UMA INTERVENÇÃO POUCO ORTODOXA[1] 

MARÍA DE LOS ÁNGELES CÓRDOBA
Psicanalista membro da EOL/AMP |
angelescordoba2@gmail.com

Resumo: A autora faz uma leitura apurada do testemunho de Hilda Doolittle sobre a sua análise com Freud, presente no livro Por amor a Freud, no qual Doolittle se esforça para transmitir algo da experiência desse encontro de maneira vívida. A autora destaca a “atmosfera interpretativa” e o efeito do impacto do gesto e das palavras do analista sobre o corpo da analisante a partir de umas das intervenções freudianas relatadas por Doolittle — uma intervenção de exceção, pouco ortodoxa, que seguiu ressoando por muito tempo após o fim dessa análise.

Palavras-chave: Interpretação, corpo, corpo do analista, gozo.

AN UNORTHODOX INTERVENTION

Abstract: The author makes an accurate reading of Hilda Doolittle’s testimony about her analysis with Freud present in the book For love of Freud, in which Doolittle strives to convey something of the experience of this encounter in a vivid way. The author highlights the “interpretive atmosphere” and the effect of the impact of the analyst’s gesture and words on the analysand’s body, based on one of the Freudian interventions reported by Doolittle — an exceptional intervention, unorthodox, which continued to resonate for a long time, time after the end of this analysis.

Keywords: Interpretation, body, analyst’s body, jouissance.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

 Se não existisse a substância gozo, seríamos todos lógicos, uma palavra valeria como outra, não haveria nada parecido com palavra justa, a palavra que ilumina, a palavra que fere, somente haveria palavras que demonstram.
Entretanto, as palavras fazem algo muito diferente do que demonstrar, as palavras furam, emocionam, comovem, se inscrevem e são inesquecíveis. (MILLER, 2009, p. 249, tradução nossa).

 

Hilda Doolittle, em seu livro Por amor a Freud, quer transmitir algo da sua análise com ele. Podemos deduzir, da leitura de seu texto, o esforço para fazer passar algo da experiência desse encontro: “o impacto de uma língua, bem como o impacto de uma impressão, pode se tornar ‘correto’, se tornar ‘estilizado’, perder sua qualidade viva“ (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 33). “Não quero me envolver na sequência histórica rigorosa. Desejo lembrar as impressões, ou antes, desejo que as impressões me lembrem” (Ibid.).

Escolhe começar por uma intervenção cujo eco, cujo impacto sustenta sua vigência intacta por muito tempo após o fim da análise: “O próprio Professor é pouco canônico; ele bate com a mão, com o punho, no alto do encosto do antiquado sofá de crina… (…). O Professor disse: ‘O problema é — sou um homem velho — você não acha que valha a pena me amar’” (Ibid., p. 34).

Pergunto-me de que se trata essa intervenção. Para onde aponta?

Trata-se da tradução de uma verdade inconsciente? É uma via pela qual a própria mensagem retorna ao sujeito de forma invertida? Revela algo do impossível de dizer? Assinala algo do gozo que está ali em jogo na sessão analítica? A que ponto da estrutura se dirige, ao ponto de repetição ou ao de evitação? E a batida (da mão no encosto do sofá)? O que a batida toca? De que batida se trata? E essas palavras, de onde brotam? Por que são inesquecíveis para Hilda Doolittle?

 

O contexto da intervenção 

Interessa-me situar, em relação ao caso e a essa interpretação, o que Miller chama de “atmosfera interpretativa”, ou seja, o meio no qual a interpretação se produz e tem efeitos.

Hilda Doolittle foi analisante de Freud nos anos de 1933 e 1934. Ela introduz a intervenção que nos convoca relatando o que a levou, pela segunda vez, a retornar ao divã do “Professor”: soube do falecimento do analisante com quem cruzava nas escadas do consultório na entrada da sua sessão. “Voltei a Viena para lhe dizer que sinto muito” (Ibid. p. 28). Freud lhe responde: “Você voltou para tomar o lugar dele” (Ibid.), uma interpretação que parece apontar para localizar a posição do sujeito, pois Hilda Doolittle nos diz que ela andava sem rumo naquela época.

Também há algo que antecede as palavras ditas: Hilda Doolittle relata esse dizer de Freud: “Estive pensando sobre o que você disse, sobre não valer a pena amar um homem velho de 77 anos” (Ibid., p. 115). Ela deixou claro que tinha dito que temia que não valesse a pena, ao que ele respondeu com silêncio e um sorriso irônico.

 

Do efeito da interpretação

“Conscientemente, eu não percebia ter dito alguma coisa que pudesse explicar a explosão do Professor. E enquanto eu girava, encarando-o, minha mente estava distanciada o suficiente para me perguntar se aquilo era alguma ideia dele para acelerar o conteúdo analítico ou redirecionar o fluxo de imagens associadas. (…).

O impacto de suas palavras foi terrível demais — eu simplesmente não senti nada. Não disse nada. O que ele esperava que eu dissesse? Foi exatamente como se o Ser Supremo tivesse martelado com o punho no encosto do divã onde eu estava deitada. Por que, afinal de contas, ele fez aquilo? Ele devia saber tudo, ou não sabia nada. Ele devia saber o que eu sentia. Talvez soubesse, talvez fosse daquilo que se tratasse. Talvez, no fim das contas, fosse apenas um ardil, algo para me chocar, para quebrar alguma coisa em mim de que eu estava parcialmente consciente — algo que não iria, que não deveria ser quebrado. Eu estava ali porque não deveria ser quebrada” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34).

Recorto: primeiro, um efeito de perplexidade “simplesmente não senti nada”, um vazio, o encontro com algo inesperado.

É em um segundo momento que aparecem as primeiras interpretações da analisante, algo o chateou, era para acelerar a análise, um recurso para impressioná-la. Tal como Freud aponta em “Análise terminável e interminável” (1937/1980), o analista torna-se um homem estranho que dirige propostas desagradáveis e isso está em conexão com o choque dos mecanismos de defesa.

Algo que perturba: “O impacto de suas palavras foi terrível demais” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34). Algo que impacta o corpo e, portanto, tem valor traumático. Por que essas palavras impactaram desse modo? Nessas palavras se fez presente, de modo contundente, o corpo do analista, “ele bateu no meu travesseiro, ou no suporte para cabeça do velho divã (…)” (Ibid., p. 99).

Trata-se do analista-corpo que encarna algo do não simbolizável do gozo? Um impacto que a força a ocupar seu lugar? Ela nos diz que estava bastante afastada, que se recusava a entregar algo, e o efeito quase imediato foi deslizar-se novamente sobre o divã, “sorrateiramente”. A força a ocupar o seu lugar no próprio tempo da sessão.

Uma interpretação que ressoa no corpo, que faz com que essa seja uma intervenção de exceção. É surpreendente o estilo dessa intervenção, Freud acompanha com o corpo, com o golpe no divã, com um tom inédito, o seu dizer.

Chama a atenção a posição, a atitude de Freud como intérprete, tal como Miller assinala em seu texto “La palabra que hiere” (2009/2018). É a maneira que Freud se propõe como parceiro (partenaire) na experiência analítica. Lá onde Hilda Doolittle se evade, se esquiva, não ocupa seu lugar, Freud a faz presente presentificando-se.

E isso tem ressonâncias indeléveis. No começo de seu texto “Escrito na parede” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 26), nos conta o último contato que teve com Freud. Umas pequenas linhas que ele lhe escreveu em agradecimento por umas flores que ela lhe mandou, mas o detalhe é que ela não assinou o cartão. Freud responde: “Sem assinatura. Desconfio que você seja a responsável pelo presente. (…) Em todo caso, afetuosamente” (Ibid., p. 31). Essa correspondência a remete a essa intervenção pouco ortodoxa e aos seus efeitos; Hilda Doolittle continua a ler um aborrecimento (el enojo) na despedida, o eco do impacto daquelas palavras ressoa.

 

Tradução: Julia Buére
Revisão: Giselle Moreira

 


Referências:
FREUD, S. (1937/1980). “Análise terminável e interminável”. Ediçăo standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 23, p. 239-287.
MILLER, J.-A. (2009) “La palabra que hiere”. In: Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, año XIII, Buenos Aires: Escuela de la Orientación Lacaniana, 2018. p. 23-26.
MILLER, J.-A. Sutilezas analiticas. Buenos Aires: Paidós, 2009.
DOOLITTLE, H. (1956) Por amor a Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.

 


[1] Texto originalmente publicado na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, ano XIII, nov. 2018.



A PSICOSE E A MÁQUINA DE INTERPRETAR[1] 

Mauricio Tarrab
Psicanalista, Membro da EOL /AMP |
mauricio.tarrab@gmail.com

Resumo: Neste texto o autor retoma e comenta outra publicação de sua autoria, “A psicose e a máquina de interpretar”, e resgata a ideia de que o real, fora do sentido, coloca em funcionamento uma máquina de produzir ficções e que a própria psicanálise pode fazer funcionar essa máquina de produzir sentido. Ele ressalva, no entanto, que, com o ensino de Lacan, é possível ir além do campo ficcional, e é esse além que o autor desdobra em seu texto.

Palavras-chave: real, interpretação, psicose.

Psychosis and the interpreting machine

Abstract: In this essay, the author revisits and comments on another publication of his, “Psychosis and the interpreting machine”, bringing back the idea that the real, being outside of meaning, puts into operation a machine that produces fictions and that psychoanalysis itself, can make this machine of meaning production work. He points out, however, that with Lacan’s teaching, it is possible to go beyond the fictional field and it is this beyond that the author unfolds in his text.

Keywords: real, interpretation, psychosis.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Em razão do convite que me fizeram, voltei a ler, com certa distância, meu texto “As psicoses e a máquina de interpretar” (TARRAB, 2018) para retomar uma temática que sempre me pareceu apaixonante. O texto extrai consequências de uma pontuação de Jacques-Alain Miller.

Miller faz essas pontuações em formulações de Lacan, que ele espreme, retorce, desenvolve, combina, separa, mas, de onde, fundamentalmente, extrai consequências. Ler e escrever estão nesse “método” que Miller coloca em jogo. Lê-se a partir dessas pontuações e isso permite escrever algo novo. No argumento do semestre escrito por Cristiana Pittella, pude ver que trabalharão a partir da referência desse texto extraordinário de Miller, “Ler um sintoma” (2016), e, de fato, em uma série de Noites da Escuela de la Orientácion Lacaniana (EOL) que organizei com Silvia Salman, trabalharemos algumas pontuações, uma delas sobre a interpretação, e o que resta como um x mais além da interpretação freudiana.

O tema é tão fundamental que começou com a interpretação dos sonhos… mas é preciso centrar-se em um tema, fazer-lhe bordas, cercá-lo, para que a fuga de sentido não nos extravie. O que me atrevi a dizer nesse texto, que vocês tão amavelmente tomaram e que apresentei em uma Mesa Plenária no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise em Paris, é que “há uma máquina de interpretar” e que essa máquina de interpretar funciona porque há uma debilidade para afrontar o real. Parti de uma pontuação fundamental, que é a de que a debilidade chamada mental consagra o corpo falante ao delírio, ou seja, que o consagra à interpretação. Se a radicalizarmos, podemos dizer que não há outra possibilidade para o ser falante que delirar. O que faz também que, com isso, digamos que o delírio é normal. Uma formulação que Lacan extrai de Freud mesmo.

Lacan o diz de muitas formas, por exemplo, que é uma evidência fundamental em uma análise perceber que se fala só no semblante… e para isso não é necessário ser psicótico.

Então, o delírio, ainda que normal, e isso já está em Freud, está do lado da resposta ao real, que, como tal, é fora de sentido e é o que faz colocar em marcha essa máquina eficaz, às vezes infernal, às vezes tonta, de produzir sentido. Sejamos precisos… de produzir ficções. E essa ideia reabre o grande capítulo da psicopatologia, desde as psicoses à psicopatologia da vida cotidiana.

Penso que, a partir de um certo momento, pode-se ler o alcance do ensino de Lacan como um modo de comprovar se seria possível ir um pouco mais além do campo ficcional. Até chegar a formular a aspiração em termos condicionais sobre a possibilidade de um discurso que não fosse do semblante.

O que existe de ficcional na própria psicanálise impeliu Lacan até o final. Existem os discursos, sim, mas, no final, os discursos não são mais que uma articulação significante que governam as palavras e incidem nos corpos. Humpty Dumpty[2] sabia algo disso. Mas Lacan aponta para algo mais. Existem os discursos que giram, como ele diz, no Seminário 19: “o gozo, a verdade, o semblante, o mais de gozar, ali gira a coisa. E ali está este suporte, o que ocorre ao nível do corpo […] o ground” (LACAN, 1971-72/2012).

O ground está ali, em inglês, ground, o solo, o solo dos discursos é o corpo. E nesse ground passam coisas, ocorrem coisas nos corpos. Retomarei isso no final com algumas referências clínicas que me interessa compartilhar com vocês.

 

ground

Quando assinala que o “matérial-ne-ment” — só o material não mente —, Lacan define sua própria orientação até um ponto certo, firme, que é esse encontro entre o corpo e o significante que não só muda o corpo, mas que também muda o significante mesmo.

Por outro lado, com sua indicação no Seminário 23, de que é preciso “reduzir toda invenção ao sinthome” (LACAN, 1975-76/2007), ele assinala onde é que esse ground se corporifica e diz, ao mesmo tempo, que isso poderia se “encarnar” em uma prática possível, quando a psicanálise parecia encalhar na borda do desalento. A debilidade do saber, a debilidade do saber inconsciente, evidenciada como um fim de linha, força a passagem do inconsciente ao sintoma como única via praticável.

A própria psicanálise põe em funcionamento essa máquina ficcional. Se nos descuidamos, ela a estende em todas as direções e, então, em meio às “criaturas das palavras” que a psicanálise convoca, onde estaria o real? A questão deveria nos incitar, aos analistas, desde que tratemos de não nos perder na névoa dos semblantes e na circulação dos discursos. A pergunta se sustenta: onde está o real? É uma pergunta epistêmica, já que implica o saber e faz girar seu ensino, e é uma pergunta clínica, já que determina de outro modo a orientação da psicanálise, de sua clínica e de sua prática.

Onde está o real? No gozo? No corpo? Na irrupção do trauma? No furo do sexo? No umbigo do sonho? No escrito? No sintoma?… E isso, como se alcança? A prática e a análise ensinam que não se trata de buscar o real como a verdade. A prática e a análise ensinam que é o real que nos encontra.

Por isso digo que, ainda que as neuroses mesmas possam ser consideradas ficções dessa ordem, nada o ilustra melhor que os fenômenos intuitivos e interpretativos das psicoses, as ordinárias e as outras. E é nessa via que Lacan, muito cedo, formulou a ideia, um tanto descabelada, de que a psicanálise é uma paranoia dirigida. É uma paranoia porque, na análise, o analisante — não o analista, o analisante — não faz outra coisa que interpretar. O que lhe disse o analista, o que não lhe disse, porque esse tom ao dizê-lo, disse-me isso, mas queria dizer-me… porque esse ruído detrás do divã… Essa estrutura interpretativa faz aparecer na análise a dimensão do desejo do Outro, ou seja, de sua intencionalidade. E é um bom indicador sobre o momento que se atravessa na transferência localizar quando vocês interpretam a seus analistas. Prestem atenção e verão que não há muita escapatória. Lacan conservou o dispositivo freudiano e, ao mesmo tempo, não deixou de colocar “pedras no caminho”[3] nessa maquinária difícil de se deter.

O excesso de interpretação, tributário da fuga de sentido, fez Lacan mudar muitas vezes sua concepção de interpretação e o seu alvo. E agora, no ponto em que estamos, o termo interpretação já não nos convence, já não diz bem o que quer dizer a interpretação para a psicanálise que praticamos.

Tomei no texto essa frase preciosa de “Função e campo da fala e da linguagem”, que demonstra como o ensino de Lacan não é linear. Não segue a flecha do tempo. O que está no final retoma o que já estava no princípio como intuição e, também, como formalização porque é uma frase, de longo alcance, que indica uma formalização sobre a interpretação: “… e ainda o suspiro de um silêncio basta para suprir todo um desenvolvimento lírico” (LACAN,1953/1998). É uma indicação clara do que a interpretação lacaniana deveria ter de contradelirante. “O suspiro de um silêncio…” não há ali só um silêncio, que é todo um capítulo sobre a interpretação. Nesse “ainda o suspiro” está a presença mesma do psicanalista e de seu desejo.

A interpretação não necessitou esperar a psicanálise para se fazer um lugar, não só na psicopatologia, senão na própria cultura. E a psicanálise, desde “A interpretação dos sonhos”, se localizou nessa corrente cultural arriscando se perder na construção de uma ficção sempre interpretativa, risco que Lacan denunciou ao final de seu ensino.

Lacan produz uma ruptura também no campo da interpretação. Separa a psicanálise daquilo que a incluía em uma hermenêutica e, ao traçar os limites do campo freudiano, reconhece os limites de Freud como também segue a orientação secreta que acredita ler no próprio Freud: “O que ele realmente executa, ali, sob os nossos olhos fitos no texto, é uma tradução pela qual se demonstra que o gozo […] consiste propriamente nos desfiladeiros lógicos (…)” (LACAN, 1974/2003 p.514).

Isso muda as coisas para a interpretação que se quer “analítica”. O ternário edípico já não é causa, senão uma interpretação, mas a serviço do gozo. E quando se trata do gozo, não há uso comum nem sentido comum da interpretação, o que a situa sempre um pouco fora de toda regra. Sua função alusiva, ilustrada pelo dedo apontando para o alto de São João de Leonardo da Vinci, localiza o horizonte da interpretação mais além do marco do quadro, mais além do marco simbólico.

Alcançar, ou não, esse fora de sentido torna-se chave no ultimíssimo ensino de Lacan, que havia começado com a exaltação dos “poderes da palavra” e a promessa que oferece Ao plus-de-sens (mais-de-sentido). O devir da própria prática lacaniana evidencia que o sentido sempre está em fuga e que esse ponto fixo, que comanda a repetição, não se captura pelo sentido.

E direi que aqui nós topamos com a questão do ponto fixo, para dizê-lo, em termos de solo, do ground, o ponto onde poder-se-ia ficar de pé. Essa é a questão que justifica voltar a visitar Humpty Dumpty e, também, sobre o que as psicoses ensinam ao psicanalista. É o que afirma Fernando Casula quando recorta esta frase de Miller em A interpretação pelo avesso”: “o avesso da interpretação consiste em cercear o significante como fenômeno elementar do sujeito, como anterior a sua articulação enquanto formação do inconsciente, que lhe dá sentido de delírio” (MILLER, 1996, p. 98).

Subamos mais uma vez no muro com o famoso Ovo… Temos ali um divisor de águas para a interpretação: vamos do lado “histérico” com Alice, fazer com que as palavras signifiquem outra coisa do que se quer fazer significar. Temos claro que, ao interpretar, não nos privamos disso com os analisantes, mas isso tem um horizonte que não se alcança nunca. A fuga de sentido é incontrolável quando a máquina de interpretar vai por esse caminho, especialmente nas psicoses. O sujeito corre o risco de precipitar-se em uma sideração de sentido delirante que não se pode deter e que lhe resulta insuportável.

O outro caminho é o que indica o Ovo: trata-se de que há um mestre. Um mestre do jogo, com certeza, um mestre do discurso que decide sobre as palavras que podem ser ditas nesse discurso. Mas, também, e isso é uma modulação fundamental, um mestre que decide sobre os corpos.

Circundá-lo, localizá-lo, sublinhá-lo, “fazê-lo notar”, como diz Lacan em Estou falando com as paredes (LACAN, 1971-72/2011), aponta para a detenção do deslizamento infinito e pode permitir estabilizar as significações. Deter esse deslizamento e centrar o sujeito sobre os fenômenos elementares permite fazer com que o Outro gozador perca a consistência recolocando-o no lugar de um semblante e, eventualmente, permitindo reordenar a relação com o corpo, se é que se tem um corpo.

Éric Laurent sustenta que, na psicose, a interpretação do sujeito está baseada em uma certeza (em um ponto fixo) e que o sujeito psicótico “está pronto para impô-la ao mundo” (LAURENT, 2017, p. 19). Por essa via, o inconsciente a céu aberto da psicose não é mais que uma máquina interpretativa, cuja produção — delirante — não cessa de traduzir os significantes de lalíngua. E Laurent ensina que o analista deveria intervir no sentido de não permitir ao psicótico se deixar levar pelo movimento delirante e voltar a centrá-lo nos fenômenos elementares, os S1 isolados que a ele se impõem. O caso de Isabela, que eu menciono no texto, é um grande ensinamento para nós.

Laurent toma como exemplo o milagre do uivo, do caso Schreber. Imaginando um diálogo fictício, ele lhe perguntaria: “Você disse ‘uivo’, ‘milagre do uivo’? Diga-me um pouco mais. O que é um ‘milagre do uivo’?” (LAURENT, 2017, p. 21). Recorta o significante ‘uivo’, que nomeia um acontecimento de corpo, e convida o sujeito a falar sobre “como se defende do milagre mediante uma invenção particular” (Ibid.). Podemos ler no livro Conversações Clínicas de UFORCA (UFORCA, 2020) uma apresentação de pacientes realizada por Miller que coloca em ato essa orientação de maneira esclarecedora. Diferentemente de Humpty Dumpty, a psicanálise nos ensina que há um mestre mais além do significante.

 

O que responde e o que não responde

O inconsciente interpreta porque o inconsciente é essa parte do sintoma que responde, e isso permite a dialética cifração-decifração (LACAN, 1975-76/2007). Mas como tocar com a interpretação aquilo que não responde do sintoma e produzir uma ressonância que não seja de sentido? É o problema que traz à prática do analista a aspiração de Lacan de reduzir o sintoma a seu real. Estamos diante do que se pode decifrar do trabalho interpretativo do inconsciente e do que se pode captar do gozo opaco do sinthome. E como se capta isso? Miller dá o exemplo da alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos. Por que comparar a emergência do Um sozinho com uma alucinação, senão para dizer que, como isto está cortado de toda cadeia, não retorna tal como retorna o recalcado?

“Se há retorno, (…), não é na história, mas no real” (MILLER, 2009, p. 34). É uma emergência, uma intrusão, como o é uma alucinação. Por isso tem também o valor de ser prova de um real. Esse Um sozinho não se conecta ao Outro nem ao sentido. Não se decifra, pois é capturado, é testemunha dessa emergência. Talvez isso responda ao que, entre outras coisas, as psicoses ensinam à interpretação lacaniana.

“Se há retorno, (…), não é na história, mas no real” (MILLER, 2009, p. 34). E onde se pode capturá-lo, se não retorna como o retorno do recalcado? Às vezes, pode-se capturá-lo na análise, não como saber, sentido ou verdade, mas como acontecimento, como surpresa, para o analisante e para o analista. Muitos testemunhos de Passe testemunham essa contingência final em torno de um acontecimento de corpo como um pedaço de real. O acontecimento de corpo torna-se então — fórmula paradoxal — um fenômeno elementar que se pode ler. São requeridas, para isso, as chaves de leitura que o analisante pôde extrair ao longo de toda sua análise. Por vezes, um testemunho de passe consiste em apresentar essas chaves de leitura para ler o Um sozinho. Lê-lo é extrair desse real um sentido na encruzilhada do fora do sentido, do acaso e da história.

Mas voltemos à questão do Mestre. Lembrem-se do escrito “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (LACAN, 1958/1998), no qual se mostra claramente a intencionalidade política que Lacan dá ao tratamento analítico, pois não se trata somente da direção do tratamento, mas dos princípios de seu poder. E se estamos metidos nessa ordem política do tratamento, não podemos falar da interpretação sem situar a questão dos princípios de seu poder. Lacan mesmo o fez, de forma enérgica em sua época, para questionar, na psicanálise daquele momento, a intrusão não só do discurso universitário, mas, em especial, do discurso do mestre na psicanálise e na prática da interpretação que se encarnava como o analista mestre.

O que se passa hoje conosco é que estaríamos curados por Lacan ter escrito sobre isso em 1956? Podemos dizer que estamos curados, estamos a salvo de seguir encarnando, não somente o analista universitário, mas também o analista mestre?

A boa pergunta para o analista seria: quem é o mestre na psicanálise que eu conduzo? Como evitar essa pergunta sobre quem é o mestre? Por exemplo, se a evitamos, a resposta e o mestre do jogo em uma análise vão entrar de alguma maneira surpreendente e será o momento no qual iremos pedir uma supervisão. Assim, enquanto a coisa funcionava de uma certa maneira, há algo que, prontamente, entra em jogo e não se sabe o que fazer com isso. Sempre há que se buscar um mestre em um caso. E vocês sabem muito bem a importância que tem em uma análise capturar, por exemplo, um significante que seja uma chave de leitura, os efeitos que isso tem para um analisante.

Interpretar… é uma palavra aplicada a muitas coisas diferentes e, além disso, abarca campos tão variados que não é fácil saber o que dizemos ao usá-la. Por exemplo, aquele que toca um instrumento musical, interpreta uma obra, um ator ou uma atriz que interpreta um papel que está escrito, improvisa em alguma parte. Um compositor, nesse caso, um compositor e maestro muito próximo a mim, meu irmão, me explicava a importância que se tem justamente de interpretar o que o compositor esperava que fosse lido de sua partitura, quer dizer, aquilo que, alguma vez, teria escrito. Essa interpretação, ainda que se queira ser fiel, tem sempre algo que é agregado por parte daquele que interpreta. Existe a obra e existe a interpretação que, aquele que a executa, lhe agrega. Poderíamos delirar com isso e dizer que a interpretação faz a música existir, pois onde ela estaria antes de ser interpretada?

Uma vez me convidaram para dar um seminário sobre a interpretação em São Paulo e, quando cheguei, à noite, me levaram para escutar música numa linda sala, a sala São Paulo, para escutar um concerto de Rachmaninoff. Enquanto o ouvia, certamente pensava no que teria que dizer no dia seguinte. E como o contexto me provocava um pouco a questão, enquanto soava um violino espetacular, eu me perguntei por que usamos a mesma palavra para dizer coisas tão diferentes como o que fazemos em uma análise e como o que o violinista estava fazendo com sua arte naquele momento. E pensei que poderia haver uma vinculação que fosse mais além da mestria com um ou outro instrumento. Encontrei uma formulação da qual gostei. Pode-se dizer que aquele que executa um instrumento musical o faz, com maior ou menor mestria, de modo homólogo ao que o analista faz com sua leitura: ambos fazem escutar o que está escrito.

Pareceu-me uma boa fórmula para a interpretação analítica, com a condição de acrescentar que, em um e outro caso, o corpo está concernido, mais além das palavras. Havia uma canção que cantava Domenico Modugno, cantor italiano, que se chamava “Paroles”, palavras, tão somente palavras há entre os dois. Isso, poder-se-ia falar da situação analítica, na qual, supostamente, só há palavras entre os dois parceiros. E, entretanto, seguindo essa linha que percorro, o que há a dizer com todas as letras, para seguir a forte indicação de Humpty Dumpty, é que analisar, analisar-se, interpretar, não é um jogo de palavras. No primeiro lacanismo que conheci, tudo era jogo de palavras, até que chegou Miller com o Outro Lacan, nos anos 80, que permitiu abrir um campo novo, completamente mais além das palavras.

Ao longo de seu ensino, Lacan formula, de maneiras distintas, como pensar a estrutura da interpretação, ainda que não o faça de maneira explícita. Mas pode-se ler em muitos desenvolvimentos a ideia latente de que há um esforço de redução: “ainda o suspiro de um silêncio…”.

Nas conversas em Saint-Anne, publicadas como Estou falando com as paredes (LACAN, 1971-72/2011), Lacan fala da interpretação, em especial, na primeira dessas conversas, intitulada “Saber, ignorância, verdade e gozo”. Toma os quatro termos, um por um; em princípio, o saber, certamente o saber que não se sabe, o saber não sabido de que se trata em psicanálise, ou seja, o inconsciente. A importância da primazia do saber em psicanálise é o primeiro ponto disso que faço Lacan dizer, como estrutura da interpretação. O segundo ponto vai diretamente no tema da interpretação, ele diz:

“O segundo ponto, vocês não esperaram por mim para sabê-lo — dirijo-me aos psicanalistas pois ele é o próprio princípio do que vocês fazem, a partir do momento em que interpretam. Não há interpretação que não se refira à ligação entre aquilo que se manifesta de fala, no que vocês escutam e o gozo” (LACAN, 1971-72/2011, p. 26).

Podemos então ser inocentes como Alice e pensar que se trata de um jogo de palavras ou que, na transferência, que sustenta o laço analítico, trata-se só de palavras, mas aquilo com o que se encontrarão é que, o que dizem, concerne ao laço entre as palavras e o gozo. E algumas coisas na prática da análise, como no amor, é melhor sabê-las logo, então, para retomar Humpty Dumpty e contradizer um pouquinho sua arbitrariedade, o mestre, a quem ele se refere na análise, é o gozo.

Lacan diz que o laço entre as palavras e o gozo não apareceu em Freud de imediato, pois, ele disse, houve uma época do princípio do prazer em Freud — como também poderíamos dizer isso de Lacan, pois tampouco apareceu em Lacan no princípio —, uma época na qual tudo se resumia ao significante. Podemos explicar o caminho mais claramente freudiano de uma psicanálise dizendo que vai da ignorância de um saber que não se sabe e que faz sintoma à verdade que a interpretação revela, e que é a chave ética e curativa freudiana, e o que cai como saldo é um saber.

Claro — disse Lacan —, um dia Freud mesmo foi surpreendido pelo fato de que, mais além do sentido desse programa, havia outra coisa, a repetição, a insistência de um benefício de gozo que comanda a repetição: ali temos o mestre. O mestre é o que comanda a repetição e, por outra parte, poder-se-ia dizer que, se não houvesse repetição, o que interpretaríamos? Só a repetição permite situá-lo, então temos a insistência da repetição.

E ali Lacan formula seu terceiro ponto para essa estrutura da interpretação dizendo: “Se nossa interpretação nunca tem senão o sentido de assinalar o que o sujeito encontra aí, o que é que ele encontra? Nada que não deva ser catalogado no registro do gozo” (1971-72/2011, p. 28).

Assinalar o que o sujeito encontra. A estrutura mesma da interpretação lacaniana é assinalar, assinalar o ponto de gozo. Depois, o como o fazemos assinalar: se cortamos a sessão, sublinhamos, interrompemos, isso pode variar; o tema é assinalar.

O que encontra o sujeito que há que fazê-lo notar? O ponto de gozo da repetição. Essa é uma indicação maior para o praticante, em especial, é uma indicação contra essa nova ferocidade do praticante que, muitas vezes, vem tomar o lugar da ferocidade curativa; quero dizer que, quando na prática se passa da ferocidade curativa, é porque se tropeçou com o impossível de curar nos tratamentos que alguém conduz ou porque na própria análise tenha encontrado também esse impossível.

Muitas vezes se escuta, nas supervisões, uma nova ferocidade, que é a de fazerem-se buscadores da verdade, detetives do mistério do sofrimento sintomático, e Lacan vem agora dizer que se trata de “assinalar o que o sujeito encontra”. Recordem Isabela, “io sono sempre vista” (LACAN, 1962-63/2005, p. 86). Isso já implica, então, uma certa destituição do analista como mestre da interpretação.

Resta ainda o quarto ponto em Estou falando para as paredes, referido à interpretação. Ele se pergunta: “Onde é que isso habita, o gozo? Do que ele precisa? De um corpo” (LACAN, 1971-72/2011, p. 28).

Com isso, voltamos a encontrar a referência inicial de meu texto, a frase que tomei como ponto de partida a respeito do delírio e do corpo falante. O gozo habita no corpo e “os corpos estão capturados pelos discursos”. E sabemos que o corpo deve ser capturado pelo discurso para ser um corpo. Para regular-se como um corpo, para existir como um corpo, e para que alguém tenha a chance de ter um corpo. O que abre todo o capítulo do encontro, do mal encontro ou do desencontro entre os discursos e os corpos, que não poderei desenvolver com vocês, mas creio ser essencial para situar na clínica a problemática que vocês vão estudar este ano.

Então, temos saber, ignorância, verdade, gozo e um corpo onde se encarnam os discursos e, nesse caso, o que Lacan indica é que a interpretação deveria tocar o corpo. Quando, em relação à interpretação, se fala de ressonâncias, indica-se essa borda de onde se entrelaçam um saber não sabido, mas articulado, o inconsciente, as palavras, o fora de sentido, os gozos e os corpos. Quando alguém se analisa, supõe que não está falando às paredes, porque supõe — porque assim o interpreta — que há um Outro a quem lhe fala e, também, porque o analista se localiza ali na transferência. E sobre esse dizer, feito de palavras e atos, é que interpretamos. Em uma análise, circunscreve-se o discurso de tal maneira que pode-se dizer que, ao final, como o diz Lacan em Estou falando com as paredes (1971-72/2011), não é tão importante eu falar com ele, senão que falar com as paredes é seguir não suas palavras, mas o circuito da reflexão de sua voz. O analista pode bem ser essas paredes que contêm, em uma análise, o espaço onde o mais singular do analisante tenha a oportunidade de ressoar.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Renata Mendonça

Referências
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LACAN, J. (1974) “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1958). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1962-63) “O que não engana”. In: O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LACAN, J. (1971-72) Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte Anne. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
LACAN, J. (1971-72) O seminário, livro XIX: … ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LACAN, J. (1975-76) O seminário, livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAURENT, É. “A interpretação ordinária”. In: Arteira. Florianópolis: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina, n. 9, 2017. Disponível em: <http://revistaarteira.com.br/images/pdf/Arteira-9.pdf>. Acesso em 10 de julho 2021.
MILLER, J.-A. “A interpretação pelo avesso”. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 15, 1996.
MILLER, J.-A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2009.
MILLER, J.-A. (2016) Ler um sintoma. Disponível em: <http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br>. Acesso em: 22 junho 2021.
TARRAB, M. “La psicosis y la máquina de interpretar”, apresentado na Mesa Plenária do XI Congreso de la AMP “As psicoses ordinárias e as outras”. Barcelona, abril 2018.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 19 março de 2021.
[2] Humpty Dumpty é um ovo antropomórfico, filólogo e especialista em questões linguísticas. Para ele e seu raciocínio invertido, as palavras comuns significam o que quer que ele queira, enquanto nomes próprios devem ter significação geral. Disponível em: https://thebloggerwocky.wordpress.com/2011/05/28/humpty-dumpty-o-sabe-tudo-prosopagnostico/. Acesso em: 22 maio 2021.
[3] (N.T.) A expressão “pedras no caminho” em português equivaleria à expressão “palos en rueda” (paus na roda) em espanhol, indicando a colocação de obstáculos a algum movimento.



“EU NÃO SOU DE FALAR MUITO, EU DANÇO”[1] 

MÁRCIA MEZÊNCIO
Psicanalista, membro da EBP e AMP, mestre em Psicologia (Estudos psicanalíticos) pela UFMG |
marciasouzamezencio@gmail.com

Resumo: Comentário do filme Inocência roubada, narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma. Interrogam-se os efeitos, para o sujeito, da interpretação dada pelo discurso jurídico. Propõe-se que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo.

Palavras-chave: Interpretação, acontecimento traumático, gozo, responsabilidade.

I’M NOT MUCH OF A TALKER, I’D RATHER DANCE 

Abstract: Commentary on the movie “Les chatouilles”, a fictional narrative about an experience of child abuse suffered by the protagonist and her attempts to treat her trauma. The effects, for the subject, of the interpretation given by the legal discourse are questioned. It is proposed that what justice enforces is the subject’s responsibility of saying it, for leaving the silence and confessing the secret.

Keywords: Interpretation, traumatic event, jouissance, responsibility.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina. Tudo isso é, sempre, o gozo (LACAN, 1969-1970/1992, p. 68)[2].

Inocência roubada (2018) é um filme difícil de assistir. O tema é delicado e sabemos que não se trata de uma ficção, mas de uma narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma que faz sintoma em seu corpo para produzir uma medida que o sustente. O próprio filme, antecedido por uma peça teatral, Les chatouilles ou la danse de la colère, bem como a parceria amorosa, se insere na série de tratamentos que o sujeito empreende. Éric Metayer escreveu e dirigiu peça e filme juntamente com Andréa Bescond, de quem também é marido.

Difícil de assistir, difícil também de comentar, por abrir múltiplas vias que poderiam nos interessar e nos extraviar do tema proposto para nossa investigação, como a relação da menina com a mãe. Não me deterei nela, apenas registro sua relevância, bem como o impacto que nos provoca uma reação de indignação e incredulidade, mesmo advertidos da devastação estrutural presente nessa relação. Sem dúvida joga sua importância na forma como a criança não encontra recursos nem defesa em relação ao que lhe acontece.

No tocante ao nosso tema trabalho “A interpretação: da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”, a narrativa, grosso modo, aborda a interpretação do próprio sujeito através da dança — e de muitas atuações perigosas que colocam seu corpo em risco —, seguida pela interpretação da psicóloga, que investe no restabelecimento da verdade e na busca de reparação, e conduz ao final, à interpretação da justiça, passando pelo aparelho policial (queixa) e judiciário (julgamento e condenação). Aparentemente, essa última interpretação faz um ponto de basta e o sujeito se reconcilia com seu passado.

Em psicanálise, a partir do momento em que se formula uma demanda, não se pode deixar de interrogar a interpretação que ela veicula e não se pode tomá-la em sua literalidade. Tomando o filme sob a ótica da psicanálise, caberia então perguntar: de que forma a psicanálise poderia interpretar e responder sem transigir de seus princípios? Pode-se assinalar, no percurso apresentado pelo filme, o que teria enganchado o sujeito e lhe permitido avançar? Tratar-se-ia do alívio de falar? Ou da reparação da condenação? Que gozo se confessa ou se recusa? O sujeito, mesmo inocente, pode fazer-se responsável? Pelo menos daquilo que diz ou cala?

Les chatouilles, “as cócegas”, esse é o título original e remete à “brincadeira” proposta pelo abusador. Logo de cara, pareceu-me infeliz a versão do título para o português. Inocência roubada coloca um acento sobre a posição de vítima que, mesmo sendo um viés presente no filme, não será a nossa via para abordá-lo. A tradução literal, no caso, As cócegas, parece-me oferecer a possibilidade de se interrogar a ressonância desse significante sobre o corpo como marca do encontro traumático do sujeito com o sexual.

Resenha do filme, publicada em Lacan Quotidien 867, vai ao encontro dessa hipótese. Cito: “Quem não sucumbiu às cócegas (aux chatouilles) que lhe fez seu papai, seu titio, seu primo? É uma palavrinha da linguagem da infância, tal como “cosquinhas” (papouilles), ainda mais próxima de lalíngua, tão corrente e tão sugestiva”[3]. (LECLERC-RAZAVET, 2020). Também em português essa aproximação é possível, pois a lalíngua igualmente se serve da forma diminutiva, que, em geral, é utilizada para transmitir carinho ou intimidade. Algo do dizer que toca e ressoa no corpo, um dizer que faz acontecimento (MILLER, 2016, p. 28). Como afirma Miller em seu curso O ser e o Um (2011), o acontecimento de corpo é a “percussão” da língua sobre o corpo, é o traumatismo da língua e é da ordem de um real sem lei. Real sem sentido que surge do impacto das palavras sobre o corpo, que está na raiz do sintoma.

 

O filme

Diferentemente da fórmula das narrativas de histórias infantis “entrou por uma porta e saiu por outra”, vemos, no início do filme, a menina Odette entrando por uma porta (reencontraremos essa porta no final do filme) pela qual não a vemos sair. Do lado de fora, já adulta, apresenta-se seu primeiro encontro com a terapeuta e a primeira vez que fala sobre o abuso que sofrera na infância, dos oito aos doze anos, por parte de um amigo próximo de seus pais. Ela tem então por volta de trinta anos e, depois de vinte anos de silêncio, o trauma fez seu retorno ruidoso.

A dança é a paixão de Odette, para o melhor e para o pior. Percorre e costura a trama alternando-se com flashbacks de abuso, narrados em sessão, entre literalidade e fantasia. Em dado momento, em uma situação de trabalho degradada, sofre uma queda e um entorse no tornozelo. Desse acidente de trabalho, decorre um bom encontro com um osteopata, o amor se instala e, com ele, um apaziguamento provisório. Surgem melhores oportunidades de trabalho e o projeto de viverem juntos. Um desentendimento violento sobrevém ao encontro do casal com os pais de Odette e o sujeito cai, abandonado. Pela mãe, sempre excessivamente exigente, e pelo companheiro, desgastado pela sombra de um meio-dizer da parte de Odette: “escondendo as coisas de mim, você pode me perder. Estou sempre te esperando, sem saber se vai chegar e como. Não quero mais isso”, ele diz. A terapeuta a encoraja a falar com ele e também com os pais, revelar-lhes seu segredo e seu sofrimento, ao que ela se recusa inicialmente. Quando finalmente se decide a conversar com os pais, a mãe acusa a filha de mentir, coloca a atenção na gravidade da acusação e desconsidera a gravidade do fato. O pai se revolta, se culpa e pede perdão. É o que permite a Odette prestar queixa. Já a recusa da mãe em responder à sua demanda de amor precipita a demanda ao parceiro, que a acolhe. O abusador é levado ao tribunal e é condenado.

Na cena final, na última sessão, Odette enuncia seu desejo de ouvir da mãe uma palavra de acolhimento, um “eu sinto muito”. Entra novamente pela mesma porta do início e se “reencontra” com Odette menina, desenhando. Ela diz ter abandonado a menina que foi e a convida a seguir consigo resgatando o fio da vida: “Não sou uma morta-viva”. Se não pôde contar com a mãe, poderá contar consigo mesma.

 

Sair do nevoeiro: “Já falou com alguém?”

Ao final da primeira entrevista, a psicóloga diz que vai encaminhar Odette a um colega especializado: “a pessoa certa para ajudá-la”. Odette responde que é a primeira vez que falou sobre o que lhe aconteceu e que não vai falar com mais ninguém: “não sou de falar muito, eu danço”. Diante da terapeuta que quer encaminhá-la a um “especialista”, o sujeito recusa decididamente e a chama à responsabilidade pela escuta: “nunca falei antes com ninguém! Não vou falar com mais ninguém!”. A psicóloga também insiste no tratamento formal “para manter a distância”. Odette quer ser chamada pelo seu nome próprio. A psicóloga consente com a decisão do sujeito e assim se inicia o desenrolar das sessões, nas quais ela não conseguirá “se manter a distância”; pelo contrário, se faz presente, testemunha das rememorações, fantasias (no sentido de sonhos diurnos), construções, como também faz oposição ao risco em que Odette se coloca reiteradamente. Sua presença, fora de lugar e atrapalhada, ainda assim faz limite, o que permite ao sujeito dar contornos ao trauma. De certa forma dócil a se deixar ensinar pelo saber do sujeito, aceitando abandonar todo saber prévio, ela aposta na fala como terapêutica: “falar é o princípio da aceitação, do alívio da dor”.

Entendo que não se trata de se aferrar a esse efeito terapêutico da fala nem a seu oposto, de considerar que as palavras não são necessárias. Encontrei as duas vertentes nas críticas sobre o filme. Se há aquela que considera que a “narrativa inteira serve de preparação para a hora em que Andréa terá palavras para falar” (CARMELO,2018) e se decepciona com o recurso de encobrir a fala pela música e, ainda uma vez, pela dança, há, por outro lado, o elogio às

“escolhas artísticas das cenas do desfecho, pois opta por sensibilidade, pelo não dizer com palavras — estas não são necessárias. Odette não fala, Odette dança. Em cada movimento vemos sua história sendo expelida, as palavras que lhe foram roubadas, reprimidas, traduzidas na intensidade da sua arte” (TEISTER, 2019).

No que se refere ao “falar faz bem”, a prática da psicanálise esclarece que não se trata de qualquer palavra nem de qualquer jeito, pois, se as palavras parecem desnecessárias, isso se deve a que, do que se trata no trauma, estas são sempre inadequadas e insuficientes para dizer. As palavras faltam para dizer o real. Sabemos, com Freud e Lacan, que o encontro do sujeito com o sexo é traumático, é antes um desencontro, pois o fracasso é a regra. O silêncio é a marca do encontro com o real, Troumatisme, e não pode ser interpretado muito rapidamente.

“A prática da psicanálise ensina que não se trata de buscar o real como a verdade. A prática e a análise ensinam que é o real que nos encontra” (TARRAB, 2021) é o que Maurício Tarrab nos lembra perguntando “O que o sujeito encontra que há que fazer notar? O ponto de gozo da repetição”. Observa ainda que “fazer-se de buscadores da verdade, detetives do mistério do sofrimento sintomático”, diante do encontro com um impossível de curar, constitui uma nova ferocidade que “muitas vezes vem tomar o lugar da ferocidade curativa”. Também sabemos, com Lacan, que o sujeito não falará o trauma que é falado no sintoma. Do real, não se diz que é ininterpretável, indizível? Se o trauma se cala, o sintoma o repete e faz barulho. O que se pode, no après-coup, tentar apreender pela fala?

“Para o analista, não se trata de forçar que se diga tudo, tampouco de fazer uma promessa sobre o porvir. Trata-se de se oferecer como interlocutor, sustentando o que o sujeito possa dizer para circunscrever o acontecimento traumático na cena analítica” (URRIOLAGOITIA, 2020, p. 156).

Apesar de não esclarecida, algo da presença da psicóloga e pelo menos uma intervenção bastante precisa parecem ter operado e permitido ao sujeito circunscrever aquilo que toca o seu corpo. Recorto a cena em que a psicóloga vibra “porque está ficando mais concreto” (trata-se da narrativa não fantasiada de uma cena de abuso). Na sequência, Odette pergunta: “Por que ele continuava se estava claro que eu não gostava?”. A resposta é direta: “Porque é um estupro, vamos sair daqui”.

É uma forma de nomear que faz borda ao real, ainda que a orientação dada pela psicóloga seja de restabelecer a verdade e a fantasia seja tratada como uma fuga, como nas intervenções: “nos desviamos, vamos voltar” ou “vá devagar com o mundo da fantasia”. Em outro momento, ela admite que “contar na fantasia é um primeiro passo para contar na realidade”, mas sua referência segue sendo a verdade.

Vemos que o recurso à fantasia é decisivo para Odette. Na fantasia diz a seu amigo Manu: “Não consigo tirar isso da cabeça”. Ao que ele responde: “Então não tente! Conviva com isso (fais avec)! Uma lembrança não pode te comer viva! (em lugar de conviva com isso, podemos escutar: se arranje, se vire, faça alguma coisa com isso).

Questionando-me o que teria operado para que Odette saísse do silêncio que a mortificava, deparei-me com essa “autointerpretação”. Pensei que poderíamos aproximá-la do célebre aforisma “pode-se prescindir com a condição de servir-se (do Nome-do-Pai)”. Quanto a servir-se do pai, também em uma “lembrança fantasiada”, a menina apela ao pai para ensaiar um primeiro não ao abusador: “Meu pai vai chegar”.

Como fazer dessa lembrança que a assombra algo que vivifique seu corpo? Esse corpo agitado pela raiva (colère). Num workshop de dança, o professor diz que ela dança “sem técnica, mas com emoção. É o corpo de uma criança que sofre”, interpreta. “Sua dança é intensa, muito poderosa, mas você precisa sair do nevoeiro. Já falou com alguém? Não quer falar com alguém?”.

 

O que se confessa?

Para Serge Cottet (2014), há dificuldade na atualidade para defender a vigência da teoria freudiana do trauma, para a qual é necessário considerar a importância da presença do sexual na criança e que não haveria traumatizados se não houvesse satisfação associada. A criança a experimenta sem poder traduzi-la. O trauma é a marca indelével que fica, como um “eco na vida de uma primeira vez” (COTTET, 2014, p. 33). O fato de que a sociedade atual vê a criança como vítima potencial do adulto perverso não deixa espaço para incluir a satisfação própria da sexualidade infantil, reatualizada no segundo tempo do trauma.

A esse respeito, outra cena do filme é esclarecedora. Odette retorna de uma turnê — que lhe serviria para manter, segundo suas palavras, distância do passado ou para que o passado a esquecesse — devastada pelas drogas, pelas relações múltiplas e ocasionais e pela solidão. Na sessão, a psicóloga insiste: “faz bem falar sobre o que houve, confessar”. Ao que Odette responde: “confessar o quê, eu sou inocente!”. “Confessar não foi uma boa palavra. Revelar, contar a alguém”, corrige a psicóloga. Nesse diálogo temos mais uma “confusão de línguas”: a legenda traduz avouer (confessar) por contar, o que torna sem sentido a resposta “eu sou inocente”.

Para Odette, contar aos pais seria destruir a vida deles. Também não podia contar para o homem que ama que foi abusada quando criança, pois ele fugiria. “Já passou o tempo”, ela diz (de que tempo se trata? da sessão? da denúncia? da fala?).

Cabe perguntar, finalmente, a função e o efeito da apresentação da queixa e do julgamento (resposta do judiciário). Segundo Leclerc-Razavet (2020), a denúncia seria a chave do filme e tornar público possibilitou ao sujeito “sair da omertá, da vergonha, de uma posição de vítima, com a necessidade de elaborar sua própria resposta face a esse real que pode sempre ressurgir”.

Não se trata de esperar que a resolução do trauma seja a reparação outorgada pela justiça, mas de abrir o campo da responsabilidade através dela. O filme é fiel a seu tempo e se engaja na esteira do #metoo. O acusado é reincidente e é de outra vítima que se mostra o depoimento na cena do julgamento. No entanto, como nos lembra Clotilde Leguil (2017), “o sintoma não é formulado através de um (…) ‘nós, as vítimas’ (…). Ele se formula a partir de um eu remetido à própria opacidade (…) que escapa ao sentido comum”. O sujeito responde sozinho por ele.

É nesse sentido que Leclerc-Razavet (2020) conclui:

“Essa marca traumática de gozo deve ser ‘carregada’ pelo sujeito, uma vez reconhecida sua posição de vítima — um momento lógico inevitável. O que ele fará com isso? Isso é o que lhe pertence, para se afastar dessa posição de vítima, e assim recuperar seu desejo e seu orgulho”.

No julgamento, o abusador ainda declara: “Ela consentiu. Gostava, se oferecia. Eu deveria recusar? Não faz sentido”.

Se se poderia falar em consentimento nessa situação, seria de um consentimento, enfim, em dizer, em tornar público e sair do silêncio culpado de alguém que, em nome de preservar os pais, renovava a culpa, ainda que não tivesse, na ocasião dos abusos, os meios de dizer não. Leguil propõe o aforisma “ceder não é consentir”, que podemos parafrasear, em referência a um ditado bem conhecido, para sustentar que “calar não é consentir”, pois “o abuso é aqui o poder que faz calar o sujeito sem que ele o perceba” (LEGUIL, 2021).

O que se confessa, afinal? Hélène Bonnaud (2021) articula que

“Há, portanto, um gozo em calar-se que afeta a dominação do agressor, mas também a fala como segredo que mantém o pacto, tacitamente ou não. O segredo sela a relação do estuprador com a criança estuprada, uma condição ainda marcada pela culpa. Se então denunciar o segredo que protege o estuprador, permite não só liberar a palavra do segredo compartilhado, mas também da culpa ligada a ele. Sigilo e culpa formam uma parceria que aliena o sujeito ao Outro gozador, dando-lhe todo o poder e permitindo-lhe manter o vínculo perverso com seu objeto. (…) O segredo então traz muita depressão e culpa porque afeta a palavra que está aí, de fato, proibida e isso sob o pretexto de privacidade compartilhada”.

 

E o que diz a lei?[4]

A partir desses recortes, localizam-se os pontos de contato e os de separação entre psicanálise e direito. A interpretação jurídica, ao apontar para a responsabilidade do adulto, desresponsabiliza o sujeito (por seu gozo, ainda que de sua posição de vítima) sob o manto da incapacidade de discernimento, o que sinaliza a delicada posição em que a psicanálise se sustenta. Proponho que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo.

A reflexão sobre a sexuação das crianças, tema da recente Journée de l’enfant, na França, bem como a atualidade da questão trans, renova, para o direito, uma questão que gira em torno dos temas maioridade sexual, abuso de vulnerável, consentimento (referido à capacidade de discernimento) e prescrição. Temas que nos interessam diretamente em relação ao desfecho da ação judicial no filme que estamos comentando.

Deduz-se a maioridade sexual do limite de idade para a relação consentida com um menor de idade (os termos são da lei francesa): “com menos de quinze anos, o menor não está em condições de consentir em uma conduta sexual, ele será obrigatoriamente considerado como não consentindo” (FAYOL-NOIRETERRE, 2021). Considera-se a presunção de não-discernimento do estabelecimento desse limite. Cabia decisão do juiz sobre esse limite, que, para alguns, deveria ser obrigatório e não discutível. Essa modificação foi, de fato, incorporada à lei em abril de 2021.

Quanto à prescrição da punibilidade das infrações sexuais, contados a partir da maioridade da vítima, considerava-se o prazo de vinte anos para delitos e de trinta anos para crimes. O prazo é consideravelmente maior em relação aos demais crimes e ainda existe debate sobre a imprescritibilidade desses atos. Fayol-Noireterre considera que esse debate reflete uma sociedade “vitimária”, “onde as regras são definidas pelas supostas necessidades das vítimas de reconhecimento judicial, ou punição”. Esses prazos foram revistos e aumentados pela reforma de abril de 2021. E as punições, em sentido idêntico, tornaram-se mais duras[5].

Do filme, ecoa a questão: “a dor prescreve?”

 


Referências Bibliográficas:
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CARMELO, B. “A festa é minha, eu faço o que eu quiser”. 2018. Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-256702/criticas-adorocinema/. Acesso em: 05 mai. 2021.
COTTET, S. “Freud et l’actualité du trauma”. La Cause du désir. Paris: ECF, n° 86, 2014, pp. 27-33.
FAYOL-NOIRETERRE, J.-M. “Majorité sexuelle, consentement, prescription”. 2021. Disponível em: https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/majorite-sexuelle-consentement-prescription/. Acesso em: 03 mai. 2021.
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LACAN, J. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LECLERC-RAZAVET, E. “Les chatouilles ou la danse de la colère”. Lacan Quotidien 867. 2020. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2020/02/LQ-867.pdf. Acesso em: 03 mai. 2021.
LEGUIL, C. “Ilusão do nós, verdade do Eu (Je): abordagem lacaniana da identidade”. Opção lacaniana online n. 22. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_22/Ilusao_do_nos_verdade_do_eu_(je).pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
LEGUIL, C. “Le consentement au nom de La familia grande.” In: Lacan Quotidien 910. 2021. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/01/LQ-910.pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
MILLER, J.-A. O ser e o Um. Curso de Orientação Lacaniana, 2011. Inédito.
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TARRAB, M. “Comentário sobre ‘A psicose e a máquina de interpretar’ em Belo Horizonte”. Almanaque online, Belo Horizonte, IPSMMG, n. 27, 2021.
TEISTER, T. “Inocência roubada: viagem dentro do trauma e da dor”. 2019. Disponível em: https://cinemacomrapadura.com.br/criticas/561915/critica-inocencia-roubada-2018-viagem-dentro-do-trauma-e-da-dor/Acesso em: 05 mai. 2021.
URRIOLAGOITIA, G. “O sonho traumático e a tiquêScilicet: O Sonho – sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. São Paulo: EBP, 2020, p. 155-156.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito do IPSMMG, em 14/05/2021.
[2] Agradeço a Ludmilla Féres Faria a lembrança dessa citação de Lacan.
[3] Essa tradução, como as demais de referências em francês, foi feita por mim.
[4] Recolhi algumas informações sobre a legislação francesa, no que se refere às infrações sexuais, no boletim eletrônico da jornada citada, publicado em 21 de janeiro, em artigo de autoria de Jean-Marie Fayol-Noireterre, magistrado. A lei francesa foi modificada em abril de 2021. Agradeço a José Xavier, advogado em Belo Horizonte, pela pesquisa sobre a legislação, bem como pela participação e esclarecimentos apresentados na discussão desse comentário na atividade do Núcleo de Psicanálise e Direito.
[5] O entendimento transmitido por José Xavier consoa com o comentário de J.-A. Miller quanto à docilidade do legislador ao clamor público. Se, por um lado, a extensão dos prazos de punibilidade é um avanço ao incluir a consideração do tempo subjetivo e ênfase na função reparadora da justiça, o endurecimento das penas responde mais a um anseio popular por vingança, acentuando, então, a função retributiva da justiça.



POR QUE AS MÃES DE HOJE NÃO INTERPRETAM?[1]

MARGARET PIRES DO COUTO
Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Aderente da Seção Minas Gerais da EBP
coutomargaret@gmail.com

Resumo: Neste artigo, investigam-se os embaraços dos pais, especialmente do Outro materno, em traduzir o mal-estar das crianças, o que os leva a recorrer cada vez mais ao saber da ciência por meio dos inúmeros especialistas da criança. Partindo da premissa que uma primeira interpretação é fundante do sujeito e que a dificuldade em interpretar a criança responde à inexistência do Outro, discute-se como o discurso analítico instala o Outro retirando a criança da solidão de seu gozo. Com essa operação de restituição do S2, a cadeia significante se produz com importantes efeitos de mobilidade para criança.

Palavras-chave: Criança, Outro, interpretação

WHY MOTHERS OF TODAY DO NOT INTERPRET?

Abstract: This essay investigates the difficulties of parents, especially the maternal Other, in translating the malaise of children, which leads them to increasingly resort to the knowledge of science through the countless child specialists. Starting from the premise that a first interpretation is the founder of the subject and that the difficulty of interpreting the child responds to the inexistence of the Other, we discuss how the analytic discourse settles the Other, removing the child from the solitude of its jouissance. With this restitution of the S2, the signifier chain is produced with important mobility effects for the child.

Keywords: Children, Other, Interpretation.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

O título proposto para nossa mesa de hoje me remeteu imediatamente às inúmeras situações encontradas de forma cada vez mais frequente em nossa clínica com crianças: a dificuldade dos pais, especialmente do Outro materno, de traduzir o mal-estar das crianças. Embaraçadas diante das crianças e das demandas surgidas, as mães recorrem cada vez mais ao saber dos especialistas e ao Dr. Google, ou seja, lançam mão de um saber universal e anônimo que dispensa o saber inconsciente.

Como ler esses embaraços, cada vez mais frequentes, no trabalho de interpretação da criança? Minha hipótese é que essa dificuldade responde à inexistência do Outro[2].

 

A inexistência do Outro e a criança não interpretada

Ao longo do ensino de Lacan, passamos da apresentação do Outro como um campo simbólico, responsável pela inserção do sujeito na linguagem para sua inexistência. O Outro é um lugar de determinação onde o sujeito “se reconhece e se faz reconhecer” (LACAN, 1955-56/1998, p. 193).

Por meio da análise do fenômeno do chiste, Lacan evidenciará como o Outro funciona como um terceiro que autentica o sentido e a presença de um sujeito desejante. A partir do momento em que se endereça a alguém, existe um Outro, não como uma pessoa, mas como um lugar, como sede do código e da Lei. Trata-se da existência do Outro do Outro e da crença no significante do Nome-do-Pai como aquele que funda a existência da Lei, que ordena a linguagem e instaura uma ordem simbólica (LACAN, 1957-1958/1999).

No Seminário 6 (1958-1959), Lacan revelará o grande segredo da psicanálise ao lançar sua fórmula “Não há Outro do Outro”. Indica que ao Outro falta um significante que possa responder ao sujeito sobre seu ser e sua essência de verdade.

Essa fórmula será retomada no Seminário 16 (1968-1969), quando Lacan inscreve a relação da inconsistência do Outro por meio da elaboração do objeto que poderá ser dele extraído.

Apesar de, por muito tempo, a psicanálise ter enfatizado a exploração do Outro como tesouro do significante e lugar da verdade, Lacan proporá, a partir do Seminário 20 (1972-1973), uma báscula decisiva com o tema da substância gozante. Define o gozo como uma espécie de fundo informe que pode inclusive transbordar. Trata-se de um gozo impossível de ser negativado pela operação da castração que perturba e afeta o corpo.

Importantes reformulações conceituais serão operadas no ensino de Lacan ao dar primazia ao gozo, entre eles, o conceito de falasser. A principal consequência do conceito de falasser é esclarecer que o sujeito surge não da relação com o significante, como definido em seu primeiro ensino, mas da relação indizível com o gozo. Se o sujeito surge de uma relação com o gozo indizível, não podemos escrevê-lo de saída. Há, desse modo, dois tempos distintos da produção de um sujeito: o da relação com o gozo e o da relação com o Outro (MILLER, 2008).

Da mesma forma que não há sujeito prévio, não há um Outro que existe a priori. O prévio e o absoluto estão localizados do lado do gozo. O gozo provém do Um e não estabelece relação com o Outro. Desse modo, a inexistência do Outro nos conduzirá à consistência do gozo e à existência do Um totalmente só. “O Outro que não existe, quer dizer exatamente que o Um existe. O Outro que não existe é uma outra maneira de dizer o que Lacan lançou como uma jaculação: Yad’l’Un (Há o Um)” (MILLER, 2011, p. 139).

“Sem dúvida, Lacan começou por ordenar a experiência analítica pelo campo do Outro, mas para demonstrar em seguida que, definitivamente, esse Outro não existe (…). O que existe é o Um-sozinho.

O Um-sozinho uma análise começa por aí: quando alguém não tem nenhum outro recurso senão confessar-se exilado, deslocado, indisposto, em desequilíbrio no cerne do discurso do Outro. E é para buscar na análise um ‘outro’ Outro, um Outro que alguém tem o prazer de inventar à sua medida, um Outro suposto saber o que atormenta o Um-sozinho” (MILLER, 2013, p. 14).

Como interpretar a criança em uma época em que o lugar do Outro como o lugar do código, lugar da garantia da significação, inexiste? Daniel Roy (2015) afirma que o problema se complica pelo fato que o Outro, ele mesmo, em suas encarnações, se encontra infiltrado pelas manifestações de gozo em excesso e sem recursos para fazer face a ele. Daí a urgência em dizer como e por quais vias eles interpretam a criança.

A criança é quem interpreta o mundo, e, ao mesmo tempo, ela é interpretada, afirma Miller (2016). É por meio do código do Outro que se dominam e se neutralizam as necessidades, operação que permite que aquilo que era do campo da necessidade se transforme em demanda inaugurando também um circuito de linguagem. Assim, uma primeira interpretação da criança é fundante de um sujeito. Essa interpretação viabiliza a constituição subjetiva em sua relação com um desejo não anônimo (LACAN, 1969).

 

A interpretação em sua vertente criacionista e o discurso analítico

Para Laurent (2017), Lacan se opõe à definição de um desejo inconsciente que já existiria previamente, bem como se opõe à noção de interpretação como uma linguagem que o decifraria colocando-o à vista. Um inconsciente não é uma coisa dada. Ele aparece ao longo da prática da psicanálise, que torna possível o surgimento desse inconsciente inseparável do seu dito interpretativo. O discurso analítico transporta com ele o lugar do Outro. Ao instalar e dar função ao Outro, permite-se a tradução e a substituição da criança-objeto do discurso social ou familiar pela criança-sujeito de sua própria tomada de palavra.

Desse modo, o analista se encontra em posição de validar o código do Outro, validar as regras. Na clínica com crianças, o analista é um instrumento que toma iniciativas, como uma espécie de GPS que permite a localização para cada falasser de sua posição subjetiva (MILLER, 2016).

A instalação do lugar do Outro, bem como a extração do sujeito, foi o efeito percebido na interpretação de uma criança em tratamento. Com a queixa de problemas na escola, fruto de sua desorganização e dispersão, Sávio chega ao tratamento sem que os pais estranhassem qualquer coisa no comportamento do filho. Eles nada têm a dizer sobre o garoto, o que indica a pobreza simbólica em torno dessa criança. As entrevistas iniciais com os pais giram em torno dos problemas do casal, especialmente as situações de violência e ameaças. Tomados pelo próprio gozo, nada de interpretação do sofrimento da criança pode ser colhido nesses encontros. Um esboço de interpretação surge do lado de uma amiga da família, que, ancorada no saber psicológico e psicopatológico, busca traduzir o sofrimento de Sávio com o diagnóstico de autismo e, assim, solicita o atendimento da criança. Na sessão com a criança, ela me diz que fica “conversando com vozes, com pensamentos que ficam dentro da minha cabeça” e que isso lhe deixava muito triste. Pensando em retirá-lo disso que considerei um monólogo, digo-lhe: “Então, a partir de agora, você pode falar comigo”. A partir desse momento, conversamos sobre seus jogos eletrônicos preferidos e ele pode apresentar seu saber e suas habilidades em construir estratégias de sobrevivência diante do invasor. Sávio vai tomando gosto pela palavra e uma conversação se instala entre nós. Relata que as vozes permanecem, mas não têm mais afetado seu corpo nem causado tristeza.

O monólogo com as vozes/pensamentos a que Sávio estava submerso representava um índice de uma criança sem o Outro. Em “O monólogo da aparola”, Miller (2012) discute como que no nível da aparola não há diálogo, não há comunicação, há autismo. Não existe aí o Outro com maiúscula. A aparola não tem por princípio o querer-dizer ao Outro ou a partir do Outro. A aparola é no que se transforma a fala quando é dominada pela pulsão, quando ela não garante a comunicação, mas o gozo.

Nesse mesmo texto, Miller (2012) indica que é preciso um limite ao monólogo autista do gozo. Sendo assim, a interpretação analítica limita, faz limite e, por isso, se situa mais como uma contenção do que como um relançamento. Teria sido esse um dos efeitos da interpretação no caso de Sávio, uma contenção a esse gozo que parasitava seus pensamentos e seu corpo?

As vozes que perturbavam Sávio revelam a dimensão parasita da linguagem que produz nessa criança um mutismo. O último ensino de Lacan permite considerar que o significante sozinho, tomado como um fenômeno elementar, se impõe ao sujeito e testemunha os fenômenos de gozo e seus efeitos no corpo. O fenômeno elementar evidencia, de forma particularmente pura, a presença do significante sozinho, suspenso, na espera de outro significante para lhe dar sentido. O automatismo mental torna manifesto a xenopatia fundamental da palavra e o estado original da relação do sujeito com alíngua, ou seja, a dimensão parasita da linguagem, que parasita o corpo com um gozo intrusivo e transbordante (MILLER, 1996).

Lacan, no capítulo “Joyce e as falas impostas”, no Seminário 23: o sinthoma ([1975-1976] 2007), afirma sobre esse parasitismo:

“Como é que todos nós não sentimos que as palavras das quais dependemos são, de algum modo impostas?

É justamente por isso que o que chamamos de doente vai algumas vezes mais longe do que o que designamos como um homem saudável. A questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido. Como pode haver quem chegue inclusive a senti-lo?” (LACAN, 1975, p. 92).

 

A interpretação como a instalação de um Outro e extração do sujeito

O caso de Sávio nos ensina que a invenção, mínima que seja, do campo do Outro, por meio da extração do gozo em excesso, permite ao falasser um pouco mais de mobilidade e menos petrificação em uma determinada posição. Sendo assim, diante da inexistência do Outro, é necessário inventar um Outro que possibilite retirar o ser falante da solidão de seu gozo.

O Outro, não sendo prévio, é um lugar produzido por meio do apagamento do Um original. De acordo com Miller (2011), a fórmula de Lacan indica que o Outro é “Um em menos”, ou seja, é somente com o apagamento do Um que se torna possível a constituição do lugar do Outro e a produção da cadeia significante. Sendo assim, na análise, busca-se restituir o dois, acrescentando ao Um sozinho o S2 que lhe permitirá, ao produzir a cadeia, fazer sentido e, posteriormente, se deparar com aquilo que não muda, insiste e itera (MILLER, 2011).

 


Referências Bibliográficas:
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1955-1956) O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
LACAN, J. (1957-1958) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. (1969) “Nota sobre a criança”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 369-370.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1968-1969) O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1958-1959) O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
LAURENT, É. “A interpretação ordinária”. In: Arteira. Revista de Psicanálise n.09, 2017. pp. 11-26.
MILLER, J.-A. “A interpretação pelo avesso”. Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, n.15, 1996. pp. 96-99.
MILLER, Jacques-Alain. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
MILLER, J.-A.  “A invenção psicótica”. Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 36, 2003. P. 6-16.
MILLER, J.-A. “Uma leitura do Seminário: de um Outro ao outro”. Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 51, 2008. pp. 9-41.
MILLER, J.-A. O ser e o Um, 2011. Inédito.
MILLER, J.-A. “Monólogo da aparola”. Opção Lacaniana on line, n. 9, 2012. pp. 1-25 Disponível em:    http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_9/O_monologo_da_aparola.pdf
Acesso em março de 2021.
MILLER, J.-A. “Falar com seu corpo”. Opção LacanianaSão Paulo: Eolia, n. 66, 2013. pp. 11-17.
MILLER, J.-A. “Interpretar a criança”. In: Opção Lacaniana, número 72, 2016. pp. 13-19.
MILLER, J.-A.; LAURENT, É. (1996) El Outro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
ROY, D. “Introduction. Énigme et Défi”. In: Interpréter l’enfant. Paris: Navarin Éditeur, 2015. pp. 7-12.

[1]Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças em 19 de maio de 2021.
[2] A tese da inexistência do Outro foi discutida por Jacques Allain Miller e Éric Laurent no seminário El Otro que no existe y sus comités de ética ([1996] 2005).



A INTERPRETAÇÃO ENTRE A ESCUTA E O QUE SE LÊ [1] 

TEREZA FACURY
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG |
terezafacury@gmail.com

Resumo: A autora elege o texto de Miller “Ler um sintoma” para abordar o tema da interpretação. A leitura de um sintoma implica em uma defasagem entre a escuta e a leitura que se faz sobre o dito do sujeito. Para esclarecer essa diferença, aborda um caso relatado por Guilherme Ribeiro no Núcleo de Psicanálise e Medicina e o testemunho de passe de Gustavo Stiglitz: “Aqui hay gato encerrado. Sobre el fenômeno psicossomático”.

Palavras-chave: Escuta, leitura do sintoma, interpretação.

INTERPRETATION BETWEEN LISTENING AND READING

Abstract: The author chooses Miller’s text “Reading a symptom” to address the theme of interpretation. The reading of a symptom implies a gap between listening and reading of what the subject says. It also discusses a clinical case presented by Guilherme Ribeiro and Gustavo Stiglitz’s pass testimony “Here there is a closed cat. About the psychosomatic phenomenon”.

Keywords: listening; reading a symptom; interpretation.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Araceli Fuentes (2012), em seu texto “O fenômeno psicossomático e o sintoma: diagnóstico diferencial”, toca em um ponto que considero fundamental. Ela se refere ao fato de que nós, psicanalistas interessados pela psicossomática, nos encontramos em um campo limite tanto para a psicanálise como para a medicina. E nós só podemos abordar esse terreno limite, esse campo limite, por meio do discurso analítico. O que nem sempre é fácil.

Retomo Lacan no texto “Psicanálise e medicina”, citado por Fuentes (2012, p. 1):

“O lugar da psicanálise na medicina é extraterritorial devido tanto aos médicos como aos psicanalistas. A questão do gozo do corpo é contígua às duas disciplinas.

Se a medicina negligencia a incidência do gozo no corpo ela desaparece nas tecnociências. Isto se ela não se esclarece pela psicanálise, existe essa possibilidade. Inversamente, se os psicanalistas não se preocupam por este campo do real, que seremos então, senão psicanalistas medrosos?”[2]

Nós não dispomos de outro meio que não a palavra para abordar um fenômeno que mantém com ela uma relação que pode ser de exclusão ou de borda. A nossa aposta é não confundir o fenômeno psicossomático (FPS) com o sintoma somático; é manter aberta essa hiância e investigar de que se trata a especificidade do FPS.

O ponto de partida da psicanálise é a palavra e, conforme nos diz Miller (2016), o psicanalista está invadido pelas criações, pelas criaturas da palavra. O que distingue a psicanálise de outras práticas terapêuticas que também trabalham com a palavra é o bem-dizer, próprio da psicanálise, que se funda no saber ler que, por sua vez, completa o bem-dizer. Não são nada um sem o outro.

Bom, deixemos de lado a questão do diagnóstico diferencial entre o sintoma e o FPS para nos determos no sintoma. Miller (2016) tenta nos aproximar do que ele chama de ler um sintoma. Enfatizar a questão da leitura em relação à escuta subverte a prática analítica que faz uso da palavra, mas também cria uma distância entre falar e escrever. A psicanálise opera a partir dessa distância entre escuta e leitura, uma do lado do sentido, outra do lado do sem sentido. É o próprio funcionamento da interpretação que se modifica com a passagem da escuta do sentido à leitura do fora do sentido.

Podemos pensar essa distância como o espaço que determina um entre, entre a escuta e a leitura do sintoma? Foi assim que fui remetida a outros “entre”, como psicanálise e medicina, S1 e S2, sintoma e fenômeno psicossomático, etc…

Lacan (1975/1998) responde a uma pergunta que lhe foi feita, durante sua Conferência em Genebra sobre o sintoma, quanto à posição do paciente psicossomático em relação ao acesso ao simbólico. Ele responde que se trata de um domínio pouco explorado, mas que é algo da ordem do escrito e que, em muitos casos, não sabemos lê-lo. Tudo se passa como se algo estivesse escrito no corpo. Por isso meu interesse em trazer este texto hoje para discutir com vocês.

É de uma hiância que estamos falando, de um limite, um limite da estrutura e, portanto, de um incurável, tal como Freud nomeou os restos sintomáticos em uma análise. Há um x que resta mais além da interpretação freudiana do sentido inconsciente dos sintomas, e Freud tentou se apropriar disso de diversas maneiras. Colocou em jogo a reação terapêutica negativa, a pulsão de morte, até dizer que o final de análise deixa sempre subsistir os restos sintomáticos.

Na prática lacaniana, nós lidamos com a confrontação do sujeito com esses restos sintomáticos. Trata-se de fazer um novo arranjo com elesporém, não sem antes passar pela decifração do sintoma. Com os restos sintomáticos, Freud se deparou também com o real do sintoma, o que, no sintoma, é fora de sentido. Importante dizer que Freud ainda caracterizou o sintoma a partir do que ele chamava satisfação pulsional, “como o signo e o substituto de uma satisfação pulsional que não ocorreu” (FREUD, 1926-1976, p.112), ou seja, algo que não se limitava às lembranças do sujeito.

Lacan substituiu o aparato de interpretar de Freud, o ternário edípico e sua produção de sentido a partir do sintoma, por um ternário que não produz sentido, o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Por isso, ler um sintoma vai em direção oposta à produção de sentido; consiste, portanto, em privar o sintoma de sentido.

A interpretação como “ler de outro modo” necessita do apoio da escrita, isto é, a referência a que os sons emitidos podem se escrever de modo distinto ao que se quis. A interpretação supõe a transmutação da fala em escrita. Pensemos na homofonia: é impossível jogar com a homofonia sem se referir à ortografia, ela só é possível se o que se pronuncia da mesma forma se escreve de modo diferente. Ler de outro modo não é automático, muito menos a verdade; pelo contrário, tem algo de arbitrário e aleatório.

Miller (2016) lembra que Lacan realizou a demonstração do que se trata na escrita ao mostrar que a imagem onírica retida por Freud tem valor de significante despojado de significação. Ele pode distinguir isso quando Freud afirma que o sonho se lê como enigma, o que equivale a dizer que a imagem não vale como figura nem como pantomima, mas sim como letra — “esta parece ser apenas outro nome do significante, o nome deste quando se separa da significação e que está aí, besta como tudo” (MILLER, 2012, p.10). Ainda conforme Miller (2016), Lacan atribui um único predicado para todos os significantes, a besteira. “O significante é besta, porque o significado, todas as significações estando alhures, fica aí sem ter muito o que dizer dele mesmo” (Ibid.).

Um exemplo interessante que Miller (2016) nos oferece, no texto “O escrito na fala”, se refere à experiência de uma criança narrada por Michel Leiris no livro A regra do jogo. É uma criança que brinca com pequenos soldados e, quando um soldadinho cai e deveria se quebrar, não se quebra. Essa criança, que não lia nem escrevia, expressa o seu contentamento exclamando “Flismente![3]”. Corrigem-no: “É felizmente que se diz”. A criança pensava que era assim que se dizia quando algo dava certo, “flismente”, no qual se descobre a alegria, o contentamento e mesmo o júbilo em função do soldadinho que, ao cair com a espada, o fuzil não se quebra. “Flismente” é uma jaculação. “A jaculação é um gozo que encontra um significante adequado”, nos diz Miller (2016). Uma iluminação, uma explosão de verdade e um ponto muito importante: a meu ver, um “dilaceramento de um véu”. A regra do jogo é a necessidade de falar igual a todos, e o autor se interroga: “O que são as palavras apreendidas apenas com a audição?”. Tenta capturar lalíngua antes de ler e escrever. Ele nos fornece um ensaio de descrição do modo do ser falante na linguagem, justamente anterior ao alfabeto, antes que o sujeito se “alfabestice” (s’alphabêtisse), uma referência a Lacan no posfácio do Seminário 11.

Michel Leiris se refere às canções aprendidas quando somos crianças, nas quais há um jogo entre a música e a fala e evocam aí o mundo povoado, pelo efeito dos nomes, dos objetos fantasísticos que só existem pelos mal-entendidos na audição. Lalíngua é o que fará a linguagem através da escrita que encontramos como tal, sujeita ao equívoco, definível pelos equívocos que ela permite.

As cadeias significantes nas quais o sintoma está enlaçado não são de sentido, mas de sentido gozado. Escrevem-se como quiserem, porém, em consonância ao equívoco que faz a lei do significante. São cadeias significantes feitas de gozo com o equívoco que aparece quando se tenta escrever o que é dito. É um equívoco que se manifesta na diferença entre o oral e o escrito.

Segundo Laurent:

“A letra é perturbação lógica e a escrita para Lacan é o sistema de notação das perturbações da língua, do fato de que a língua escapa à linguagem, e que há sempre, no que diz, o que fica reservado, o que não chega a se dizer e que, no entanto, se escuta. A escrita permite levar isso em conta. Se ela parece mais propícia a dizer o íntimo, não é porque é primeira, mas sim porque pode notar o indizível” (2016, p. 127).

Trata-se menos de mostrar alguma coisa do que de uma ausência, que é de estrutura: o impossível de dizer.

Pensei em trazer os pontos que nos interessam do depoimento de passe de Gustavo Stiglitz para que possamos discuti-lo em paralelo ao caso que Guilherme Ribeiro nos apresenta. Trata-se nos dois casos de um sintoma relacionado às crises de asma e bronquite, fenômenos muito frequentes na clínica que exigem, na maior parte dos casos, uma intervenção médica e também de um psicanalista.

Ribeiro nos apresenta, logo de início, o seu embaraço ao se referir ao fenômeno psicossomático e sua dissolução. Fiquei me perguntando de que embaraço se trata e pensei que era desse mesmo embaraço sobre o qual falei no início do texto. Pensei que esse significante embaraço condensa um sentido e se aplica muito bem nesse campo tanto para nós, enquanto psicanalistas — quando lidamos com essas encruzilhadas, muitas vezes teóricas, na definição desses termos —, como para denunciar o embaraço de todo falasser nessa articulação do significante com o corpo. Mas o mais interessante é que, “independente do sofrimento no corpo ter ou não uma causa puramente física, desde que o falasser demanda, ele o faz a partir do campo da palavra, ele o faz com significantes. Portanto, esse sofrimento está relacionado à incidência da linguagem no corpo do falasser”, nos diz Guilherme Ribeiro[4].

G. faz uma demanda de atendimento a Ribeiro, inicialmente como psiquiatra, para tratar uma angústia intensa acompanhada de falta de ar, que o impedia de viajar de ônibus quando ia visitar seu pai em outra cidade. Viajar para ver o pai significava deixar sua mãe, por quem ele se sentia responsável desde que ela se separara de seu pai — o que nos leva a perguntar também o que se passa com ele diante da possibilidade do encontro com o pai. Parece-me que, tanto ao lado do pai como ao lado da mãe, ele fica muito desconfortável. Assim como ele fica quando frequenta a família da namorada. Sabemos, pelo relato de Ribeiro, que a mãe não o autorizava frequentar lugares aos quais ele não pertencia — uma fala frequente da mãe. Não sair do domínio materno! É dessa forma que a mãe dava lugar a ele no seu desejo, desde que ele não saísse do seu domínio.

Em uma sessão surge o significante acatar e o analista intervém escandindo-o  a…catar…ar. Ao promover esse desarranjo com a escrita do significante, a palavra que estava congelada em um sentido fixo pode ressoar de outras formas, mesmo que não saibamos como isso se deu, pois, como Ribeiro mesmo disse, o sujeito não faz nenhum comentário sobre isso, porém, não foi sem efeitos.

Em seu testemunho, Stiglitz (2011) se propõe a abordar um incurável, não exatamente do sintoma, mas de uma de suas arestas. Ele se refere ao fenômeno psicossomático tomado por ele como campo de investigação sobre o S1; a como se enodam significante e corpo, uma vez que, no fenômeno psicossomático, um ponto de falta dá conta dos impasses da incorporação da estrutura.

No relato de Stiglitz, podemos fazer um recorte do caso em sua dupla vertente: a primeira, da articulação significante, em que, a partir da cadeia S1-S2, articula-se um sentido no qual o sintoma se ancora; e a outra vertente, a da leitura do seu sintoma guiado não mais pelo sentido, mas pela literalidade do significante.

Na primeira infância, a asma, entre lembrança encobridora e novela familiar, que não produzia angústia, e sim satisfação de saber-se cuidado.

A asma cede e a lembrança desaparece até a irrupção do efeito psicossomático da rinite na segunda década da vida. A asma fica reduzida à marca de impasse no enlaçamento do gozo e o significante. Trata-se aqui de um significante congelado, de uma fixação de um significante incapaz de localizar o sujeito, pois não é feito de recalque.

Outro fenômeno ligado ao corpo foi a hipocondria, tomado por ele “como delírio de S2”. Falar de pensamentos sobre as doenças velava as dificuldades com o corpo próprio e as voltas para abordar o corpo do Outro sexo.

Ele chama de tempo 1 o tempo compreendido entre a asma e o efeito psicossomático da rinite e de tempo 2 o sentido hipocondríaco em que ele fala da hipocondria como um delírio de S2. Por que delírio de S2? Na ausência de uma articulação significante entre S1-S2 que produzisse um sentido, onde seria possível localizar o sujeito (metáfora do sujeito), o sentido hipocondríaco delirante se apresenta como saída para o impasse. Dessa forma, o S2 é reintroduzido sob a forma da inércia do sentido fantasmático de morte.

Anos mais tarde, em uma visita a sua família, a irrupção de uma rinite alérgica em função de pelos de gato — o gato amado e alergênico, algo familiar que se torna estranho e molesto. Esse fenômeno passa a fazer parte da sua vida e da sua economia libidinal tornando-se causa do seu sofrimento.

Em outra situação, outro país, um gato negro passa por cima do seu corpo na cama. Era certo de que perderia o sono, mas o que surge é um significante “Schartze cutter”, em ídiche, “gato negro”, apelido do pai, um nome comum com valor de nome próprio. Dessa forma, se ligam o fenômeno e o pai em sua envergadura e função. O fenômeno se alojava na falha do laço e da função, mas só teve estatuto de sintoma com a aparição do gato negro, nesse caso, uma fobia. Agora existia algo, algo podia fazer ponte entre o corpo e o significante do nome próprio do pai. O gato, enquanto figura imaginária, conectava o S1 (Schartze cutter) com a parte do corpo afetada. O gato e a fobia fazem borda, índice de que a pulsão está em jogo.

Com a entrada do schartze cutter na análise, abre-se uma perspectiva para além do imaginário. Até aqui ainda estamos na vertente da interpretação pelo sentido, ou melhor, de uma construção de sentido que finalmente permite uma articulação significante e permite também ao sujeito se localizar.

O analista questiona a interpretação de Stiglitz de que a expressão schartze cutter significava gato negro e o convida para ir ao dicionário. E o resultado foi Schartze: negro; Cutter: corte; Katter: gato.

Uma intervenção que aponta ao real, de uma letra a outra, de um escrito ao outro e um passo de sentido. Gato negro transformou-se em corte negro; desaparece a figura imaginária do gato e um vazio toma seu lugar.

Entre gato e corte existe um espaço para que o sujeito apareça no lugar do efeito psicossomático. Agora era possível interpretar e o inconsciente trabalhar. A rinite deixou de ser um hieróglifo que estava ali para mostrar algo — uma falha — para não ser lido. O desejo do analista, tal como Champolion no deserto, introduz um vazio, um intervalo, que será a condição de possibilidade de uma nova escrita, dessa vez, para ser lida, decifrada e reduzida. Ele diz: “Era questão de cernir o truque de sentido pelo qual se poderia ir mais além do sentido fixado, ou melhor, do fora de sentido do qual padecia meu nariz com seu gozo desregulado” (STIGLITZ, 2011, s/p).

Com a introdução do S2, “corte”, foi inaugurada uma cadeia significante que inscreveu um circuito pulsional ligado ao olhar. A mulher, o pai e a mãe participavam desse circuito. O olhar melancólico da mãe que o fazia dormir, olhar o pai enquanto ideal ou rival e fazer-se olhar por ele, e olhar e fazer-se olhar pelas mulheres. Gato designa tanto o pai como o olhar “felina”, feminina.

O trabalho com o inconsciente é relatado por Stiglitz a partir de dois sonhos. Um deles nos interessa especialmente. Uma frase escrita no ar: “ud. Es um delinquente”. Delinquente era como o pai nomeava a alteridade, ou seja, aquilo do qual ele não compartilhava, porém, o filho sim. E as letras u-d, que faziam ali, é a pergunta do analista. Em associação, Stiglitz responde: “um e dois”, “um e outro”. Acontece o corte de sessão justamente no ponto em que a imagem escreve a separação e o sujeito toma distância do “Um do Ideal”. A operação analítica reinventou o inconsciente como tratamento de uma fixação de gozo enraizado no imaginário, tal como Lacan se expressa na Conferência em Genebra sobre o sintoma.

Shartze cutter marca um limite na incorporação da estrutura da linguagem ao mesmo tempo como aquilo que o pai transmite e faz barreira à mãe, mas nem todo gozo foi evacuado do corpo (Katter).

À sua própria pergunta, sobre o lugar que o efeito psicossomático tem agora com relação ao enodamento RSI, ele responde conferindo ao efeito psicossomático um marco, monumento que comemora a “epopeia singular” de fazer o nó.

Miller, no “Ultimíssimo Lacan” (2014), nos fala que, com a teoria dos nós, a direção é o dar voltas, e dar voltas tem uma estrutura, mesmo que não se trate de uma estrutura linguística. E, referindo-se às demonstrações que Lacan faz com os “objetos matemáticos”, os quais ele usa nesse momento de seu ensino, afirma que “as coisas” sabem se comportar. Nesse sentido, as tentativas topológicas de Lacan são figurações de que o analista corta. Figurações pelo corte, uma vez que tem o poder de mudar a estrutura das coisas. Aqui, não é a palavra que faz as coisas, é o corte o que muda a estrutura dos objetos representados. Com certeza, esse ponto nos ajuda a compreender melhor do que se trata nessa mudança da interpretação do sentido ao sem sentido.

 


Referências Bibliográficas:
FUENTES, A. El Fenómeno Psicosomático y el Sintoma: el dianóstico. Disponível em: http://nucep.com.referencias/El fenomeno psicosomatico.htm. Acesso em 10/2010.
LACAN, J. (1966) “O lugar da psicanálise na medicina”. InOpção Lacaniana, 32, 2001, p. 8-14.
LAURENT, É. “O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo”. InOpção Lacaniana n. 13, Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 27.
MILLER, J. A. “A volatização da Fixierung freudiana”. InSilet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 188.
MILLER, J. A. “O escrito na fala”. 2012. Disponível em: https://www.opcaolacaniana.com.br. Acesso em 04/2021.
MILLER, J. A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014.
MILLER, J. A. “Ler um sintoma”, 2016. Disponível em: www.lacan21.com. Acesso em 04/2021.
STIGLITZ, G. “Aqui hay gato encerrado: sobre el fenômeno psicossomático”. InFreudiana: Revista Psicoanalítica publicada em Barcelona bajo los auspícios de la Escuela Lacaniana de Psicoanalisis. n. 61. Barcelona. 2011. Acesso em 04/2021. Disponível em https://freudiana.com.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Medicina no dia 16/04/2021
[2] Tradução nossa.
[3] A criança exclama, em francês, “reusement” (traduzido para o português como “flismente”), quando deveria pronunciar “heureusement” (felizmente).
[4] Psicanalista, membro da EBP/AMP.



O QUE CABE AO ANALISTA NA INTERPRETAÇÃO HOJE?

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA
Psicóloga e psicanalista, doutora em Psicologia (UFMG)
silveira.rosangela@uol.com.br

Resumo: Este texto trata do lugar que ocupa a interpretação hoje na clínica psicanalítica a partir do último ensino de Lacan. Busca-se elucidar os deslocamentos teóricos-clínicos produzidos na prática da interpretação. Da escuta do sentido do sintoma à leitura do fora de sentido, destaca-se que a interpretação opera entre o ser da falta e a fixidez do gozo, entre o saber ler e o bem-dizer do sintoma. Assim, espera-se que do encontro com o analista possam advir saídas para o sujeito lidar com o que é da ordem de seu mal-estar.

Palavras-chave: psicanálise, interpretação, clínica.

what is the analyst’s role in interpretation today?

Abstract: This text deals with the place that interpretation occupies today in the psychoanalytic clinic from the last teaching of Lacan. This study seeks to elucidate the theoretical-clinical displacements produced in the practice of interpretation. From the listening of symptom sense to reading of what is out of sense, it is highlighted that interpretation operates between the being of lack and the fixity of jouissance, between knowing how to read and the well-spoken of the symptom. Thus, it is expected that the meeting with the analyst may provide solutions for the subject to deal with what is related to his inquietude.

Keywords: psychoanalysis, interpretation, practice.

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

As mudanças operadas na clínica psicanalítica a partir dos desdobramentos do último ensino de Lacan convidam-nos para uma importante reflexão sobre o lugar que ocupa a interpretação hoje e, consequentemente, o que cabe ao praticante da psicanálise de orientação lacaniana nesse contexto.

Neste texto nos debruçaremos na interpretação em tempos atuais. Faremos um breve percurso no ensino de Lacan em diálogo com Miller e, finalmente, desenvolveremos uma discussão para pensar os desdobramentos teóricos-clínicos acerca da interpretação na atualidade.

O primeiro ensino de Lacan, aquele do inconsciente estruturado como uma linguagem, período de seu retorno a Freud sob as insígnias do movimento estruturalista, permitiu situar o que se nomeiam estruturas clínicas como modos de funcionamento psíquico dos sujeitos. Nesse momento de seu ensino, o sintoma a ser interpretado passa pela cadeia significante. Trata-se de uma mensagem a ser decifrada e agrega um sentido. Um sintoma que busca o bem-dizer da interpretação.

Em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan (1998), ao propor a questão “Quem analisa hoje?”, aponta que o analista certamente dirige o tratamento, o que não significa dirigir o paciente, e sim fazer com que o sujeito aplique a regra analítica, a associação livre, e o analista, com suas palavras, pela operação analítica, possa produzir efeito de interpretação a partir daquilo que lhe é apresentado pelo analisante em atos e colocações.

Nesse mesmo texto, ele destaca o lugar da interpretação e sua ação a partir do conceito da função significante, assim descrito: “(…) o conceito da função do significante que capta onde o sujeito se subordina a ele, a ponto de por ele ser subornado” (LACAN, 1998, p. 599). Assim, a interpretação age como um deciframento do conteúdo que aparece na diacronia das repetições inconscientes ao longo da história do sujeito e na sincronia dos significantes para possibilitar, do lado do sujeito, uma tradução, e que, pela via do significante, a interpretação possa produzir algo novo para o sujeito.

Posteriormente, Lacan, ao recolher no texto freudiano o que Freud nomeou restos sintomáticos, analisa que o sintoma deve ser interpretado em função de um desejo e que é um efeito de verdade do sujeito. Lacan, destaca que há um resto, que se trata do real do sintoma, aquilo que nele se apresenta como sem sentido, que se repete e escapa ao simbólico. Destaca-se, nesse momento de seu ensino, a presença de um sintoma, que se inscreve no corpo que não é tocado pelo simbólico, mas pelo real pulsional, fazendo marcas, esburacando sem fazer história e sem fazer mensagem, apenas veículo da pulsão de morte inscrita no corpo. Trata-se do deslocamento do inconsciente transferencial para o inconsciente real, em que se afirma um saber no real que faz furo à máquina significante (LACAN, 2007).

Miller cita que, a partir dessa virada no ensino de Lacan, ele nomeou gozo um acontecimento de corpo de valor traumático, que não há representação, não há regulação simbólica e que retorna sempre ao mesmo lugar.  A repetição é a mola do real do trauma, o que a estrutura não alcança. Há desordem no gozo na medida em que o pensamento não se faz presente, escapa à rede de significações e não obedece a essa lei, portanto, inassimilável semanticamente (MILLER, 2012).

No último ensino de Lacan, há a inclusão do sinthoma como uma segunda versão do real e sua repetição. Em O Seminário, 23: o sinthoma, Lacan retoma as dimensões imaginário, simbólico e real para destacar o real como mola do simbólico e convida à reflexão de como se virar com isso na medida em que em relação ao real não há tradução, há o gozo.

A partir desses deslocamentos operados na teoria, pergunta-se o que cabe ao analista na interpretação hoje.

 

A prática interpretativa

Assistimos, no ensino de Lacan, a um deslocamento sobre a prática interpretativa. Se temos, no seu primeiro ensino, a interpretação como busca de sentido em relação à lei do desejo, em seu último ensino, há o convite para tocar na fixação do sujeito não articulada aos significantes, e sim ao gozo, ao que é da ordem do traumático, e sua repetição. Assim, mudanças foram operadas na prática interpretativa com a inclusão da leitura do que se repete para além do sentido, em referência ao real sem lei, que não tem ordem: “(…) um pedaço de real” (LACAN, 2007, p.133).

Com essa interpretação para além do sentido, busca-se tocar o real pulsional, que escapa ao simbólico. Não há interpretação de sentido que toque nesse real que se inscreve no corpo e promova um desvio do gozo.

A partir dos desdobramentos do ensino de Lacan, instaura-se um campo clínico em que a prática interpretativa se desloca da escuta do sentido à leitura do fora de sentido, sem, contudo, excluir a escuta do sentido. Do lado do analista, isso promove tocar o real, o modo de gozo, para além do édipo e da operação de recalcamento, em uma delicada clínica que inclui a presença de um vazio em que não se inscrevem palavras. A partir desse lugar, o analista se encontra em posição de validar o sujeito, a mensagem que vem dele, o seu sofrimento e o seu mal-estar que não cessa de não se inscrever. A palavra do analista tem uma função apaziguadora e sua intervenção tem efeito de interpretação. Do lado do analisante, o que se coloca no horizonte é a abertura para as invenções como forma de lidar com seu mal-estar.

Miller (2012), ao tratar da instauração do novo campo clínico no ensino de Lacan, promove uma reflexão em que se destaca a defasagem entre o que se escuta e o que se diz, que se compreende, que se comunica e que se apresenta como proposição de verdade. Ele nos lembra de que há duas dimensões no dito: o que alcança o ouvido e o que nele é compreendido e a defasagem entre o que se escreve e o que se lê. Aponta que o lugar da interpretação está na defasagem entre escutar e dizer, entre escrever e ler.

Não se trataria de uma interpretação suplementar, mas de considerar a existência de uma máquina de interpretações, com regras: a homofonia do lado da escuta da fala e o anagrama (as letras) para o que se inscreve. Escritura e leitura estão ligadas.  Contudo, destaca Lacan que afirma a existência de um escrito para não ser lido. Nas palavras de Miller: “(…) talvez haja no escrito algo mais ou algo mais distinto do significante” (MILLER, 2012, p. 6). A letra separa o significante do significado, sendo a letra o significante sem valor de significação. Há uma escritura na fala em que a letra é decifrada como criptograma inscrito a partir de uma língua perdida a ser constituída.

Nesse sentido, cabe à prática interpretativa fazer uma operação de leitura do escrito separado do seu valor de significação. Há um gozo que se encontra sem um significante adequado em direção à socialização. Trata-se do gozo do Um, inscrito no encontro da letra com o corpo, lalíngua.

Como pensar então a interpretação que inclua lalíngua? A partir de Miller (2012), a interpretação implica ultrapassar a relação daquilo que se escuta no que se diz. Saber ler o que está na escritura, que aponta no dizer para algo singular do sujeito, pela via do pertencimento: a fala é dele, na dimensão da lalíngua e seus equívocos pela via do gozo, em sua finalidade distinta da comunicação.

A interpretação em nível de lalíngua significa dizer que o psicanalista não se encontra em nível de comunicação, como se situa a interpretação de sentido. Nesse sentido, Miller recorre a Lacan, em “Função e campo da fala e da linguagem”, à expressão ressonância de fala e convida-nos, através desta, para restituir o valor de evocação, e não apenas comunicação direta e informação. Para ele, ressonância é “(…) uma propriedade da fala que consiste em fazer escutar o que ela não diz” (Ibid., p. 18). A ressonância aponta para a presença do significante no destino do sujeito, a palavra como aparelho do gozo, assim como se refere Lacan (1985) no Seminário 20: Mais, ainda.

Miller (2015) aponta que a leitura do sintoma vai em direção oposta à da interpretação do sentido, ou seja, é privar o sintoma de sentido. Passa-se à leitura do fora de sentido. Ainda afirma Miller: “A disciplina da leitura visa a materialidade da escrita, isto é, a letra, na medida em que ela produz o acontecimento de gozo que determina a formação dos sintomas” (p. 21). Aqui se apresenta uma dupla visada da interpretação. Há a interpretação de sentido daquilo que se escuta, mas também é preciso saber ler o sintoma visando a um “choque inicial, o que é como um clinâmen do gozo” (Ibid.), um desvio do gozo.

Portanto, a interpretação como saber ler o sintoma implica uma redução do sintoma à sua origem, que se trata do encontro material do significante com o corpo. A interpretação como saber ler visa a reduzir o sintoma ao choque da linguagem sobre o corpo, ou seja, o trauma do corpo pela entrada do significante, destacando aqui que o trauma se experimenta sempre em relação à capacidade de absorção que o corpo tem, um acontecimento de corpo. Nesse sentido, a interpretação busca perturbar a fixidez do gozo em direção à invenção do sujeito em construção de saída possível.

Na interpretação, hoje, é preciso tocar o gozo do ser falante, o significante que opera fora do sentido. Como afirma Miller (2015), a leitura do sintoma vai em direção oposta à inflação de sentido, além do enquadre edipiano e se deparando com o enquadre da topologia borromeana, novo estatuto na relação entre Real, Imaginário e Simbólico, em que a interpretação passa à interpretação do sem sentido.

 

Conclusão

A título de finalização, retomamos a pergunta central do texto: o que cabe ao analista na interpretação hoje?

Partindo do princípio de que o saber ler na prática analítica completa o bem-dizer, do lado do analista, trata-se de que o bem-dizer e o saber ler se transfiram para o analisante, que ele possa bem-dizer e saber ler o seu sintoma rumo às invenções que possam fazer borda, fazer contorno ao gozo do sintoma.

Advertidos por Lacan que um sintoma deve ser interpretado em seu sentido, mas que há um resto sintomático, nomeado por ele Real, que faz ressonância, os analistas devem interpretar do lugar onde a prática psicanalítica opera, entre escuta e leitura, entre o ser da falta e a fixidez do gozo para o qual não há resposta, mas que as palavras, do encontro com o analista, possam advir para que o sujeito possa lidar com o que é da ordem do real que escapa à significação e que produz mal-estar. 

 


Referências Bibliográficas:
LACAN, J. (1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: o Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
MILLER, J-A. O escrito na fala. In: Opção lacaniana Online Nova Série. Ano 3, N. 8, 2012.
MILLER, J-A. O inconsciente real. In: Opção Lacaniana Online. N. 4, Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n4/pdf/artigos/JAMIncons.pdf. Acesso em abril de 2021.
MILLER, J-A. Progressos Em Psicanálise Bastante Lentos. Opção Lacaniana Online, n. 64, Ano 2012. Disponível em: http://www.ebp.org.br/old/publicacoes/opc%CC%A7a%CC%83o-lacaniana-64/ Acesso em maio 2021.
MILLER, J-A. Ler um sintoma. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. N. 70, 2015. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_escrito_na_fala.pdf



NEUROSE OBSESSIVA: UM DIALETO CONTEMPORÂNEO?

MARCELA BACCARINI PACÍFICO GRECO
Psicanalista em formação (IPSM-MG) | Psicóloga (Fumec) e Engenheira de Produção (UFMG) |
mbpacifico@gmail.com

Resumo: Este trabalho parte de um comentário feito por Lacan em 1978 para investigar como o discurso do mestre contemporâneo e suas incidências podem privilegiar apresentações sintomáticas que se aproximam daquelas de que se vale a neurose obsessiva. Trata-se de discutir como determinados aspectos dessa forma de organização subjetiva, que foram apontados por Freud e retomados por Lacan, podem ser cotejados com a fenomenologia dos novos sintomas provocados pela decadência da ordem simbólica. Por fim, objetiva-se, também, levantar uma questão sobre a direção do tratamento nesses casos.

Palavras-chave: Neurose obsessiva, discurso do mestre contemporâneo, novos sintomas.

OBSESSIONAL NEUROSIS: A CONTEMPORARY DIALET:

Abstract: Based on a Lacan’s comment made in 1978, this work investigates how the contemporary master discourse and its incidences can privilege symptoms that are close to those that obsessional neurosis presents. It discusses how certain aspects of this form of organization, pointed out by Freud and Lacan, can be compared with the phenomenology observed in new symptoms that are related to the decay of the symbolic order. Finally, it is also intended to raise a question about the direction of treatment in these cases.

Keywords: Obsessional neurosis, contemporary master discourse, new symptoms.

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Enquanto as manifestações ruidosas que marcaram as histéricas de outrora não podem mais ser reconhecidas com frequência, os pensamentos obsedantes e atos compulsivos como os que atormentavam Ernst Lanzer parecem não ter perdido todo o seu espaço na clínica atual. Assim, as observações de Freud (1909) sobre o Homem dos Ratos ainda constituem o paradigma da neurose obsessiva.

E se, por isso, tem-se a impressão de ser esse um tema exaustivamente abordado, a razão de um retorno encontra-se, aqui, apoiada no conhecido comentário de Lacan de 1978: “Quero dizer, não é muito certo que a neurose histérica ainda exista, mas certamente existe uma neurose, isso é o que se chama neurose obsessiva”. Entre os que seguiram nessa direção, Gazzolla (2002) e Alvarenga (2019) afirmam que se trata mesmo da neurose contemporânea por excelência, resultado do declínio do pai e de sua potência na cultura. Da mesma forma, a indagação feita por Alvarenga (2019) sobre se haveria na contemporaneidade a tendência de a histeria se apresentar sob a forma da neurose obsessiva, enquanto dialeto, é tomada como mais um sinalizador da atualidade dessa discussão. Não parece anacrônico, portanto, retomar alguns aspectos que caracterizam essa organização subjetiva para compreender como e por que tal forma de apresentação da neurose se tornaria privilegiada na época do declínio da ordem simbólica.

Vale destacar que nos distanciamos de uma suposta interrogação sobre a prevalência da neurose obsessiva enquanto estrutura para nos aproximarmos da discussão sobre a apresentação de sintomas e estratégias que, como ressalta Cottet (2011), podem ser observados em outras estruturas e não são suficientes para fazer do sujeito um obsessivo. Trata-se de pensar como a relação que o sujeito estabelece com o discurso do mestre contemporâneo pode privilegiar apresentações sintomáticas que se aproximam daquelas de que se vale a neurose obsessiva.

 

O mestre contemporâneo e suas incidências

No Seminário 17, Lacan (1969-70/1992) faz referência à mutação no estatuto do discurso do mestre operada por certa modificação no lugar do saber, que lhe confere o estilo capitalista. A passagem do mestre antigo ao senhor moderno associa-se a uma “curiosa copulação com a ciência” e é apontada como aquilo que permite a manutenção e o sucesso desse discurso.

Nesse contexto, em que a palavra vira carniça, perdem força as instituições patriarcais e o valor universal do mestre, que se pulveriza através de representações de um Outro sem consistência. A decadência da ordem simbólica põe em xeque o valor da significação fálica, denunciando a dificuldade de subjetivação do falo enquanto significante capaz de orientar o sujeito pelo Outro. Com menos recursos para que o gozo possa ser metaforizado, a clínica contemporânea apresenta novos sintomas que, como indica Recalcati (2004), não manifestam o sujeito dividido, mas que se configuram pelo tratamento da divisão através do objeto. Em consonância, através de suas agências, o discurso capitalista trata de indicar e oferecer ao sujeito-gadget aquilo que lhe falta, provocando uma demanda desenganchada da dialética do desejo (RECALCATI, 2004).

Sem ter à disposição referências identificatórias ligadas ao ideal, os sujeitos tendem, como destaca Alvarenga (2019), a se identificar e coletivizar sob certos S1 que nomeiam modos de gozo e visam a tamponar o buraco da castração, impondo novas formas de compulsão que acabam se revelando como imperativo de gozo. Como consequência, caem as possibilidades de que as manifestações sintomáticas sejam reduzidas ao regime significante, ao que se associa o que Recalcati (2004) chamou de expulsão-anulação do sujeito do inconsciente.

 

A neurose obsessiva e suas estratégias

Como relembra Gazzolla (2002), as estratégias e sintomas obsessivos aparecem como resposta a impasses simbólicos relacionados a certa posição subjetiva. Tais impasses se organizam ao redor de operadores que foram valorizados por Lacan e que, em parte, já haviam sido destacados por Freud (1909/2013) no Homem dos Ratos.

Freud localiza que seu paciente padecia de um conflito psíquico que tentava conjugar amor objetal com a vontade do pai e ao qual se relacionavam desejos e impulsos contrários. O ódio inconsciente direcionado ao genitor e à dama venerada provocava desejos de morte e impulsos vingativos dos quais ele se defendia através de intensas recriminações e autopunição. Isso leva Freud a dizer que esses conflitos serviam como mola para suas construções obsessivas (FREUD, 1909/2013). Nesse caso, a dívida não saldada com o pai, o domínio da dúvida que paralisa o sujeito, a relação com a morte sempre à espreita, os mecanismos de substituição e deslocamento, o impulso de saber e até uma observação sobre a forma do paciente fazer suas orações são alguns dos aspectos encontrados no texto de Freud que contribuem para a compreensão da modalidade de gozo do sujeito obsessivo e da sua relação com o objeto, tal como Lacan trabalhou anos mais tarde.

Para Lacan, o que está colocado para todo neurótico é, fundamentalmente, uma questão sobre a existência aberta à medida que a criança falta a ser o falo da mãe. O drama subjetivo no qual o sujeito se engendra a partir daí exige uma resposta que só pode ser buscada no campo do Outro. No Seminário 5, Lacan (1957-58/1999) assinala que é aí onde deve ser descoberto, pelo sujeito, o desejo e sua formulação possível. Mas, uma vez que o falo é introduzido no conjunto de significantes, o Outro não deixa de ser, ele mesmo, marcado pelo desejo. Isso provoca dificuldades nas quais os sujeitos neuróticos claudicam já que, como Lacan (1960-61/2010, p. 273) assinala no Seminário 8, o desejo do Outro é um enigma “enlaçado com o fundamento estrutural da sua castração”.

A esse impasse, as estruturas produzem respostas diferentes. Enquanto a histérica vai buscar seu desejo no desejo do Outro, colocando ênfase na insatisfação e encontrando apoio na identificação com o outro imaginário, o obsessivo vai buscá-lo num além, visando ao desejo em sua constituição como tal mesmo que, através desse movimento, ele seja levado a almejar a destruição do Outro (LACAN, 1957-58/1999).

Empenhado nessa tarefa, sua relação com o outro é marcada por uma tendência de redução do desejo à demanda que fica, então, em posição de prevalência. Trata-se de uma manobra que tenta não só livrar o obsessivo do enigma sobre o desejo, mas lhe afastar do encontro com a falta-a-ser e que está representada no matema da fantasia obsessiva formulado por Lacan (1960-61/2010) como Ⱥ <> φ (a, a’, a’’, a’’’…). A fórmula expressa como o sujeito coloca o pequeno em série e o acomoda sobre a medida do phi (φ) para oferecê-lo ao Outro barrado. Esse movimento relança o obsessivo ao circuito primitivo da demanda, característico do período pré-genital, em que o sujeito se dirigia ao Outro para a satisfação de suas necessidades. Essa elaboração é importante para compreender a oblatividade enquanto uma das estratégias do obsessivo diante do problema do desejo.

A noção de oblatividade enquanto mítica é criticada por Lacan reiteradas vezes. Desde o Seminário 4, ele aponta para o fracasso de tomá-la como auge da maturação genital afirmando que o reconhecimento do desejo como tal é impossível dada a hiância fundamental da sua articulação. Isso o leva a dizer que a oblatividade não está situada nesse nível e não passa de uma fantasia obsessiva (LACAN, 1957-58/1999). O verdadeiro campo do dom enquanto objeto destinado a satisfazer é, como ele desenvolve, o da dialética anal, de forma que o ‘tudo para o outro’ que marca essa fantasia se associa àquilo que caracteriza a demanda nesse estágio: os objetos (excrementícios) solicitados pelo Outro (LACAN, 1960-61/2010). Através dessas formulações, ele se esforça para demonstrar como a submissão à demanda do outro de forma altruísta equivale a não resolver o problema do desejo que, “literalmente, vai à merda” (LACAN, 1960-61/2010, p. 255).

Nesse ponto, não parece incabido relacionar essas estratégias obsessivas com a formulação de Recalcati (2004), segundo a qual a clínica dos novos sintomas seria configurada mais além do princípio do desejo. Ele chama a atenção para o estatuto contemporâneo da demanda que não se mantém em relação ao desejo, que não se orienta pelo que resta não satisfeito, mas que se guia pelo próprio objeto de gozo oferecido pelo discurso capitalista. Ora, se o obsessivo quer manter o desejo à distância, a ética do consumo parece não dificultar seu trabalho.

Da mesma forma, a oferta de objetos mercantilizados pela cultura, operada sob a lógica de que são descartáveis e precisam ser permanentemente renovados, também parece se acomodar à fantasia obsessiva. Isso porque a estratégia de seriar e falicizar os objetos oferecidos ao Outro envolve, como Lacan (1960-61/2010) indicou, uma relação metonímica com o objeto, de constantes substituições, promovendo, por consequência, um afrouxamento das relações objetais conforme já havia sido apontado por Freud (1926/2014).

Segundo Lacan (1960-61/2010), a falicização dos objetos se dá ao preço de uma degradação do significante falo (Φ) ao phi minúsculo (φ), já que deixar emergir o Φ na sua forma desvelada aponta para a presença do desejo, insuportável e de difícil manejo. É nesse sentido que Lacan afirma que o fundamento da relação do obsessivo com o objeto é menos a abolição do Outro e mais a rejeição dos signos do seu desejo. Ele assinala que tal anulação só pode ser feita a nível do significante e pode ser verificada no caráter verbal da própria estrutura dos seus sintomas. O que se anula é o próprio falo enquanto signo do desejo do Outro, golpeado no plano imaginário (LACAN, 1960-61/2010). Como resultado, o desejo do Outro, estruturalmente simbolizado e articulado pelo falo, é provido do sinal ‘não’ (d0), determinando o caráter de impossibilidade associado à sua manifestação para esse sujeito (LACAN, 1957-58/1999).

Porém, à medida que, com suas estratégias, o obsessivo tenta destruir os signos do desejo do Outro para não ter que se haver com a sua falta de resposta, é seu próprio desejo que, sem ponto de apoio, desaparece. Assim, através de um movimento contraditório e dialético, preservar a dimensão do Outro em perpétuo perigo de sucumbir, ou no mínimo isolar as partes do seu discurso que precisam ser conservadas, constitui visada preliminar no circuito do sujeito e que também só poderá ocorrer numa certa articulação significante. Isso se manifesta no obsessivo através dos seus sintomas: pedidos intermináveis de permissão, bem como, a colocação do seu desejo como proibido pelo Outro, deixam o sujeito em posição de dependência e servem, portanto, a restaurá-lo. No nível da relação com o outro, uma das vias escolhidas para se obter tal permissão são suas proezas. Sempre impossibilitado de gozar das férias a que teria direito por suas façanhas, o que está em jogo para o obsessivo é preservar o Outro, que testemunha e registra tudo isso (LACAN, 1957-58/1999).

Lacan (1957-58/1999) associou essas estratégias para reconstituição do Outro com as exigências do supereu, instância que já havia sido apontada por Freud (1926/2014) como tendo um importante papel na angústia dessa estrutura. No contemporâneo, o supereu também aparece em posição de comando, mas menos numa função de interdito e mais numa vertente de imperativo de gozo. Diante de uma ordem simbólica em declínio, o sujeito é impelido a gozar por intermédio dos objetos sob a promessa de que esses teriam o poder de preencher sua falta subjetiva e de desviá-lo do encontro com a castração. Isso não só é impossível como produz o que Brousse (2007, p. 4) apontou como “expansão das patologias ligadas ao supereu”.

Sob essa égide, localizam-se diversas formas de compulsão e sintomas que compõem a clínica da neurose atual e que aparecem mais como amarração do gozo do que como produção de sentido (ALVARENGA, 2019). Efeito da dificuldade de subjetivação do falo e, consequentemente, da capacidade de se orientar pelo Outro, essas manifestações se afastam do modelo de sintoma metafórico ancorado no significante e que podia ser decifrado em função das vivências do sujeito tal como Freud (1917/2014) descreveu em “O sentido dos sintomas”. Isso porque, como assinala Miller (1997), a produção do sentido na formação do sintoma pressupõe a tomada do Outro como interlocutor.

 

O advir do sujeito

Freud (1926/2014) deixa claro que, ainda que as neuroses histérica e obsessiva tomem o mesmo ponto de partida para formação dos seus sintomas, elas se distanciam quanto ao caminho percorrido. Ele já havia localizado que, no caso do sujeito obsessivo, observa-se uma tendência geral que prioriza a satisfação substitutiva, contando, para isso, com estratégias de anulação, isolamento, regressão e formações reativas (FREUD, 1926/2014).

Alvarenga (2019) destaca que esses mecanismos estão associados ao apego do sujeito à sua relação com a realidade, sustentando a ilusão de domínio consciente, de saúde aparente e constituindo “um fechamento em relação à dimensão transferencial do sujeito histérico” (p. 78). Quando a defesa logra, o que se observa é um rechaço do inconsciente que inibe o aparecimento de suas formações. Parece ser justamente nesse sentido que Freud (1926/2014) aponta para a dificuldade de o sujeito obsessivo obedecer à regra psicanalítica fundamental. Em função do mecanismo de isolamento que despoja uma vivência traumática de seu afeto e suprime suas relações associativas, o obsessivo fia-se a dirigir o curso do seu pensamento, procurando evitar conexões que levem àquilo que ameaça o Eu.

A dificuldade de consentir com a abertura do inconsciente associada a esses modos de defesa não parece distante do que Recalcati (2004) nomeou de expulsão-anulação do sujeito do inconsciente e que aparece na clínica contemporânea como efeito da relação com os discursos do capitalista e da ciência. Sem poder contar com um Outro capaz de interpretar e conferir sentido, são produzidos sintomas que não se reduzem ao regime significante e tendem a não manifestar a divisão subjetiva, privilegiando leituras orientadas pela cognição e comportamento.

Nesse contexto, alguns casos revelam como os sintomas contemporâneos engendrados ao discurso capitalista tentam negar a dimensão da verdade do sujeito inconsciente valendo-se de S1s nesse lugar. Nesse ponto, a oposição histeria-inconsciente e neurose-obsessiva-consciência, já apontada por Freud (1926) e ressaltada por Godoy e Schejtman (2011), parece ajudar a entender a prevalência dessa forma de dialeto da neurose associada à modificação no lugar do saber do mestre.

Essa perspectiva coloca em destaque a histerização do discurso como operação preliminar da clínica contemporânea, já que tal passagem, formulada por Lacan (1969-70/1992) como condicionante à entrada em análise, faz valer a dimensão de verdade do sintoma, submetendo a vontade de curar-se à vontade de saber. Se Alvarenga (2019) aponta que, no caso da neurose obsessiva, trata-se de perturbar as defesas para sintomatizar os traços de caráter que enrijecem e fecham o inconsciente em sua dimensão transferencial, parece ser possível ampliar essa direção para pensar que se trata de fazer advir o sujeito apagado pelo discurso do mestre contemporâneo, independentemente da sua estrutura. Dito de outro modo, se Lacan (1969-70/1992) apontou que o que resta depois dessa mutação do lugar da verdade é o ‘não saber o que se quer’ (posição do antigo senhor), destaca-se o dever ético do analista de fazer advir o sujeito movido pelo desejo de saber sobre aquilo que irrompe como algo que lhe diz respeito.

 


Referências Bibliográficas:
ALVARENGA, E. A neurose obsessiva no feminino. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
BROUSSE, M.-H. “Em direção a uma nova clínica psicanalítica”. InLatusa digital, ano 5, n. 30, 2007. Disponível em: http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_30_a1.pdf.
COTTET, S. “A propósito da neurose obsessiva feminina”. In: ___. Ensaios de clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. p. 82-99.
FREUD, S. (1909) “Observações sobre um caso de neurose obsessiva” (o homem dos ratos). In:___ Obras completas. v. 9: observações de um caso de neurose obsessiva [“O homem dos ratos”], uma recordação da infância de Leonardo da Vinci e outros textos (1909-1910). São Paulo: Cia das Letras, 2013. p. 13–112.
FREUD, S. (1917) “O sentido dos sintomas”. In: ___ Obras completas. v. 13: Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). São Paulo: Cia das Letras, 2014. p. 343-364.
FREUD, S. (1926) “Inibição, sintoma e angústia”. In: ___ Obras completas. v. 17: Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). São Paulo: Cia das Letras, 2014. p. 13-123.
GAZZOLLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
GODOY, C.; SCHEJTMAN, F. “La neurosis obsesiva en el último período de la enseñanza de J. Lacan”. Anuario de Investigaciones, v. XVI, 2009, p. 91-95.
LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1957-58) O seminário, livro V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. (1960-61) O seminário, livro VIII: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
LACAN, J. (1978) 9e Congrès de l’École Freudienne de Paris sur “La transmission” Lettres de l’École Freudienne de Paris, Paris, v. II, n. 25, 1979. p. 219-220.
MILLER, J. A. Seminário de Barcelona sobre Die Wege der Symptombildung. InFreudiana, n.19, Barcelona: EEP – Catalunya, 1997. p.7-57
RECALCATI, M. A questão preliminar na época do Outro que não existe. InLatusa digital, ano 1, n. 7, 2004. Disponível em http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_7_a2.pdf.

 




 O real do inconsciente e a gaia ciência: saber fazer com lalíngua[1] 

BERNARDO MARANHÃO
Psicólogo. Advogado. Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Doutorando em Estudos Psicanalíticos na UFMG. Professor na Escola do Legislativo de Minas Gerais |
maranhao.bernardo@gmail.com

Resumo: Este artigo discute o trecho de “Televisão” em que Lacan faz menção à gaia ciência, o saber alegre dos trovadores medievais. O que se pretende interrogar é em que medida esse saber pode ser tomado como um referencial, entre outros simultaneamente possíveis, para a interpretação analítica, num contexto em que o inconsciente é concebido, com Lacan, como “o mistério do corpo falante”.

Palavras-chave: inconsciente, gaio saber, lalíngua.

THE REAL OF THE UNCONSCIOUS AND THE GAY SÇAVOIR:

SAVOIR-Y-FAIRE WITH LALANGUE

Abstract: This article discusses the sketch of “Television”, in which Lacan mentions gai savoir, the joyful knowledge of medieval troubadours, in order to interrogate to which extent this knowledge can be taken as a reference, among others equally possible, to psychoanalytic interpretation, in a context in which the unconscious is conceived, with Lacan, as “the mystery of the speaking body”.

Keywords: unconscious, gai savoir, lalangue.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Nos anos finais do ensino de Lacan, a concepção do inconsciente estruturado como uma linguagem cede espaço à do inconsciente como corpo falante. A leitura em perspectiva desses remanejamentos conceituais, tal como empreendida por Miller, possibilita que a proposição lacaniana “o inconsciente é o mistério do corpo falante” (LACAN, 1972-73/1985, aula de 15 de maio de 1973) seja reformulada nos seguintes termos: “o real do inconsciente é o corpo falante” (MILLER, 2015, p. 34). E é precisamente lalíngua, tomada como o real da língua e como o elemento de gozo que há no uso da palavra, que corresponde, nesse corpo falante, ao ponto de amarração entre a fala e o corpo.

A metafísica cartesiana, observa Bassols (2015), conserva inquestionado o mistério da união entre a alma e corpo. Já na perspectiva lacaniana detalhada por Bassols e por Miller, a união entre a res cogitans e a res extensa, ou seja, entre a substância pensada e a substância corpórea, constitui uma terceira substância, uma substância gozosa, que corresponde a isso que Lacan denomina “o mistério do corpo falante” e que Miller designa como o real do inconsciente. É essa substância gozosa, diz Bassols, que se encontra no ensino de Lacan, a partir do Seminário XX, Mais, ainda, como o significante que se transforma cada vez mais em letra e que, no mesmo passo — ousamos acrescentar —, vem a ser progressivamente tomado como pertinente não à linguagem, mas a lalíngua. A respeito dessa substância gozosa, observa Bassols (2015, p. 14): “É aí que se coloca o problema do real da linguagem, que amarra o corpo imaginário e o simbólico da realidade psíquica. É o real como terceiro que, não obstante, produz uma amarração”.

É também a partir desse real da linguagem que se forma o sintoma, concebido como acontecimento de corpo, num arranjo que resulta da maneira singular como o ser falante é afetado em seu corpo pelos sedimentos de lalíngua. Ao analista, incumbe saber ler o sintoma (MILLER, 2016a), não segundo uma visada hermenêutica, atrelada aos sentidos convencionados do significante, mas de uma maneira que presta atenção à materialidade gráfica e fônica do significante, ou seja, à sua dimensão de letra e às ressonâncias produzidas no corpo do sujeito pela matéria do significante, constelada na galáxia de lalíngua. Ao analisante, toca-lhe a tarefa de “inventar o saber” (LACAN, 1973/2003, p. 315) que lhe convém quanto a esse seu modo singular de gozo. Dito de outro modo, o que está em jogo numa análise é a construção de um modo específico de saber, que Lacan (1976-77, aula de 15 de fevereiro de 1977) nomeia com a expressão savoir-y-faire. Trata-se de um saber que aponta para a aproximação entre o fazer do psicanalista e o do artista, um saber que valoriza a diferença entre o universal e o singular. O savoir-y-faire, tal como o toma Lacan, observa Márcia Mello de Lima (2009, pp. 26–27), pode ser traduzido como um saber se virar com isso que o sujeito tem de surpreendente, com isso que o conduz à singularidade de seu ato.

O trato com o real do gozo de lalíngua, com os efeitos por ela produzidos no corpo — efeitos que são afetos (LACAN, 1972–73/1985, aula de 26 de junho de 1973) —, é algo cultivado refinadamente pelos trovadores da Idade Média, os quais instituem, a partir desse savoir-y-faire, um campo particular do saber, a gaia ciência. Em “Televisão”, Lacan (1974/2003) aproxima esse saber do poeta ao do analista e caracteriza a gaia ciência, ao mesmo tempo, como um afeto — trata-se, afinal, de um saber alegre — e como uma virtude, em oposição ao afeto da tristeza, que ele, evocando Dante e Spinoza, qualifica como uma falha moral. Nesse passo, Lacan coloca em curto-circuito a acostumada oposição entre afeto e intelecto ao indicar que o afeto deriva do pensamento, e, conforme veremos mais detalhadamente a seguir, põe o problema das depressões a salvo de uma abordagem biologizante ao enquadrá-lo na moldura de uma ética do bem-dizer.

Desde o Seminário X, A angústia, Lacan já indica que o campo dos afetos é atinente à relação do sujeito com o Outro, relação articulada pelo significante. A esses dois termos, o significante e o Outro, é preciso, diz Miller (1986/2016b, p. 108), acrescentar um terceiro: o gozo. Sob essa perspectiva, os afetos não derivam de uma relação direta do sujeito com o mundo, mas de uma relação mediada pelo desejo, e consistem em efeitos de gozo produzidos pela linguagem no corpo desse sujeito. Em síntese, diz Miller (1986/2016b p. 109), “o que Freud denomina a separação entre a cota de afeto e a ideia se torna, para nós, a articulação do significante e do objeto a”.

Em “Televisão”, Lacan inscreve expressamente os afetos no campo da ética. Ao tratá-los como “paixões da alma”, na esteira de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, afasta-os das visadas psicológicas e psicofisiológicas próprias da contemporaneidade e, sem deixar de reconhecer que eles têm uma ancoragem no corpo, toma os afetos em consideração a partir da relação que eles possam guardar com o problema do bem, ou mesmo do soberano bem. Não se trata, pondera Miller (1986/2016b), de transportar para a psicanálise a questão do soberano bem, tão cara ao pensamento antigo e medieval, mas de indicar que “é nessa abordagem tradicional da questão que a psicanálise encontra sua orientação” (p. 109).

É eloquente, quanto a essa consideração dos afetos sob uma perspectiva ética, o exemplo da oposição evocada por Lacan entre a tristeza e o gaio saber. Essa oposição é amplamente lastreada nas doutrinas médicas e filosóficas da Idade Média (AGAMBEN, 1977/2007), que associam a tristeza ao pecado mortal da acídia — posição demissionária do sujeito em face do soberano bem[2] — e reconhecem no gaio saber — ramo da arte do bem-dizer — um remédio para esse mal que nem a religião, nem a filosofia, nem a medicina sabem curar.

Desse par de opostos herdado da tradição, Lacan faz uma apropriação à sua maneira. A tristeza constitui para Lacan um problema ético — e é para dar evidência a esse ponto que, nessa passagem de “Televisão”, ele recusa expressamente o termo depressão, próprio ao campo semântico de uma abordagem psicofisiológica dos afetos. Com apoio em Dante e em Spinoza[3], caracteriza a tristeza como “lassidão moral”, isto é, como um abandono, por parte do sujeito, em face de um dos deveres éticos fundamentais. No entanto — e aqui se destaca o aspecto particular da leitura proposta por Lacan —, esse dever ante o qual o sujeito se omite não é, como quereria o filósofo seiscentista, o de bem-dizer o supremo bem divino, mas o de encontrar seu próprio lugar na estrutura, ou seja, sua posição em face do inconsciente (LACAN, 1974/2003). Esse dever, em sua versão lacaniana, também se enquadra na ética do bem-dizer e engaja a relação entre o saber e o gozo. Nesse sentido, observa Miller (1986/2016b, p. 111): “A ética do bem-dizer consiste em discernir, em circunscrever, no saber, aquilo que é impossível de dizer. (…) Quando o saber é triste, ele é impotente para pôr o significante em ressonância com o gozo; esse gozo permanece exterior”.

Já no que concerne à gaia ciência, virtude de um saber alegre que se encontra em oposição ao vício do saber faltoso da acídia-tristeza, Lacan a considera não somente como a arte de entrelaçar com engenho as sílabas às notas musicais e as palavras umas às outras, mas como uma arte de “gozar do deciframento” (LACAN, 1974/2003, p. 525), um modo de dar lugar ao gozo no exercício do saber, de propiciar alguma reconciliação entre o saber o e gozo. Como observa Miller:

“[O] gaio saber admite a extimidade do gozo, ele admite que esse gozo não é, decerto, absorvível no saber, mas que tampouco lhe é exterior. Notemos, quanto a esse aspecto, que o saber alegre não é o saber onipotente, mas aquele que faz passar da impotência ao impossível. A tristeza é a impotência [do saber], ao passo que o gaio saber é o impossível do saber. Por essa via, ele toca no real” (MILLER, 1986/2016b, pp. 110-11).

De que maneira o saber alegre toca no real? As palavras de Lacan, no trecho de “Televisão” em que ele se refere ao gaio saber, propiciam o vislumbre de uma resposta a essa questão:

“No polo oposto da tristeza existe o gaio issaber [gay sçavoir] o qual, este sim, é uma virtude. Uma virtude não absolve ninguém do pecado — original, como todos sabem. A virtude que designo como gaio issaber é o exemplo disso, por manifestar no que ela consiste: não em compreender, fisgar [piquer] no sentido, mas em roçá-lo tão de perto quanto se possa, sem que ele sirva de cola para essa virtude, para isso gozar com o deciframento, o que implica que o gaio issaber, no final, faça dele apenas a queda, o retorno ao pecado” (LACAN, 1974/2003, p. 525).

A partir desse dito de Lacan, é possível, ainda, considerar que o gaio saber fornece um paradigma para a escuta analítica: “não compreender, fisgar no sentido, mas roçá-lo tão de perto quanto se possa”. Essa divisa nos parece articulável, do lado da interpretação analítica, àquilo que Éric Laurent (2018) recorta do ensino de Lacan sob a rubrica da interpretação como jaculação. A partir das indicações dadas por Laurent, é possível supor que a jaculação se liga menos ao conteúdo semântico de determinado significante que a “um efeito de sentido real” (LAURENT, 2018, p. 70) produzido pela maneira como esse significante é veiculado pelo analista. Em suas palavras: “Essa interpretação não é o acréscimo de um significante dois com relação a um significante um. Ela não visa à concatenação ou à produção de uma cadeia significante” (LAURENT, 2018, p. 71). Trata-se, como explica Laurent mais adiante nesse mesmo texto, de um significante que seria novo em razão de sua capacidade de desencadear um despertar, o qual se conecta “à produção de um efeito de sentido real como produção de um evento de corpo” (LAURENT, 2018, p. 71).

Dentre os contextos de uso da ideia de jaculação recortados da obra lacaniana por Laurent, destacamos dois, por sua pertinência à discussão que aqui tecemos acerca do gaio saber. O primeiro deles diz respeito a Poordjeli, palavra-valise inventada por Serge Leclaire de modo a formalizar, em final de análise, vários aspectos de sua fantasia. Lacan qualifica esse invento como “uma jaculação secreta, uma fórmula jubilatória, uma onomatopeia” (LACAN, 1964-65, aula de 27 de janeiro de 1965). O segundo contexto é o do uso do termo jaculação para dar conta da força do texto poético.

As referências específicas identificadas por Laurent neste segundo contexto são aquelas feitas à poesia de Píndaro e à de Angelus Silesius. No entanto, podemos imaginar Lacan às voltas com a raiz etimológica do termo “jaculação”, não muito distante, possivelmente, do latim joculator (de jocus: jogo), termo que derivou, nos séculos XI e XII, para o nome dado, em diversas línguas latinas, a uma figura-chave da cultura dos trovadores medievais (ZUMTHOR, 1987/2001, p. 56), o jogral, esse que em suas andanças cantava coisas como:

Er vei vermeills, vertz, blaus, blancs, gruocs,
vergiers, plais, plans, tertres e vaus;
e’il votz dels auzels son’e tint
ab doutz acort maitin e tart:
so’m met en cor q’ieu colore mon chan
d’un’aital flor don lo fruitz si’amors
e jois lo grans e l’olors de noigandres.

Um dos vestígios que nos chegaram da “catedral” (AGAMBEN, 1977/2007, p. 157) de versos e melodias construída pelos trovadores medievais da Europa ocidental, essa estrofe do Canto XI de Arnaut Daniel (1150-1210) exemplifica bem um modo, próprio da gaia ciência, de saber fazer com o gozo de lalíngua. Ainda que a melodia tenha se perdido, ainda que a língua nos seja estranha, é possível perceber como esses versos se prestam a uma fruição que se dá não só no pensamento, às voltas com as camadas de decifração do sentido, mas também no corpo, afetado pelo ritmo de cada verso, pela vibração de cada palavra, pelo timbre de cada fonema.

E embora a gaia ciência medieval pareça remota e inacessível à sensibilidade contemporânea, pode-se dizer que ela encontra uma espécie de ressurgência entre nós, brasileiros, na canção que aqui se tem produzido, sobretudo na segunda metade do século XX, como sugere José Miguel Wisnik (2004). Esse cancioneiro, observa o autor, constitui um espaço de reflexão e debate sobre os problemas do país, ao mesmo tempo que proporciona, em grande medida, a nossa “educação sentimental”, como o atesta o documentário As canções, de Eduardo Coutinho (2011) — e tudo isso em formas nas quais se encontram ricamente articulados o erudito e o popular, o literário e o oral, a fala e o canto, a poesia e a música. No que concerne particularmente ao discurso analítico, a gaia ciência brasileira parece oferecer, a quem se deixa tocar pelas várias vozes que a compõem[4], uma via régia para o real de lalíngua.

 


Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, G. (1977). Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Ed. UFMG. Tradução: Selvino José Assmannn. 2007
BASSOLS, M.. “Scilicet, le corps parlant de l’AMP”. In: Association Mondiale de Psychanalyse. Scilicet: Le corps parlant: Sur l’inconscient au XXIeme siècle. Paris: ECF, 2015, p. 9-14.
COUTINHO, E. As cançõesDVD. Petrópolis: Bretz Filmes. 2011.
LACAN, J. (1964-65). O Seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito.
______. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, aindaRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Tradução: M. D. Magno, 1985.
______. (1973). “Nota italiana”. InOutros escritosRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Tradução: Vera Ribeiro). 2003.
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______. (1976-77). O Seminário, livro 24: l’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre. Inédito.
LAURENT, E. “L’interprétation événement”. In: La Cause du Désir100(3), 2018, p. 65-73.
LIMA, M. “Freud, Lacan e a arte: uma síntese”. In: LIMA; JORGE (orgs.). Saber fazer com o real: diálogos entre psicanálise e arte. Rio: Companhia de Freud, (2009), p. 15-29.
MILLER, J.-A. “Le corps parlant: Sur l’inconscient au XXIeme siècle”. In: Association Mondiale de Psychanalyse. Scilicet: Le corps parlant: Sur l’inconscient au XXIeme siècleParis: ECF, 2015, p. 21-34.
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TEIXEIRA, A. “Depressão ou lassidão do pensamento? Reflexões sobre o Spinoza de Lacan”. InPsicologia Clínica20(1), 2008, p. 27-41.
WISNIK, J. M. “A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil”. InSem Receita: ensaios e cançõesSão Paulo: Publifolha, 2004, p. 213-240.
ZUMTHOR, Paul. (1987). A letra e a voz(Tradução: Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira). Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 2001.
[1] O autor agradece ao Prof. Antônio Teixeira pela orientação na feitura deste artigo.
[2] A acídia corresponderia, numa perspectiva lacaniana, a uma posição demissionária do sujeito em face da causa do desejo. Ver TEIXEIRA, 2008.
[3] Ver TEIXEIRA, 2008.
[4] Entre as quais se reconhecem as do rap e do slam, intensamente presentes sobretudo para a juventude periférica dos grandes centros urbanos do país.



Almanaque On-line Agosto/2021 V. 14 Nº 27

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

MICHELLE SENA

Esta edição tem como tema Interpretação: um dizer que toca o corpo. A partir da continuidade do trabalho desenvolvido pelo IPSM-MG no segundo semestre de 2021 e seguindo a trilha do Almanaque 27, a temática da interpretação continua provocando ressonâncias que, nesta edição, serão abordadas evidenciando seus efeitos sobre o corpo. [Leia Mais]

TRILHAMENTOS
DA ESCUTA DO SENTIDO À LEITURA FORA DO SENTIDO: NOSSA SANTA INTERPRETAÇÃO

SILVIA BAUDINI

Em um primeiro momento dessa conferência, a autora trabalha as noções de transferência e interpretação quando sustentadas pelo simbólico e pelo analista alojado em uma posição de prestígio pelo suposto saber, para, em seguida, pensá-las em um mundo onde essa suposição tem praticamente desaparecido e o simbólico não é o registro predominante. Através de alguns fragmentos de casos, a autora nos conduz por uma clínica onde o Outro não existe e na qual a leitura do fora do sentido pode dar lugar a invenção de uma nova escrita. [Leia Mais]


INTERPRETAÇÃO HERÉTICA E ACONTECIMENTO DE CORPO NAS PSICOSES

SÉRGIO LAIA

O inconsciente é intérprete e, ao interpretar, cifra novamente tornando infinita a atividade interpretativa. Frente a esse excesso interpretativo do inconsciente que se impõe nas psicoses como nas neuroses — embora, nestas últimas, de forma mais velada e sutil —, este texto, na trilha das formulações de Lacan e Miller, argumenta que interpretar analiticamente é fazer frente a esse trabalho interpretativo infindável próprio ao inconsciente, de modo que a interpretação analítica vire pelo avesso essa interpretação infinita do inconsciente. A heresia em questão é sustentar a interpretação na contracorrente do inconsciente quando a concepção que, em geral, se tem da atividade analítica é de que ela o interpreta, ou ainda que, na clínica das psicoses, não se deve interpretar. [Leia Mais]


 

A INTERPRETAÇÃO E ALÉM

SOPHIE MARRET-MALEVAL

A prática analítica se estabelece entre o que se lê e o que se escreve, ancora-se numa decifração que não visa o sentido e se regula pelo corte que separa S1 e S2, bem ali onde a palavra mostra o seu limite. [Leia Mais]


 

NÃO SEM OS CORPOS

BERNARD SEYNHAEVE

O autor sustenta o lugar determinante que Lacan dá à presença dos corpos em uma análise: o do analista e do analisante. Em seu ultimíssimo ensino, compreende-se que a interpretação segue o rastro do falasser considerando que a função do inconsciente se completa pelo corpo — não pelo corpo simbolizado nem pelo corpo imaginário, mas pelo corpo que tem em si algo de real. Portanto, para além da decifração, o que uma interpretação visa é perturbar a defesa, fazer ressoar o corpo afetado por lalangue. Para tanto, não basta se ver ou se falar; a presença física também faz parte da interpretação. [Leia Mais]

 

ENTREVISTA

ALMANAQUE ENTREVISTA

JACYNTHO LINS BRANDÃO

Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, Jacyntho Lins Brandão lecionou língua e literatura grega de 1977 a 2018, foi diretor da Faculdade de Letras por duas vezes e vice-reitor da Universidade. Foi também professor visitante na Universidade de Aveiro, em Portugal, na Universidad Nacional del Sur, na Argentina e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. Atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Ouro Preto e membro da Academia Mine ira de Letras. [Leia Mais]

ENCONTROS
A INTERPRETAÇÃO LACANIANA: MEIO-DIZER, POESIA, ESTILO

JORGE ASSEF

O autor recorre a uma citação de Éric Laurent referente a um episódio do início de sua análise com Lacan e, a partir desse exemplo, aborda as três vertentes do meio-dizer implicadas na estrutura da interpretação tal como propostas por Lacan: o equívoco, o enigma e os efeitos de estilo.[Leia Mais]


 

O QUE FAZ UM, MARCA

PAULA HUSNI

A autora faz referência ao encontro de Lilia Mahjoub-Trobas com Lacan e os efeitos de uma intervenção do analista que toca o corpo, ressoa e faz eco perturbando as defesas e inserindo um menos. Com seu corpo, o analista inscreve uma hiância ao se prestar a representar o não simbolizável do gozo. O analista advém no lugar do trauma ao provocar um vazio, o Um a menos que instaura a presença da falha da não relação sexual. [Leia Mais]


 

A INTERPRETAÇÃO JACULATÓRIA

MARISA MORETTO

A autora traz nuances da discussão teórica sobre a interpretação jaculatória situando-a no limite da palavra quando já não é mais possível o desdobramento da cadeia significante e pergunta se tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toca o corpo e incide no campo do gozo. Ali, onde a palavra se apaga, estaria o impacto, o que faz ressoar outra coisa que não a significação. Para Miller, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna. [Leia Mais]


 

UMA INTERVENÇÃO POUCO ORTODOXA

MARÍA DE LOS ÁNGELES CÓRDOBA

A autora faz uma leitura apurada do testemunho de Hilda Doolittle sobre a sua análise com Freud, presente no livro Por amor a Freud, no qual Doolittle se esforça para transmitir algo da experiência desse encontro de maneira vívida. A autora destaca a “atmosfera interpretativa” e o efeito do impacto do gesto e das palavras do analista sobre o corpo da analisante a partir de umas das intervenções freudianas relatadas por Doolittle — uma intervenção de exceção, pouco ortodoxa, que seguiu ressoando por muito tempo após o fim dessa análise.[Leia Mais]

INCURSÕES
A PSICOSE E A MÁQUINA DE INTERPRETAR

MAURICIO TARRAB

Neste texto o autor retoma e comenta outra publicação de sua autoria, “A psicose e a máquina de interpretar”, e resgata a ideia de que o real, fora do sentido, coloca em funcionamento uma máquina de produzir ficções e que a própria psicanálise pode fazer funcionar essa máquina de produzir sentido. Ele ressalva, no entanto, que, com o ensino de Lacan, é possível ir além do campo ficcional, e é esse além que o autor desdobra em seu texto. [Leia Mais]


 

“EU NÃO SOU DE FALAR MUITO, EU DANÇO”

MÁRCIA MEZÊNCIO

Comentário do filme Inocência roubada, narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma. Interrogam-se os efeitos, para o sujeito, da interpretação dada pelo discurso jurídico. Propõe-se que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo. [Leia Mais]


 

POR QUE AS MÃES DE HOJE NÃO INTERPRETAM?

MARGARET PIRES DO COUTO 

Investigam-se os embaraços dos pais, especialmente do Outro materno, em traduzir o mal-estar das crianças, o que os leva a recorrer cada vez mais ao saber da ciência por meio dos inúmeros especialistas da criança. Partindo da premissa que uma primeira interpretação é fundante do sujeito e que a dificuldade em interpretar a criança responde à inexistência do Outro, discute-se como o discurso analítico instala o Outro retirando a criança da solidão de seu gozo. Com essa operação de restituição do S2, a cadeia significante se produz com importantes efeitos de mobilidade para criança. [Leia Mais]


 

A INTERPRETAÇÃO ENTRE A ESCUTA E O QUE SE LÊ

TEREZA FACURY 

A autora elege o texto de Miller “Ler um sintoma” para abordar o tema da interpretação. A leitura de um sintoma implica em uma defasagem entre a escuta e a leitura que se faz sobre o dito do sujeito. Para esclarecer essa diferença, aborda um caso relatado por Guilherme Ribeiro no Núcleo de Psicanálise e Medicina e o testemunho de passe de Gustavo Stiglitz: “Aqui hay gato encerrado. Sobre el fenômeno psicossomático”[Leia Mais]


 

O QUE CABE AO ANALISTA NA INTERPRETAÇÃO HOJE?

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA

Este texto trata do lugar que ocupa a interpretação hoje na clínica psicanalítica a partir do último ensino de Lacan. Busca-se elucidar os deslocamentos teóricos-clínicos produzidos na prática da interpretação com o recurso de vinhetas clínicas. Da escuta do sentido do sintoma à leitura do fora de sentido, destaca-se que a interpretação opera entre o ser da falta e a fixidez do gozo, entre o saber ler e o bem-dizer do sintoma. Assim, espera-se que do encontro com o analista possam advir saídas para o sujeito lidar com o que é da ordem de seu mal-estar. [Leia Mais]

DE UMA NOVA GERAÇÃO
NEUROSE OBSESSIVA: UM DIALETO CONTEMPORÂNEO?

MARCELA BACCARINI PACÍFICO GRECO

Este trabalho parte de um comentário feito por Lacan em 1978 para investigar como o discurso do mestre contemporâneo e suas incidências podem privilegiar apresentações sintomáticas que se aproximam daquelas de que se vale a neurose obsessiva. Trata-se de discutir como determinados aspectos dessa forma de organização subjetiva, que foram apontados por Freud e retomados por Lacan, podem ser cotejados com a fenomenologia dos novos sintomas provocados pela decadência da ordem simbólica. Por fim, objetiva-se, também, levantar uma questão sobre a direção do tratamento nesses casos. [Leia Mais] 


 

O REAL DO INCONSCIENTE E A GAIA CIÊNCIA: SABER FAZER COM LALÍNGUA

BERNARDO MARANHÃO

Este artigo discute o trecho de “Televisão” em que Lacan faz menção à gaia ciência, o saber alegre dos trovadores medievais. O que se pretende interrogar é em que medida esse saber pode ser tomado como um referencial, entre outros simultaneamente possíveis, para a interpretação analítica, num contexto em que o inconsciente é concebido, com Lacan, como “o mistério do corpo falante”.[Leia Mais]




O Ordinário Do Gozo, Fundamento Da Nova Clínica Do Delírio

DOMINIQUE LAURENT

 

CAO GUIMARAES

 

A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996, em seu seminário, inaugura, dizia ele: “a época lacaniana da psicanálise”, aquela “da errância, aquela dos Nomes-do-Pai (non-dupes errent), aquela daqueles que são mais ou menos tolos (dupes) do pai, mais ou menos tolos (dupes) do Outro”[1].

 

Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais, enquanto tudo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever, em A Gaia Ciência, que “Deus está morto”, já não colocava essa questão? Houve, entretanto, ideais que tiveram uma vida dura e puderam consolidar, de modo decisivo, a função paterna, um dos sustentadores do título de Outro. Isso é tão verdadeiro que, na psicanálise, “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante de que o Outro existe”[2]. Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho da sua desconstrução e da sua pluralização no equívoco dos Nomes do Pai (non-dupes errent). Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de capiton. Não há mais necessidade de alguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente tornou-se louca.

 

Crença e loucura

 

Desde então a função paterna se apresenta no avesso do mestre, sob a forma rebaixada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia por todos, para assegurar a satisfação dos seus desejos, consagrando-lhes um amor igual. O verdadeiro Outro ao qual se recorre como garantia é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica àquele que encarna a função de pai como se comportar, mas autoriza e reconhece, de maneira inédita, estilos de vida antes condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai induziu os movimentos de reivindicação e luta das mulheres, dos gays e lésbicas em registros diversos, cujo último, depois do casamento para todos, diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber uma criança por PMA[3].

 

Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para além do pai. O bom uso da função do significante mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não esteja fora da lei. O discurso do direito, assegurando a promoção do direito à diferença pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito ao gozo? Dito de outro modo, a identificação a um significante mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não é todo absorvido na prática sexual; o sintoma é a prova mesmo de que o parceiro sexual é, eventualmente, o parceiro sintoma do sujeito.

 

A norma neurótica, construída sob a lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan fazia ouvir em “Os complexos familiares” (LACAN, 2003), a neurose é, sob vários aspectos, um efeito de perspectiva captado numa relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs num momento da história do patriarcado. Sem dúvida, Lacan falava de um momento terminado. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, são tagarelas. A lei se diz no singular. Ela pode, para Lacan, reduzir-se aos ‘mandamentos da palavra’, segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também aquelas majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo de se viver a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não está sozinha. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas concepções assistidas, o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais, casados ou não, encarregados de uma família ou não. O combate de emancipação feminista frente à ordem simbólica tradicional, substituído pela noção de gênero na tentativa de absorver a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida, inclusive os queer, que, confrontados com uma fuga de identificações, se arranjam com modos de gozar cada vez mais singulares.

 

Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma; melhor dizendo, do parceiro gozo.

 

Do patriarcado ao parceiro gozo

 

Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal na sua composição e recomposição, da mesma forma que as da parentalidade. Mais ainda, fomos confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, o retorno pelo artifício às núpcias funestas da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um novo regime, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado de estilos de vida. O valor social atribuído a uma ou outra varia segundo o preço estabelecido pela civilização para o ideal e o objeto a. Mas não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva, que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem na sua forma de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil crer que elas ainda sejam a norma.

 

Os tipos de sintoma e as exigências de gozo

 

Lacan apreendeu o sintoma na sua dimensão singular, quer dizer, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, uma vez que reenvia sempre ao um por um. Essa perspectiva do sintoma, no entanto, é correlativa de outra, a do sintoma captado pela estrutura. Na “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” (LACAN, 2003), Lacan coloca a questão dos tipos de sintoma como a clínica os havia isolado antes da psicanálise, em relação à particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade de seus tipos, como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não dependem do nominalismo da contingência, mas do realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são, então, identificáveis pela “exigência de gozo”. A Zwangsneurose deve ser generalizada para além do que a neurose obsessiva permite perceber.

 

Essa questão do gozo está no primeiro plano do caso freudiano do Homem dos lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, lhe consagrou todo um seminário de DEA[4]. Foi com esse caso que Freud introduziu, pela primeira vez, o termo Verwerfung, de rejeição a propósito da castração, que se fazia acompanhar, ao mesmo tempo, por um reconhecimento da castração. Para Lacan, como nota J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado desta forma: “como formular a coexistência da Verwerfung com o reconhecimento da realidade?” (MILLER, 2009, p. 82). J.-A. Miller situa primeiro a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele chama de foraclusão como mecanismo simbólico (LACAN, 1998, p. 394). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento de linguagem significante – e não um sentido – que está subtraído do circuito”. É um elemento “que só faz sentir seus efeitos por sua ausência e que mobiliza muitas significações ao seu redor, sem que essas significações cheguem a se juntar ao próprio significante” (MILLER, 2009, p. 86). A foraclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e encontrar um meio de se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não recoloca em causa toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar sobre a assunção […] da função paterna, mas sobre a da castração” (MILLER, 2009, p. 91). A foraclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956, com a “Questão preliminar …”. A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica uma foraclusão do Nome-do-Pai?

 

Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são questionadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Desde que um menos avança em direção ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito fica desestabilizado. É isso que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se o falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (2009, p. 110).

 

A paranoia e a clínica universal do delírio

 

A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a foraclusão generalizada vem pontuar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente absorvido pela mortificação significante e que, no que diz respeito a isso, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que, ali onde está o gozo, e não apenas o gozo-sentido (joui-sens) fálico, é a língua, em seu conjunto, que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se dá com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se fixam dependem do sinthome e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthome tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas a procura, em cada caso, da singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.

 

O conceito de sinthome constituiu um avanço considerável para apreender uma clínica complicada, “inclassificável”, aquela do que se chama, desde a Conversação de Arcachon, de psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, o acento colocado por Lacan sobre o impacto do dizer sobre o corpo antes de qualquer entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade (…) é a mesma coisa” (LACAN, 2007, p. 52). Lacan havia, desde o estádio do espelho, mostrado a paranoia constitutiva do sujeito no seu imaginário em relação ao outro e elaborado os diferentes tratamentos da paranoia constitutiva. Chega a concluir, com a teoria dos nós, que a psicose paranoica consiste no fato de o sujeito enodar-se em três, numa continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros contém o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “o sujeito então, ele não fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S ().

 

O impacto do dizer sobre o corpo, antes de qualquer entrada em jogo do olhar no estádio do espelho, provém do troumatisme. Ele é apreendido a partir do furo (trou), da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como o que faz furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo a uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamou de “clínica universal do delírio, aquela que toma seu ponto de partida disto, de que todos os nossos discursos são apenas defesas contra o real” (1993, p. 7). A fórmula “todo mundo é louco, quer dizer, delirante” (LACAN, 2010, p. 31) reenvia à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que diz respeito à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso perturba as diferenças feitas, até então, entre neurose e psicose.

 

Para concluir, não é excessivo dizer que, com o declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico, para se defender do real, não é mais a norma, mesmo se ainda haja pais e mães em torno dos quais o discurso se agarra mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, quanto a isso, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Letícia Soares

 


Referências
AFLALO, A., “Réévaluation du cas de l’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 43, out. 1999.
LACAN, J., “Os complexos familiares e a formação do indivíduo”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J., “Posição do inconsciente”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 849.
LACAN, J., “Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes!”, Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, São Paulo, 2010, p. 31-32.
LACAN. J., O seminário, livro XXIII: o sinthoma, (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MILLER, J-A., “L’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 72, nov. 2009.
MILLER. J-A., “Clinique ironique”, La Cause Freudienne, 23, fev. 1993, p. 7.
MILLER. J-A., “Um Real para século XXI”, O real no século XXI – Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum e Escola Brasileira de Psicanálise, 2014.
[1] MILLER J.A., “L’Autre qui n’existe pas et ses comités d’éthique”, ensino pronunciado na cadeira do departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 20 nov. 1996, inédito.
[2] Ibidem.
[3] Em francês, PMA: Procréation Médicalement Assistée [N.T.].
[4] Cf. AFLALO, A., “Réévaluation du cas de l’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 43, octobre 1999, p. 85-117.

 


DOMINIQUE LAURENT
Psicanalista, AE da École de la Cause Freudienne (AMP) laurent.dominique@wanadoo.fr