seja muito mais que apenas um lugar de escuta, mas também um lugar de respostas?

“Um Lugar Alfa não é um local de escuta. Hoje, chama-se de lugar de escuta o local em que o sujeito é convidado a falar o que quiser, à vontade. Diz-se que o pôr em palavras alivia. Um lugar Alfa é um lugar de respostas, um lugar em que falar à toa assume a forma de questão e a própria questão, a forma da resposta. Não há Lugar Alfa se, pela mediação do analista, o falar à toa não revelar um tesouro, o do outro sentido que vale como resposta, ou seja, na condição de saber inconsciente. Essa mutação do falar livremente resulta no que chamamos de transferência, a qual permite a ocorrência do ato interpretativo, que, por sua vez, divide-se em um antes e um depois, como dizemos classicamente. Para haver um Lugar Alfa, faz-se necessário — e é suficiente — instalar-se o laço pelo qual “o emissor recebe do receptor sua própria mensagem numa forma invertida”, encontra-se o sujeito, a partir daí, conectado com o saber suposto de que ele próprio ignorava ser a sede” (MILLER, p. 9).

A partir da acolhida de cada caso que nos é encaminhado pelo PAI-PJ, tentamos construir, junto com o paciente, um “Lugar Alfa”, capaz de acolhê-lo em sua singularidade. Há aqueles que chegam resistentes (“estou aqui porque o juiz mandou”), outros, de maneira mais silenciosa, sem expressar se existe ou não desejo de estar ali. O certo é que, em todos estes anos de existência, temos colhido experiências que demonstram que a aposta na transferência, na escuta e na disposição de estar ao lado tem nos surpreendido e nos aponta que é possível, sim, a psicanálise nas instituições.

Cabe aqui ressaltar que, para além da relação com os pacientes, respondemos e somos interpelados pelo Outro Social (sociedade, sistema de justiça), que quer resultados, dados, eficácia. É nosso desafio cotidiano apresentar respostas, mas sem perder de vista que o nosso norte é o sujeito. O Discurso do Mestre vai perpassar todo o tempo, mas é preciso saber-fazer com ele.

Trago agora um fragmento de caso para ilustrar a nossa prática, e, como diz Zenoni, “É a psicose que nos ensina sobre a estrutura e que nos ensina sobre as soluções que ela mesma encontra para fazer face a uma falta central do próprio simbólico. É na escola da psicose que nós nos colocamos para aprender como praticar” (2000, p. 19). O caso mostra a importância da transferência que o sujeito faz com a instituição, e sendo a instituição um lugar que tem a psicanálise e o laço social como princípios orientadores, a acolhida aos que chegam deve ser orientada pelo que o sujeito traz, e não pelos critérios institucionais que definem burocraticamente o acesso aos serviços.

Jorge, 51 anos, amasiado, 2 filhos e um enteado é aposentado por invalidez, residia com a companheira e filhos na cidade de Juatuba, região metropolitana de Belo Horizonte, havia pouco mais de dois anos. Foi acompanhado pelo PAI-PJ no período de 2002 a 2016 e respondia pelo crime de porte ilegal de arma. Sentenciado pela Medida de Segurança Ambulatorial, estava submetido ao tratamento psiquiátrico na Rede de Saúde/Centro de Saúde da área de abrangência de sua residência e frequentava o Centro de Convivência e o PAI-PJ. Em fevereiro de 2016, seu processo foi extinto após a Perícia de Cessação de Periculosidade ter emitido laudo favorável. Durante o período de acompanhamento, Jorge respondia à sanção que lhe foi imposta de forma satisfatória: fazia uso regular da medicação e comparecia aos atendimentos no PAI-PJ e às consultas psiquiátricas.

Tinha um bom relacionamento com os familiares. Apesar de aposentado por invalidez, mantinha atividades laborais no mercado informal, tais como vigia noturno e catador de material reciclável. Falava com orgulho das conquistas materiais (moto, carro) e da satisfação em ser o provedor da casa, apesar de contar com ajuda financeira da companheira. Sofreu alguns outros processos criminais (CNH falsa e roubo de um cavalo), pelos quais foi apenado: o primeiro, por PSC (Prestação de Serviços à Comunidade) e, o segundo, por pagamento de Pena Pecuniária.

Jorge é diagnosticado esquizofrênico e possui histórico de tratamento há mais de vinte anos, bem como passagem por duas internações no hospital Galba Veloso — ambas por um curto período. Relata de uso de drogas na adolescência (maconha) e, esporadicamente, na vida adulta, associando esse uso a momentos de dificuldade em relação ao convívio com as pessoas: “o ser humano é muito complicado, por isso que eu prefiro conversar com os bichos”. Por gostar de cavalos, comprava e vendia os animais e se entristecia quando presenciava um animal sendo maltratado. Ao relatar esses episódios, se emocionava e, muitas vezes, comprava o cavalo apenas para cuidar de seus ferimentos. Na região onde residia, havia acesso a uma área de mata, aonde gostava de ir quando se sentia triste ou se desentendia com familiares, amigos ou vizinhança: “Fico lá tranquilo, às vezes sozinho, às vezes com meu cavalo, prefiro os animais aos homens”.

Assim foi sua passagem pelo Programa. Ao término do processo, informamos ao paciente sobre seu encerramento, bem como o do acompanhamento, porém lhe é dito que o PAI-PJ estaria à disposição de suas necessidades; sempre que desejasse, poderia telefonar ou comparecer pessoalmente, que seria acolhido.

Em outubro de 2018, cerca de três anos do desligamento, Jorge procura o PAI-PJ. Chega ansioso, aflito, solicita ajuda junto ao INSS e informa que está desde abril daquele ano sem receber sua aposentadoria. O benefício havia sido bloqueado por não ter se submetido à perícia de revisão da aposentadoria e por seu endereço cadastrado na agência do INSS não ter sido atualizado, o que levou a carta do órgão a ser encaminhada ao domicílio antigo. Com posse dessas informações, Jorge agendou a perícia, mas, por engano, foi agendada uma perícia de concessão de novo benefício. Foi quando chegou à agência que se constatou o erro, e nova perícia para revisão da aposentadoria agendada, após a qual foi orientado a telefonar para se informar do resultado. Passado o prazo estabelecido, Jorge telefona para o INSS e lhe informam que consta seu não comparecimento à perícia. Diante desse impasse, Jorge resolve procurar ajuda no PAI-PJ e, após relatar toda a situação, chora e diz: “Por causa disso que está acontecendo, eu fiquei pensando em me matar. Se eu não encontrasse vocês, se não pudessem me ajudar, eu ia me matar. Briguei com minha companheira porque ela está jogando na minha cara que não aguenta mais; que está tudo por conta dela; que eu não ajudo pagar uma conta”.

Oriento a ficar tranquilo e digo que iremos ajudá-lo. Explico que todas as aposentadorias por invalidez com mais de dez anos de concessão estão sendo revisadas, e que, caso o INSS decidisse por encerrá-la, ele poderia entrar com processo na Justiça Federal contra o órgão. E, para isso, poderia contar com nosso auxílio.

Diante da angústia de Jorge e sabendo que a probabilidade de seu benefício ser suspenso era grande, iniciamos, no dia seguinte, uma verdadeira maratona: agendamento de atendimento, consultas na agência onde o benefício era cadastrado, horas de espera, apresentação de documentação, comprovação de comparecimento à perícia, relatórios médicos, etc.

Passada essa fase, o resultado da perícia é que Jorge tem condições de voltar ao trabalho: um sujeito afastado do mercado por mais de vinte anos, com 51 anos de idade e capacidade laborativa visivelmente comprometida. A situação era caótica, mas, após pesquisa, me informei que, pelo fato de estar aposentado há mais de dez anos, na hipótese de ter o benefício cessado, ele teria de ser incluído no programa do INSS chamado Mensalidade de Recuperação, que é um pagamento de forma regressiva, por seis meses, até a cessação definitiva: nos dois primeiros meses, salário integral; nos terceiro e quarto meses, 75%; e, nos dois últimos meses, 50%.

Pergunto ao funcionário que nos atendia se Jorge teria direito a esse benefício, ao que me responde que sim e verifica a razão pela qual nosso paciente não havia sido incluído no programa, pois, desde que os pagamentos lhe foram suspensos, já deveria estar recebendo a Mensalidade de Recuperação. Ficam, então, as perguntas: se não houvesse nosso questionamento, seria Jorge incluído no Programa? Quantos cidadãos não recebem os direitos que lhes são garantidos?

Apesar da notícia do cancelamento da aposentadoria, Jorge se sentiu aliviado, pois teria como pagar algumas dívidas, já que ficou sem recebê-la por cinco meses. Mostra várias cartas de cobrança do banco onde tinha um empréstimo, que era descontado do benefício, e fala das contas atrasadas — água, luz, padaria, etc. Relembro Jorge sobre a possibilidade de entrar na Justiça Federal contra o INSS, e ele aceita. Pergunta se poderemos ajudá-lo, e digo que sim. Com o auxílio de uma estagiária, o acompanhamos, desde o momento da entrada com os papéis, em novembro de 2018, e na perícia médica, com o perito nomeado pela justiça, até a assinatura da homologação da sentença, em junho 2019, quando o INSS teve de reativar sua aposentadoria, acertar todos os meses não pagos e considerar sua incapacidade laborativa como permanente.

Acho importante trazer esse caso, pois relata o acolhimento a um ex-paciente que tem o Programa como um lugar aonde pode se endereçar em momentos de embaraço, de angústia, em vez de tentar outras saídas — que poderiam lhe custar a vida ou resultar em risco para si ou para terceiros. No momento de sua chegada, foi possível escutar esse pedido de socorro diante de uma situação com a qual ele não dava conta de lidar, apesar de suas tentativas. O fato de o caso não estar dentro dos critérios para atendimento pelo Programa, já que seu processo de Medida de Segurança já se encerrara, não interferiu em seu acolhimento. O que o determina são os princípios orientadores de nossa prática e a vida de cada um — isso sim importa.

Parafraseando Freud, podemos dizer que, em quase vinte anos de trabalho acompanhando pacientes, aprendemos que, quanto mais se ampliam os recursos da civilização, mais se caminha contra a guerra [1]. Em outras palavras, ao ampliar a rede socioassistencial; ao dar voz a esses sujeitos, antes impedidos de falar sobre seus atos, novas possibilidades de resposta ao sofrimento, ao embaraço, vão surgindo, muitas vezes em substituição a um ato de violência. “Não estamos entre os que acreditam na periculosidade intrínseca, na domesticação do programa pulsional que movimenta a humanidade. De tal sorte que propomos uma subversão: no lugar da presunção de periculosidade, elevar a presunção de sociabilidade” (BARROS-BRISSET, 2011, p. 17). Fica aí o convite.

 

 

[1] “Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”. Carta de Freud a Einstein, 1933.

 

 


Referências
ALVARENGA, Elisa. Ação lacaniana nas instituições. In: Almanaque Onlinehttp://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/ElisaAlvarenga.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.
BARROS-BRISSET, F. O. Por uma política de atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte: TJMG, 2010.
BARROS-BRISSET, F. O. Responsabilidades. Responsabilidades – Revista interdisciplinar do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ. Belo Horizonte: TJMG, 2011.
BRODSKY, Graciela. A solução do sintoma. In: Os usos da psicanálise: Primeiro Encontro Americano do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. p. 19-32.
FREUD, S. (1918) “Linhas de progresso na terapia analítica”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVII, p. 199-211.
FREUD, S. (1933[1932]). “Por que a guerra?” (Einstein e Freud).
In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XXII. p. 208.
LACAN. J. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2003. p.251.
LACAN, J. Ato de Fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003. p. 235.
LAIA, S. “A psicanálise aplicada à terapêutica e a política da psicanálise hoje”. Disponível em: http://www.isepol.com/asephallus/numero_10/artigo_08_revista10.html
LAURENT, É. Ato e instituição. In: ALMANAQUE ONLINE. http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Laurent.pdf. Acesso em 17.03.19.
MILLER, J-A. “Acción lacaniana”. In: Un esfuerzo de poesia: los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller (2002-2003). Buenos Aires: Paidós, 2016, p. 159-171.
MILLER, J-A. “Psicanálise pura, psicanálise aplicada e psicoterapia”. In: Opção Lacaniana online, nova série. Ano 8. 22, 2017.
MILLER, J-A. “Rumo ao Pipol 4”, In: Correio da EBP, 60, p. 7-14.
ESCOLA DA CAUSA FREUDIANA. Pertinências da Psicanálise Aplicada: trabalhos da reunidos pela Associação do Campo Freudiano. (trad. Vera Avellar Ribeiro). Disponível em: http://lacanemp HYPERLINK “http://lacanempdf.blogspot.com/2016/11/pertinencias-da-psicanalise-aplicada.html” HYPERLINK “http://lacanempdf.blogspot.com/2016/11/pertinencias-da-psicanalise-aplicada.html”
ZENONI, Alfredo. “Psicanálise e Instituição – a Segunda Clínica de Lacan”. In: Abrecampos Revista de Saúde Mental do IRS, vol. 1. Belo Horizonte, 2000.