Ponto De Loucura Na Era Do Parlêtre

VICTORIA HORNE REINOSO

CAO GUIMARAES

Loucura e psicose

 

Se, muitas vezes, a psicose pode ser identificada como loucura e a loucura se revelar da ordem da psicose, esses dois termos, que são utilizados frequentemente um em lugar do outro, pertencem a registros diferentes, que não se recobrem completamente.

 

A psicose, herdada da psiquiatria clássica do século XIX, retomada e reformulada por Freud, é uma categoria clínica, uma classe nosográfica que permite ordenar um diagnóstico. Com Lacan, ela foi inicialmente erigida como estrutura, tendo em seu centro a foraclusão do Nome-do-Pai, para, mais tarde, no seu último ensino, acrescentar a esses marcos estruturais aqueles da clínica borromeana.

 

A loucura é transestrutural. É um termo antigo que pertence à língua comum e variou segundo as épocas. Apesar de uma grande latitude na utilização da palavra loucura em inúmeros contextos sem que ela nos remeta forçosamente à doença mental, ela designa, de maneira mais restrita, as múltiplas formas de perder a razão, de estar fora das normas sociais, fora da realidade, de delirar, de sair da linha, diriam os autores antigos…

 

A cada época, seus loucos, sua forma de conceber, de descrever e de tratar a loucura. Sábios que detêm uma certa verdade, marginais que encarnam o objeto dejeto, homens livres, perigosos, violentos, criminosos, delirantes… É sempre, no entanto, um traço do excesso, do transbordamento de um limite, que os estigmatiza.

 

Os dois termos, loucura e psicose, têm relação com uma “norma”, com uma categoria do “normal”, da qual todos dois viriam encarnar o além, o patológico, o a-normal.

 

Se Freud descobriu o inconsciente com as histéricas e inventou a psicanálise a partir da neurose, Lacan entrou na psicanálise pelas psicoses e pelo seu encontro com Aimée. À frente do seu tempo, ele nos conduziu a uma pós-modernidade na qual a psicose se tornou, pouco a pouco, um paradigma da subjetividade contemporânea. Não que todo mundo seja psicótico, ainda que ele tenha dito que “todo mundo é louco” (LACAN, 2010, p. 31), mas a perda de consistência da figura do pai e do Outro, a depreciação dos discursos estabelecidos pelos sujeitos individualmente e pela sociedade em geral, vão no sentido de uma subjetividade na qual os modos tradicionais de manter os equilíbrios precários dos enodamentos dos parlêtres cedem lugar a soluções não padronizadas, bricolagens, a invenções sob medida e singulares de realizar a estrutura.

 

O que Lacan soube iniciar e aquilo em que continuamos a trabalhar, apoiando-nos na orientação de Jacques-Alain Miller, é uma reviravolta da psicanálise que, de agora em diante, tem a ver com uma civilização exposta à subversão inevitável da noção de ”normalidade”. Uma vez que esta última é tão atacada em nossa contemporaneidade, como então pensar a loucura?

 

Abordamos essa questão a partir de duas proposições de Lacan, emblemáticas de duas viradas maiores em seu ensino, e nas quais o termo loucura não poderia ser substituído pelo termo psicose. De fato, sua utilização comporta um pequeno deslocamento e passa então a apreender outra coisa, uma outra vertente do termo. Trata-se de “todas as mulheres são loucas” (LACAN, 2001, p. 538) e de “todo mundo é louco” (LACAN, 2010, p. 31).

 

A partir daí, podemos tentar esclarecer o paradoxo do termo loucura que, mesmo ao designar a loucura no sentido psicótico ou paroxístico, pode igualmente visar esse ponto de loucura inerente ao parlêtre na nossa civilização.

 

De “todas as mulheres são loucas” a “todo mundo é louco”

 

Essas duas proposições, longe de se contradizerem, articulam-se e se sucedem logicamente. Efetivamente, Lacan precisou passar pelo remanejamento do seu ensino nos anos setenta ao abordar os impasses do feminino a partir do gozo e ao desenvolver o para-além do Édipo, para chegar à foraclusão generalizada. Com a elaboração das fórmulas da sexuação e a concepção da sexualidade feminina como não respondendo completamente à lógica fálica, Lacan produz uma inversão da leitura estruturalista, passando pelo não-todo da posição feminina até o regime do não-todo generalizado, quer dizer, até pensar que não tudo do real do gozo do parlêtre seja reabsorvível pelo Nome-do-Pai.

 

“Todas as mulheres são loucas” é uma conclusão que emana dessas elaborações. Ela introduz um jogo entre “todas / não toda” e “loucas / não loucas”.

 

Assim o universal do que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É por isso mesmo que são não todas, isto é, não loucas-de-todo, mas antes conciliadoras, a ponto de não haver limites para as concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens (LACAN, 2003. p. 358).

 

O que Lacan visa nessa frase com o termo loucura é o resultado dessa parte não limitada pelo falo, o lado não-toda da mulher. Esse fora da norma-macho[1] acarreta simultaneamente a emancipação em relação à lei do pai e o pronta-pra-tudo das mulheres que poderia ser qualificado de loucura. Mas, ao mesmo tempo, esse passo de través em relação à norma fálica as torna também menos loucas, pois mais próximas do real e mais realistas quanto aos semblantes, é sua relação com o S( ) (LACAN, 1985, p. 87).

 

Há aqui, portanto, esse traço simultaneamente do sem limite, do fora da norma, do excesso, que é um dos traços da loucura, sem que isso remeta à psicose. É um traço que, da psicose ao feminino, faz um ponto de loucura: o ilimitado, o transbordamento dessa função normativa que é a função fálica.

 

A segunda proposição coloca igualmente em jogo a questão do “todo”, de uma certa “universalização” que Lacan tempera com “se se pode dizer semelhante expressão”. No entanto, essa proposição só pode ser compreendida a partir da mudança de estatuto do Nome-do-Pai e de sua pluralização, que permitirá, com a foraclusão generalizada, uma outra perspectiva sobre a clínica.

 

“[Freud] considerou que nada é senão sonho, e que todo mundo (se se pode dizer semelhante expressão), todo mundo é louco, isto é, delirante” (LACAN, 2010, p. 31).

 

Aproximar a expressão “todo mundo é louco” a “nada é senão sonho” coloca essa frase em contato com a questão da relação com a realidade enquanto subjetiva.

 

Freud adianta que, mesmo se pudesse ser simples dizer que “a perda da realidade seria, para a psicose, dada de início” e que “para a neurose seria o caso de pensar que ela é evitada”, na verdade, “toda neurose perturba de uma maneira ou de outra a relação do doente com a realidade” (FREUD, 1924/1969, p. 205). Há sempre, tanto para os psicóticos como para os neuróticos, um “não querer saber” de um real que levará o sujeito a se defender dele. Ele substituirá ou limitará esse “impossível de suportar” (LACAN, 1979, pp. 7;11) por uma construção pessoal, quer seja delírio, quer seja fantasia. Todo mundo é louco quer dizer que todo mundo tem uma maneira singular de tratar esse impossível e de acreditar na realidade.

 

J.-A. Miller faz dessa frase uma bússola, um condensado do ultimíssimo ensino de Lacan (MILLER, 2009, p. 69). Nesse texto, mira as certezas dos universitários que acreditam ter o verdadeiro saber sem considerar que, como “todo mundo”, eles também deliram. Mas, no contexto de seu ultimíssimo ensino, Lacan se esforça para “concernir” esses clínicos que não querem saber nada do real que, na loucura de que dão testemunho os psicóticos, vem tocá-los intimamente, mesmo se o “para todos” da loucura está implicitamente em tensão com um “não para todos” da psicose. Pois, se a loucura é para todos, ela não é “toda” a mesma. Lacan se serve disso, então, para visar e fazer ressoar esse ponto de certeza mais singular do parlêtre, ponto de loucura irredutível.

 

O particular e o singular

 

À bipartição “há” ou “não há” o Nome-do-Pai que ancora a clínica descontinuísta das categorias clínicas se opõe uma continuidade da foraclusão generalizada, com “todo mundo é louco”. No entanto, como J.-A. Miller relembrou muitas vezes, essas duas modalidades, ainda que em tensão, não se opõem. A foraclusão generalizada não incide sobre o significante do Nome-do-Pai, mas sobre a impossibilidade de inscrição de um real que concerne à relação do parlêtre com o outro sexo: é a não-relação sexual. Isso afirma, contudo, a importância do furo que constitui esse ponto de real em torno do qual o parlêtre poderá construir sua porção de delírio a fim de suprir aquilo que não se inscreve. Por outro lado, embora o Nome-do-Pai possa ser um apoio para tratar a não-relação sexual, a metáfora paterna nunca é completamente realizada.

 

A clínica descontinuísta nos leva a trabalhar com as categorias clínicas. Estas reúnem os signos particulares de uma classe. O particular é “o que se assemelha de um sujeito a outro” (MILLER, 2009, p. 27). A clínica borromeana e continuísta é aquela das singularidades dos “esparsos disparatados” (LACAN, 2003, p. 569), aquela do reconhecimento dos achados particulares de cada parlêtre, aquela do sinthome. Ela trabalha a partir do Um de gozo de cada um.

 

Quando, no século XX, havia casos paradigmáticos – tal como Schreber encarnando a categoria clínica da psicose –, com Joyce, Lacan mostra a maneira própria e singular de fazer sustentar o enodamento dos registros. O caso não é mais, portanto, paradigmático de uma classe. Na clínica do sinthome, um caso não basta para demonstrar uma categoria porque não se trata mais de dar conta de um “para todos” da classe clínica, mas de um “não-todo” que, de cada singularidade, faz a infinita pluralidade dos possíveis.

 

A psicose ordinária veio tirar conclusões em ato dessa transformação que a nossa época exige que se leve em conta. É um primeiro passo. Entretanto, a psicose ordinária ainda tem um pé no discurso do mestre classificador: é uma psicose. Tem, porém, o outro pé no fora da norma e na singularidade, vindo iluminar essa nova forma de conceber a clínica. Desmancha-prazeres do nosso conforto clínico, obriga a fazer um esforço de des-classificação dos parlêtres para se situar sobre os signos discretos e as invenções inéditas de cada um.

Como dar um passo a mais?

 

Já sabemos que a estrutura da sociedade tal como era com suas normas, seus princípios, seus interditos, se alterou. Os neuróticos estão igualmente sujeitos a ter que inventar uma forma de fazer, pois esses elementos da tradição prêt-à-porter que lhes permitiam construir uma maneira de enodar os registros de forma padronizada foram alterados, sofreram mutações, não têm o mesmo lugar no mundo. A invenção é então necessária “para todos”.

 

A evacuação do impossível pelo discurso do mestre atual deixa todos os sujeitos à mercê de um ilimitado. Por que então essas amarrações singulares, quando estáveis, estariam fora da “normalidade” e de qual? A partir do momento em que nos orientamos rumo a uma “igualdade clínica” (MILLER, 2015), o Nome-do-Pai é apenas uma entre outras formas de enodar os registros.

 

Uma vez que Lacan se pergunta se Joyce era louco (LACAN, 2007, p. 75), mais do que a resposta que ele não dá, o que é interessante é que ele se coloca essa questão enquanto demonstra, ao mesmo tempo, a maneira singular que Joyce tem de enodar os registros, prescindindo do Nome-do-Pai. É com efeito outra forma de separar loucura e psicose.

 

Num certo número de casos, o que se passava antigamente por “loucura” pode, a partir de agora, ser integrado em nosso mundo de todos os possíveis. As loucuras se dissolvem hoje na selva dos estilos de vida, a cada um seu modo de gozar. Se “todo mundo é louco”, cada um o é de uma forma, de uma loucura diferente.

 

A civilização contemporânea é feita de uma multiplicidade de subjetividades que coexistem, talvez menos territoriais que antes do mundo globalizado, mas, em compensação, mais variadas. Essa coexistência de subjetividades faz com que, por um lado, a vida tenha uma vertente mais padronizada, mas, por outro, tudo pode também ser cada vez mais sob medida. É preciso, antes de tudo, escolher, pois a tradição não orienta mais os parlêtres como antes. Entretanto, ao mesmo tempo, somos muito “orientados” nas nossas escolhas, por exemplo pelos algoritmos e pelo que nos é insidiosamente imposto pelo avanço do mundo tecnológico. E a padronização ou a exceção, a escolha ou a imposição, comportam muito bem seu ponto de loucura (LAURENT, 2009, p. 9).

 

O termo loucura implica este interessante paradoxo que faz com que possa remeter àquilo que há de mais “extraordinário” na psicose e mesmo nos momentos igualmente massivos da neurose, como àquele ponto mais singular do parlêtre, ponto de loucura irredutível que ressoa na expressão “todo mundo é louco”.

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Márcia Mezêncio

 


Referências
FREUD, S., (1924/1969). “A perda da realidade na neurose e na psicose”, In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago vol. XIX.
LACAN, J. “Televisão”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003.
______. O Seminário, Livro XXIII, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007.
______. “Overture de la section clinique”, de Jacques Lacan (estabelecida por J.-A. Miller), Ornicar? 1979, n.º 9, pp. 7-11.
______. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003.
______. “Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes!”, Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, São Paulo, 2010, p. 31.
______. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985, p. 87.
LAURENT, E. “A modo de prólogo”, In: O sentimento delirante da vida. Buenos Aires: Colleccíon Diva, 2011.
MILLER, J-A. “Nous sommes poussés par des hasards à droite et à gauche”, In: La Cause Freudienne, 2009, nº 71, p. 69.
MILLER, J-A., “O inconsciente e o corpo falante”. Conferência de encerramento do IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (2014). O osso de uma análise. Mais O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
MILLER, J-A., “São os acasos que nos fazem ir a torto e a direito”. In: Opção Lacaniana, n° 55, novembro, 2009. p. 27.
[1] Em francês, há um jogo de homofonia entre norme-mâle, aqui traduzido como “norma-macho”, e a palavra normal [N.T.].

VICTORIA HORNE REINOSO
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana



Entrevista Cao Guimarães

ALESSANDRA THOMAZ ROCHA, DADE SENA E LUDMILLA FÉRES FARIA

 

FLORENCIA MARTINEZ

 

A GAMBIARRA[1] COMO PARADIGMA DA QUEDA DO FALOCENTRISMO

 

Diante dos imperativos consumistas contemporâneos, quando o mercado se torna cada vez mais sedutor e agressivo, com promessas e ofertas cada dia mais criativas e de forma a impulsionar o consumo do objeto ideal inconsumível, a gambiarra surge como paradigma de solução sinthomática desta época, da queda do falocentrismo, na qual a transgressão se inscreve como imperativo de gozo diante de um desejo impossível de sustentar.

 

A obra fotográfica artística Gambiarras, de Cao Guimarães, nos traz o frescor da invenção moderna e nos mostra, de forma instigante, como a falta se inscreve no discurso capitalista, subvertendo-o. Ela inaugura um espaço entre a ordem e a desordem, entre a contenção e a soltura, entre o imprevisível e o previsto, diante do peso da norma. Ela surge, finalmente, tão fugaz, precária e instável, como uma solução performática do improviso. As gambiarras demonstram, de forma contundente, como a civilização responde ao imperativo de gozo com o vazio de sentido e seu avesso, o cúmulo de sentido: o enigma, que se traduz na invenção singular de um objeto resto, construído a partir do que é inútil e descartável. Demonstra, assim, a função do inútil. Foi a partir dessa leitura que a equipe do Almanaque realizou a entrevista abaixo com Cao Guimarães.

 

Cao Guimarães é um cineasta e artista plástico mineiro nascido em 1965, em Belo Horizonte, cidade onde vive e trabalha. Atuando na interface entre o cinema e as artes plásticas, aborda e documenta a realidade a partir de seu olhar questionador, astuto, sensível e atento. Consoante à lógica de sua época, demonstra, de forma brilhante, como o artista sempre precede o psicanalista em sua leitura sobre o mundo. Por meio da fotografia como objeto de arte, bem como de seus filmes, vídeos e exposições, nos lança a questão do uso das imagens e do saber fazer com elas, de forma a causar a surpresa ou o espanto, tanto quanto a fascinação e o desejo de saber.

 

 Almanaque: Poderíamos saber um pouco sobre o processo de escolha dos temas de seus trabalhos e, em especial, sobre o que suscitou seu desejo de retratar, documentar as gambiarras?

 

Cao Guimarães: Geralmente essa entidade movediça chamada realidade é o grande substrato dos meus trabalhos, realidade na qual me movo, às vezes de forma contemplativa, às vezes propositiva e, às vezes, imersiva, podendo também ser de duas ou três dessas formas ao mesmo tempo. A fagulha inicial que gera o desejo de realizar algo sobre alguma coisa é o espanto, um sentimento que coloca meus sentidos em alerta e que, de alguma forma, me transcende ou me transporta para além de mim mesmo, na direção de um outro que desconheço e que me fascina.

 

No caso específico das gambiarras, foi uma espécie de reencontro com meu eu, minha cultura, minhas origens. Após dois anos morando no exterior, empreendi uma viagem de dois meses por dez estados brasileiros, principalmente pelo Nordeste, para realizar meu primeiro longa-metragem (O fim do sem fim) e me deparei com essa prática bastante comum em países como o Brasil, onde a realidade socioeconômica instiga, quase obriga, as pessoas a produzir gambiarras para viver.

 

Almanaque: O que você teria a dizer sobre a estética da gambiarra? Pode-se dizer que ela encarna a dimensão abjeta do objeto ideal, ou seja, ela materializa o objeto do desejo a partir de uma estética transgressiva? Nesse sentido, a estética da gambiarra abdica de toda ordem?

 

Cao Guimarães: Sou partidário da posição de Nietzsche, de que o objeto ideal não existe. Para ele, Sócrates (via Platão) e Jesus Cristo (mais precisamente seus apóstolos e principalmente São Paulo, que fundaram o catolicismo) são os dois grandes artífices de uma certa deformação na percepção da realidade: impregnaram a cultura ocidental da concepção de um mundo ideal (no caso de Platão) ou de um mundo transcendente no pior sentido da palavra, ou seja, da abdicação de viver esta vida para perenizar-se na existência idílica do paraíso após a morte (no caso do catolicismo). Já no mundo capitalista contemporâneo, o objeto ideal não está no mundo das ideias nem na vida após a morte, mas nas prateleiras de um supermercado ou nas roupas de uma celebridade, ou seja, num mundo da descartabilidade, um mundo feito para poucos que joga com o desejo de todos. Transgredir, então, é resistir a esse jogo, reinventando, de forma criativa, soluções de existência não programada. A gambiarra faz parte dessa resistência e traz no seu cerne a imprevisibilidade e a transgressão de uma certa ordem imposta pela força do consumo.

 

Almanaque: Você retrata bastante em seus trabalhos a vertente do documento, da imagem documental e do testemunho como contraponto à literatura e à arte de ficção. Que relação você estabelece entre sua obra fotográfica Gambiarra e o documento?

 

Cao Guimarães: Para mim, o simples fato de eleger algo dentro da miríade de coisas que se vê e enquadrar este algo com as lentes de uma câmera ou de sua consciência e sensibilidade já produz um amálgama fundindo o documento com o que você chama de literatura ou arte de ficção. Alguém já disse “não existe maior ficção do que a realidade”. O que me interessa é justamente essa “fricção”.

 

Almanaque: Qual é a relação que você estabelece entre a gambiarra como dimensão abjeta do objeto de arte e os ready-made de Marcel Duchamp?

 

Cao Guimarães: A relação é total. Duchamp foi quem deu o chute inicial na bola (objeto artístico) e deixou o campo invertido, sem linhas definidas; um gramado infinito, impossível de ser de novo contido dentro de quatro linhas, onde a bola sempre havia rolado. A força da vida ordinária que se manifesta em qualquer coisa, incapaz de ser contida em uma moldura, em uma definição. O mictório que não é mais para receber urina, mas para ser contemplado em um museu. O tijolo furado que já não é mais para construir casas, mas para receber vassouras.

 

[1] Gambiarra: soluções de existência não programada.



Amor E Gozo: Qual Articulação Possível?

LAURA RUBIÃO

 

CAO GUIMARAES

No intuito de dissolver possíveis mal-entendidos na apreensão de seu ensino, Freud adverte:”usamos a palavra ‘sexualidade’ no mesmo sentido compreensivo que aquele em que a língua alemã usa a palavra lieben (‘amar’).” (Freud, 1910/1996, p. 234).

O domínio do sexual se expande ao campo do amor e a psicanálise não poderia se reduzir a nenhuma sexologia ou ciência do comportamento sexual estrito senso. O campo do amor se expande, por sua vez, englobando os conceitos de libido, afeto, pulsão – libertando-se, também, de uma visão romântica ou idealizada. O amor de transferência, que desde sempre esteve na base da experiência analítica, não é da ordem nem do comportamento (como pretendeu Breuer, em seu rechaço moral), nem da ordem de uma construção fantasiosa que encerra simplesmente a mentira, o engodo ou o erro. É um amor genuíno, nos diz Freud, na medida em que engloba os mais autênticos impulsos afetivos do sujeito.

Freud reitera o caráter polissêmico do amor no texto “As pulsões e seus destinos”: “assim, a palavra ‘amar’ desloca-se cada vez mais para a esfera da pura relação desprazer do Eu com o objeto e se fixa, finalmente nos objetos sexuais no sentido mais restrito e naqueles que satisfazem as necessidades das pulsões sexuais sublimadas” (Freud, 1915/2013, p. 57).

Amplia-se o leque que vai da satisfação sexual pura e simples – uma relação singular entre o eu e seus objetos de prazer e a versão sublimada do amor, no sentido de Eros, elo de união entre os homens, num plano mais universal.

A temática do amor em Freud se desdobra numa espécie de montagem que envolve a satisfação pulsional – que primariamente é autoerótica, limitada a pequenas ‘ilhas de gozo’ ou zonas erógenas -, o Eu como superfície corporal e os objetos.

O amor narcísico

No texto sobre o narcisismo, Freud demarca os fundamentos do amor próprio ou do amor de si, inseparável da constituição da imagem de si como um corpo, a partir do olhar do Outro. Ele deixa claro que esse laço primitivo que se produz na captura da imagem de si, engloba um nó que concerne também às pulsões mais primitivas e que, apenas posteriormente, leva-se em conta o mundo externo e seus objetos:

“(…) uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto necessário que algo seja acrescentado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo” (Freud, 1914/1974, p.93).

No início está o corpo fragmentado com suas pequenas ilhas de fruição autoerótica: as chamadas zonas erógenas. Freud nos apresenta um processo complexo de idas e vindas nos circuitos de investimento libidinal que se instauram a partir do encontro do sujeito com sua própria imagem projetada de fora. Desse encontro emerge, paradoxalmente, o domínio do exterior, que é também o domínio do não-eu, do que é estranho, impróprio à estabilidade de uma suposta unidade inata. Este que é visto fora sou eu. Lacan não tratou da unidade imaginária, senão como uma “emancipação jubilatória” a contrastar com essa fragmentação corporal inerradicável. Se o pequeno sujeito se rejubila com a própria imagem isso não acontece, a não ser sob o pano de fundo de uma separação ou perda. Para Lacan, algo fica sempre fora do reflexo do espelho, o que ele chamou de objeto a.

Esse espaço fora que, no entanto, me constitui, Freud o relaciona com a perspectiva da perda de libido, com a inscrição de um menos de satisfação presente nas relações amorosas, nas formações ideais que imprimem sempre um intervalo ou defasagem entre o que somos e o que gostaríamos de ser (ou ter sido), entre o que cumprem nossos filhos (herdeiros dessa marca narcísica) e o que gostaríamos que eles fossem de acordo com nossa medida ideal. Esse movimento de perda e doação instaura a falta e o desejo para além de toda demanda que vise à restauração de uma unidade imaginária perdida. Se o amor é dar o que não se tem, é porque ele se nutre de um objeto perdido.

O Um que goza sozinho e a suplência amorosa

Conhecemos a célebre definição freudiana da pulsão como conceito fronteiriço “entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal” (Freud, 1915/2013, p.25). Tudo que diz respeito ao corpo e sua exigência de satisfação para o sujeito mostra-se inseparável da linguagem que preside, para Lacan, o campo do anímico. Lidamos sempre em nossa clínica com a perspectiva do corpo falante, aquele que fala a língua singular dos afetos que subjaz a toda relação amorosa. O amor porta, portanto, a marca da contingência e do que é inexplicável pelo senso comum.

A pulsão é uma força constante rumo à satisfação, por meio do uso inaudito do objeto, sempre variável e inconveniente do ponto de vista biológico. A boca serve para comer, beijar e falar. Lacan, no Seminário 11, afirma que a pulsão é uma montagem sem pé nem cabeça, do tipo surrealista e também acéfala. (Lacan, 1964/1985, p.154) Os modos de gozo são múltiplos, cambiantes e não abandonam os preceitos da pulsão parcial, mesmo quando subsumidos à esfera da sublimação amorosa.

Freud retoma a gênese da formação do Eu em sua relação com o Outro (objetos), uma relação mediada precocemente por uma economia libidinal que em princípio, leva em consideração apenas a “marca distintiva do prazer”: Eu prazer purificado. Todas as experiências de prazer são introjetadas ao Eu e o que é experimentado como desprazer é vivido no campo da exterioridade, como estranho ao Eu. Quando o mundo externo passa a ser levado em conta, ele presentifica nos objetos essa exterioridade nociva. O que se destaca é o objeto mau, odiado. Se o objeto é fonte de prazer, novamente será internalizado ao Eu. (Freud, 1915/2013, p.55) “O amor advém da capacidade do eu de satisfazer de modo autoerótico uma parte de suas moções pulsionais pela obtenção do prazer do órgão.” (Freud, 1915/2013, p.59). O ódio concerne tudo que veio perturbar essa relação originária do eu com o prazer e que é objeto de repúdio por parte do eu. Há casos em que o amor e o ódio se mesclam e se fundem no endereçamento ao mesmo objeto. No sadismo verificamos uma mescla desse tipo – para ser amado o objeto tem que comportar um caráter odioso, ser fonte de endereçamento da pulsão destrutiva.

Lacan é enfático ao mostrar que, para a Psicanálise, ao contrário da perspectiva cristã, não existe amor sem ódio (amódio) (Lacan, 1972-73/1985, p.122) e isso não é apenas da ordem da ambivalência como sugere Freud. O ódio está no cerne da experiência do amor, sendo esse amálgama o que atesta, segundo formulou mais recentemente Laurent, “ a consequência da separação do gozo dos outros uns” (Laurent, 2018, p.8) Tudo o que se impõe, atestando a inexistência da relação sexual e a presença do objeto a em sua vertente de mais de gozar, ata e desata ao mesmo tempo o nó do laço amoroso. No cerne da experiência amorosa há o muro da não relação sexual que, quando tratado em análise sob transferência, pode ser enunciado como o sinthoma que faz a parceria no âmbito da suplência.

Miller observa que Freud nunca teria sido tão lacaniano quanto em suas contribuições sobre a psicologia do amor, pois, ao longo desse trabalho, tratou de articular o amor e o gozo. (2010, p.7) Para que falemos de amor é preciso incluir a imagem de um Outro que possa servir como uma espécie de revestimento ao mais de gozar (Miller,2010, p.7), mas às vezes o que se visa é um fetiche, um traço contingente de prazer e dor, um elemento insaciável e devastador que insiste como eterna expressão do amuro.

A questão é como o gozo parcial, autoerótico, pode vestir-se de Outro (Miller, 2010, p.15). Se, do lado do amor, Freud isola um mecanismo de substituição (os objetos eleitos sempre são substitutos dos objetos infantis), do lado do gozo há algo de insubstituível (Miller,2010, p.9), algo que só quer se satisfazer solitária e parcialmente. Como saber se, quando estamos na dimensão do amor, não recaímos na vertente da compulsão?

Esses textos de Freud falam dos impasses, dificuldades e entraves da escolha amorosa. Só há o universo da escolha num mundo orientado pela linguagem e pelas regras sociais da escolha, orientado pelas estruturas elementares de parentesco. Há sempre ao menos um parceiro que está proscrito, vetado à escolha. A esse veto originário, segue-se uma metáfora fundadora: P/M à A/J (barrado) (Miller, 2010, p.11-13). Sobre um gozo perdido, barrado, se instala a metonímia do desejo revelada no amor. D/J, eis a escrita proposta por Miller para a máxima lacaniana: só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. A questão é que no nível do gozo (J) não existe o Outro, apenas o Um, uma compulsão à satisfação, que se vale da variação e do ineditismo do objeto. “A metáfora paterna como relação entre pai e mãe nunca permite cifrar a relação sexual”(Miller, 2010, p.21), Se o objeto escolhido é sempre o que é interdito ao sujeito, isso não se resolve com o Édipo: saber que a mulher infiel é o protótipo da mãe, que o menino desejou primariamente e que fez dos outros homens seus rivais como o pai etc. Isso não resolve o problema do gozo, do mais de gozo, do objeto parcial. Essa historinha plena de sentido não resolve o problema: o essencial é que, no sentido lógico, “para poder reconhecer uma mulher como desejável é preciso introduzir aí um efeito de não-todo” (Miller, 2010, p.22).

Freud, ao final do texto “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, localiza no âmbito mesmo da pulsão um ponto de basta: “Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza do próprio instinto sexual é desfavorável à realização da satisfação completa” (Freud,1912/1996, p.171). Isso nos leva ao âmago do problema: a questão de que o gozo é interdito ao ser falante como tal. O encontro traumático da língua sobre o corpo já atua como um corte originário que opera sem o agente paterno da interdição.

Na clínica de nossos dias, constatamos cada vez mais o fracasso da metáfora do amor que se daria pela vertente do amor ao pai. O laço amoroso está interceptado pelo gozo do Um sozinho que pode assumir o formato de experiências de devastação muitas vezes degradantes e violentas, de encontros marcados pela suspensão da palavra ou pela convocação de uma palavra vazia que se prolifera no eterno monólogo das redes sociais e aplicativos de celular ou, ainda, de parcerias marcadas por atuações sucessivas, nas quais o gozo reluta em condescender com o desejo.

O fenômeno da ‘relação aberta’- decorrente do estremecimento das referências tradicionais na esfera do amor – que, supostamente, daria acesso ao gozo absoluto da liberdade sexual lança os jovens, ao contrário, num universo de constrangedora desorientação. As parcerias não se sustentam mais no voto de permanência ancorado na fidelidade monogâmica, cuja contrapartida costumava ser a traição velada e certo direito legítimo ao ciúme. A angústia incide justamente nesse ponto deixado em aberto: como encontrar um parâmetro mínimo de regulação das novas parcerias amorosas, sem o ponto de basta referido à lei? É o que escuto de uma adolescente que se confessa totalmente perdida ao se ver confrontada com a reação agressiva do namorado ao constatar que ela, seguindo à risca o contrato aberto, decide envolver-se com um amigo dele. Ele argumenta: a relação é aberta, mas não vale uma traição com amigos. Se o universal da lei paterna não opera enquanto tal, será preciso lidar com seu efeito de pluralização e, a cada vez, encontrar um limite contingente ao gozo. Sobretudo, cada analisante poderá extrair da experiência analítica a dimensão íntima do ‘aberto’ que insiste em descompletar o laço com o Outro e suscita o trabalho de invenção nas coisas do amor.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S (1910) Psicanálise silvestre. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (ESB, 11).
FREUD, S (1912) Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. (contribuições para psicologia do amor II). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (ESB, 11).
FREUD, S (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução, Rio de Janeiro: Imago, 1974. (ESB, 14).
FREUD, S (1915) As pulsões e seus destinos. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2013.
LACAN, J. (1964) O Seminário: livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário: livro 20, Mais ainda: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LAURENT, É. Disrupção de gozo nas loucuras sob transferência. Inédito.
MILLER, J.-A. Uma conversa sobre o amor. Opção lacaniana online, n.2, 2010.
MILLER, J.A. Uma conversa sobre o amor. In: Opção Lacaniana online, n.2, 2010.

LAURA RUBIÃO
lauralustosarubiao@gmail.com Membro da EBP/AMP



A Cura Pelo Amor Ou O Amor Pela Cura

SAMYRA ASSAD

 

CAO GUIMARAES

 

A transferência

 

Podemos dizer que uma experiência analítica não acontece sem a transferência. Trata-se de um conceito fundamental, extraído por Freud a partir de suas observações a respeito do tratamento analítico, que caminha, passo a passo, sob a égide da dimensão do amor.

 

Vários são os autores e poetas que se ocupam do amor, da escrita do amor, e, curiosamente, quase todos eles trazem a dimensão da tragédia ou do perigo que esse sentimento traz. Claro, não podemos nos esquecer do bálsamo que muitas vezes ele oferece à vida, mas, se o amor é algo invocado numa experiência analítica, Freud bem sabe o que disse quando nos revelou algo sobre “invocar o espírito dos infernos” (FREUD, 1969, p. 213).

 

Roland Barthes, por exemplo, em Fragmentos de um discurso amoroso, traz a inequívoca experiência do endereçamento (cartas de amor) articulando o amor, a escrita e a solidão.

 

Há também O banquete, de Platão, sobre o qual Lacan trabalhou para falar do conceito de transferência em O seminário, livro 8, intitulado “A transferência”. Em O banquete, momento regado a vinho, os convidados eram convocados, um a um, a falar sobre o amor. E, para seguir o fio do alicerce que sustenta a transferência, qual seja, o do endereçamento e do deslocamento, traríamos o que Sócrates aí deflagrou a Alcebíades, quando desvia o que este vê nele, segundo o comentário de Lacan: “Mas convém não desconhecer que, aqui, Sócrates, justamente porque sabe, substitui alguma coisa por outra coisa. Não é a beleza, nem a ascese, nem a identificação a Deus que deseja Alcebíades, mas esse objeto único, esse algo que ele viu em Sócrates e do qual Sócrates o desvia, porque Sócrates sabe que não o tem” (LACAN, 1992, p. 161).

 

De toda forma, para falarmos das incidências clínicas do amor sobre a transferência, não poderemos dispensar os aspectos que aí se configuram como sendo a função de deslocamento e endereçamento, alicerces freudianos do amor transferencial.

 

O amor como resistência para o tratamento

 

O artigo de Freud “Observações sobre o amor transferencial”, publicado em 1915, foi considerado por ele mesmo como o melhor da série dos seus trabalhos técnicos. Ele nos aponta a dificuldade que o analista enfrenta (principalmente os mais jovens) quando chega a ocasião de “interpretar as associações do paciente e lidar com a reprodução do que foi reprimido” (FREUD, 1969, p. 208).

 

É incrível perceber, com esse texto de Freud, como a neurose e o amor possuem uma espécie de relação orgânica; tanto que o amor dirigido ao analista pode vir a se tornar um verdadeiro empecilho para o tratamento, mostrando-nos o uso que a repressão pode fazer do amor a favor de uma resistência ao tratamento. Ou seja, o amor é um terreno fértil para a neurose!

 

Longe de se pautar sobre uma questão moral para se recusar à correspondência amorosa que uma paciente reclama no processo de análise, Freud nos diz da importância de aí haver o que chamamos de manejo da transferência. Por quê? É no amor, pois, por excelência, que se concentra o que se acha oculto na vida erótica infantil. Diz Freud: “Quanto mais claramente o analista permite que se perceba que ele está à prova de qualquer tentação, mais prontamente poderá extrair da situação seu conteúdo analítico” (FREUD, 1969, p. 216).

 

Desse modo, agora as cartas ficam na mesa: a precondição do amor na vida adulta se localiza na “escolha objetal infantil e nas fantasias tecidas ao redor dela” (FREUD, 1969, p. 217). Assim, as noções de deslocamento e endereçamento ganham, aqui, o foco de uma luz no processo transferencial. Por esse viés mesmo podemos encontrar “o problema de como é que uma capacidade de neurose se liga a tão obstinada necessidade de amor” (FREUD, 1969, p. 217).

 

Logo, a posição do analista é fundamental para se fazer superar a resistência do paciente ao tratamento, resistência essa que se estabelece pela via do amor ou do enamoramento do sujeito para com o analista. O amor transferencial pode, então, funcionar como resistência ou mola propulsora em uma análise.

 

Do traço ao saber

 

Por outro lado, isso certamente nos conduzirá a um enunciado de Lacan, a saber, que a resistência é sempre do analista. Não é à toa que Lacan também nos diria “analistas, sejam pacientes”. A dupla maneira de se ler essa frase aponta para a necessidade de o analista, para não ceder aos encantos de um paciente e, com isso, beneficiá-lo em seu tratamento, trabalhar também suas próprias fantasias e escolhas objetais para que não seja imaginariamente capturado na transferência, numa relação dual com o paciente.

 

Isso, portanto, abre outra perspectiva para abordarmos o amor transferencial: a do traço que imprime a escolha de um analista, que descortinará a relação libidinosa do sujeito com seu objeto de amor. Nota-se um traço, um símbolo, uma contingência que faz um sujeito dizer “é com esse que vou fazer minha análise…”. Certamente isso é singular, nenhuma escolha passa pelo mesmo tipo de encontro. Dessa maneira, estamos dizendo também de um deslocamento: aquele do traço impresso pelo sujeito ao analista para se chegar ao saber, ao saber inconsciente, ou seja, S1 S2.

 

Isso nos permite ressaltar um percurso, o do traço que instiga uma escolha pelo analista, com tudo aquilo que este aloja em relação a um aspecto libidinoso e fantasmático do sujeito ao saber, à suposição de saber no analista – o que chamamos de Sujeito Suposto Saber em uma leitura lacaniana. É assim que o analista empresta o seu corpo na transferência.

 

Acrescentamos, assim, à noção de deslocamento e endereçamento inerentes à transferência, a questão da suposição de saber no Outro, não sem incluir o aspecto libidinal que isso envolve – o que permite, por sua vez, a experiência com a indeterminação na relação do sujeito com o saber que o ultrapassa, via o engano do SSS, que nos orienta em direção ao real. No decorrer do tratamento, depura-se outra faceta no final desse processo: a dimensão real da transferência e ao incurável, ou não simbolizável.

 

Sq ———–> Sn

________________

(S (s1, s2, s3, sn…)¹

 

Por esse viés, o ICS articulado à transferência se faria pela via do traço que pode ser captado em um significante qualquer:

 

St ——–> Sq.

 

Talvez isso nos permita dizer que o “significante qualquer” da transferência teria a função de uma conexão com a cadeia de significantes inconscientes latentes. Em outras palavras, lá onde a marca, o traço, se constituiu, uma causa (ou modo de vida, ou de amar) deve advir.

 

O que se eleva aí faria parte de um funcionamento psíquico, e, seguindo o alerta de Freud, “O psicanalista sabe que está trabalhando com forças altamente explosivas e que precisa avançar com tanta cautela e escrúpulo quanto um químico (…) quando tudo está dito, a sociedade humana não tem mais uso para o furor sanandim nem para qualquer outro fanatismo” (FREUD, 1969, p. 221).

 

É certo que, no final do texto “Observações sobre o amor transferencial”, Freud faz alusão ao que é incurável, ainda que nosso trabalho tenha indicado a noção da cura pelo amor. Se a análise é um processo de depuração, algo do incurável, através do amor de transferência mesmo, se apresenta.

 

É, se posso dizer assim, quando as figurinhas do álbum (de família[1]), de uma história de vida, se descolam, restando apenas o branco do papel das páginas folheadas, escutadas e, fundamentalmente, lidas.

 

Talvez, assim, se esteja mais livre para amar.

 


Referências
BARTHES, R. – Fragmentos de um discurso amoroso, São Paulo: Martins Fontes, 2003. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar.
FREUD, S. (1915 [1914]). “Observações sobre o amor transferencial” In: Obras completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LACAN, J. O seminário, livro VIII: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1992.
________. “Proposição de 9 de outubro de 1967”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003.
PLATÃO. Diálogos: O banquete – Fédon – Sofista – Político (Coleção os Pensadores). 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural. 1991.
[1] Alusão à obra de Nelson Rodrigues “Álbum de família”.

SAMYRA ASSAD
samyra@uai.com.br Membro da EBP/amp



Acontecimento De Corpo E Intrusão De Pensamento Nas Psicoses: Uma Precisão

SIMONE SOUTO

 

 

Pensei em abordar o acontecimento de corpo e a intrusão de pensamento nas psicoses a partir de uma referência que nos permita não só entendê-los e localizá-los com alguma precisão mas que também possa nos fornecer elementos para nos orientarmos, quanto a esses fenômenos, no que concerne à direção do tratamento. Portanto, situarei esses dois tipos de fenômenos encontrados na clínica das psicoses, a partir da distinção entre a foraclusão localizada e a foraclusão generalizada.

 

O fato de não existir na linguagem um significante que possibilitaria a inscrição da relação entre os sexos e reuniria as pulsões sexuais sob a égide de uma única e pretensa pulsão genital faz surgir um furo que afeta a vida de todo falasser, de forma generalizada. Desde que há linguagem, em parte alguma, sob signo algum, o sexo se inscreve através de uma relação. Trata-se, portanto, de uma condição universal colocada para todo aquele que é habitado pela linguagem, presente em todas as estruturas clínicas.

 

Essa impossibilidade de inscrever a relação sexual na linguagem e, consequentemente, fazê-la existir como uma relação que seria proporcional (ou mesmo completa) entre os sexos, é o que podemos designar, com Lacan, de uma foraclusão generalizada. Trata-se da presença de um furo, de um vazio, que afeta a vida de todo ser falante de forma generalizada e que torna evidente um real impossível de ser atingido pela palavra.

 

O neurótico responde a esse furo criando uma fantasia na qual ele tenta fazer a relação sexual existir, localizando no Outro o objeto de seu próprio gozo. Assim, na neurose, o sujeito consegue desprender um pedaço do gozo autoerótico, um objeto que é colocado no lugar do Outro e sustentado por uma significação que constitui a fantasia. Portanto, a fantasia possibilita uma localização do gozo no corpo, nas zonas erógenas, mas também fora do corpo: o sujeito pode se referir, por exemplo, ao olhar do pai, ou à voz da mãe, como sendo o objeto dessa fantasia, e fazer disso uma lenda, um romance.

 

No caso das psicoses, deparamo-nos com dois tipos de foraclusão, de furo, pois, além da foraclusão generalizada, relativa à não existência da relação sexual, com a qual o psicótico também tem que se haver, encontramos, nessa estrutura clínica, a foraclusão localizada relativa à ausência de um significante fundamental, o significante do Nome-do-Pai, que assegura todo um processo de simbolização da realidade que, na psicose, não funciona justamente por falta desse significante.

 

Podemos dizer que os fenômenos de intrusão de pensamento, como o delírio e as alucinações auditivas, assim como o automatismo mental, por exemplo, são uma resposta, um efeito da foraclusão localizada, pois dizem respeito ao retorno no real de um significante que foi foracluído do simbólico. É uma foraclusão que está localizada no significante do Nome-do-Pai. Assim, em determinadas situações bem precisas da vida, nas quais o psicótico precisaria fazer uso desse significante para abordar a realidade, para significá-la, como esse significante não existe no simbólico, ele retorna no real sob a forma, por exemplo, de vozes ou de pensamentos que não consegue controlar e que, de maneira geral, lhe adquirem uma função de comando ou de injúria. É, então, com relação a esse furo no simbólico que nós podemos situar os fenômenos de intrusão de pensamento. Tanto o delírio quanto o automatismo mental podem ser tomados como uma interpretação, ou seja, uma tentativa de localizar o gozo na via do sentido.

 

Mas a ausência da metáfora paterna terá, também, outra consequência: a não extração do objeto a como um condensador do gozo. Isso quer dizer que não encontramos, na psicose, o gozo condensado, localizado em um objeto (seio, fezes, olhar, voz), como acontece na neurose por meio da fantasia. Por isso, de acordo com Eric Laurent[1], também encontramos, nas psicoses, fenômenos que se referem a uma versão da foraclusão diferente da foraclusão localizada do significante Nome-do-Pai. Segundo Laurent, o que vemos na mania, por exemplo, não é um retorno localizado de um significante no real, mas o retorno do gozo sobre o corpo, uma espécie de suplemento de vida, “um mais de vida”, “um mais de gozo” que, por não estar circunscrito ao objeto a, como acontece na fantasia do neurótico, invade o organismo e pode destruir, inclusive, todo o equilíbrio biológico. Vários fenômenos que, na psicose, atingem o corpo de maneiras diversas, como os excessos com a alimentação, o uso abusivo de drogas e álcool, a negligência com o próprio corpo, dores e agressividade, podem ser tomados na sua intensidade como essa agitação do real que advém do retorno do gozo não localizado sobre o corpo. No que diz respeito a essa invasão de gozo, encontramos, no Seminário 20, o exemplo, descrito por Lacan, do rato que aperta uma alavanca e aciona uma engrenagem que lhe causa prazer: ele vai apertando, apertando, até morrer de gozo. Na mania, por exemplo, a relação com o gozo é dessa mesma ordem. Nesse sentido, se seguimos Laurent, podemos dizer que os transtornos de humor, assim como toda a série de acontecimentos de corpo que observamos nas psicoses, são uma resposta à foraclusão generalizada. Primeiro, porque são uma resposta à inexistência de uma inscrição simbólica da relação sexual e, consequentemente, de um gozo impossível de simbolizar, que, como já dissemos antes, se impõe, de maneira geral, para todo ser falante. Segundo, porque não é como na alucinação, na qual temos a foraclusão de um significante e seu retorno no real, com o posterior trabalho do delírio, para construir um sentido. Trata-se, como indica Lacan em Televisão, de uma perturbação geral da linguagem, que se manifesta, por exemplo, na melancolia, como mutismo e depressão, e, na excitação maníaca (e de alguns fenômenos de corpo que aparecem nas psicoses), como um excesso pulsional, um retorno da vida sobre o corpo, um retorno que se faz mortal.

 

Na clínica da psicose, os fenômenos de intrusão de pensamento relativos à foraclusão localizada do Nome-do-Pai e os fenômenos de acontecimento de corpo relativos a uma não localização do gozo no objeto a, ou seja, relativos à foraclusão generalizada, podem aparecer isoladamente, como em alguns casos de mania e melancolia que se apresentam na forma de uma psicose ordinária, nas quais observamos, muitas vezes, apenas os acontecimentos de corpo. Mas observamos, também, casos bastante frequentes em que precisamos levar em conta essas duas versões da foraclusão e não nos limitarmos em considerar apenas uma delas. Dessa forma, no que concerne às psicoses, a foraclusão localizada do significante Nome-do-Pai nos ajuda a fazer o diagnóstico estrutural a partir da ausência desse significante no simbólico, permitindo-nos acompanhar melhor a lógica dos fenômenos de intrusão do pensamento. Por sua vez, a foraclusão generalizada nos possibilita situar melhor o que aparece nos distúrbios de humor, em vários tipos de acontecimentos de corpo e mesmo em algumas compulsões, como uma perturbação geral da linguagem e uma ausência da localização do gozo.

 

[1] Ver conferências e comentários de Éric Laurent em Curinga, revista da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG), nº. 14.

 


 

SIMONE SOUTO
ssouto.bhe@gmail.com AME, membro da EBP/AMP



A Queda Do Falocentrismo E Os Estatutos Da Violência

ANA MARIA COSTA DA SILVA LOPES / ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA

 

CAO GUIMARAES

 

As transformações nos laços sociais, associadas à queda dos ideais e da crescente desvalorização do falo que ordenava a nossa civilização, têm nos colocado questões não só quanto aos desdobramentos conceituais da psicanálise, mas sobre a condução do tratamento analítico sem a exclusividade da função do Nome-do-Pai como tratamento do gozo pelo sentido e sem uma referência clara ao Édipo.

 

Sabemos que a ordem simbólica introduzida por Freud, com a invenção do inconsciente, era centrada no falo como significante ordenador. Apesar das críticas feministas, Freud foi irredutível em relação à tese do falocentrismo no inconsciente, quem, por sua vez, reconhece apenas um significante – o falo – para designar a dissimetria dos sexos, no qual organizará a questão da sexualidade por meio dos complexos de Édipo e de castração.

 

Atualmente, à frente da civilização contemporânea, o discurso da ciência e o discurso capitalista, derivado do discurso do mestre tradicional, se potencializam, assumindo o comando das mais variadas formas de gozar. A desaparição da figura de autoridade encarnada pelo pai e a consequente desvalorização dos valores fálicos é correlata às mutações no âmbito social e individual. Os efeitos na subjetividade se fazem notar pelo rebaixamento dos sujeitos a uma posição de objetos, reduzidos ao seu valor de uso em detrimento dos poderes da palavra.

 

Abre-se, portanto, uma outra dimensão da psicanálise, que nos aproxima da singularidade da clínica do falasser. Se o sintoma antes dessa nova perspectiva era decifrado pela vertente do sentido, nos dias atuais, o sintoma é também signo do real, efeito da incidência da palavra sobre o corpo e que se manifesta sob a forma de acontecimentos diversos, fazendo prevalecer, muitas vezes, a pulsão de morte.

 

Para Miller, a queda do falocentrismo decorre principalmente do fenômeno denominado “aspiração contemporânea à feminilidade” (MILLER, 2011), que muito caracteriza a nova ordem simbólica no século XXI e que surge em oposição à “aspiração à virilidade”, termo utilizado por Freud para designar a recusa à feminilidade de homens e mulheres ao final de análise (FREUD 1937/1976, p. 261).

 

O falocentrismo, como função de gozo para Lacan, impõe-se para todos no lado masculino das fórmulas da sexuação – conjunto definido a partir de que “existe ao menos um que escapa à castração” –, ao passo que, do lado feminino, “não existe exceção”, ou seja, situar-se numa posição feminina é estar também submetido ao gozo fálico, porém não-todo (FUENTES, 2015).

 

Já a virilidade é o que protege o sujeito do enlouquecimento de um gozo feminino que, ao se desprender dos limites da castração a partir do vínculo com o pai, apresenta-se de modo mortífero.

 

Sendo assim, a feminização do mundo, que decorre da ausência de exceção – seja a exceção reguladora do pai e dos ideais, seja a exceção da função fálica –, e, por conseguinte, o enfraquecimento do viril, dão lugar à ferocidade do supereu feminino, que, distinto do supereu freudiano, que sinalizava o proibido, o dever e a culpa, exige a máxima de gozo para todos (LACAN, 1974). Portanto, no lugar do significante-mestre que se destacava como um elemento simbólico, mais ou menos estável, para as identificações e representações no Outro, encontra-se, atualmente, nesse lugar, o objeto a, que provoca uma fixação de gozo que não remete ao Outro, mas ao corpo, dispersando e pluralizando as identificações. Nesse sentido, a feminização do mundo contribui para a violência, já que ela caminha pela via da deslocalização da irrupção pulsional, em desacordo com o gozo fálico e paralelamente à desordem do real.

 

Assim, ao considerarmos o que não é mais o que era, ou seja, que essa nova dimensão da psicanálise converge para pluralização dos Nomes-do-Pai, para a ostentação do imaginário e para o real do sintoma, como ficariam, nos dias de hoje, a assunção do falo enquanto regulador de gozo e a orientação do sujeito na confrontação com o desejo do Outro e com a castração?

 

Ao longo de seu ensino, Lacan se refere ao falo de diferentes maneiras, sempre ressaltando sua importância como operador clínico. De significante do desejo e, depois, ao “significante do gozo”, o falo é, antes de mais nada, um semblante (LACAN, 1988, p. 838).

 

Se, em O Seminário 3, Lacan antecipa a consistência de semblante do falo ao fazer referência às aparições inapreensíveis e efêmeras do meteoro, ou seja, ainda que exista um esforço para ocultar algo, o que oculta é nada (LACAN, 1955-1956, p. 357). Em O Seminário 23, Lacan irá conferir ao falo uma nova posição, enquanto “o único real que verifica o que quer que seja (…)” (LACAN, 1975-1976, 2007, p. 114). Sendo assim, o falo não mais se situa como efeito da significação edípica, ele é positivado e reencontrado ao lado do signo, num deslizamento que marca um modo de gozo nomeado como sua pura repetição, isolado na dimensão do Um-sozinho e que não se liga a nada. Para Laurent, o falo enquanto “um semblante que dá testemunho de um real está fora da metáfora paterna” (LAURENT, 2013).

 

As elaborações sobre a função fálica, em seu caráter operatório, nos orientam tanto na clínica quanto na abordagem dos fenômenos sociais. Nesta época em que os semblantes vacilam, podemos situar o desencadeamento dos fenômenos de violência em sua dimensão real como um dos efeitos da subida ao zênite social do objeto a. Uma dimensão que não toma a relação de causalidade como sua razão e o sentido a partir do Pai, mas que se trata de um dizer inconsciente que não faz apelo à decifração, não se liga a nada e não faz laço com o semelhante.

 

Quais as incidências para a psicanálise em relação ao que se passa ao lado da inscrição, da não inscrição ou das falhas na inscrição do falo, sobretudo no que concerne à violencia na infância e na adolescência? O que as crianças e os adolescentes violentos que recebemos nos ensinam em relação à articulação inconsciente – recalque, sintoma? De quais maneiras a violência se presentifica nos dias de hoje? Quando o recalque está omisso, ou seja, quando a metáfora paterna e o Édipo rateiam, o que pode operar como regulador do desejo na clínica do falasser?

 

Jacques-Alain Miller (2017), em sua intervenção de encerramento da IV Jornada do Instituto da Criança, introduz a seguinte pergunta: “A violência na criança é um sintoma?”. Para tanto, resgata a definição do sintoma em “Inibição, sintoma e angústia”, feita por Freud como “signo e substituto (…) de uma satisfação da pulsão”. Ou seja, “o sintoma seria o signo e o substituto de uma satisfação pulsional que não aconteceu” (FREUD, 1951). Então, como entender os atos violentos? Segundo Miller, é preciso dar lugar a uma violência infantil como modo de gozar. Nesse sentido, ele propõe dez pontos concernentes à violência na criança (MILLER, 2017).

 

  1. A violência na criança não é um sintoma.
  2. Ela é, na verdade, o contrário de um sintoma.
  3. Ela não é o resultado do recalque, mas, antes, a marca de que o recalque não operou.
  4. A violência não é um substituto da pulsão; ela é a pulsão. A violência é a satisfação da pulsão de morte. O adversário de Eros, o adversário do amor, não é o ódio, é a morte, Thânatos.
  5. O ódio está do lado de Eros. É, efetivamente, uma ligação ao outro muito forte, é um laço social eminente.
  6. A violência está do lado de Thânatos. Eros fabrica o Um, introduz o sociável. Thânatos desfaz os Uns, solta, fragmenta. A criança violenta encontra satisfação no simples fato de quebrar, de destruir.
  7. Pode ser que a violência na criança anuncie, exprima uma psicose em formação.
  8. É preciso distinguir quando a violência resulta de um erro no processo de recalcamento ou de uma falha no estabelecimento da defesa.
  9. Deve-se distinguir o ato violento como aquilo que emerge de uma potência no real da violência simbólica inerente ao significante, que se mantém na imposição de um significante mestre. Se essa imposição de um significante mestre falta, o sujeito marca a si mesmo – escarificação, tatuagem, diferentes maneiras de se cortar, de se torturar, de causar violência contra o próprio corpo.
  10. No que concerne à violência no imaginário, ela surge tal como o fenômeno do transitivismo (quando o outro é você e você é o outro).

Em relação ao sétimo item, Miller salienta que é preciso questionar quatro pontos:

 

  1. A violência nessa criança é uma violência sem fala? É pura irrupção da pulsão de morte, um gozo no real?
  2. O sujeito pode traduzi-la em palavras? É um puro gozo no real ou bem ela é simbolizada ou simbolizável?
  3. O puro gozo no real não assinala, necessariamente, a psicose. Mas traduz uma ruptura na trama simbólica: trata-se de saber se é puntiforme ou ampla.
  4. E se é uma violência de que se pode falar, resta saber o que ela diz. É importante buscar traços discretos de uma paranoia precoce (MILLER, 2017).

 

Considerando os pontos destacados por Miller sobre as crianças violentas, a prática clínica tem nos colocado diante da questão “psicose ou não?”. Encontramos, em alguns adolescentes, a posição de isolamento social, nos quais eles se colocam à margem da família ou dos grupos sociais. Nesses casos, é preciso acolher os signos de estranheza e solidão, as situações marcadas pelos atos violentos na superfície do corpo e possibilitar que cada sujeito, a sua maneira, construa novas soluções. Muitos adolescentes nos dizem que se cortam para aliviar a “dor psicológica”, mas é preciso ir além dessa resposta universal, é preciso capturar o que há de particular em cada caso. Qual seria o lugar que esse adolescente ocupa no Romance familiar?

 

Muitos atendimentos também são marcados pela perpetuação do silêncio. É preciso que o analista acolha as mais distintas formas de invenções, como a passagem de um adolescente que desloca os cortes feitos com a lâmina de barbear na superfície do corpo para o desenho da linha guiada pelo lápis ou pela agulha na superfície de um papel ou uma toalha, com a inscrição “não chore pelos pulsos”. Os adolescentes também buscam os espaços virtuais na tentativa de nomear a sua “dor de existir”, e será no tratamento analítico que se poderá acolher esses restos e possibilitar outras soluções.

 

Miller salienta que, na falta de um significante que nomeie seu sofrimento, o adolescente marca a si mesmo por meio das escarificações e da violência contra o próprio corpo. Ponto demonstrativo nomeado por Miller de “psicose civilizacional normal”, uma perturbação que traduz a ordem simbólica herdeira da tradição e que se destaca como típica da civilização. Miller propõe, como perspectiva de tratamento, que não se deve atacar de frente os atos violentos – tais como as escarificações –, mas visar reparar uma falha do simbólico ou reordenar a defesa.

 

Os adolescentes nos ensinam como é possível inventar um bom encontro, construir laços, redes fundamentadas na escuta clínica, em parceria com os espaços que se constroem para além de suas fronteiras. Se, por um lado, as novas tecnologias e as redes sociais dão consistência ao cutting – esses sintomas que se inscrevem como pura repetição metonímica –, será possível a construção de soluções via tratamento analítico. E, tal como nos orienta Miller, é preciso colher a revolta da criança e do adolescente. Revolta que se distingue da violência errática (MILLER, 2010).

 


Referências
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FREUD, S. (1937) “Análise terminável e interminável”. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud., Vol. XXIII, 1976, p. 261.
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MILLER, J.-A. (2017). “Crianças violentas”. In: Opção Lacaniana, n. 77, p. 23-31, ago. 2017.
MILLER, J.-A. “Comment se révolter?” In: La Cause Freudienne, n. 75, p. 212-217, juil. 2010.
MILLER, J.-A. “L’etre et l’ Um”, aula de 9 de fevereiro de 2011, Curso de Orientação Lacaniana III, 13.

ANA MARIA COSTA DA SILVA LOPES / ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA
ANA MARIA COSTA DA SILVA LOPES Mestre em Psicologia – Área de Concentração: Estudos Psicanalíticos – FAFICH/UFMG. Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina/UFMG. Psicanalista praticante. Membro Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas. amcslopes65@gmail.com
ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA Psicóloga. Mestre em Psicologia – Área de Concentração: Estudos Psicanalíticos – FAFICH/UFMG. Psicanalista praticante. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. andrea.eulalio@hotmail.com



Bullying E Deslocalização Do Gozo

MARGARET PIRES DO COUTO

 

CAO GUIMARÃES

Definições e indefinições

 

A noção de bullying tem ganhado cada vez mais destaque no discurso educacional e na mídia como referência para interpretar diversos acontecimentos, sendo empregada de forma cada vez mais abrangente e imprecisa. Classificado como intimidação sistemática, quando há violência física ou psicológica em atos de humilhação ou discriminação, no bullying incluem ataques físicos, insultos, ameaças, comentários, apelidos pejorativos, entre outros. Compreende, portanto, todas as atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro, deixando a vítima sem defesa. Representa uma forma de violência reiterada entre crianças e jovens em ambiente escolar, uma forma de violência entre pares, entre semelhantes, que vem crescendo assustadoramente nos últimos anos.

 

Ao longo das três últimas décadas, ao mesmo tempo em que se observa o crescimento dos estudos e pesquisas em torno da questão, assiste-se também à ocorrência de uma série de situações trágicas no ambiente escolar, que são rapidamente assimiladas à prática do bullying.

 

O significante bullying faz série com outros já ofertados pelo discurso da ciência em sua interface com a Educação, como DCM, distúrbios de comportamento, déficit de atenção e TDAH, que serviram para marcar o corpo das crianças e silenciar sua subjetividade, apagando essa dimensão dos fenômenos que buscam explicar. Trata-se de um termo muito amplo e vago que, ao servir para nomear situações muito diferentes no espaço escolar, mantém os atores envolvidos (agressor e agredido) no anonimato.

 

Qual real fica encoberto com esse novo significante? O que tem a psicanálise a dizer sobre essa nova forma de nomear o mal-estar entre crianças e jovens no espaço escolar?

 

Bullying: a violência do escolar[1]

 

A violência não tem um estatuto de conceito na psicanálise, apesar de Freud ter produzido elaborações importantes sobre ela em alguns de seus textos, principalmente em O mal-estar na civilização (1929), abordando-a via os conceitos de pulsão de morte e tendência à destruição.

 

Freud situa a violência no coração da civilização, fazendo de um crime o próprio princípio da cultura. A pulsão de morte foi a forma encontrada por Freud para dizer que o sujeito se edifica sobre um fundo que supõe destruição, uma vez que não visa o seu próprio bem. Lacan, por sua vez, demonstra que o encontro com a linguagem não é sem consequências para o homem. É sempre traumático, violento, porque o próprio significante é gozo, como fica evidente no caso do insulto.

 

A violência se relaciona, assim, com um excesso pulsional que produz ruptura dos laços sociais, ruptura do tecido simbólico e com o Outro. Por isso, o ato de agredir pode surgir diante do impossível de dizer. O ponto de partida psicanalítico de que há, nos atos violentos, a existência de um gozo, uma satisfação pulsional, rompe com qualquer tentativa de vitimização e polarização presente na noção de bullying.

 

No texto “Crianças violentas”, Miller (2017) parte da ideia de que a violência na criança não é um sintoma, porque não responde à operação do recalque. Propõe a distinção da violência como resultado de um erro no processo de recalcamento ou de uma falha no estabelecimento da defesa. A violência poderá se apresentar, assim, como pura irrupção da pulsão de morte, um puro gozo no real, ou poderá ser simbolizada ou simbolizável se constituindo, por exemplo, como demanda de amor. Além disso, podemos pensar a violência a partir dos três registros: real (como pura irrupção da pulsão de morte); simbólico (como violência simbólica inerente ao significante que se mantém na imposição de um significante-mestre) e imaginário (como agressividade).

 

Utilizando o texto de Miller como uma bússola, Lacadée (s/d), ao se indagar se seria a violência no jovem um sintoma ou não, retoma a discussão sobre a agressividade e a diferenciação entre intenção agressiva e tendência à agressão, presente no texto lacaniano “Agressividade em psicanálise” (1948). Para Lacan, a intenção agressiva é decifrável, pode ser lida como sintoma e, portanto, tem a possiblidade de ser interpretada. Seu mecanismo evidencia uma negação, indicando, assim, a incidência do recalque. Nesse caso, não é a foraclusão que está em jogo. Ao contrário, na tendência à agressão, encontra-se algo objetivado, algo que se apresenta de maneira bruta, sem qualquer dialética de sentido, e algo sobre o que a interpretação permanece sem efeito. De acordo com Lacadée, a tendência à agressão esclarece não só a clínica da psicose, mas também os acessos de violência dos jovens.

 

Se a violência não é um conceito, a agressividade é um conceito tanto para Lacan quanto para Freud. Para ambos, ela é constitutiva da subjetividade humana e fundamental no processo de constituição do próprio eu.

 

Éric Guillot (2014), recorrendo também a “Agressividade em psicanálise”, diferencia aquelas ações agressivas, que testemunham uma passagem ao ato destruidora, colocando em jogo a pulsão de morte, daquelas que estariam no registro da intenção agressiva e ficam presas na comunicação.

 

Para o autor, Lacan esclarece que a agressividade é um fenômeno que se desenvolve estritamente no registro imaginário. Por outro lado, a pulsão de morte deve ser pensada em seu laço com o gozo, ou seja, no registro do real.

 

Para Lacan, não se pode dar conta da agressividade sem uma teoria da identificação. A agressividade está ligada à estrutura narcísica do eu, que, para se constituir, deverá aceder a uma representação unitária de si mesmo ao se identificar a uma imagem. A construção dessa imagem, como bem nos esclarece Lacan pelo estágio do espelho, passará necessariamente pelo campo do Outro. Resultará disso uma ambivalência estrutural, uma tensão conflitiva interna ao sujeito, ou seja, a relação do sujeito a seu semelhante vai se desdobrar em um duplo registro, do erotismo e da agressividade. Existe um componente agressivo erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe também um componente agressivo porque, se “eu é o outro”, então esse outro pode tomar meu lugar. A relação com o outro se desdobra então em termos de “ou você ou eu”. Nesse sentido, ao tentar atingir o outro, é a si mesmo que o eu se atinge/bate. É um terceiro elemento, simbólico, que pode operar uma mediação entre o eu e seu semelhante, estabelecendo um limite, uma distância, uma alteridade nessas relações conflituosas e destrutivas que se instauram no eixo imaginário.

 

Além disso, o estágio do espelho esclarece como o ser falante, inicialmente, não experimenta seu corpo como uma unidade. Isso só será possível por meio da fabricação de uma imagem que constitui o eu, operação que enoda o I e o R. O espelho é, portanto, um aparelho para o gozo que vela o real do despedaçamento do corpo. Entretanto, para que esse enodamento ocorra e estabilize essa imagem, será necessário que haja uma ordem simbólica em funcionamento. É preciso que o Outro, o olhar do Outro, confirme ao sujeito que essa imagem que ele vê lhe corresponde. A agressividade pode ser efeito de um modo de perturbação no enlace desses três registros, dessa ausência de enquadramento do gozo operado pela imagem (DAFUNCHIO, 2013).

 

Assim, trabalhamos com a hipótese que nos é oferecida por alguns casos em que o aumento das ações agressivas e violentas no espaço escolar responde a perturbações no campo imaginário, fruto dos impasses na constituição da imagem, do eu e da deslocalização do gozo.

 

O mundo contemporâneo é marcado por um imperativo de gozo, condensado na fórmula a > I, proposta por Miller (1996). Esse imperativo promove o enfraquecimento dos laços simbólicos, a prevalência das imagens e os funcionamentos imaginários favorecidos pela tecnologia. Os novos modos de subjetividade se relacionam com o declínio do pai, com o declínio social dos semblantes e dos ideais paternos, afetando diretamente a ação educativa. A educação encontra seu obstáculo ao se deparar com sujeitos que não podem renunciar tão facilmente ao gozo do corpo. Ao contrário, o mandato de nossa época é que se pode gozar ilimitadamente (GOLDENBERG, 2011).

 

Nessa perspectiva, Ubieto (2011) apresenta três causas para o aumento considerável dos casos de bullying na atualidade. O primeiro corresponde à transformação no conceito de autoridade. A violência se situa como resposta ao declínio da imagem social do mestre, que dá lugar a uma lógica de rede e vitimização horizontal. O segundo corresponde à transformação da função do olhar como fonte de gozo, multiplicado pelos objetos tecnológicos ofertados pelo mercado. Finalmente, encontramos as crises de identidades sexuais.

 

Outra hipótese para o aumento do número de casos de bullying diz respeito, por um lado, ao fracasso da ação do supereu como civilizador (supereu freudiano), que pode fazer com que a pulsão agressiva ceda e não destrua tudo por medo da perda do amor do Outro. É o amor que inibe a agressividade, o que leva a renunciar ao gozo. Assim, na ausência do amor não há renuncia ao gozo, e a agressividade pode deslocar-se livremente ao exterior, sem culpa (GARMENDIA, 2011). Por outro lado, diante de uma sociedade marcada pelo empuxo ao gozo, encontramos sujeitos muito mais submetidos à injunção superegoica do “goze!”. Os corpos são reiteradamente colocados na cena para serem tiranizados e castigados. Assim, torna-se impossível defender-se não do outro semelhante, mas do Outro superegoico. Seria o supereu o grande agente do bullying no mundo contemporâneo?

 

De acordo com Ubieto, o bullying coloca sempre em cena o ternário formado pelo agressor, a vítima e o grupo de espectadores que se calam ou aplaudem para não se converterem em vítimas também. A violência é exercida contra aqueles designados como deficitários ou extravagantes, que portam algum signo da falta, da diferença, da estranheza, e por isso provocam o ódio, a zombaria e o assédio do grupo. O bullying pode representar, então, uma estratégia defensiva, ao colocar em ato o rechaço que imputam ao outro e que lhe confirmaria sua posição de escória e resto. Trata-se, em última instância, de um ódio a si mesmo que o sujeito coloca em ato para defender-se do real. As condutas violentas são um modo de expor sua dor ao mundo, sem palavras.

 

O psicanalista não deve se furtar a enfrentar os significantes mestres de sua época, uma vez que são as crianças e os jovens os mais sensíveis a eles. Para isso, será preciso destrinchá-los, para esvaziar as paixões que suscitam.

 


Referências 
BRODSKY, Graciela. “Mi cuerpo y yo”. Conferência pública pronunciada na Universidad del Claustro de Sor Juana, México DF, 20 de fev. de 2015.
FANTE, Cléo. “Bullying nas escolas”. In: Carta Capital. Entrevista. 30 jul. 2010. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental-arquivo/bullying-nas-escolas. Acesso em 12 abr. 2018.
LACADÉE, Philippe. “A violência no jovem: sintoma ou não?” In: Almanaque on-line, nº 20. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/a-violencia-no-jovem-sintoma-ou-nao/. Acesso em jun. 2018.
LACAN, Jacques. “Agressividade em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 104-126.
GARMENDIA, Javier. “Violencia en las escuelas” In: GOLDENBERG, Mario (Org.) Violencia en las escuelas. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011.
GOLDENBERG, Mario (Org.) Violencia en las escuelas. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011.
GUILLOT, Éric. “Da agressividade à pulsão de morte” In: Almanaque on-line, nº14, 2014.
MILLER, Jacques-Alain. “Crianças violentas” In: Opção Lacaniana, nº 77. 2017, p. 23-31.
NIEVES, Dafunhchio Soria. Nudos del análisis. Buenos Aires: Soria Dafunchio Nieves, 2013.
UBIETO, José R. “Violencias escolares”. In: GOLDENBERG, Mario (Org.) Violencia en las escuelas. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011.
[1] Esse subtítulo propõe um contraponto ao texto freudiano Algumas reflexões sobre a Psicologia do Escolar (1914). Nesse texto, Freud apresenta os efeitos na relação com o saber do desligamento do primeiro Ideal, o pai. Discute também a consequência desse desligamento para a relação com os mestres que tornam-se herdeiros dessa autoridade. O texto freudiano situa-se em um momento da civilização regido pelos ideais paternos, bem diferente da problemática que enfrentamos hoje nas escolas.

MARGARET PIRES DO COUTO
Psicanalista, Membro da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. Professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: coutomargaret@gmail.com



“A Arte, Como A Vida, É Cheia De Riscos”: Lacan Com Lilly E Lana Wachowski

GABRIEL SILVA MEDEIROS / JEANNINE MARIE TEIXEIRA NARCISO

 

CAO GUIMARAES

 

Na era da técnica, a arte é um indicador aliado da psicanálise

 

A clínica do contemporâneo opera mais-além da narrativa freudiana. Miller (2012/2014) descreve que os discursos do capitalismo e da ciência, lado a lado, reestruturaram a experiência humana, outrora organizada pelo que prescrevia o Outro social. É o advento de uma verdadeira des-ordem no real, que, no passado, disfarçava-se de natureza e voltava sempre ao mesmo lugar. Real que funcionava como Outro do Outro, garantia mesma da ordem simbólica (MILLER, 2012/2014). Porém, o último Lacan (1975-1976/2007) afirmará que o verdadeiro real, o real como impossível, é sem lei. A efração no real do binário ciência-capitalismo é desordenada, arriscada, põe em xeque a natureza (MILLER, 2012/2014). Prova disso é a onipotência dos gadgets (microscópio, rádio, televisão, etc.), artefatos do discurso científico que pululam e integram a existência do homem, que o animam, e dos quais ele próprio se torna sujeito: já é sintomático (LACAN, 1975/1985, 1975/2009). E não se pode localizar aí algo de nossa relação com as TV series, fenômeno contemporâneo, capaz de mesmerizar-nos por longas maratonas? Como toda arte, isso nos afeta.

 

Lacan (1975/2009) nos lembra que o corpo se introduz na economia de gozo por meio de uma imagem corporal, que tem, no homem, grande alcance. Sua preferência imaginária decorre de que essa é a via por onde ele antecipa sua própria maturação. Logo, a partir do momento em que a escritura científica introduz mudanças significativas no laço que hoje sustemos com o corpo, a arte, no que evidencia disso, se aproximará da psicanálise. A topologia borromeana, com efeito, vai na mesma direção (BROUSSE, 2014), pela via do sinthoma. Está em jogo um novo imaginário, sustentado nos restos de gozo e contíguo ao real do gozo. E a consequência decorrente, conforme Santiago (2016), é que se virar com a imagem é também se virar com o sintoma.

 

Joyce, Lilly & Lana

 

Lilly e Lana Wachowski são irmãs, cineastas, e trabalham em parceria como produtoras, diretoras e roteiristas. Entre suas produções, estão Bound, Matrix, Cloud Atlas, V for Vendetta e o seriado Sense 8 (2015-2017). Da leitura de dados biográficos, articulada à possibilidade colocada por Miller (2015), de que talvez os registros da música, da pintura e das Belas-Artes tiveram seu James Joyce, consideramos que o trabalho das Wachowski poderia encontrar semelhante lugar.

 

“The Wachowski Brothers” era a nomeação por meio da qual Larry e Andy se faziam conhecer antes das suas transições de gênero, quando se tornaram, respectivamente, Lana e Lilly. Sob influência dos pais, amantes da sétima arte, Larry e Andy cresceram frequentando o cinema, em “orgias de filmes” nos drive-ins, onde assistiam a dois, três filmes de uma vez. Nas palavras de Andy, “eu era tão jovem que não sabia o que a palavra ‘orgia’ significava. Mas o que quer que fosse, eu gostava” (apud HEMON, 2012, s/p, livre tradução). Larry, por sua vez, conta que sua perplexidade ante o enigmático monólito presente em 2001: A Space Odissey, suscitou de seu pai uma explicação: “trata-se de um símbolo”. Ali,

 

[…] aquela simples sentença entrou no meu cérebro e rearranjou as coisas de um jeito tão inacreditável que eu não acho que fui a mesma pessoa desde então. Houve um click interior. ‘2001’ é uma das razões pelas quais sou cineasta (apud HEMON, 2012, s/p, livre-tradução).

 

Uma simples sentença produz um acontecimento! Em Joyce, o Sintoma, Lacan (1979/2003) concebe o sintoma como um evento corporal ligado a que o temos. Subsiste aí algo de instrumental, já que ter é poder fazer alguma coisa com (p. 562). O sinthoma, o sintoma do falasser, está ligado ao corpo; “[…] surge da marca escavada pela fala quando ela toma a aparência do dizer e faz acontecimento […]” (MILLER, 2015, p. 130). Ora, a “orgia” e o “símbolo”, com efeito, têm a ver com o fato de que hoje elas são filmmakers.

 

Numa entrevista de 2013, verifica-se a intensa parceria que subsiste entre Lana e Andy, que só anunciou seu come out como Lilly em 2016 (BAIM, 2016). Na entrevista, Andy falava de sua arte como um jeito de injetar emoção na política, na filosofia e nas ideias, afirmando que esses assuntos não têm que ser chatos. Comenta ainda a presença do discurso do capitalista na arte, encarnado na figura de executivos que têm se fixado no meio cinematográfico ditando como as coisas devem ser (WACHOWSKI, 2013).

 

Mas o interessante do cinema é poder subverter tal estado de coisas, por vir com a particularidade de ser uma arte social, que envolve um grupo de artistas e cuja estética decorre de um trabalho conjunto. Não se fazem filmes sozinho. (WACHOWSKI; WACHOWSKI, 2013). Ora, a finalidade do discurso do mestre é fazer as coisas marcharem no ritmo de todo mundo. Mas isso não é o real. O real não anda, é o que entorpece essa marcha (LACAN, 1975/2005). E não é justamente do inconsciente real que trata o ultimíssimo Lacan? Aqui, entramos no campo do laço social, cujo real é a inexistência da relação sexual (MILLER, 2015). O sujeito não está sozinho com seu eu, e o solipsismo não é a verdade de sua vida psíquica. Ele nasce do campo do Outro, o que lhe convoca a um verdadeiro trabalho de artista: “Fazer alguma coisa com o Nome-do-Pai: prescindir, servir-se dele” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 125). É aí que o laço entre os corpos falantes, as parcerias, divergem do conceito de sociedade como instância una.

 

O sinthoma é o que possibilita enlaçar o imaginário, o simbólico e o real. É aí que o pai ganha novo estatuto. “O complexo de Édipo, é, como tal, um sintoma. É na medida que o Nome-do-pai é também o Pai do Nome, que tudo se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 23). Para que o pai subsista, deve ser sustentado.

 

A topologia nodal nos permite aproximar do trabalho das Wachowski pela via do sinthoma. A partir de fragmentos biográficos, autodescritivos, arriscamos a montagem de um mosaico que, de relance, parece mostrar tons de algo da ordem do acontecimento. Lilly e Lana prestam seus corpos a uma produção que é essencialmente inédita. O manejo de outros artistas, mais os objetos que elas legam à cultura, assinalam laço social. Fatos que, todavia, não tiram o caráter subversivo da arte ora discutida. A obra faz face ao discurso do mestre, interpelando a Matrix – a realidade? – e atacando-a em seus limites mais consolidados. Talvez, na especificidade desse caso, fazer cinema responda pelo que o sinthoma comporta de savoir-faire com a imagem corporal. “Se o núcleo real do sintoma não fala, é mudo, algum indício dele pode ser fornecido pela imagem?” (SANTIAGO, 2016, p. 76).

 

Fato é que os dramas do sexo não escapam ao deus-nos-acuda do real. Sobre isso, a psicanálise propõe algo distinto das teorias sócio-políticas sobre gênero (que se concentrarão nos semblantes acoplados aos modos de gozo), pois conceberá tais identidades como respostas sintomáticas ao impossível da relação sexual (SANTIAGO, 2006). As diferenças estruturais entre os modos de gozo do homem e da mulher, conforme ensina a escritura lógico-matemática da sexuação segundo Lacan, hoje virão, a posteriori, ao choque primeiro do corpo com lalíngua (MILLER, 2012/2014).

 

Lana Wachowski (apud HEMON, 2012, livre tradução) bem exemplifica isso, ao narrar que, na terceira série, estudou num colégio católico em que rapazes e moças permaneciam em fileiras separadas antes das aulas. Não se identificando com uma ou outra linha, Lana interpretou que ali talvez tenha percebido, inconscientemente, seu verdadeiro lugar: entre as duas. Um entre – betwixtness –, que foi causa de bullying e derrisão. Sua resposta? Encontrar refúgio em livros e mundos imaginários, muito mais atraentes que o seu próprio (HEMON, 2012). Algo do sinthoma parece cintilar…

 

Isso posto, pode-se dizer que, entre os sexos, alguma coisa não vai: “[…] só se pode gozar de uma parte do corpo do Outro pela simples razão de que jamais se viu um corpo enrolar-se completamente, até incluí-lo e fagocitá-lo, em torno do corpo do Outro” (LACAN, 1975/1985). Mas e se fosse possível?

 

É a ideia de que se aproxima Sense 8, em que, pela ficção científica, Lilly e Lana se aproximam das “questões de foda” (LACAN, 1975/1985, p. 103) com um interessante conceito: oito indivíduos, os chamados homo sensorium, estão conectados de tal modo que, sem palavras, podem comunicar pensamentos e sentimentos entre si. Um vivencia as dores, prazeres e afetos do outro, tendo a capacidade de experimentar emoções humanas mais intensamente que os próprios humanos. O mesmo vale para o coito: quando alguém transa, os outros gozam juntos, ainda que de distintos cantos do globo.

 

No Mais, ainda, Lacan (1975/1985) aborda a impregnação narcísica do amor, cuja imagem está sustentada no a. “O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos… A relação dos quem? – dois sexos” (SANTIAGO, 2016, p. 14-15). O gozo sexual “[…] é marcado, dominado, pela impossibilidade de estabelecer, como tal, em parte alguma do enunciável, esse único Um que nos interessa, o Um da relação sexual” (Ibid. p. 15). Mas, em Sense 8, o impasse parece sair de cena, levando-nos a indagar: poderia um dia a evolução, ou então a ciência, liberar do homem o estorvo desse exílio que lhe impõe o instante do encontro?

 

Para não concluir

 

“A arte, como a vida, é cheia de riscos” é uma fala de Hernando, parceiro de Lito (um dos oito), no décimo episódio da 2ª temporada da série. Ora, não só dos riscos da aposta, mas dos riscos da letra, no que ela é linguagem reduzida à sua matéria significante (MILLER, 2010). A escrita joyciana e a escrita cinematográfica – por que não? – apontam para isso:

 

Só se é responsável na medida de seu savoir-faire. Que é o savoir-faire? É a arte, o artifício, o que dá à arte pela qual se é capaz um valor notável, porque não há Outro do Outro para operar o Juízo Final […]. Isso quer dizer que há alguma coisa da qual não podemos gozar (LACAN, 1975-1976/2005, p. 59).

 


Referências
BAIM, T. 2016 Second Wachowski filmmaker sibling comes out as trans. Windy City Times, Chicago, 21 mar. 2016. Disponível em: <http://www.windycitymediagroup.com/lgbt/Second-Wachowski-filmmaker-sibling-comes-out-as-trans-/54509.html>. Acesso em 27 fev. 2018.
BROUSSE, M.-H. Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho. In: Opção Lacaniana online nova série, n. 15, p. 1-17, nov. 2014. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_15/Corpos_lacanianos.pdf>. Acesso em jun. 2017.
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GABRIEL SILVA MEDEIROS / JEANNINE MARIE TEIXEIRA NARCISO
GABRIEL SILVA MEDEIROS Acadêmico de Psicologia das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros (FIPMoc) e aluno do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental (NIPSM) gabrielsmedeiros@hotmail.com
JEANNINE MARIE TEIXEIRA NARCISO Psicanalista, psicóloga, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise jannarciso31@gmail.com



A queda do falocentrismo: consequências para a clínica das toxicomanias – CLÁUDIA MARIA GENEROSO


Cao Guimarães

 

 

CLÁUDIA MARIA GENEROSO
Coordenadora do Núcleo de Toxicomania do IPSM-MG, doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos pela UFMG, psicóloga no CAPS-AD Betim.
Av. Brasil, 1.831, sala 1011, Belo Horizonte – MG
claudia.generoso@yahoo.com.br
                                (31) 996144466

 

 

Resumo: O artigo visa traçar um breve caminho sobre a noção de falo, nos momentos do ensino de Lacan, circunscrevendo alguns pontos que se referem à queda do falocentrismo para situar, a partir de Miller, suas consequências na clínica da toxicomania.

Palavras-chave: Falo; Queda do falocentrismo; Toxicomania.

The fall of phallocentrism: consequences for the clinic of drug addiction

Abstract: The article aims to trace a brief path of the notion of phallus, in different moments of Lacan’s teaching, circumscribing some points that refer to the fall of phallocentrism to situate, from Miller on, its consequences to the clinic of drug addiction.

Keywords: Phallus; Fall of phallocentrism; Drug addiction.

 

 

A queda do falocentrismo: consequências para a clínica das toxicomanias[1] 

Para falar sobre as consequências da queda do falocentrismo na clínica das toxicomanias, vamos, antes, traçar um breve caminho sobre a noção do falo nos momentos do ensino de Lacan, que foi se modificando no desenrolar de suas próprias investigações. Se, no primeiro ensino, a questão do simbólico ocupava o centro, mais para o final será em torno do real que suas elaborações serão desenvolvidas. De maneira breve, destacamos dois momentos: um primeiro momento, em que a noção de real estava articulada ao simbólico, isto é, o real como possibilidade de ser simbolizado, e sendo o Nome do Pai (NP) sua chave, assim como seu correlato, que era o ordenamento fálico da libido (MILLER, 2014, p. 24); e um segundo momento, já no final de seu ensino, quando Lacan pôde vislumbrar os efeitos do capitalismo associado à ciência, que dariam novo movimento à civilização, e os efeitos na subjetividade, sendo em torno dessa conjuntura que desenvolveu suas elaborações sobre a outra concepção sobre o real.

No momento simbólico, o falo será concebido a partir do significante, considerando a construção da metáfora paterna, que é uma maneira de formalizar, com os elementos da linguística, o Édipo freudiano. Nessa construção, Lacan define o Nome do Pai como um significante que tem função de lei. Um significante fundamental, com valor de “metáfora que coloca esse Nome em substituição ao lugar primeiramente simbolizado pela operação de ausência da mãe” (LACAN, 1958, p. 563), significante tal que barra o desejo materno produzindo uma nova significação, nomeada de significação fálica, que regulará a relação entre mãe e criança. O falo como significante ordenará o desejo, regulando o gozo e tornando-se um operador fundamental na dimensão desejante humana. O NP terá uma função de normatização do mundo pela ordenação do campo simbólico, em que cada coisa está em seu lugar, sustentado pela força fálica do Outro e de seus ideais.

Nos seminários finais de Lacan haverá uma mudança em relação ao estatuto do simbólico, que não mais se destacará como orientador das relações humanas, visto que a civilização sofrerá os efeitos da queda do falo na vida social contemporânea e na clínica. Nessa perspectiva, no Seminário 17, O avesso da psicanálise, Lacan demarcará a função do mais-de-gozar no mundo contemporâneo e sua incidência sobre o objeto a, dizendo que

A sociedade de consumidores adquire seu sentido quando ao elemento, entre aspas, que se qualifica de humano se dá o equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é o produto de nossa indústria, um mais-de-gozar – para dizer de uma vez – forjado (LACAN, 1969-70, p. 76).

O mercado, ao bancar o mais-de-gozar, amplia o registro do objeto a, que se multiplica no nível dos objetos forjados pela indústria, os gadgets, para provocar o consumo com a promessa de obturar a falta, produzindo novos modos de gozo insaciáveis. Nesse contexto, Lacan apontará para a ascensão do objeto e para a queda da função paterna na ordenação social e, como consequência, para uma deficiência do gozo fálico, a fim de normalizar as relações dos seres humanos.

Os efeitos da queda do falocentrismo ficam ainda mais evidentes no Seminário 20, Mais, ainda, e nos posteriores, quando Lacan elabora uma teoria da sexualidade cujo norte não é o gozo fálico, mas sim um outro tipo de gozo, que o autor nomeia de suplementar, ou seja, o gozo feminino, o gozo do corpo. Se o falo como significante simboliza o lado do homem, do lado da mulher haverá uma carência do significante para simbolizá-la, entrando em cena um outro tipo de gozo, que é suplementar.

A concepção de gozo feminino será sustentada por Lacan a partir das fórmulas da sexuação, em que contrapõe a lógica do todo à lógica do não-todo em relação gozo fálico, sendo que qualquer “ser falante se inscreve de um lado ou de outro” (LACAN, 1972-73, p. 107). Se o lado homem se define pela lógica do todo, a mulher “se define por uma posição com o não-todo no que se refere ao gozo fálico” (LACAN, 1972-73, p. 15, p. 99), apresentando, aí, um gozo suplementar. Gozo tal que indica que há algo a mais, estando conectado ao gozo do corpo, o qual se experimenta e do qual não se sabe nada, pautando-se pelo sem sentido. Gozo sem limites, sustentado pela iteração de uma satisfação superegoica que se multiplica por não estar circunscrita, recusando o vazio estrutural que define a subjetividade devido à inexistência do gozo universal.

É na lógica do não-todo que vemos a sociedade contemporânea se constituir, demarcando uma mudança em relação ao objeto a. Se no Seminário da Angústia o objeto a se refere ao regime da exceção, no Seminário 20 (Mais ainda) ele será regido pela lógica do não-todo, correlacionado ao mais-de-gozar e, por isso, se proliferará, estando em toda parte (MILLER, 2005, p. 24;25). É nessa conjuntura de ascensão do objeto a ao zênite social (LACAN, 1970) que Miller, no texto “A teoria do parceiro”, dirá que a toxicomania representa bem o momento contemporâneo, pois “ela traduz a solidão de cada um com seu parceiro mais-de-gozar” (2000/1997, p. 170). Condição tal que pertence ao liberalismo e seus desdobramentos “(…) em que não nos ocupamos de construir o Outro, e que os valores ideais do Outro desagregam-se frente à globalização que prescinde do Ideal” (Ibid.).

Sabemos que o mestre contemporâneo, ou seja, o discurso capitalista, acarreta consequências na civilização e na subjetividade. Sinatra, no III Colóquio Americano TyA/2017[2], diz que há um componente aditivo no circuito do consumo de mercadorias na atualidade, produzindo drogas-mercadorias no sentido de as mercadorias terem, em si, um valor aditivo.

Isso se torna possível porque se valem diretamente da condição estrutural da subjetividade, que se constitui a partir da marca da inexistência de um gozo universal. Essa marca do vazio se institui também, nos tempos atuais, como matriz onde se inserem os gadgets. O discurso capitalista intervém no mercado produzindo um objeto para saturar, com os pequenos objetos, este vazio central do gozo impossível. Sua função: a de fazer existir um gozo suplementar dos sexos, que não há (SINATRA, 2017).

Com isso, o que se substitui não é um objeto, mas sim um gozo que não existe. Nessa promessa de suturar o vazio pelos objetos-mercadoria, o que se produz é a iteração do gozo impossível de se satisfazer.

No contexto do Outro dos ideais que se esvanecem, e em que Miller se refere ao Outro que não existe, abre-se um processo no qual o sujeito contemporâneo se encontra em movimentos acelerados e encontros efêmeros, abertos, por um lado, à diversidade de formas de gozo e à multiplicidade de comunidades e tribos, mas, por outro lado, observa-se uma crescente intolerância aos modos de gozo do outro, ao diferente, o que leva a uma profusão de formas de segregação. Laurent (2014) comenta que Lacan já se preocupava com a globalização como efeito do capitalismo e, em suas elaborações sobre o racismo, especialmente o nazista, antevia os desdobramentos de novas segregações, dizendo em seu texto de 1967: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará sua balança na extensão cada vez mais dura dos processos de segregação” (LACAN, 1967, p. 263). O que está em jogo nessa frase de Lacan é a dificuldade de suportar o modo de gozo do outro que se apresenta como estrangeiro, “rejeitando um gozo distinto do meu” e que remete ao inquietante estranho que cada um comporta, estando a segregação ancorada nessa rejeição.      O autor prossegue dizendo que, se Lacan insistia nessa discussão do racismo, era para demonstrar que “todo conjunto humano comporta em seu fundo um gozo deslocado, um não-saber fundamental sobre o gozo, que corresponderia a uma identificação” (LAURENT, 2014, s/p.), e é isso que está no fundamento do laço social. Lacan, em Televisão, comenta que, “no desatino do nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele” (1973, p. 534). No entanto, o contemporâneo demostra uma colagem de modos de gozo, rejeitando o gozo impossível e, com isso, o que lhe é diferente. Em tempos de queda dos ideais e de uma civilização cada vez mais orientada pela lógica do gozo feminino, vemos se multiplicar as formas de gozo e seus embates na sociedade. Laurent dirá que não se trata de choque de civilizações, mas sim de choque dos gozo: “Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador” (LAURENT, 2014, s/p.).

No Brasil, podemos situar uma das novas formas de segregação, que são as “cracolândias” e seus efeitos no social. Diante desses espaços fora da lei, que atualizam um modo de gozo estranho, sempre surgem tentativas de intervenções sociais, sejam de caráter de inserção social, sejam de medidas higienistas. Destacamos duas delas: por um lado, a proposta de incluir esse agrupamento de alguma forma no social a partir das noções de direitos humanos e cidadania, contempladas pela ideia de redução de danos. Por outro lado, as antigas formas proibicionistas e higienistas de combate às drogas, cada vez mais crescentes atualmente. Mas quanto mais se combate as “cracolândias”, como o exemplo de São Paulo, mais se espalham os agrupamentos pela cidade. Tais agrupamentos nos mostram também a atualidade do gozo autístico como uma modalidade do contemporâneo, pois, mesmo os consumidores estando em um mesmo espaço, cada um se encontra imerso em seu próprio gozo.

Em relação à clínica, nos perguntamos como podemos pensar a toxicomania considerando a queda do falocentrismo. Naparstek, no argumento do Encontro TyA que aconteceu em abril deste ano em Barcelona, destaca três tempos de elaborações sobre a toxicomania no ensino de Miller, desenvolvidas considerando a tese de Lacan da “relação da droga com o pequeno pipi”. Naparstek diz que a primeira versão de Miller sobre as toxicomanias se encontra ancorada nas elaborações sobre o falo, fazendo referência ao texto “Para uma investigação sobre o gozo autoerótico”, de 1989. Nesse texto, Miller refere-se à toxicomania como o que coloca questão ao falo. Diz que a especificidade do gozo toxicômano é que não passa pelo Outro nem pelo gozo fálico, caracterizando-se por romper o casamento com o pequeno pipi, não permitindo, assim, colocar o problema sexual (MILLER, 1989/2016, p. 28).                  É, portanto, uma relação de ruptura com o gozo fálico.

O segundo momento das elaborações de Miller giram em torno do objeto pequeno a, fazendo referência aos textos da época do parceiro sintoma (“Teoria do parceiro”, 1997/2000). Jésus Santiago, em A droga do toxicômano (2017, p. 233), demarca que essa formulação de Miller possibilitou conceber o Outro não apenas como lugar do significante, mas também como o que se representa como corpo, permitindo entender os novos sintomas, tal como a toxicomania, como supremacia do gozo autístico e mortífero. Nesse sentido, a toxicomania aparece como um gozo assexuado, prescindindo do parceiro sexual, tendo o caráter de um antiamor, uma vez que estabelece o parceiro-droga como mais-de-gozar, havendo a prevalência dessa vertente em conexão com um objeto artificial. A teoria da droga como ruptura fálica é comentada por Santiago considerando as concepções do último ensino de Lacan, situando a especificidade do ato toxicômano como uma ruptura com o gozo decorrente da parceria com o falo. Parceria esta que fomenta o gozo necessário ao ser falante para lidar com os embaraços decorrentes do gozo como impossível. Na toxicomania, o que se observa é um excesso de gozo prevalecendo sua vertente mortífera, que não convém à vida, numa ruptura com o desejo e o amor (ponto a ser desenvolvido por Mariana Vidigal, no seminário teórico O uso de drogas como anti-amor e o recurso do falo”, e pelos comentários de Cristina Nogueira).

No terceiro momento das formulações de Miller, em “Ler um sintoma” (2011), Naparstek, em “Enganches y desenganches en las toxicomanias y las adicciones”, destaca que o autor se refere mais à adição do que à toxicomania: “Neste caso, não se trata do falo ou do objeto pequeno a, mas do sintoma nos termos do último Lacan. Refere-se à iteração do sintoma e à adição como modelo do sintoma enquanto tal. Um sintoma separado do Outro e vazio de sentido” (2018, p. 22). Assim sendo, a concepção das psicoses ordinárias coloca em questão a noção da tese de ruptura relacionada à droga no ensino de Lacan, especialmente aquela pautada pela referência ao NP. Mais do que ruptura, o autor sugere, com Miller, pensar em ligamentos e desligamentos do Outro, reafirmando a noção da clínica borromeana, flexível às soluções sintomáticas como amarrações. Nessa perspectiva, o Nome do Pai, concebido como predicado, se instala como uma solução compensatória ao substituir o substituto NP. Por esse viés, Santiago comenta, referindo-se às psicoses ordinárias, que a droga pode se revelar um “substituto substituído”, podendo ser um NP na relação que o sujeito tem com seu corpo. Ou seja, uma solução para as desordens do gozo do toxicômano, especialmente quando se verifica a prática do consumo como uma técnica de corpo com a droga (SANTIAGO, 2017, p. 240). Na clínica das amarrações, é possível pensar práticas de consumo de drogas que podem funcionar como uma forma compensatória de ligamentos ou desligamentos do Outro (questões que serão trabalhadas por Maria Wilma Faria em torno do tema “ruptura ou queda do falo nas toxicomanias e suas implicações na clínica”).

Considerando os pontos levantados é que foram abertos os trabalhos do semestre, ressaltando que a toxicomania nos mostra um funcionamento congruente ao gozo feminino, uma vez que nos indica o que escapa à norma fálica e aponta muito mais para uma iteração do gozo. Como vimos acima, o estatuto do gozo feminino refere-se ao ilimitado, a uma dificuldade de contornar aquilo que, no gozo, se mostra como deslocado, que se apresenta como impossível. Nesse sentindo, colocamos como questão a ser investigada: a relação com o parceiro-droga seria uma maneira de ruptura fálica, uma forma rejeitar ou de contornar o gozo deslocalizado? Questão a ser abordada ao longo do semestre, no Núcleo de Toxicomania, por meio dos pontos desenvolvidos nas apresentações teóricas, tal como o tema de Rachel Botrel, “A toxicomania como uma resposta à queda do falocentrismo”, e também verificados nos casos clínicos apresentados por Marina Melo e comentado por Lilany Pacheco; por Marcelo Quintão, com comentários de Francisco Paes Barreto; pelo comentário de Maria José Salum sobre a apresentação de pacientes de 2017; e também pela prática da apresentação de pacientes a ser feita por Jésus Santiago.

 

 


Referências
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MILLER, J-A. “Para uma investigação sobre o gozo autoerótico”, Revista Pharmakon digital (2016), n. 02, vol. 1. Disponível em: <http://www.pharmakondigital.com/indice2016_vol1_pt.html>.
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SANTIAGO, J. “Droga, ruptura fálica e psicose ordinária”, In: A droga do toxicômano – uma parceria cínica na era da ciência. Belo Horizonte: Relicário, 2017, p. 231-241.
[1] Abertura do 1º semestre de 2018 do Núcleo de Toxicomania.
[2] O III Colóquio Americano da rede TyA ocorreu em 13 de setembro de 2017, na cidade de Buenos Aires, Argentina, como um dos eventos satélites do VIII ENAPOL, debatendo o tema “A inquietante familiaridade das drogas”.



Éperdument

HELENICE DE CASTRO

 

CAO GUIMARÃES

 

Em 2011, a imprensa francesa divulgará, com algum frenesi, o caso amoroso mantido por um diretor de uma penitenciária feminina com uma das detentas daquela instituição. Após ser preso e condenado, Florent Gonçalves escreve um livro autobiográfico, Defènse d´aimer. O filme Éperdument, do diretor Pierre Godeau, é baseado nesse romance e girará em torno de dois personagens principais: Jean Firmino, o diretor da prisão, e Anna Amari, a jovem detenta.

 

Esse longa-metragem, que no Brasil ganhou o nome de Insensata paixão, conta então a história de um amor louco que causa estragos por desconhecer os limites. Portanto, assim que terminei de assistir ao filme, a questão que me veio foi a da devastação. Sabemos que Lacan utiliza esse termo, ‘devastação’, para se referir à relação mãe-filha, e que, em francês, o termo correspondente é ravage.

 

Numa breve pesquisa etimológica, ficamos sabendo que ravage deriva de ravir, que quer dizer raptar, arrebatar e encantar, que, por usa vez, é derivado do latim popular rapire, que significa segurar violentamente. E que, no latim clássico, possui o significado de ser transportado ao céu. Como nos diz Jacques Alain-Miller, ao nos apresentar esses dados etimológicos da palavra ravage, “ser transportado ao céu, tendo no horizonte do arrebatamento o êxtase” (MILLER, 2008, p. 298).

 

Não parece bem isso o que vemos acontecer com Jean em sua relação com Anna? Desde que esse homem encontra aquela mulher, ele é, ali, arrebatado. A cena do desfile de moda organizado na cadeia pelas detentas demonstra bem esse momento de arrebatamento, pois, ali, o diretor do filme se valerá inclusive do recurso da câmera lenta para mostrar como o olhar de Jean é capturado pela presença de Anna na passarela. Dali em diante, acompanharemos, de forma acelerada, o bem-sucedido diretor de uma penitenciária feminina, que tinha, até então, uma vida organizada e bem estabelecida e, no início do enredo, é apresentado como um homem feliz no casamento e um pai cuidadoso, deixar tudo para trás para viver esse amor proibido, passando do céu ao inferno na velocidade de um meteoro.

 

Porém, se estou aqui me valendo da questão da devastação para ler algo do que se passa com o personagem principal, uma pergunta inicial se coloca, pois, como me referi anteriormente, Lacan vai se valer da questão da devastação para pensar o lugar da filha na relação com a mãe e também para o que dessa relação se fixa e acaba por se reproduzir na ligação de uma mulher com um homem e não o seu contrário.

 

No Seminário 23, Lacan dirá que, se uma mulher é, para um homem, um sintoma, em contrapartida, um homem é, para uma mulher, uma devastação (LACAN, 2005, p. 98). Como equacionar esse impasse, já que o filme, como proponho pensar aqui, coloca um homem nessa posição de devastado? Como seria possível fazer essa virada?

 

Parece-me então necessário introduzir, nessa nossa discussão, outros elementos que possibilitem uma leitura mais ampla da questão da devastação, permitindo, assim, também pensá-la do lado do homem. Esse outro ponto que introduzo aqui diz respeito ao fato de vivermos hoje num mundo já não mais comandado por um regime patriarcal e, portanto, num mundo onde, diante do declínio do Nome-do-pai, a partilha do sexo não se faz mais de forma tão nítida. Anteriormente, a diferenciação entre homens e mulheres estava mais vinculada à anatomia, porém, essa distinção pelo real do corpo desaparece em favor do gênero, o que torna homens e mulheres apenas significantes. Temos, assim, na atualidade, uma grande fluidez entre o lado masculino e o feminino ou mesmo a abertura para uma multiplicidade de significantes nada convencionais para nomear algo relativo à posição sexual.

 

Por essa via, poderíamos interrogar se Jean, ao encontrar Anna, não acaba caindo numa posição feminina, mesmo tendo anteriormente sustentado na vida uma posição fálica? Localizaria essa posição fálica de Jean, por exemplo, em sua ascensão profissional, ao se destacar como diretor de uma casa de detenção ou, ainda, na maneira como ele conduzia a instituição, conseguindo mantê-la dentro da ordem e da disciplina, mesmo quando desafiado pelas presidiárias mais insubordinadas?

 

Apresento aqui então uma oposição entre a posição fálica e o feminino, oposição que nos aproxima do tema do XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que acontecerá no Rio de Janeiro, em novembro deste ano de 2018.

 

O argumento do XXII Encontro Brasileiro, de Marcus André Vieira, apresenta a questão da queda do falocentrismo, que pareceu-me cair como uma luva na leitura do filme com o qual nos ocupamos hoje.

 

O texto se inicia com a pergunta “Quem mandou? Quem mandou ir atrás, trair, amar demais, dormir de menos? Quem?”. Para responder com “algo em mim, mais forte que eu”, que Marcus André conectará com o gozo. O gozo, que, segundo o autor, “é esse querer que não costuma seguir o bom senso, que insiste e leva a um sem limite e a um estado sem descanso” (VIEIRA, 2018).

 

Esse “Quem mandou? Quem mandou trair, amar demais, beber demais?” vem carregado de um tom de repreensão, fazendo supor que haveria alguém numa instância superior que determinasse ou mesmo orientasse melhor os atos de um sujeito, dando a esses atos uma justa medida.

 

Essa crença nesse Outro, que vem no lugar de bússola, é exatamente a função que o pai ocupava em uma sociedade patriarcal. Esse pai sustentado na tradição que tinha o poder de convencer que as coisas sempre funcionaram de uma determinada maneira e assim deveria continuar sendo.

 

A lei paterna, ancorada na tradição, enunciava o que se podia ou não fazer, instalando ideais e censuras que definiam diretrizes para as vidas humanas, como também organizando os usos dos corpos e repartindo esse uso de forma nítida e em dois modos: “de um lado o masculino, tido como localizado e vigoroso e de outro, o feminino, dito abrangente e sensível” (VIEIRA, 2018).

 

O falo entraria, nesse roteiro patriarcal, como o signo de uma possível complementaridade entre esses dois lados, ou seja, esse complemento que falta à mulher e que pode ser encontrado no homem.

 

Mas o que vemos ocorrer é que esse Outro paterno que se constituía como estrada principal se vê agora vertido em uma infinidade de trilhas, fazendo explodir a multiplicidade das formas de laço social e de modos de gozo. Não mais governado pelos ideais universais do pai, o mestre contemporâneo propõe, em seu estilo capitalista, que cada um encontre seus objetos de consumo que possam recobrir o que do gozo surge sempre furado.

 

O falo, assim, já não se sustenta como esse ícone que orienta a partilha dos sexos, e, com sua queda, que acompanha o declínio da tradição paterna, o que vemos ocorrer é o que Miller propôs chamar de uma feminização do mundo.

 

Então, mais além da anatomia, vamos entender um pouco melhor o que estou chamando aqui de masculino e de feminino. Pois, no filme, chama a atenção como a vida de Jean era rodeada de mulheres – esposa, filha, secretária, agente penitenciária e as várias detentas – e como, no decorrer da trama, o sujeito não sustenta esse lugar de exceção e de autoridade diante desse universo feminino.

 

Lacan, no Seminário 20, articulará o gozo do lado masculino com o gozo fálico, chamando-o de “gozo do idiota” (LACAN, 1982, p. 109). Idiota pelo fato de que o homem goza sozinho, já que ele goza de seu órgão e é esse órgão fálico que acaba obstaculizando a relação com o Outro. O gozo fálico enquanto Um, enquanto pulsão que consiste “em se fazer Um”, é separado do Outro e se constitui, assim, como autoerótico. Esse termo idiotia, nos diz Pierre Naveau, denuncia o fato de que o sujeito masculino se satisfaz em ser complementado pelo gozo de uma parte do próprio corpo (NAVEAU, 2017, p. 142-143). Segundo Naveau, temos, nessa posição masculina, o “valor de uso” do falo, em que se constata uma recusa do homem em transferir o gozo do corpo próprio ao corpo do Outro (NAVEAU apud MILLER, 2017, p. 123). Desse lado, por meio do falo, há uma localização do gozo e uma tentativa de se fazer um conjunto todo fechado, ou seja, um todo fálico.

 

Quando sugiro pensarmos Jean imerso no gozo feminino, sugiro pensá-lo entregue a um gozo oposto ao gozo do Um fálico, e, portanto, mergulhado num gozo sem borda. A devastação apareceria aqui como efeito rebote desse mergulho, mergulho que visa acessar um gozo absoluto e ilimitado. Desse lado, estamos diante da tentativa de fazer existir um todo fora do falo.

 

Antes de concluir esse meu breve comentário e passarmos à conversa, gostaria de retomar a citação do Seminário 23, em que Lacan dirá que um homem é, para uma mulher, uma devastação. Para Pierre Naveau, com esse enunciado, Lacan identifica o homem como aquele que profere “a fala que fere”. Daí o fato de a mulher, enquanto devastada, vir a ocupar o lugar de “uma mulher ferida”. (LACAN, 1992, p. 69).

 

Então, se a devastação se equivale aqui à ferida causada pela palavra que fura o corpo, não poderíamos pensar na devastação como algo estrutural, mais além de algo próprio da mulher? Se, como nos diz Lacan, o corpo do falasser foi feito para ser marcado pelo significante, essa ferida causada pelo traumatismo que a língua imprime no corpo, e gera daí um gozo que escapa a localização fálica, não vale para todos? Ou mesmo todos os seres falantes não terão de se haver com o gozo suplementar, que Lacan chamou de feminino?

 

Em Éperdument, Jean parece querer tratar essa ferida do gozo que irrompe da incidência da palavra sobre o corpo, não querendo se deparar com o furo que esse gozo comporta. Jean tenta abolir o furo tamponando-o com um amor louco.

 

Interessante notar que, se alguém tenta introduzir a dimensão do não-todo nesse amor, esse alguém é Anna. Ela segue o conselho de uma detenta mais velha e aparece diante de Jean com outro rapaz, tentando, assim, colocar um ponto de basta ao desmedido daquele encontro. Ela também não leva a gravidez, fruto da relação com Jean, adiante. E, na cena em que, pela primeira vez, o casal de amantes se encontra fora da prisão, depois do sexo, Anna se vê incomodada, pede a Jean que se cubra, fazendo alusão à necessidade do véu do pudor diante desse homem imerso no empuxo ao infinito.

 

Poderíamos indagar se a verdadeira prisão, nesse caso, não está em passar a vida, por um lado, tentando circunscrever o gozo a um regime todo fálico, como o gozo do idiota, ou por outro lado, acreditando que pela via do todo fora do falo se alcançará o gozo absoluto?

 

Entre esses dois polos, a psicanálise propõe que cada sujeito possa se responsabilizar pela ferida que o significante instala em seu corpo e pelo gozo daí advindo. Tal responsabilização permite que a ferida se transmute de dor e impasse à causa do desejo, fazendo do furo a condição de acesso ao gozo.

 

 


Referências
LACAN, J. (1969-70) O seminário, Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
______. (1972-73) O seminário, Livro XX: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.
______. (1975-76) O seminário, Livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
MILLER, J-A. (1997-98) El partenaire-síntoma. Buenos-Aires: Paidós, 2008.
NAVEAU, P. O que do encontro se escreve. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2017.
VIEIRA, M. A. “A queda do falocentrismo: consequências para a psicanálise”. Disponível em: http://encontrobrasileiro2018.com.br/encontro/argumento/ Acesso em: 23 jun.2018.

HELENICE DE CASTRO
Membro da EBP/AMP hedcastro@terra.com.br