FENÔMENO E ACONTECIMENTO DE CORPO[1] 

SÉRGIO DE CAMPOS
Psicanalista, Analista Membro da Escola. EBP/AMP
sergiodecampos1@gmail.com

Resumo: O autor trabalha a diferença entre os conceitos de fenômeno de corpo e acontecimento de corpo, o primeiro, um gozo que se inscreve como traumatismo e que poderá, ou não, ganhar o estatuto de acontecimento de corpo.  Para traçar essa diferença, explora as noções -indissociáveis- de corpo e gozo, dado que o corpo vivo surge como a persistência de uma letra de gozo, um corpo consequência de marcas, traços, inscrições e acontecimentos contingentes. Além disso, apresenta três exemplos de acontecimentos de corpo: em Schreber, na relação de James Joyce e Nora e em um fragmento de sua própria análise.

Palavras chaves: fenômeno, acontecimento de corpo, gozo, corpo, sinthoma

BODY PHENOMENON AND BODY EVENT

Abstract: In this essay, the author discusses the difference between the concepts of body phenomenon and body event. The first, a jouissance that is inscribed as a trauma and that may, or may not, gain the status of a body event.  To trace this difference, he explores the -indissociable- notions of body and jouissance, since the living body is the persistence of a jouissance letter – a body that is a consequence of marks, traces, inscriptions, and contingent events. Moreover, he presents three examples of body events: in Schreber, in James Joyce and Nora’s relationship, and in a fragment of his own analysis.

Keywords: phenomenon, body event, jouissance, body, sinthome

Desali. Noia summer please corona

 

É sempre oportuno precisarmos e diferenciarmos os conceitos de fenômenos de corpo e os acontecimentos de corpo. Nesse sentido, tem-se que a palavra fenômeno, de etimologia grega, deriva da palavra phainomenon — o nome do brilho —, portanto, tudo o que pode ser observado pelos nossos sentidos e descrito no plano do conhecimento.

Os fenômenos de corpo, por sua vez, são frequentes e comuns. Os campos da psicanálise estão repletos de fenômenos de corpo, desde as histéricas de Freud, como Ana O., Dora e Elizabeth von R., com os seus quadros somáticos, dissociativos e conversivos; passando pelos dismorfismos corporais, tais como a anorexia, a bulimia e a obesidade; alcançando os fenômenos psicossomáticos; e, por fim, os fenômenos de corpo que ocorrem nas psicoses, tais como as alucinações de todos os tipos e os delírios cenestésicos e hipocondríacos. Desse modo, podemos concluir que os fenômenos de corpo, assim como os acontecimentos de corpo, têm lugar tanto nas neuroses quanto nas psicoses.

Na segunda clínica, Lacan migra do paradigma de o isso fala para o isso goza e que o real do inconsciente é o corpo falante. Logo, o corpo não é mais derivado do estádio do espelho, da imagem do corpo, de sombras e de reflexos, mas da corporização da imagem, de uma imagem corporificada. Com fins de sair do dualismo de Descartes, Lacan propõe a substância gozante para unir a res cogitans e a res extensas, de sorte a produzir o corpo falante, resultando em uma mônada, como uma máxima do monismo, que ele traduz como mistério. Em seu último ensino, Lacan retira a relevância das estruturas clínicas ao propor o conceito de falasser. Os fenômenos de corpo podem ser lidos como sinais de que o UOM tem um corpo e que isso goza.

Seguindo a análise, os fenômenos de corpo podem ser fugazes, transitórios ou permanentes, via de regra são fora de sentido, como a famosa dor sem razão encarnada e permanente da fibromialgia, ou podem estabelecer uma relação de nexo causal, como no episódio no qual Dora é assediada pelo sr. K. Assim, a sensação de pressão no tórax (que Freud compreende como deslocada) no caso de Dora, logo após o sr. K. pressionar o seu ventre com o membro ereto. 

A corporificação ou incorporação

Na segunda clínica, Lacan dispensa suas referências concernidas ao estádio do espelho com a finalidade de usar o conceito de corpo como gozo. Lacan recorre ao texto de Freud “Bate-se numa criança”, em razão de que esse postulado não se produz pelo efeito de verdade, mas pelo efeito de gozo. Logo, como significação absoluta, a fantasia se desequilibra e se capta pelo contrário, não mais como efeito de verdade, mas como efeito de afeto. Portanto, o significante é incorporado como afeto, como um afeto de gozo.

O conceito de gozo é, portanto, indispensável para se cogitar algo sobre o corpo, visto que é necessário ter um corpo para gozar. Nesse sentido, ambos os conceitos são indissociáveis, pois apenas um corpo pode gozar. Se o significante não necessita se apoiar em um corpo, mas em uma letra, é necessário que o gozo se manifeste em um corpo (MILLER, 1998, p. 93).

Ademais, Lacan leva em conta o conceito de lalíngua como um furo disjunto da linguagem, que antecede à fala e ao vernáculo, uma vez que encarna o gozo e produz um corpo vivo. Assim, o corpo vivo surge como a persistência de uma letra de gozo e passa a ser condição para tal. Logo, o corpo é consequência de marcas, traços, inscrições e acontecimentos contingentes, frutos da junção entre lalíngua e os afetos que se incorporam.

Com a finalidade de debater sobre como se faz um corpo, é necessário levar em consideração o conceito de gozo. O parlêtre experimenta o gozo em si: tanto o gozo do Um como o gozo do Outro. Se, por um lado, o gozo do Outro é conectado ao Outro sexo, o gozo do Um é solitário e assexuado. Logo, a relação do gozo do Um ao gozo do Outro sexo é disfuncional, visto que “não há relação sexual”. Aqui, o axioma “não há relação sexual” denota que o gozo do Um é sempre solitário e ele se encontra com o gozo do Outro apenas sob o regime da contingência (MILLER, 2003, p. 275).

Miller destaca que o gozo do Um é parasitário e se manifesta de diversas formas, por diferentes meios. O gozo do Um é conexo ao corpo próprio e não faz par, pois é sempre o corpo que goza e o gozo como Um não depende de uma relação com o Outro.

A cada uma das tentativas, imaginário, simbólico e real se revelam como insuficientes, mesmo porque o objeto a se revela como um semblante. No Seminário 20, Lacan descobre que o objeto a não consegue dar conta do gozo, visto que ele é um falso real que, em si, é um semblante. Então, a conclusão de Lacan é que o gozo não se reduz ao desejo, nem ao falo, tampouco ao objeto a (MILLER, 2009, p. 274).

No Seminário Mais, ainda, Lacan coloca em questão o conceito de linguagem, que passa a ser considerado um conceito derivado, e não originário, em relação à invenção de lalíngua — que é a fala antes do seu ordenamento semântico, gramatical e lexicográfico. Assim, Lacan, ao questionar o conceito de fala e linguagem, afirma que não há linguagem como comunicação, apenas como gozo. No ensino de Lacan, o gozo era sempre secundário em relação ao significante. Entretanto, o gozo sendo conduzido a uma relação originária nesse Seminário, a linguagem, que era considerada primária, surge como secundária e derivada. O que Lacan chama de lalíngua é a fala como disjunta da estrutura de linguagem, que aparece como derivada e efeito dessa atividade primeira e separada da comunicação.

Desse modo, Lacan isolou o conceito de lalíngua aquém da linguagem, aquém dos efeitos de significação. Lalíngua serve para muitas coisas diferentes da comunicação. Então, Lacan a localiza no nível homogêneo ao do inconsciente e mais aquém da linguagem, a qual se expressa como gozo; ela é um significante que está reduzido ao Um — S1 — e não se articula ao S2 em sua função de representação de sujeito. Portanto, o significante não é funcional para a comunicação, mas é usado para gozar. Lalíngua está incluída no pensamento e permanece indecisa entre o fonema e a palavra (Ibidem, p. 334).

Se a finalidade da psicanálise é modificar o modo de gozo, cabe indagar como o significante opera sobre o gozo. Nesse sentido, a mutação de gozo é o objetivo do processo analítico, cujo par significante e significado constitui uma abordagem parcial do gozo. Em razão disso, Lacan inventou o conceito de lalíngua como um furo no âmbito da linguagem. Logo, a linguagem é o fruto de uma elucubração de saber, de modo que ela é uma construção a partir de lalíngua e orientada em direção à significação (Ibid., p. 271). Portanto, para dar conta do gozo, é necessário arrancar o efeito de significação e substituí-lo por lalíngua.

A partir disso, a fala como comunicação, o conceito do grande Outro, o Nome do Pai, o símbolo fálico se desfazem e se reduzem apenas ao estatuto de semblantes e acabam por ser reduzidos a uma função de grampo entre elementos disjuntos. O paradigma da não relação traduz a disjunção entre o significante e o significado, o gozo e o Outro e o homem e a mulher sob a fórmula de que “a relação sexual não existe”. Assim, todos os termos considerados primordiais na obra de Lacan e que eram denominados transcendentais — visto que condicionavam toda a sorte de experiências e princípios da prática e garantiam a grande conjunção e harmonia entre elementos como o Nome-do-pai, o Outro e o falo ficam reduzidos a conectores. Então, o que era da ordem transcendental se torna uma pragmática social. A figura que pode representar esse paradigma são dois círculos de Euler indexados pela disjunção, cuja intersecção é vazia e que é passível de ser conectada por intercessores variados capazes de fazer suplência, os quais Lacan denominou sintoma.

Vale dizer que o Seminário Mais, ainda radicaliza o conceito de não relação e que, portanto, faz vacilar o conceito de estrutura, já que ela nada mais é do que uma variedade de articulações e de relações, o que, em síntese, a não relação amplia e aprofunda uma mudança total de paradigma. Nesse sentido, o seminário abole o conceito de estrutura e outros tipos de relação e articulações.

Lacan abandona, então, o sistema de significação com a finalidade de dar conta do efeito de gozo, de modo que ele o substitui pelo nó borromeano, capaz de enodar os três registros (RSI). Para tal, Lacan coloca o inconsciente como um dejeto da elaboração freudiana, como inconsciente real. Ademais, a interpretação ganha uma nova abordagem fora do sistema de significação, como perturbação da defesa.

Se Lacan destaca que, no início, está o significante, no Seminário 20, ele segue seu caminho inverso, já que parte da ideia de que o gozo é um fato. Assim, há um retorno à Coisa, com a finalidade de reduzi-la ao objeto a e torná-lo manejável. O ponto de partida dessa perspectiva não é “a relação sexual não existe”, mas, ao contrário, é que Há Um. Há gozo. Até o seminário Mais, ainda, havia uma satisfação que advém do fato de falar para um analista e que isso produz efeitos de verdade. Agora, a perspectiva é outra, pois se parte da premissa de que há gozo como propriedade de um corpo vivo e que o gozo se relaciona unicamente ao corpo vivo. Enfim, só há psicanálise de um corpo vivo e que fala.

Lacan relata que o corpo falante “é o que merece ser qualificado de mistério”. A psicanálise se dedica à substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Logo, a passagem do isso fala para isso goza implica uma disjunção entre o gozo e o Outro, instaurando a não relação entre eles. Então, temos o gozo do Um-totalmente só, separado do Outro. Logo, todo gozo efetivo, todo gozo material é gozo Uno, quer dizer, gozo do corpo próprio. Enfim, sempre é o corpo próprio quem goza, por qualquer que seja o meio. O gozo, como tal, é gozo Uno. É o reino do gozo do Um. 

Fenômenos e acontecimento de corpo

O fenômeno de corpo é um gozo que se inscreve como traumatismo, como choque do significante, de maneira contingente. Em “La Conversación”, Miller (2016) destacou vários fenômenos anormais, paradoxais e insensatos, cuja persistência adquire a função de suplências à foraclusão do Nome-do-pai.

Miller nos adverte que é apenas quando um fenômeno de corpo adquire permanência e consistência e ordena a vida do parlêtre que ele ganha o estatuto de sinthoma e de acontecimento de corpoVale dizer que os fenômenos de corpo são um conjunto maior, no qual está incluído o conjunto menor dos acontecimentos de corpo. Logo, todo acontecimento é um fenômeno de corpo, mas nem todo fenômeno é um acontecimento. Então, se, por um lado, o fenômeno é algo frequente e comumente observado na clínica, por outro, o acontecimento de corpo é algo excepcional e raro.

Por tal motivo, é necessário aguardar um tempo para saber se aquele fenômeno terá alguma função sinthomática para, depois, defini-lo como acontecimento. O que Miller chama de sinthoma é a consistência dessas marcas, e é por isso que ele o reduz e o equivale ao acontecimento de corpo (MILLER, 2016, p. 110). Logo, o acontecimento é um choque inaugural do significante que se fixa sobre corpo, e desse encontro nascem marcas que reiteram gozo sem cessar em um acontecimento permanente (MILLER, 2013, p. 75).

Três exemplos de acontecimento de corpo

Como exemplo clínico de acontecimento de corpo, relato três exemplos: o primeiro exemplo é uma hipótese extraída das Memórias de um doente de nervos, de Daniel Paul Schreber; o segundo, da relação de James Joyce e Nora e o terceiro está relacionado a minha experiência de análise, relatada com detalhes no meu testemunho de passe. 

Schreber

O livro Memórias de um doente de nervos, de Daniel Paul Schreber, foi o objeto do principal trabalho psicanalítico de Freud sobre as psicoses, conhecido como o caso Schreber. O livro de memórias é uma descrição minuciosa do delírio do paciente e de sua relação com Deus. Schreber descreve detalhadamente uma teologia na qual ele é o pivô do interesse sexual de Deus. Toda a relação é de grande sofrimento, visto que ele é submetido, por capricho divino, a uma feminização, contra sua vontade. Apenas quando Schreber consente em ser mulher de Deus é que o delírio se apazigua. Entretanto, por que há esse consentimento? Já quase no fim do livro, surge um elemento sutil que quase nos passa despercebido. Schreber destaca que “devo confessar que em parte só depois de anos reconheci as verdades nelas contidas, ao passo que no início, pelo menos com relação a algumas delas, eu me conduzia de modo muito cético”.

A esse contexto pertence, entre outras, a locução: “Por mim — deve ser a senha”. Com essa senha, Schreber tem a convicção que deve abandonar qualquer preocupação com o futuro — confiando na eternidade — e deixar com que seu destino pessoal se desenvolva tranquilamente, seguindo o curso natural das coisas. “Na época, eu ainda não conseguia reconhecer como adequado o conselho de me livrar de tudo que me acontecia com um indiferente ‘Por mim’ ”. Schreber destaca que a senha “por mim” tem relação com outra frase: “Todo absurdo se anula”. Completa ainda que “Naquela época em que ainda ouvia das vozes essa frase, há muitos anos, e agora não as ouço mais, não conseguia me convencer, de sua veracidade” (SCHREBER, 1984, p. 303–304).

É bastante instigante destacar que o fenômeno elementar, como um fractal em seu devaneio — “como seria bom ser mulher no ato da cópula” —, já antevia todo o delírio de Schreber no qual ele se coloca como objeto de transitivismo da volúpia divina. Não entrarei em detalhes da complexidade delirante de Schreber, no entanto, o que ocorre é que, em determinado momento, surge uma senha que, como um grampo, produz o consentimento e todo o estancamento da produção delirante de Schreber.

Vale dizer que a pequena alocução “por mim”, concernida ao seu narcisismo, faz a função de grampo capaz de cessar a produção delirante e adiar por séculos o seu desígnio de se tornar mulher de Deus. Nesse momento, cabe indagar se essa alocução “por mim”, de modo paradoxal, consegue grampear o grande e complexo delírio de Schreber produzindo, como acontecimento de corpo, o desaparecimento das alucinações e sua estabilização psíquica. Enfim, é necessário destacar que há um antes e um depois do aparecimento contingente da senha “por mim”, que provoca um acontecimento de corpo de duração suficiente, porém, não eterna. 

Joyce e Nora[2] 

O encontro de Joyce e Nora vale constatar como improvável e contingente, de modo que cabe indagar a razão dessa união ter sido duradoura. Qual é o papel de Nora na relação com Joyce? Teria Nora a função de acontecimento de corpo para Joyce?

Nora tinha uma espécie de função de luva ao corpo de Joyce, embora, quando virada pelo avesso, o botão da luva impedisse um ajuste perfeito. Se Nora serve como uma luva para Joyce, é porque ela tem uma função reparadora de fixação/aperto (serrage), de invólucro ao ego defeituoso, de forma que ela une e ata o corpo de Joyce que lhe escapa (ARPIN, 2016, p. 127). Logo, Nora suplementava a função da escrita.

Inobstante a Joyce desdenhar de sua mulher, por ser “adoravelmente ignorante”, ele não a dispensava ao escrever em razão de dois objetos: o olhar e a voz. Joyce necessitava do olhar de Nora. Ele usava de um expediente para escrever: ao sentar-se à mesa em frente a um espelho, postava Nora sentada ou deitada atrás dele, de modo que ele se sentia olhado por ela e era possível olhá-la quando desejasse (Ibid., p. 133). O olhar de Nora ganha uma função fundamental na medida em que Joyce vai perdendo sua visão.

A voz de Nora, por sua vez, com um sotaque de Gallway, cuja pronúncia se aproximava do gaélico, tinha um papel relevante em virtude da musicalidade de sua língua, já que ela utilizava expressões e reviravoltas que jamais ouvira. “Sua voz oferece um contraponto que torna seu escárnio excitante, exasperante e terno ao mesmo tempo” (Ibid., p. 124).

Os dois não se desgarravam, fazendo a relação sexual existir. “Se ele está em algures, ela está por perto. Se ele vai a nenhures ela também irá por certo”. Entretanto, Nora não será a Beatriz de Dante ou a Madeleine de Gide, como musas inspiradoras e idealizadas (ARPIN, 2018, [s.p.]), tampouco Joyce faz dela a causa de seu desejo. Nora é uma matadora de homens, mas fica com o único homem que não morre de amores por ela (ARPIN, 2016, p. 137).

De acordo com Lacan, no Seminário 23, sua escrita singular teve função de ego para Joyce. Trata-se de ego, e não de eu, visto que ele não está concernido à imagem corporal, ao estádio do espelho, mas a uma corporificação da imagem. Então, haveria uma diferença entre as funções da escrita e de Nora, como sua parceira? Nesse caso, caberia indagar se a escrita teria um papel de sinthoma e, Nora, uma função de suplência, ou se ambos, escrita e Nora, desempenham a mesma função, que não existe uma sem a outra? É evidente que Nora tem a função de atar o corpo de Joyce, portanto, poderíamos nos autorizar a dizer que o encontro contingente com Nora teve um papel de acontecimento de corpo para Joyce?   

Fenômeno e acontecimento de corpo e final de análise 

Antes de abordarmos o acontecimento de corpo no final de minha análise, narrarei um breve episódio que destaco como fenômeno de corpo ocorrido na minha juventude. Era início dos anos setenta, talvez 1972, eu tinha aproximadamente quinze anos. Tinha um sonho, como quase todo jovem de minha geração: ter uma calça jeans da marca Lee. Era algo muito raro e caro. Juntei ao longo dos meses o pouco de mesada que recebia. Certa vez, quando supus ter a quantia, dirigi-me à Galeria Ouvidor, uma espécie de shopping center da época, onde havia algumas importadoras. Sempre ia a essas importadoras, mas nunca encontrei a calça Lee. Porém, um dia, ao chegar à loja, o vendedor me avisou que a calça Lee havia chegado e tinha o meu número. Entrei no trocador e a experimentei: perfeita!

No momento em que ainda apreciava o modelo justo ao meu corpo, comecei a escutar uma música que me deixou totalmente atônito e arrepiado da cabeça aos pés. Tirei a calça resoluto e a entreguei ao vendedor que, perplexo, não entendia a razão pela qual não compraria a calça Lee, tão desejada. Cruzei o corredor da Galeria Ouvidor, dirigi-me à loja de discos e perguntei: que música é essa? Blowing in the Wind, de um tal de Bob Dylan. Nunca tinha ouvido falar em Bob Dylan, mas fui tomado de assalto por aquela musicalidade expressa por uma espécie de lalíngua, acompanhada por uma gaita que parecia um gemido. Esse episódio deixou marcas de satisfação no corpo, porém, não o considero acontecimento de corpo, mas sim um fenômeno de corpo.

No que se refere às sessões que serviram de epílogo para o final de minha análise, destaco uma passagem que pode ser inscrita como acontecimento de corpo. Em razão de o filho ter entrado, contingencialmente, na briga do casal parental, o pai o teria puxado e carregado pelos cabelos e o exibido em público durante um conflito por ocasião da separação conjugal litigiosa. Depois desse acontecimento, inscrito como trauma, o menino queria passar despercebido, desaparecer diante do olhar do Outro. Defronte a isso, a angústia se tornou minha companheira e a inibição ocorria no plano social e intelectual.

Após um longo período de análise, o analista interrompeu a minha sessão e olhou-me bem fixo nos olhos, pela primeira vez em dezenove anos, com o semblante mais maroto do mundo. Sua cabeça arredondada estava incandescente, como o pôr do sol, desses que acontecem no inverno de Belo Horizonte, quando o sol beija a montanha no final do dia (CAMPOS, 2014, p. 30).

Esse acontecimento de corpo estabeleceu um divisor de águas em minha vida, entre um antes e um depois. Parece que o acontecimento de corpo tem o mesmo estatuto do trauma, na medida em que ele tem um tempo um como inscrição e, depois, um tempo dois, como acontecimento que guarda fidelidade ao tempo um. Antes, o sintoma me prendia em um gozo enigmático, expresso como uma espécie de debilidade mental. Estava suspenso, aéreo, com os pés fora do chão, como um espectador distante da vida, imerso em procrastinações, fantasias e devaneios, os quais serviam de mecanismo de proteção, defesa e fuga da realidade. Era como se o tempo tivesse sido congelado em razão da cena traumática.

Após a conclusão da análise, paulatinamente comecei a constatar uma estranha precipitação sinthomática. O evento da alucinose da cabeça em brasa do analista ocorrida no ocaso da análise, no fundo nada mais era do que a projeção da cabeça quente, puxada pelos cabelos pelo pai na cena traumática. A partir de então, houve um deslocamento radical da debilidade para uma espécie de loucura. Miller destaca que o fenômeno de corpo, quando ganha permanência, é designado acontecimento de corpo e tem o estatuto de sinthoma (MILLER, 2016, p. 110). A cabeça aérea, fantasiosa, débil e anestesiada se transformou em uma cabeça inquieta, arejada, incandescente, desassossegada e fervilhante, promotora de satisfação.

A partir de então, mergulhei de cabeça na Escola. Durante três anos aconteceram os depoimentos do passe; em seguida, foram dois anos como integrante do cartel do passe; depois vieram a participação do conselho da EBP e a presidência da EBP. Enfim, há mais de seis anos, de modo dedicado e ininterrupto, abracei o desejo incandescente pelos “Seminários por conta e risco”, de onde extraio a enorme satisfação de transmitir a psicanálise.

 


Referências
ARPIN, D. Gault, J-L., L’épouse de Joyce. L’Hebdo-Blog, n. 154, 2018.
ARPIN, D. James et Nora Joyce. Couples célèbres. Paris: Navarin, 2016.
CAMPOS, S. Passema: testemunhos de um final de análise. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. La Conversación. In: Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2016.
MILLER, J.-A. Conferencias porteñas, Tomo 2. Significante y goce. Buenos Aires: Paidos, 2009.
MILLER, J.-A. El primado de la práctica. In: La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. O osso de uma análise. Salvador: Biblioteca agente, 1998.
MILLER, J.-A. Sintoma y sinthome. In: Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013, p.67-75.
SCHREBER, D.-P. Memórias de um doente de nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 303-304.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Psicose em 17/09/2021.
[2] Fragmento relacionado ao encontro de Joyce e Nora, extraído do relatório apresentado no X Enapol, no qual participaram Anamaria Vasconcelos, Ana Martha Maia, Blanca Musachi, Eder Galiza, Fernando Casula, Gisele Sette Lopes, Glacy Gorski, Katia Mariás, Loren Costa, Marcela Brandão, Maria Wilma Faria, Marina Cursino, Michelle Sena, Ruskaya Maia, Sérgio de Campos, Sérgio Mattos, Viviane Lafayette.



AS TEMPORALIDADES DA MEDIDA PROTETIVA DE ACOLHIMENTO[1]

CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA NUNES
Psicanalista, graduado em Psicologia.
Analista de Políticas Públicas da Secretaria de Assistência Social de Belo Horizonte e
mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG.
h.oliveira@live.com

Resumo: O artigo trata da medida protetiva de acolhimento, utilizada como instrumento de proteção a crianças e adolescentes pelo Judiciário e pelas políticas públicas de assistência social. Nesse âmbito, o texto explora pontos de tensão entre esses campos no esforço de argumentar que questões em torno da temporalidade, bem como a penetração do discurso jurídico no espaço reservado à escuta dos sujeitos, ocupam posições centrais nesse debate. O desafio está em criar um intervalo para a escuta que propicie a dialetização entre a temporalidade cronológica, na qual opera o discurso jurídico, e a temporalidade lógica, mais própria ao sujeito.

Palavras chaves: medida protetiva de acolhimento; judicialização; políticas públicas de assistência social; temporalidade lógica.

The Temporalities of Foster Care

Abstract: This text discusses the foster care, used by the Judiciary and by public social assistance policies as an instrument to protect children and adolescents. In this context, the article explores points of tension between these two fields, considering that the various temporalities and the penetration of legal discourse in the space reserved for listening to subjects occupy central positions in this debate. The challenge is to create an interval for listening that provides a dialectization between the chronological temporality, in which the legal discourse operates, and logical temporality, more appropriate to the subject.

Keywords: foster care; judicialization; public social assistance policies; logical temporality

Desali, s/t

Durante a reabertura democrática, ao fim da ditadura empresarial-militar, afinado com as discussões mundiais sobre infância, o Brasil levou o tema da garantia de direitos de crianças e adolescentes como responsabilidade da família, da sociedade e do Estado para o texto da Constituição Federal de 88 (CF88) e, dois anos depois, para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA90). O Estatuto inaugura a chamada Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. Estes passam a figurar como sujeitos de direitos, cuja proteção passa a ser dever de todos. As políticas públicas organizam-se, assim, numa lógica de proteção e promoção de direitos.

Para tanto, o Estatuto estabelece um rol de medidas de proteção para garantir direitos a crianças e adolescentes que se encontrem em situação de risco ou de vulnerabilidade. Há uma gradação entre essas medidas — algumas bastante simples, como “matrícula escolar” (crianças cujo direito à educação tem sido negligenciado) e “acompanhamento temporário por serviços públicos de saúde e assistência social”; e outras mais complexas e incisivas, por exemplo, em casos extremos de violência contra a criança ou violação de direitos pela família, temos, justamente, a medida protetiva de acolhimento, que é a retirada da criança do seio familiar para ser enviada a serviços de acolhimento institucional, popularmente conhecidos como abrigos, ou serviços de acolhimento familiar de famílias acolhedoras, nas residências de famílias voluntárias.

A medida protetiva de acolhimento possui duas características fundamentais: é excepcional, ou seja, deve ser utilizada apenas quando todas as outras tiverem se mostrado ineficazes e incapazes de garantir proteção; e provisória. Temos aí dimensões temporais: deve ser a última de uma série e deve ser breve.

O Estatuto estabelece que, uma vez que uma criança tenha sido encaminhada a um serviço de acolhimento, todos os esforços devem ser realizados no sentido do retorno da criança para casa. Assim, a família deve receber apoio para que possa reposicionar relações intersubjetivas familiares e sociais, assim como ter garantido seu acesso às políticas públicas, acompanhamento sociofamiliar e proteção do Estado para, finalmente, receber de volta a guarda da criança. Segundo o Estatuto, a separação é um meio para a reintegração da criança à sua família. Nota-se aí o caráter paradoxal.

Apenas nos casos em que, mesmo depois desse trabalho com os pais, tios, avós e outros parentes, nenhum adulto desse núcleo familiar mostrar condições de haver a guarda da criança, é que esta fica, então, disponível para a adoção por uma família que se interesse por ela. A adoção é a última medida.

Importante tal contextualização para que tenhamos em mente que uma adoção pressupõe um tempo anterior a ela. Um histórico que envolve sujeitos, instituições, dispositivos, laços rompidos, antigos afetos e projetos sem sucesso…

As medidas protetivas de acolhimento se dão em dois campos: no primeiro, temos a Vara Cível da Infância e Juventude, na qual todo o processo legal e decisório sobre a guarda das crianças se desdobra; no outro, paralelo, a assistência social com os serviços de acolhimento, que contam com psicólogas e assistentes sociais. O trabalho destas últimas pode ser resumido em dois pontos: humanização do acolhimento das crianças e acompanhamento e atendimento a essas crianças e suas famílias, tendo em foco a possibilidade de reintegração familiar.

A relação entre esses dois campos (judiciário e assistência social) é bastante complexa. Embora sejam independentes (um judiciário e, outro, serviço do executivo municipal), a própria Política de Assistência Social coloca-se como estando em “estreita interface com o Sistema de Justiça” (CNAS, 2009. p. 37). Mas a relação não parece ser simplesmente essa. O que se nota é que o trabalho de acompanhamento às crianças e às famílias, que poderia, como tal, se configurar como a oferta de um tempo e um espaço, ou seja, um intervalo, para uma escuta desses sujeitos, está constantemente sendo atravessado por demandas judiciais.

Teríamos aí o risco da judicialização dos serviços de acolhimento (a penetração de uma lógica jurídica em um campo, a princípio, exterior àquele propriamente jurídico). Mas tal judicialização ainda pode se estender a um segundo tempo, pois, caso a profissional/técnica desses Serviços de Acolhimento esteja desavisada dessas tensões, pode acabar por veicular para a família um discurso que reitera deveres, normas, protocolos padronizados e generalizações. A família (que no processo é chamada de ) pode acabar sendo convocada a dar provas de ser uma boa família — noção que não passa de imaginarização de relações que são simbólicas e muito mais variadas e complexas. No fim das contas, isso seria veicular uma “medida” na qual nenhuma família cabe.

Quem diz a verdade? O abuso sexual realmente aconteceu? Essa mulher, com 4 filhos de 4 pais distintos, tem mesmo condições de ser mãe? Esse homem é um bom pai? Favor inquerir esta mulher sobre quem seria o pai da criança, porque esta tem o direito de ter o nome do pai em sua certidão de nascimento! Tem afeto?” são algumas das questões direcionadas aos Serviços de Acolhimento. Vemos que são questões que os desviam de seu objetivo — a reintegração familiar — e parecem interessadas em reintegrar, na verdade, certo saber à justiça — fazê-lo íntegro, completo.

Espero deixar claro que não se trata de condenar o uso da medida de acolhimento, mas de estar esclarecido a respeito de sua complexidade e até mesmo suas contradições.

Arrisco alguns comentários sobre esse trabalho de reintegração familiar articulando-o a partir da questão do tempo. Destacam-se três temporalidades que se atritam e tensionam: uma da lei ou do judiciário, outra da família e, por fim, uma da criança acolhida (NUNES; PENNA, 2021).

O processo de acolhimento no judiciário se pauta pela provisoriedade do acolhimento, que deve ser o mais breve possível. No sentido da celeridade processual, pautam-se prazos e demanda-se urgência dos serviços de acolhimento da assistência social. O tempo para esse processo na legislação diminuiu há alguns anos. Antes, o prazo máximo de permanência em acolhimento era de dois anos, agora, um ano e meio. Na lei, sempre esteve prevista a possibilidade de prorrogação desses prazos, mas a prática indica que essa possibilidade nem sempre é considerada ou não é considerada por todos. Os relatórios sobre a possibilidade de reintegração da criança à família eram semestrais, agora, trimestrais. Crianças que não são procuradas 30 dias após o acolhimento devem ser cadastradas para adoção. Assim, a pressa em responder[2] chega para os serviços de acolhimento (em especial, em casos de crianças acolhidas).

Claro, há uma exigência que o processo corra no menor tempo possível, pois, quanto menor o tempo em acolhimento, melhor para a criança, certo? Sim e não. O que fundamenta essa demanda de uma resposta rápida para concluir sobre o caso me parece uma problemática identificação operada nesse campo entre a velocidade da decisão judicial e o princípio do “melhor interesse da criança”. Algo aí fica fora do jogo, desconsiderado.

Outra temporalidade seria aquela experienciada pelas famílias. Elas vêm, invariavelmente, de um contexto de vulnerabilidades sociais extremas e historicamente cronificadas de situações violadoras. Não raro, é possível escutar desses sujeitos suas histórias que giram em torno de um mesmo núcleo e que se repetem uma e outra vez, mudando as gerações… Frente a essas questões, embora a demanda verbalizada pelas famílias seja também a de uma pressa na reintegração do filho, com sua escuta é possível cernir que é preciso um tempo estendido, para que se produza uma resposta, reorganização, implicação etc. O tempo da família (atravessada por suas questões singulares e também determinantes históricos, culturais, socioeconômicos) parece ser uma temporalidade não-apressada.

Uma terceira experiência de tempo seria a da criança ou do adolescente acolhido. O tempo aqui aparece nas chamadas fases do desenvolvimento, mas principalmente como demanda de retorno para a família no tempo mais breve possível, o sofrimento pelo tempo afastado do lar… Mas a própria criança não se beneficiaria se sua família tivesse um tempo não-apressado a seu dispor? Estamos de volta à questão do melhor interesse da criança. E aqui poderíamos perguntar: o melhor interesse da criança segundo quem?

Como representativo desses fenômenos, podemos lembrar alguns exemplos, como as Recomendações 04 e 05/2014 da 23ª Promotoria de Infância e Juventude de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Elas foram publicadas recomendando que os serviços de saúde, em especial as maternidades, comunicassem compulsoriamente à VIJ as situações de puérperas com histórico de uso de drogas, que não teriam realizado acompanhamento pré-natal adequado, que estariam em situação de rua e/ou que tivessem interesse em entregar seu bebê diretamente para a adoção.

Esses documentos motivaram muitos acolhimentos preventivos (desrespeitando o caráter excepcional já citado da medida de acolhimento). Vemos aí uma tentativa de antecipar-se às situações que supostamente seriam violadoras de direitos. Ou seja, não apenas saber sobre o melhor interesse da criança, mas saber a priori. É interessante notar que as Recomendações não foram recebidas como um recomenda-se, mas como cumpra-se — sinal da judicialização a que me referi anteriormente.

Não são raros os casos de decisões processuais jurídicas anteriores a uma conclusão sinalizada pelo trabalho com as famílias e crianças. Esses retornos para casa e até encaminhamentos para famílias adotivas fazem um corte abrupto antes que se esboce uma elaboração por parte da família.

As prescrições de prazos que instrumentalizam a urgência da temporalidade judicial está fundada sobre a linearidade suposta de um tempo cronológico. Nessa orientação, o processo judicial progride, protocolar, superando sucessivamente etapas anteriores, dirigindo-se sempre para seu desfecho. Mas diversa é a forma de tempo que se observa na experiência dos sujeitos (famílias e acolhidos).

No trabalho de escuta desses sujeitos, o tempo se inscreve por vezes como persistências, repetições, reincidências, pausas, movimentos que parecem cíclicos e prenhes de descontinuidades (esse é também o modelo do tempo histórico que, embora avance, faz reincidir e acirrar desigualdades sociais seculares). Um tempo lógico que irrompe onde se esperaria uma linearidade processual e cronológica.

Os casos nos quais os familiares fazem uso de drogas, lícitas ou ilícitas, são muito representativos disso. Iniciados os tratamentos, vemos sujeitos que se organizam e caminham em certa direção, mas acabam por vezes retomando o uso abusivo — reincidem, interrompendo o tempo linear de “avanço”. As recaídas, que são até esperadas nesse contexto, algumas vezes são lidas como atraso e como provas da incapacidade da família, que não conseguiria se reorganizar.

Não se trataria, portanto, apenas de fazer uma oferta de “mais” tempo, mas também de estar esclarecido que o tempo subjetivo acelera, regride, retorna, avança e desacelera. Essa temporalidade lógica do sujeito (diferente da cronológica prescrita na lei) não pode ser pré-estabelecida.

Fica o desafio de pensar como inserir um intervalo e tecer uma dialetização entre os tempos lineares e lógicos dessa cena para lidar com essas temporalidades, por vezes concorrentes. Uma temporalidade de urgência ameaça a possibilidade de um tempo para compreender, necessário para alguma elaboração.

Gostaria de finalizar com uma frase de Freud, no texto Sobre o início do tratamento (1913/2017), que demonstrava já estar avisado da impossibilidade de uma duração determinada a priori para uma análise. Segundo ele, ao ser interpelado com a questão de quanto tempo um tratamento durará, o analista deveria responder que primeiro se precisa conhecer o passo do andarilho, para depois poder calcular a duração de sua caminhada (p. 129).

 


Referências
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Resolução nº 145/2004. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS, 2009. 175 p.
FREUD, S. Sobre o início do tratamento. In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Trad. Claudia Dornbusch. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 121-147.
NUNES, C. H. O.; PENNA, P. D. M. O tempo da lei e as temporalidades singulares: impasses no acolhimento institucional de crianças e adolescentes. In: ANDRADE, M. C.; CARDOSO, J. S.; Curi, G. A. (org.) Transfinitos: inconsciente e tempo. Belo horizonte: Aleph – Escola de Psicanálise, 2021. (v. 18). p. 233 – 242.
Nota

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Direito da Seção Clínica do IPSM-MG, em 10/09/2021.
[2] A expressão intitula a Jornada Internacional do CIEN “A pressa em responder”, realizada em 27 de novembro de 2009.
psicanálse – acolhimento – lacan – psicanalise – psychanayse – psicoanálisis



O INCONSCIENTE: DA CRIANÇA ATÉ O ADOLESCER, E MAIS[1]

CRISTIANE BARRETO
Psicanalista, membro da EBP/AMP
cristianebarretonapoli@yahoo.com.br

Resumo: O texto comenta o prefácio de Jacques-Alain Miller para o livro L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, de Hélène Bonnnaud. Para tanto, primeiro contextualiza o inconsciente freudiano, seguido das elaborações lacanianas do inconsciente estruturado como uma linguagem ao inconsciente real. Ressalta a importância da questão da defesa e de como perturbar a defesa na psicanálise com crianças. Por fim, por meio de de um fragmento clínico, discute a questão contemporânea do inconsciente frente ao sintoma de uma adolescente e os efeitos na família, bem como o lugar de uma análise.

Palavras chaves: Inconsciente, linguagem, criança, adolescente, famílias contemporâneas

THE UNCONSCIOUS: FROM CHILD TO ADOLESCENT, AND BEYOND.

Abstract: The essay comments on Jacques-Alain Miller’ s preface to the book L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, by Hélène Bonnoaud. To this end, it first contextualizes the freudian unconscious, followed by the lacanian elaborations of the unconscious structured as a language and the unconscious as real. It emphasizes the issue of the defense and how it is possible to disturb the defense in children’s analysis. Finally, through a clinical fragment, it discusses the contemporary issue of the unconscious  in the face of a teenager’s symptom and the effects on the family, as well as the place an analysis can have.

Keywords: unconscious, language, child, teenager, contemporary families

 

Desali, s/t

Em “O Inconsciente”, texto de 1915, Freud argumenta para justificar o seu conceito: “nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situados no corpo” (FREUD, 1915/1974, p. 201). Lacan (1996/2017, p. 12) elucida que “a questão diante da qual a natureza do inconsciente nos situa é, em poucas palavras, que algo pensa o tempo todo”.

O inconsciente pensa. Com essa elaboração, Freud desaloja a consciência e confere um estatuto fundamental aos pensamentos inconscientes, produzidos à margem e independentes dela, com seus atos típicos — os atos falhos, os lapsos, sonhos. “O inconsciente implica na hipótese do sujeito freudiano, que se separa de toda reflexividade da consciência”, pontua Laurent (2007, p. 91).

“O que é que chama atenção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem”, ressalta Lacan (1964/1990, p. 29), apontando que “o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do sujeito — donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo” (p. 32). Desde aí, o inconsciente é rastro de linguagem, não sem o que a escapa e, ao mesmo tempo, é motriz: a pulsão. Assim, o mundo experimenta, sempre com densa resistência, o “acontecimento Freud” (LACAN, 1969/2008, p. 183).

“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, definição lacaniana inaugural ao seu ensino, articula os recursos da sua época; servindo-se da linguística, substitui as noções de condensação e deslocamento como mecanismos pelos termos metáfora e metonímia. Para Lacan, o material do inconsciente é “linguageiro” (LACAN, 1996/2017, p. 12). Afirma que a expressão adotada por ele, “como uma linguagem”, não se refere “a uma espécie particular de linguagem, como por exemplo a linguagem matemática, a linguagem semiótica, ou a linguagem cinematográfica” (LACAN, 1996/2017, p. 12). “Linguagem é a linguagem, e só existe um tipo: a linguagem concreta — o francês ou o inglês, por exemplo — que as pessoas falam” (LACAN, 1966/2017, p. 12). Entende-se que a linguagem, com suas estruturas e mecanismos retóricos, “possibilitam o surgimento de um saber que se desprende da correspondência entre significantes” (CÁRDENAS, p. 217).

Nesse momento importante do ensino, Lacan (1996/2017, p. 13) prepara uma conferência de madrugada e acaba por definir, de forma poética: “O inconsciente é Baltimore ao amanhecer”. Encontra aí, segundo ele, a melhor imagem para representar o inconsciente. Lacan (1996/2017, p. 13) complementa, ensinando a ler tal frase: “Onde está o sujeito? É necessário situá-lo como um objeto perdido. Mais precisamente, esse objeto perdido é o suporte do sujeito e, frequentemente, é algo bem mais abjeto do que vocês gostariam de considerar”. Essa afirmativa, à luz da definição poética, como Laurent (2007) faz ver, foi um modo de Lacan dizer do Inconsciente introduzindo aí o seu objeto inventado, o objeto a.

Miller (2011, p. 4), ao comentar essa mesma frase, diz que sabemos tão pouco sobre o inconsciente, que “é inverossímil e muito arriscado definir o que quer que seja a partir dele: pelo contrário, é sempre ele, o inconsciente, que deve ser definido, porque não se sabe o que é”. Portanto, as definições lacanianas do inconsciente reenviam a uma exigência de esforço, esforço de poesia. Lendo Miller, Laurent (2007) dirá que fórmulas do tipo “O inconsciente é…” competem ao analista. Tanto formulá-las quanto engendrar, a cada vez, uma resposta.

Defini-lo como uma cidade ou compará-lo a esse espaço não é inédito a Lacan, mas certamente as cidades lacanianas não têm a profundidade, ou reservas e marcas que remetem à temporalidade das cidades em ruínas freudianas. Hieróglifos ou ruínas arqueológicas causam impressão de civilizações enterradas, soterradas, mas, fazendo justiça àquele que funda a psicanálise, Freud coloca a pulsão de morte no coração da civilização, das cidades que pulsam, e isso é o que permite Lacan elaborar o Inconsciente real.

Com Lacan, o inconsciente não é reservatório senão de gozo, e nasce no espaço de um lapso, ao mesmo tempo em que se o relança sob transferência. Seja no sonho, seja no lapso, seja no trabalho em análise, os pensamentos já estão ali, mas em potência ou em ato (LAURENT, 2007). Quanto ao sujeito do inconsciente, nos diz Laurent (2007, p. 107), respondendo à pergunta demarcada por ele mesmo, como chave para lermos a frase lacaniana que diz que o inconsciente “está em todos os lugares e não se prende a nenhum deles”: com elementos atemporais, o inconsciente avança, na nossa época, a céu aberto e um tanto turvo.

Miller (2013), no prefácio ao livro de Hélène Bonnnaud O inconsciente da criança: do sintoma ao desejo de saber, é enfático ao dizer tratar-se de um livro que vai ficar para a história. E por uma curiosa razão: pelo fato de os psicanalistas duvidarem que exista um inconsciente na criança. Cito Miller (p. 01): “É que os psicanalistas não estão muito seguros de que as crianças tenham um inconsciente digno deste nome”. Adjetivar o inconsciente como digno chama a atenção. Qual é a dignidade em questão? Miller nos lembra que “não há inconsciente sem recalque”, retomando a concepção de que o recalque começaria com o período de “latência”, assim sendo, só então poder-se-ia afirmar a existência do inconsciente. Antes desse período, portanto, comenta Miller, de certa forma, duvida-se disso. Mas de qual inconsciente estaria ele fazendo menção? E, principalmente, quem seriam esses analistas que duvidam da existência do inconsciente na criança? Seriam esses dignos do inconsciente freudiano?

Miller prefacia o livro de uma analista que atende crianças e é lacaniana e, por isso mesmo, tem outra noção do inconsciente. O inconsciente de Lacan é, sobretudo, o inconsciente de quem é atravessado por uma experiência de análise e que se dedica à sua formação permanente, sustentando supervisões e endereços de questões, também permanentes, em estudos e invenções endereçados a uma Escola cernida por um campo — o freudiano. O inconsciente de que se trata é “o inconsciente real, do inconsciente como o impossível de suportar” (Ibid.).

Miller reitera o que se transmite no Núcleo de Psicanálise com Crianças: “Há as formações do inconsciente, que se decifram, que fazem sentido. Mas há também o que faz furo (trou), o que faz excesso (trop), o que faz tropmatismo e troumatismo” (Ibid.).

Miller, então, retoma a questão sobre a defesa e de como perturbá-la. A defesa, pontua ele, com Freud, “não tem a estrutura de um recalque. Ela está antes dele. O falasser está aí diretamente, cruamente, confrontado ao real, sem a interposição do significante — que é cataplasma, unguento, remédio” (Ibid.). Para Miller, a pergunta fundamental que a prática coloca a um analista, também de crianças, é: “como perturbar a defesa?”.

Para muitos analistas, a questão da defesa não se coloca. Para esses, segundo Miller, a defesa estaria fora de alcance, pois conhecem do inconsciente apenas o simbólico, ou, ainda, em uma posição pior, aqueles que estariam no registro da “tonteria”, conhecendo apenas a concepção do imaginário. Miller, então, se serve nesse prefácio para sublinhar com destaque que um analista intervém com a criança quando a defesa ainda não está cristalizada.

Miller demarca que, do encontro com a linguagem, “o sujeito sai esmagado, enterrado pelo significante que o assola”. “Ele renasce, born again, do apelo feito a um segundo significante. Ei-lo entre-dois, recalcado, deslizante, ex-sistente, sujeito barrado e que se barra”.

Lembra-nos que o homem nasce acorrentado, por ser prisioneiro da linguagem, e que seu estatuto primeiro é o de ser objeto. Ser objeto “causa de desejo de seus pais, se ele tem sorte. Se ele não tem, é dejeto do gozo deles” (Ibid., p. 03).

Abre-se o flanco para uma discussão a respeito da criança objeto do mercado, do mundo capitalista. Pois, tal como observa, atualmente “os pretendentes a genitores (…) começam por um estudo dos custos antes de se colocar na tarefa de produzir um ser humano” (Ibid.). Miller exemplifica com a questão da natalidade francesa, que é próspera, e, segundo ele, isso se deve, em parte, às disposições do legislador. Posto que “a política é antes de tudo uma regulação das populações”, é “biopolítica”, como afirma Foucault. The baby business atinge no mundo atual o seu auge. Traz como exemplo a questão do “filho para todos”, fazendo menção a uma das reivindicações do movimento “casamento para todos” (defesa dos direitos do casamento gay). Numa outra vertente, podemos acrescentar e mencionar um dos costumes americanos: nos EUA, o grande planejamento, índice de “responsabilidade paterna” ou “familiar”, é prover uma gorda poupança, a um filho criança, que garanta seus estudos até a faculdade.

Retomando o subtítulo de um outro livro, o de Debora Spar How money, science, and politics drive the commerce of conceptions[2], para terminar seu prefácio com uma ironia tenaz (a meu ver, também dirigindo-se aos discursos liberais, ou pseudolibertários de direitos), convoca os políticos a dirigir um olhar corajoso para o real:

“Homens e mulheres políticos, o pior seria que vocês fechassem os olhos para continuar a sonhar com um mundo ideal no qual papai batalha e mamãe costura. Saibam dirigir um olhar corajoso para o real. Só então vocês terão a oportunidade de agir pelas liberdades” (Ibid. p. 03).

Esse é o ápice do prefácio, que assim se conclui. Entretanto, Miller, nesse pequeno e instigante texto, assinala o fato que todas as culturas estabelecem procedimentos destinados a fazer o sujeito nascer ou renascer através da imposição de um significante suplementar. “Gravam-se, cortam-se, perfuram-se, suturam-se, pedaços do corpo: circuncisão, batismo, infibulação (…). Mais tarde, todos os tipos de ritos de iniciação (…). São sempre manobras, fingimentos, falcatruas, com o significante”.

Com esse aspecto pontuado por Miller, introduzimos a questão da adolescência e das ofertas discursivas de que os jovens podem lançar mão, ora para responderem a um dano causado pelo encontro com o real traumático, ora para se danarem ainda mais. A presença de um trabalho em análise pode servir, ter a função de fazer um sujeito renascer por outra via, qual seja: oferecendo uma parceria real, que aposta na fala e nas invenções singulares.

Para enlaçar ao tema dos impasses de pais e filhos, percorremos, junto ao comentário desse prefácio de Miller, o caso clínico de uma adolescente: o caso Luma[3], sua invenção e sintomas, que parecem abalar as defesas familiares, ou melhor, tocam no princípio organizador da família — um pai de “coração partido” e uma mãe tomada de angústia frente à sexualidade feminina no enlace da questão histérica “sou homem ou mulher?”.

A família, com sua linguagem de família, é berço do falasser, que é filho do sintoma. Como escreveu Ceres Rúbio em seus apontamentos, o filho, filho do sintoma, advém de um mal-entendido sobre o estatuto do corpo, na inexistência da relação sexual; faz acontecimento, e a crise do mal-entendido reaparece na adolescência, fazendo, por sua vez, acontecimento, furo no berço adormecido do casal parental.

O que exaspera os pais de Luma? Aos doze anos, ela se fez passar por um rapaz de dezoito para namorar virtualmente uma menina também de doze anos.

A filha, tratada como “adulta desde bebê”, inteligente e dócil, encontra-se perdida na encruzilhada que se desenha na adolescência. Seus pais a tomam como uma mentirosa compulsiva. Tal passagem remete ao comentário de Roy (2021, p. 03), de que as famílias contemporâneas “sustentam os ideais familiares explorando a discrepância inevitável entre a ‘criança-perfeita’ e a ‘criança-terrível’, entre a criança-falo prometida pelo ideal e a criança-objeto, ser de gozo”. Marco da divisão de “uma mulher ou um homem quando eles se tornam ‘pai’ ou ‘mãe’” (Ibid.)[4]. A criança, no caso, essa adolescente, passa a exasperar, em cada um deles,

“a tensão entre a mais-valia que conta com o acesso a significantes mestres e o efeito de castração que, por sua vez, é registrado como perda, senão como falta. Ao não ser tomada por um dizer singular, essa divisão, então sentida como insuportável, é projetada sobre a criança, que assume os traços de um ser enganador”[5] (Ibid.).

As notas e o interesse da adolescente pela escola decaem; passa a não gostar do próprio corpo e a vestir roupas largas. Assim, inventa um personagem e pesquisa sobre a transexualidade e a hormonização. Apavorados, tiram dela o celular e o tablet, ou seja, as telas por onde ela experimentava construir suas perguntas e vivenciar sua fantasia, com os recursos da sua época, não sem recorrer aos semblants. Com o recurso ao imaginário como falasser, fez do seu corpo um objeto do jogo que inventava; uma matéria na cena do encontro virtual, na internet, para tratar seu gozo, percorrer uma posição sexuada. Lembrando que o termo imaginário, tal como Lacan (1975, p. 30) ressalta em RSI, “não quer dizer pura imaginação, já que da mesma forma, se podemos fazer com que o imaginário ex-sista, é que se trata de um outro Real”.

Para Lacan (1975, p. 30), “a consistência para o falasser, para o ser falante, é o que se fabrica e que se inventa”. Qual é o estatuto da invenção de Luma? Tratar-se-ia de saber como uma mulher responde ao ser abordada por um homem? Construir um saber sobre o que é uma mulher fazendo-se o homem?

Curiosamente, a novidade que “veio dar à praia”[6] na adolescência de Luma não traz algo tão inédito assim. A mãe conta que, aos quatro anos, Luma se recusava a usar a saia da escola e, aos oito, inventava personagens masculinos para os jogos on-line. A primeira manifestação da adolescência, como resposta à puberdade, faz retorno a um tempo pré-edípico, portanto, conturbado, não organizado pelo édipo, e o que se passa com Luma parece ilustrar bem esse estatuto.

O pai interpreta o fato como “doença do coração partido”, a mãe identifica o sofrimento da filha ao dela próprio. E qual seria esse? Para ela, só quando teve a filha nos braços cessou sua angústia frente aos impasses do feminino. E seu sintoma toca uma das insígnias do feminino, que culminou quando a filha tinha quatro anos, idade em que esta responde com a recusa de usar saias. Trata-se de uma literalidade corpórea do todo fálico, sem espaço ao não-todo.

Luma, no encontro com a analista, vai dizer é da sua solidão: “um vazio, uma dor no peito, um desespero que faz o coração disparar”. No seu cubículo, também imposto pela pandemia, experimenta uma escuridão, o tempo que “gira e não passa”, seu nada, ou “o vazio sufocante”, bom nome para cernir a insistência da demanda parental.

Roy (2021, p. 04) pontua que, na zona de alienação significante, oculta-se “o que circula como desejo e o que se deposita como gozo em jogo, para cada um dos parceiros”[7], nessa interseção em que o “processo de separação se funda, dos desmames da infância até as aventuras tumultuadas da adolescência”[8] (Ibid.). Na tentativa de separação dos pais, interpela-os e, de certa forma, evita perguntar-se “o que o Outro quer de mim?”, aspecto de maior angústia. Luma, com essa resposta, recusa uma demanda e, dessa forma, “não dar a eles o que ela não pode dar”, seu ser singular — passar a ser como eles queriam que ela fosse.  Ou, ainda, fornecer aos pais, com o seu sintoma, as respostas sobre o que fazer com um coração partido e com as insígnias do feminino.

Dessa maneira, dar o que não se tem, o amor, passa a fazer questão em análise. A “menina estranha”, que não quer mais ser parecida com os pais; a alienação, no entanto, segue seu curso sob a forma de acting-out. Luma edita, no seu mundo virtual, a questão do enlace e desenlace do mal-entendido do seu par parental?

Existe um real em jogo e é preciso ofertar um lugar de fala, para que ela reinicie seu jogo, dessa vez, com a analista. Tendo sido privada das telas, a impossibilidade do uso das redes para fazer suas ficções e laços interrompe o jogo fantasmático no qual buscava saber o que é ser uma menina de doze anos. Para a mãe, um acontecimento de corpo faz marca de gozo e de perda de insígnias do feminino, colocando no real a questão histérica por excelência — sobre ser homem ou ser mulher.

Para Lacan (1975/2007, p. 129), a todo instante criamos uma língua, a língua é viva, “na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”, o que faz com que exista apenas “inconscientes particulares”. O encontro com a analista e suas primeiras intervenções promovem efeitos. Roy (2021, p. 05) acentua que Lacan

“amplia o conceito de inconsciente freudiano, enfatizando aí, o traço de uma passagem: algo aconteceu, um relâmpago chegou. Um equívoco, não há nada mais próximo, no ser falante, para fazer signo do acontecimento contingente. Não são novas significações que se trata de isolar, mas, a partir de um equívoco (une bévue), na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”[9].

O significante “trans”, que a adolescente diz aos pais, se modifica para “pan” quando endereçado à analista, e ela põe-se a falar dos seus impossíveis de dizer, fazendo o tempo dessa travessia da adolescência em análise, construindo o saber e o caminho enquanto avança. Novos arranjos que permitam um fazer com o gozo atordoante, falar para poder, quem sabe, fazer-se por escrito — ela quer ser escritora. Ela passa a fazer poesia dos “exageros” e ser escritora do seu “intenso insuportável”. Com a licença poética da transferência.

Por fim, de volta ao começo (do texto), o que é o inconsciente faz ressonância à pergunta deixada como ponto de causa nodal a uma Escola, a saber: o que é um analista? O que é um analista de crianças e de adolescentes?

 


 

Referências
CÁRDENAS, M.-H. Inconsciente. In: Scilicet: As psicoses ordinárias e as outras – sob transferência. São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, 2018.
FREUD, S. (1915). O inconsciente. In: Volume XV, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1974.
LACAN, J. (1966). Acerca da estrutura como imisção de uma alteridade prévia a um sujeito qualquer. Conferência em Baltimore, 1966. Opção Lacaniana, n. 77, São Paulo, Edicões Eolia, 2017.
LACAN, J. (1969). O Seminário, livro 16: de um Outro a outro. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. (1975). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2007.
LAURENT, E. Cidades Analíticas. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2007.
MILLER, J.-A. Intuições Milanesas. Opção Lacaniana online nova série.
Ano 2, Número 5, Julho 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf Acesso em out. de 2021.
MILLER, J-,A. Prefácio. In: Bonnnaud, Hélène. L’Inconscient de l’enfant. Du symptôme au désir de savoir. (Trad. Cristina Drummond) Paris: Navarin Éditeur, 2013 (circulação interna).
ROY, D. Parents exaspérés: enfants terribles. Disponível em: https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Acesso em: set. de 2021.

[1] Comentário do prefácio de Jacques-Alain Miller para o livro L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, de Hélène Bonnnaud. Apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do IPSM-MG em 20/10/2021.21.
[2] Como o dinheiro, a ciência e as políticas impulsionam o comércio de concepções, tradução nossa.
[3] Caso apresentado e autorizado para estar presente neste texto, pela colega Ceres Rúbio, psicanalista participante da Seção Leste/Oeste (EBP-SLO) e do Bilboquê — Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Criança, Rede CEREDA, do Campo Freudiano.
[4] No original: “Ils viennent aujourd’hui soutenir les idéaux familiaux en exploitant l’écart inéluctable entre “enfant-le-parfait” et “enfant-le- terrible”, entre l’enfant-phallus promis par l’idéal et l’enfant-objet, être de jouissance. Cette division percute une femme ou un homme quand ils deviennent “père” ou “mère”.
[5] No original: “la tension entre la plus-value que fait espérer l’accès à ces signifiants-maîtres et l’effet de castration, qui lui, s’enregistre comme perte, si ce n’est comme manque. À ne pas être prise en charge par un dire singulier, cette division, alors ressentie comme insupportable, est projetée sur l’enfant qui prend les traits d’un être trompeur (…).”
[6] Trecho da música “A novidade”, de Gilberto Gil.
[7] “Dans cette zone d’aliénation signifiante, ce qui circule comme désir et ce qui se dépose de jouissance en jeu, pour chacun des partenaires
[8] “C’est en effet sur cette intersection que se fonde le moindre processus de séparation, des sevrages de la petite enfance jusqu’aux frasques tumultueuses de l’adolescence”.
[9] “Élargit le concept de l’inconscient freudien, en mettant l’accent sur la trace d’un passage: quelque chose a eu lieu, en un éclair c’est arrivé́. Une bévue, il n’y a pas plus proche, chez l’être parlant, pour faire signe de l’événement contingent. Ce ne sont pas de nouvelles significations qu’il s’agit d’isoler, mais, à partir d’une bévue, “le petit coup de pouce que chacun donne à la langue qu’il parle”.



ALZHEIMER COMO RUPTURA DO LAÇO SOCIAL: UMA LEITURA PSICANALÍTICA[1]

GUILHERME CUNHA RIBEIRO
Médico e psicanalista, membro da EBP/AMP
guilhermecribeiro@outlook.com

Resumo: A partir do filme Meu pai, escrito e dirigido por Florian Zeller, este texto busca compreender as mudanças que ocorrem em portadores da doença de Alzheimer  sob a ótica da psicanálise de orientação lacaniana. Essa doença neurológica se manifesta no campo da fala, onde são percebidas alterações no funcionamento significante, em especial na metáfora e na metonímia. As consequências são sentidas no discurso e em uma progressiva ruptura no laço social.

Palavras chaves: Alzheimer, psicanálise, laço social, discurso, Lacan

ALZHEIMER AS A RUPTURE OF THE SOCIAL BOND: A PSYCHOANALYTIC READING

Abstract: Based on the film My Father, written and directed by Florian Zeller, this text seeks to understand the changes that occur in people who suffer from Alzheimer’s disease from perspective of the Lacanian psychoanalysis. This neurological disease manifests itself in the field of speech, where alterations in signifying functioning are noticed, especially in metaphor and metonymy. The consequences are felt in the discourse and in a progressive break in the social bond.

Keywords: Alzheimer, psychoanalysis, social bond, discourse, Lacan

 

 

Desali, s/t

Utilizando a psicanálise de orientação lacaniana como sustentação teórica, este trabalho busca compreender o que acontece com um sujeito que apresenta a doença de Alzheimer. Não se trata de pensar a psicanálise como instrumento de tratamento, mas de usar alguns elementos de sua teoria na leitura e na interpretação do modo de presença do sujeito adoecido no laço social.

Sabemos que a medicina normatizou a área de conhecimento cognitivo comportamental como padrão de avaliação dessa condição médica por meio de testes de desempenho para diagnóstico e acompanhamento. Considero importante       fazer outra leitura, que abra outra compreensão desse quadro tão dramático e frequente na vida dos idosos. A questão que se colocou desde o início foi entender  como a doença de Alzheimer afeta o sujeito em sua relação com o laço social, tendo como pressuposto que é a linguagem que nos conecta com esse laço. Para Lacan, é o laço social o que o sujeito tem de mais real. No Seminário 20, ele aponta  que, “no fim das contas, há apenas isto, o laço social”, para completar que esse “laço social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é, o ser falante” (LACAN  [1973], p. 74). Foi a partir do campo da fala que procurei construir a abordagem das alterações que ocorrem na doença de Alzheimer, campo no qual se pode verificar como se dá a ancoragem do laço social na linguagem.

Para abordar a relação do sujeito em seu laço social, é importante partir da distinção entre fala e linguagem (BASSOLS, 2017), instituída por Lacan desde o “Discurso de Roma”. O campo da linguagem é a estrutura simbólica de significantes que constituem o universo do Outro e que operam em uma sincronia que antecede o sujeito. Já a função da fala trata da relação do sujeito com a palavra propriamente dita, na diacronia da cadeia significante. Distinto do campo da linguagem e da função da fala está o suporte orgânico da fala, dependente da plena função dos órgãos fonador e neurológico do corpo.

Para essa leitura, farei uso de alguns fragmentos da obra Meu pai, do diretor e dramaturgo Florian Zeller, que narra a estória de Anthony, portador de quadro demencial — que, apesar de não nomeado pelo autor como tal, tomarei como típico da doença de Alzheimer pela similaridade com os quadros dessa patologia. A doença do personagem está na fase em que se torna obrigatória a presença da família e de cuidadores, diante da progressiva dificuldade do sujeito em lidar com o que se passa ao seu redor.

O personagem, brilhantemente interpretado no cinema por Anthony Hopkins, mostra a progressiva destituição subjetiva e a ruptura do laço social, tão características dessa condição. Essa destituição se dá com o avanço das alterações neurológicas e com suas consequências na função da fala, bem como na relação com o universo simbólico e cultural do próprio sujeito. No filme, percebemos o comovente  esforço de Anthony para entender seu cotidiano e se manter em conexão com as pessoas e com a vida. Tratando-se de uma obra que mostra de maneira arguta o quadro de sujeitos nessa condição, considerei-a um bom caminho para tentar entender as alterações da função da fala e da posição do sujeito no laço social que podem acontecer na doença de Alzheimer.

Passo então a descrever algumas alterações ocorridas com o personagem Anthony. Destaco sua dificuldade em compreender o momento que vive, o seu aqui e agora, que se mostra muito afetado pela doença. Essa alteração do aqui e agora se manifesta de várias maneiras, a saber, como dificuldades em distinguir o presente e o passado, que se misturam, bem como em localizar-se na morada atual, confundindo-a com a anterior; dificuldade para reter informações, perdendo objetos e esquecendo-se de acontecimentos cotidianos e fatos relevantes, como a morte da filha mais jovem, em um acidente; redução dos campos de interesse na vida, em uma espécie de encolhimento do campo de investimento libidinal; progressivas solidão e limitações   para encontrar soluções em sua vida.

O que se mostra importante para este estudo é a redução de sua habilidade discursiva: os diálogos têm os campos de interesse reduzidos, concentrados na busca de uma melhor orientação no aqui e agora. Em função dessa redução da habilidade discursiva, suas defesas se modificam. Para lidar com a desorientação temporal, o personagem diz ter dois relógios: um no pulso e outro na cabeça. Pela dificuldade em entender o espaço onde vive, busca as características de sua antiga casa nos cômodos atuais. Já em outros momentos, apresentam-se defesas paranoicas, como quando acusa a filha de querer roubá-lo.

Outras vezes anda pela casa com expressão atônita, perdida. Em uma situação interessante, quando se vê diante de uma jovem garota, consegue usar de fantasias para se mostrar sedutor e simpático. Diz ter sido dançarino no passado, o que nunca aconteceu. Outra defesa que se dá ao longo de todo o filme — e que acontece com a maior parte dos portadores de Alzheimer — é o uso de lembranças antigas, acessíveis à fala, para dar conta do cotidiano.

Sobretudo se percebe o esforço comovente de Anthony, que parece perplexo, em muitos momentos, diante de sua progressiva inabilidade para se manter conectado com seus objetos e com as pessoas próximas. Penso que esse esforço  seja para se manter no discurso que o conecta ao laço social. No entanto, aquilo que, no passado, fluía de maneira automática em sua vida, agora se mostra em uma progressiva ruptura.

Para tentar compreender o que se passa com Anthony e, de resto, com muitos portadores da doença de Alzheimer, parto do princípio de que, “mesmo quando se trata de transtornos orgânicos das funções implicadas na fala (…) as disfunções seguem leis simbólicas estruturais da linguagem” (BASSOLS, 2017). A hipótese que sustenta esse trabalho é que a afetação do real do corpo pela doença determina a presença de modificações progressivas na função da fala do sujeito, o que resulta em uma obrigatória tentativa de reposicionamento no discurso que sustenta o sujeito da enunciação no laço social.

Sabemos com Lacan que a função da fala comporta uma função de semblante, pois cada palavra é apenas um meio, como qualquer outro, para sustentar o laço social. Para dar conta dessa função de semblante, Lacan articulou o discurso com a maneira de associar o sujeito da enunciação com o laço social. Para ele, o discurso é uma estrutura necessária, “que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN [1969-70], p. 11). A estruturação dos discursos no laço se define a partir da incidência da linguagem para o sujeito, sendo que essa estrutura discursiva pode se manter mesmo sem palavras, sustentada por certas relações fundamentais que estão asseguradas com a linguagem. Pois é a linguagem que “instaura um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN [1969-70], p. 11).

Quais seriam então as alterações que podemos observar no funcionamento  significante do personagem?

A evolução da doença no corpo altera o funcionamento da fala e seus efeitos de metáfora e metonímia (MILLER [1998-99], p. 23). O efeito metonímico se dá com o deslizamento do sentido, quando um significante se conecta a outro significante. Já o efeito metafórico ocorre quando há uma substituição de um significante por outro. O discurso funciona na medida da interrelação entre a metáfora e a metonímia.

Essa máquina de funcionamento significante funciona mal em Anthony e em muitos daqueles portadores do mal de Alzheimer. Tratando-se de uma patologia progressiva, a deterioração dos efeitos metonímicos e metafóricos aumenta com o avançar da doença. Durante o filme, vemos o sujeito se apresentar confuso e atônito, o que parece um indicativo de que, naquele momento, os significantes não deslizam metonimicamente, fazendo com que ele se desoriente, pois não há uma significação que relance o funcionamento significante.

Diante da dificuldade discursiva, com frequência Anthony é capaz de lançar mão de significantes e imagens que, mesmo fora do contexto vivido, o ajudam a se situar. Um exemplo do uso de significantes fora de contexto se dá quando ele recebe, em sua casa, uma  jovem candidata à função de cuidadora.

Inicialmente ele não se dá conta da razão da visita e logo a associa à imagem de sua filha desaparecida, o que o ajuda a desempenhar um papel charmoso e sedutor. Ao associá-la à imagem da filha, ele pode sair da situação de desamparo, mesmo que tenha que usar uma significação fora do contexto daquele momento.

Uma outra defesa que se mostra presente para Anthony é a resposta agressiva e paranoica. Ele tem dificuldade de reconhecer o ambiente em que vive; insiste que ainda está em seu apartamento e, quando confrontado com a realidade por sua filha  Anne, a acusa de querer roubá-lo, assim como acusa as cuidadoras de roubar seus objetos. No filme, essas situações se repetem, mas, a cada vez que acontecem, não se sustentam por muito tempo, ao passo que o personagem esquece o ocorrido e alivia-se o mal-estar. Essa defesa agressiva e paranoica parece estar relacionada a um problema no efeito metafórico, na medida da dificuldade em fazer um significante ser substituído por outro.

Podemos também perceber que, em certas situações, não há nenhuma defesa para dar conta do desamparo, como quando o personagem não consegue encontrar uma palavra ou imagem que o ajude a se situar. Nesse momento, ocorre uma interrupção da articulação significante com consequências diferentes a cada vez. Quando Anthony recebe a nova cuidadora durante seu café da manhã e não a reconhece, apesar de ter estado com ela no dia anterior, revela-se a falha no funcionamento significante. Isso gera uma ruptura discursiva — ele corre para seu  quarto e não retoma o discurso.

Diante desse tipo de situação, o filme mostra uma maneira de ajudar a sair da ruptura momentânea. A interposição habilidosa de novos significantes por aqueles que estão ao seu lado pode permitir que o sujeito volte a apresentar o deslizamento significante. Mesmo que não seja sempre efetiva, essa oferta faz o efeito de uma espécie de prótese ad hoc, com funcionamento apenas evanescente.

Com o avançar da doença, torna-se mais difícil buscar palavras e imagens que deem conta do desamparo, como na última cena do filme, quando a habilidosa enfermeira o ajuda a se situar no discurso, permitindo que os significantes se articulem, mesmo com dificuldade. No entanto, os limites surgem a todo momento: ele não reconhece o funcionário que vai ao seu quarto diariamente, não se lembra do nome da enfermeira e chega a esquecer seu próprio nome. Diante da percepção de suas falhas, Anthony interpõe lembranças mais antigas, como a de sua mãe, confundindo-a com sua filha. Ao constatar a ausência de sua mãe, Anthony está diante do desamparo total: ele chora, mas ainda é capaz de elaborar sobre sua condição, dizendo que não sabe o que está acontecendo e que se sente como se estivesse perdendo todas as suas “folhas”. Aí constatamos que a função metafórica ainda está presente.

O discurso que não funciona

Em relação ao enlaçamento do real, do simbólico e do imaginário, Lacan aponta que é o enunciado desse enlaçamento que opera na fala durante a análise, pois esses termos emergem, e o fazer do analista é seguir esse discurso. Mas os outros discursos também estão situados a partir do real. O discurso do mestre, articulado ao funcionamento simbólico, é para que “as coisas caminhem no passo de todos”, o  que faz frente ao real, “pois este, justamente, é o que não caminha” e o que “não cessa de se repetir para impor um entrave a essa marcha” (LACAN [1974], p.16), pois retorna sempre ao mesmo lugar. Já a função do imaginário reflete “o mundo como ele é — imaginário” (LACAN [1974], p. 16). Para situar o imaginário, é preciso que a função da representação seja reduzida e localizada onde ela está, ou seja, no  corpo. O trabalho de Lacan com a imagem, desde o texto “Estádio do espelho”, conduz a entender o estatuto de real que a imagem assume, do poder da imagem como real. Esse poder confere um efeito de verdade que afasta o imaginário da ideia da imaginação, por isso sua função central na constituição subjetiva.

No caso do personagem Anthony, fica patente que algo não caminha, não há a fluência que se pode perceber quando a vida marcha de acordo com o discurso do inconsciente. Algo do real do corpo se impõe e  impede que o discurso caminhe. Na medida do avanço da doença, esse real do corpo não cessa de retornar e interferir no processo discursivo, comprometendo a função simbólica.

Como fragilidade do enlaçamento simbólico, a função do imaginário se acentua como defesa a essa progressiva destituição do funcionamento significante, na tentativa de sustentar o discurso. Tomo o imaginário aqui como o próprio corpo do personagem, que reflete sua posição no mundo. É com o próprio corpo como imaginário que Anthony tenta se situar em seu aqui e agora. Ele busca elementos imaginários, seus objetos, sua casa para usá-los como suporte. Mas essa tentativa se dá em uma descontinuidade temporal: o “aqui e agora” de Anthony ocorre em uma fusão de presente e passado, impedindo que ele localize seu corpo na casa onde mora e que encontre os objetos com os quais se identifica — como seu relógio e o quadro pintado pela filha. É uma defesa que permite soluções temporárias, frágeis, na tentativa de se manter no discurso. Em  um esforço de dar sentido a sua vida, na fragilidade de seu corpo e de seu enlaçamento discursivo, Anthony ainda se mostra capaz de fazer metáforas, na medida que o imaginário consegue temporariamente sustentá-lo no discurso.

No progresso e na solidão da doença, em uma cena comovente, o personagem demanda encontrar quem ele sabe que não faltaria com ele, que permitiria uma significação vinda do Outro: sua mãe. Florian Zeller, dramaturgo e diretor do filme, mostrou com sensibilidade a  importância de os portadores do mal de Alzheimer terem ao seu lado alguém capaz de oferecer os semblantes necessários para que seu desamparo não seja completo.

 


Referências
BASSOLS, M. (2018) O bárbaro. Transtornos de linguagem e segregação. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_Barbaro_Transtornos_de_lin guagem_e_segregacao.pdfAcesso em: 15 dez. 2021.
LACAN, J. (1972-73) “Aristóteles e Freud: A outra satisfação”, In: O seminário, Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: JZE.
LACAN, J. (1969-70) “Produção dos quatro discursos”, In: Seminário 17, O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: JZE.
LACAN, J (1974) “A terceira”, In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia, nº 62, dezembro 2011, p. 16.
MILLER, JA. (1998-99) “Lo real y el semblante”, In: La experiencia de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Medicina da Seção Clínica- IPSM-MG em 10/09/2021.



UMA DIFICULDADE A MAIS NA ANÁLISE DE UMA MULHER? 

LUCIANA EASTWOOD ROMAGNOLLI
Pesquisadora independente de Linguagem, Arte e Psicanálise.
Doutora em Artes Cênicas e aluna do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
lucianaromagnolli@gmail.com

Resumo: Com base no debate sobre a neurose obsessiva em mulheres, o artigo indaga se a estratégia obsessiva contra o gozo feminino não simbolizável apresenta, na clínica contemporânea, uma dificuldade a mais na análise de mulheres, considerando a realidade de devastação na relação mãe-filha, de quem esta esperaria uma consistência impossível pela inexistência do significante d’A mulher. Na defesa obsessiva, a tentativa de fazer Um com o eu e a consequente fortificação do corpo; a oblatividade que assegura a consistência do Outro; o amor erotômano; além do imperativo do supereu, aparecem como pontos possíveis de agravamento da estratégia neurótica frente à devastação.

Palavras chaves: neurose obsessiva, devastação

ONE MORE DIFFICULTY IN WOMEN’S PSYCHOANALYSIS?

Abstract: Based on the debate about women’s obsessional neurosis, this essay questions if the obsessional defense against non-symbolizable female jouissance presents as one more difficulty in women’s analysis in the contemporary clinic, considering the reality of the ravage in mother-daughter relationship, since daughters seems to expect from their mothers a kind of consistency that is impossible due to the non-existence of the significant of The woman. In the obsessional defense, the attempt to make One with the self and the consequent fortification of the body; the oblativity that ensures the consistency of the Other; the erotomanic love; and the imperative of the superego, appear as possible points of aggravation of the neurotic strategy in face of the ravage.

Keywords: obsessional neurosis, ravage

 

UMA DIFICULDADE A MAIS NA ANÁLISE DE UMA MULHER? 

 

Desali. Eis que me descubro objeto do objeto de outros objetos
Indagar a incidência da neurose obsessiva em mulheres abre a questão sobre a estrutura neurótica e suas distintas estratégias de defesa frente à inexistência de significante d ‘Ⱥ mulher, ao gozo Outro sem limites e ao real sem lei. A clínica diferencial torna-se complexa quando se consideram os frequentes sintomas obsessivos em histéricas, em contraste com casos em que a estratégia obsessiva de destruir o desejo do Outro prevalece. Estabelecida a histeria como a estrutura nuclear do sujeito neurótico, tal como proposto por Freud, a neurose obsessiva pode ser entendida como uma defesa a mais à estrutura histérica, dobra que privilegia o eu em sua vertente de autoconsciência.

As defesas obsessivas comparecem na clínica psicanalítica desde Freud à atualidade, na forma exitosa do caráter obsessivo ou na formação de outros sintomas, tais como atos compulsivos (ALVARENGA, 2019). A coação de pensamento é o sintoma obsessivo por excelência, tentativa de erguer uma barragem de significantes contra o enigma do desejo e o real da angústia. A neurose obsessiva carrega a marca de um primeiro gozo experimentado como estrangeiro, que está no princípio do sentimento de infamiliar (SOLANO, 2009). O pensamento faz-se sintoma para dominar o fora do sentido desse gozo. O sofrimento assume a forma de um conflito moral e de pensamentos perturbadores que se impõem no mais íntimo do sentimento de si e são experimentados como exteriores e intrusivos.

A curiosidade da posição obsessiva de querer saber sobre a relação entre gozo e semblantes no casal parental desvela a falência do pai e o gozo sem limites da mãe (SOLANO, 2001). É contra esse empuxo a ser aspirado pelo buraco de S(Ⱥ) que responde a estratégia de reduzir-se ao Um em uma empreitada fálica que engaja corpo, imagem e pensamento. Ao privilegiar o eu, sujeito do significante, na tentativa de encobrir a divisão subjetiva e fazer o Um imaginário do corpo, fortificado, recobre o objeto “a” causa de desejo com as vestimentas do Eu ideal i(a). E transforma o desejo do Outro em demanda do pequeno outro a ser eliminada e restituída, repetidamente. A oblatividade torna-se modo de assegurar essa consistência do Outro, “ao preço de concebê-lo como invasor e mortificante (ALVARENGA, 2019, p. 94)”. Ao degradar o falo simbólico em imaginário, ataca o próprio desejo, que deve ser mantido a distância.

Obsessivas

Na clínica contemporânea, Lêda Guimarães constata “mulheres estruturadas em suas neuroses através de fortes defesas obsessivas” (GUIMARÃES, 2015, p. 78).  Elas se apresentam em posição de objeto-dejeto da mãe. Os esforços para reduzir a potência do Outro materno absoluto frequentemente assumem o caráter de atuação ou passagem ao ato, com consequente mortificação do próprio corpo.

A baixa operatividade do pai caracteriza estruturas “malformadas”, deixando tais mulheres com recursos simbólicos escassos para localizar o desejo nas bordas do buraco da falta do Outro. “O sujeito, preso nas defesas obsessivas, mantém uma posição fóbica central que lhe permite correr para longe desse buraco”, apoiando-se na posição da criança como objeto “a” (GUIMARÃES, 2015, p. 82). O Eu ideal i(a) e Ideal do eu I(A), sustentados na alienação aos significantes mestres, envolvem o objeto para torná-lo amável pelo Outro. O amor recobre a não relação sexual.

Esthela Solano observa que, “se o sujeito obsessivo é uma mulher, a estratégia fálica prevalece igualmente”, não por desejar ter o falo para bancar o homem, mas pelo dever de “paramentar-se de falo” para tamponar a falta no Outro, fazendo Um com ele (SOLANO, 2001, p. 35). Lêda Guimarães (2015) localiza uma distinção na neurose obsessiva em homens e mulheres: eles contam com o desmentido da castração pelo traço perverso do fetiche para fazer suplência de proteção ao desejo do Outro. Em contraponto, elas têm recorrido à construção de um script com estatuto de verdade nas parcerias amorosas, assumindo multitarefas para afirmar aptidões fálicas. Asseguram a consistência imaginária do pai e do Um corpo como anteparo ao singular do gozo inominável que as lança ao real sem lei rebaixando o objeto, o que carrega o traço de perversão, dirigindo a destruição à onipotência do Outro.

A mancha

No primeiro caso analisado na conferência “O sentido dos sintomas” (1916-1917), Freud apresenta uma mulher cujos sintomas obsessivos são desencadeados tardiamente, encobrindo a impotência sexual do marido. Ao repetidamente convocar o olhar da empregada para uma mancha em uma toalha de mesa, semelhante ao borrão de tinta que o marido deixara no lençol como prova do ato sexual não efetuado nas núpcias, o que essa mulher busca é uma testemunha (pequeno outro) do seu ato de exibição para fazer o Outro subsistir. O semblante da mancha tapa o furo, mantendo a distância do seu desejo e a consistência da sua imagem.

Esse sintoma compulsivo responde à predominância da função escópica na neurose obsessiva, em seu caráter oblativo de dar a ver uma imagem de si para ser amada, que aponta para o modo de amor erotômano (ALVARENGA, 2018. p. 45). A consciência escópica estabiliza a armadura obsessiva do Um corpo imaginário, sustentando-a em um ideal de onividência que a mantém autoconsciente, fora da cena e cúmplice daquela que a observa. Oferece a imagem fálica para tampar a divisão subjetiva do Outro e em si, em defesa contra a ressonância do significante no corpo.

Sem a amarra fálica, a mulher da mancha confronta-se ao -∃x -Φx, “por onde o simbólico, por seu poder de negação, se conjuga à morte” (ALVARENGA, 2018, p.38). O sintoma vem restituir a função fálica. Elisa Alvarenga então questiona: “Sem o apoio fálico encontrado no objeto de amor, haveria um risco de aspiração pelo furo do Outro, resultando na devastação ou melancolização do sujeito?” (ALVARENGA, 2019, p. 39). Eis a emergência da pergunta sobre a devastação quando a defesa obsessiva falha em uma mulher.

Inexistência

A fantasia erotômana da demanda infinita dirigida ao Outro, que pode retornar como devastação, faz-se estratégia obsessiva para negação do desejo. Esse amor se distingue de uma erotomania psicótica pela imagem de si que o obsessivo empenha como não podendo faltar ao outro, garantindo a distância de si (ALVARENGA, 2019). Podemos, então, calcular os efeitos da queda dessa imagem, relativa ao i(a).

Esthela Solano (1996) relata uma demanda de análise após o passe, quando a nomeação a AE desencadeou uma angústia terrível ao fazê-la se deparar com o buraco da imagem e do significante. A neurose infantil se manifestara aos nove anos, com a destituição do pai do alto cargo que ocupava, deixando-a sem as coordenadas fálicas frente ao Outro do amor que rompeu as amarras imaginárias com que ela se identificava ao agalma do desejo. A fantasia se assenta no mandamento moral, sob o significante “anjo”, prendendo-a ao lugar de exceção do Ideal ou do dejeto. Na segunda análise, localiza o horror que se revela do amor como pulsão de morte e faz uma amarração privilegiando o gozo parasitário do sintoma.

Na análise pós-passe, destaca três sonhos. No primeiro, encontra no corpo uma marca que lê como a da morte iminente (buraco do simbólico). No segundo, vê os quantificadores ∃x Φx, sem-razão que inscreve a falha de existência no lado feminino (o buraco no real). Do terceiro, emerge a recordação infantil de ver no quadro de melhores alunas do colégio um buraco (no imaginário) no lugar de sua foto. É o trauma que a nomeação como quadro vazio de imagem e significante reconvoca. Retorna a vertigem infantil “que se produzia como abismo quando o sujeito não encontrava apoio em nenhuma existência que a incluísse na função fálica, uma vez percebida a irremediável impostura do Outro” (SOLANO, 1996, p. 36, trad. nossa.).

A nomeação a confronta à falha de existência pela inexistência do significante d’O analista, tal como inexiste o d’A mulher. A angústia surge no real insuportável, “comparável ao de uma bomba que explode e se produz disso a deflagração desse pouco de realidade em que se sustenta o sujeito em sua representabilidade” (SOLANO, 1994, p. 33). A amarração anterior se desfaz.

Estrago

A angústia surge da emergência do gozo no próprio corpo, separado do Outro — que não existe —, quando confronta o sujeito com a solidão inominável (GUIMARÃES, 2015, p. 85). Podemos supor que a neurose obsessiva, na mulher, faz-se mecanismo de defesa à sem-razão desse gozo, no ponto de devastação? Essa hipótese aponta para o que Lacan observa, em O aturdito, como a “realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe”, de quem “parece esperar mais substância que do pai” (LACAN, 2003, p. 465). Para Esthela Solano, “podemos supor que a devastação, em uma mulher, caracteriza o imbróglio específico do real de que ela é efeito enquanto sujeito feminino” (SOLANO, 2003, p. 54).

Nos relatos de AE de Graciela Brodsky, a defesa à angústia ante o gozo do Outro fica explícita na cena infantil em que os pais chegam felizes de uma festa: ela está excluída do gozo do Outro, e o arruína com seu choro. Filha única de mãe surda, em sua fantasia deveria fazer-se ouvir e ser a única que desperta esse Outro — o que pressupõe mantê-lo mortificado. “Se fosse histérica, ficaria com o lamento de ser a que fica de fora, mas como não sou […] dou um passo a mais: sou a que diz: que a festa termine!” (BRODSKY, 2012, p. 105).

Ainda na infância, um diagnóstico a marca: “inteligência superior à normal, graças à qual […] sabia dos perigos que as demais crianças ignoravam” (BRODSKY, 2012, p. 107), e seu sintoma é convertido em virtude. A mãe denuncia à filha a impotência do pai. Interpretar que o gozo materno estava nessa impotência faz desaparecer a querela com a mãe. Constata que o gozo do Outro está separado dela quando vê o analista dançar em uma festa. Com a travessia da fantasia, aparece o seu corpo vivo, Um do gozo. No fim da análise, esquece o termo que o analista usara para expressar a satisfação em arruinar o gozo do Outro. Parece-lhe que começava com a letra T, mas, quando o analista elucida, não reconhece o significante “pisotear”. Fica com o buraco do significante e com a letra.

Supermulher

Se, na neurose obsessiva, as mulheres se apresentam vinculadas mais com a mãe do que com o pai, decaído como anteparo ao gozo sem-limite, qual é a incidência das estratégias obsessivas na devastação? Há uma sobreposição da oblatividade como evitação do desejo do Outro, transformado em demanda, com a demanda direcionada à mãe por um significante d’A mulher que não existe? O vínculo mãe-filha pode assumir o insuportável dessa dupla demanda?

Miller (2016) localiza a devastação no princípio do não-todo da inconsistência. A substância a mais que a mulher esperaria da mãe corresponderia a um corpo que se completasse à maneira fálica, ganhando consistência. De acordo com Brousse, a devastação

“concerne para o sujeito feminino o real fora do corpo do sexo, quer dizer, uma parte de gozo não reduzível à significação fálica e mobiliza ou melhor imobiliza o sujeito alternativamente no amódio da demanda absoluta e na aspiração por uma imagem do insignificável” (BROUSSE, 2017, p. 34, trad. nossa.).

Como a predominância do pensamento e a fortaleza narcísica da neurose obsessiva operam contra a inconsistência do corpo do real da mulher? Haveria um agravamento da estratégia fálica de mortificação para estancar esse gozo a mais, fazer consistir um corpo-fortaleza contra o gozo feminino “que não fixa o sujeito ao seu corpo” (EULÁLIO, 2018, p. 108)?

A questão também se lança ao supereu da mulher como ponto insuportável que se origina do Outro materno. Sérgio Campos observa que “o supereu feminino opera na própria mulher como devastação” (CAMPOS, 2015, p. 203) e, para todo sujeito inscrito na significação fálica, o lado que escapa ao simbólico na mulher poderá operar como supereu. “Logo, mulher que está abrigada na mãe poderá surgir como Outro superegoico para a filha”, e o da filha para a mãe, resultando em mulheres devastadas (CAMPOS, 2015, p. 207).

Lêda Guimarães propõe que esse gozo devastador resulta da infiltração do imperativo mortífero do supereu no gozo feminino. Segundo ela, este último, embora vivificante, sofre os efeitos da infiltração do supereu e passa a sustentar um “goza!” mortificante (GUIMARÃES, 2015, p. 37). Na clínica contemporânea, esse imperativo se articula ao semblante de feminilidade para sustentar o Eu ideal d’A Mulher superpotente. Daí que “a patologia devastadora que invade as mulheres não é uma patologia da paixão amorosa, mas, sim, uma patologia do supereu” (GUIMARÃES, 2015, p. 39).

Quais as consequências, então, quando o gozo devastador se apresenta na neurose obsessiva, em que o pensamento é “imperativo de gozo” (SOLANO, 2009, p. 26)? Entre elas, está a maior ferocidade do supereu? Diante desses entrelaçamentos, levanta-se a hipótese de que não será sem uma dificuldade a mais que as estratégias obsessivas incidirão no momento de uma devastação na mulher.

 

 


Referências 
ALVARENGA, Elisa. A neurose obsessiva no feminino. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
______. Um caso de análise depois do passe. Arteira, n. 1, set. Florianópolis: Escola Brasileira de Psicanálise – Santa Catarina, 2008. Disponível em: <http://revistaarteira.com.br/images/pdf/Arteira-1.pdf > Acesso em 29 set. 2021.
BRODSKY, Graciela. Parceiros. Opção Lacaniana, n. 65, 2013.
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AS DUAS MORTES DE ANA KARENINA

CIRILO AUGUSTO VARGAS
Defensor público, mestre em Direito pela UFMG
e aluno do Curso de Psicanálise do IPSM-MG.
cirilo.vargas@gmail.com

Resumo: A partir do clássico Ana Karenina, romance atemporal publicado por Liev Tolstói em 1877, o artigo aborda o tema da pulsão de morte em seu entrelaçamento com o gozo mortífero e o suicídio. Freud, ele próprio um mestre das letras, já apontava a utilidade de investigar personagens inventados por grandes escritores, dada a abundância do seu conhecimento da alma. A experiência destrutiva de uma melancólica capturada pelo espiral trágico da repetição assume relevância atual em um cenário político-social de conflagração e ódio. Ana Karenina convida à reflexão, ilustrando como a morte é companheira inseparável do amor.

Palavras chaves: literatura; pulsão de morte; gozo; melancolia; suicídio

THE TWO DEATH OF ANA KARENINA

Abstract: Based on the classic Ana Karenina, a timeless novel published by Leo Tolstoy in 1877, the article approaches the theme of the death drive, in its intertwining with the deadly jouissance and suicide. Freud, himself a master of letters, already pointed out the usefulness of investigating characters invented by great writers, given the abundance of his knowledge of the soul. The destructive experience of a melancholic woman, captured by the tragic spiral of repetition, assumes current relevance in a political-social scenario of conflagration and hatred. Ana Karenina invites to reflection, illustrating how death is an inseparable companion of love.

Keywords: literature; death drive; jouissance; melancholy; suicide.

Para Cristina Drummond

Desali, s/t

 

Ana Arkadievna Karenina, imortalizada nas palavras de Liev Tolstói, não abriu mão de seu desejo e, assim como Antígona, pagou um preço elevado: morreu duas vezes. A primeira, ao abandonar seu marido e filho para se entregar a uma aventura amorosa. A segunda morte aconteceu anos mais tarde, quando Ana se jogou sobre os trilhos em uma estação de Moscou. De um lado, o perecimento social, que assumiu ares de morte civil. Do outro, a efetiva destruição corpórea. Na tragédia russa, o objeto de amor é o conde Alexei Vronski, jovem oficial da cavalaria, em relação a quem Ana desenvolve, no decorrer da narrativa, os mais ambivalentes sentimentos: paixão irrefletida, culpa, ciúme e ódio delirantes que culminam no desejo de vingança.

Não é aleatório o recurso a um ícone da literatura para tratar do tema da tragédia em torno da satisfação do gozo mortífero. A alta sociedade russa pré-revolução, de certo modo como a brasileira contemporânea, prescrevia um sistema rígido de normas morais inerentes aos arranjos familiares tidos como convenientes. E a personagem central, manancial de ambiguidades e contradições, não encontrou conforto ou segurança, seja adequando-se às leis sociais, seja obedecendo aos seus desejos.

Ana Karenina é uma subversiva que, regida pela pulsão de morte, transcende a ficção. E sua vida e mortes interessam à psicanálise. Afinal de contas, qual é a leitura possível do mal-estar e da desintegração psíquica experimentada pela personagem de Tolstói? O que a levou ao cometimento do que consideramos duplo suicídio? Como a realização de um desejo de amor transformou-se em ato de vingança? Vingança contra quem? E por quê? Tentaremos apontar respostas ao longo deste trabalho.

A aristocrata transgressora

Ana Karenina pertencia à alta sociedade de São Petersburgo, âmbito restrito de relações sociais estabelecidas entre funcionários públicos, intelectuais e aristocratas propriamente ditos, a “sociedade dos bailes, dos banquetes e dos vestidos elegantes”. Enquanto pôde, transitou com naturalidade nesse universo, fazendo bom uso do que Freud chamou de “autossuficiência” da mulher bela (FREUD, 1914, p. 34). A beleza era apenas um de seus atributos narcísicos: o que causava fascínio era a combinação de graça, inteligência e desenvoltura. Sua personalidade misteriosa dava-lhe um ar quase inacessível às outras mulheres. Quando entrava em um salão, “o que vestia passava despercebido”. Ana era uma sedutora. Que tirava proveito dessa condição.

Revelava-se no seu íntimo, todavia, profunda insatisfação com a realidade. Além de considerar falsos aqueles à sua volta, mantinha um relacionamento frio, protocolar com o marido, fruto de um casamento de conveniência. E pelo filho nutria sentimento ambíguo: o prazer “quase físico ao senti-lo junto de si” não inibia o mesmo descontentamento que experimentava quando estava ao lado do marido.

Nesse contexto de frustração generalizada, Ana conheceu o militar Alexei Vronski, a quem seduziu e por quem se deixou seduzir publicamente, antecipando o escândalo iminente. O amor clandestino, levado às vias de fato, sedimentou o gozo da transgressão, sempre perpassado por culpa, vergonha e alegria. Em sonho, Ana fantasiava Karenin e Vronski como seus maridos a lhe acariciar, num estado de júbilo. Despertava esmagada pela angústia, no encontro com o real. Convicta da sinceridade de Vronski, Ana optou pela ruptura, ciente de que abandonar o marido, escravo da opinião pública, implicaria perder tudo: a honra e o contato com o filho. Colocou-se, como disse Lacan, “à prova de um destino sem rosto, como um risco do qual o sujeito, tendo-se safado, encontra-se depois como que garantido em sua potência” (LACAN, 1959-1960, p. 234). Paradoxalmente, o ato de coragem marcou a mudança do seu comportamento em relação ao amante. Antes terna e servil, passou a dar sinais de ciúme e beligerância. Compreendeu que pagaria sozinha, como criminosa, o preço da aventura. Começou então a sonhar com a própria morte, certa da sua proximidade.

Durante o autoexílio do casal na Itália, Ana experimentou uma ilusão fugaz de felicidade, facilitada pela busca inútil de Vronski pela satisfação dos seus desejos. O tédio logo os reconduziu à Rússia e Ana Karenina tornou-se ainda mais “fria, irritável e hermética”. Injustificadamente, colocou em xeque o amor que recebia e passou a interpretar os menores atos para confirmar a suposição.

A parte final da obra descreve Ana em Moscou completamente absorvida pelo delírio de abandono. Refratária a qualquer ponderação do amante, acirrou a postura persecutória, alheia à realidade. Essa compulsão fez com que as tentativas de pacificação gerassem efeito oposto. Fez também com que sua morte se revelasse como única alternativa para se vingar de Vronski e, simultaneamente, obter seu amor. Por derradeiro, quando ele vai à casa da mãe para cumprir uma formalidade, ela, certa de que Vronski teria ido ao encontro de outra mulher, perde o controle dos seus atos e dirige-se às cegas para a estação, “esquecida por completo aonde ia e porque razão”. Antes de se atirar sobre o trilho, pensou: “Castigá-lo-ei e livrar-me-ei de tudo e de mim mesma”.

O gozo do horror

Ana Karenina é introduzida no romance como Eros e Tânatos fundidos em uma só pessoa. Ao mesmo tempo em que se apresenta em seu esplendor de mulher autossuficiente, agregadora, dela emerge forte estímulo destrutivo, provisoriamente recalcado. Nos capítulos iniciais, ao desembarcar na estação de trem de Moscou, para onde fora com o intuito de pacificar a relação conjugal do irmão, Ana se defrontou com a cena de um homem morto após cair nos trilhos. Sob forte emoção, afirmou: “É mau presságio”. Pouco tempo depois, usou seus encantos para arruinar, com indisfarçável satisfação, o noivado de Vronski. Aparentemente Tolstói construiu sua personagem mais célebre a partir da ambivalência amor-ódio que ele próprio experimentou a certa altura da vida. Em Uma confissão, autobiografia escrita após finalizar Ana Karenina, ele comenta:

“A força que me atraía para longe da vida era mais poderosa, mais completa do que uma vontade comum. Era uma força parecida com a antiga aspiração de vida, só que voltada no sentido contrário. (…) A ideia de suicídio me veio de maneira tão natural quanto, antes, me vinham os pensamentos sobre o aperfeiçoamento da vida” (TOLSTÓI, 2017, p. 36).

Tenha ou não caráter autobiográfico, o romance retrata situações vivenciadas pela protagonista que permitem a articulação de dois temas: a pulsão de morte e o gozo da transgressão. Sobre a primeira, Freud apontou, em Além do princípio do prazer, um elemento nuclear das pulsões, definido como compulsão à repetição, recurso psíquico originário e elementar que “revelaria a eficácia de uma pulsão de morte, cujo livre curso em direção ao seu alvo encontra a barreira das pulsões sexuais e das pulsões do ego, reunidas e rebatizadas de pulsões de vida” (SANTOS, 1991). Associada à ideia de destruição/agressão, a pulsão de morte freudiana constitui mecanismo biológico original (e necessário) do ser vivo — alheio à dicotomia prazer/desprazer — destinado a assegurar um regresso ao estado inanimado. “A meta de toda vida é a morte” (FREUD, 1920, p. 137). É o que se constata, por exemplo, no masoquismo, constituído pela reversão da pulsão sádica contra o próprio eu, admitindo-se o sadismo como perversão precedente (FREUD, 1914, p. 65).

A trajetória de Ana Karenina é definida por um gozo mortífero, fruto da reiteração de atos e pensamentos de autoagressão, sobre os quais ela não exerce controle e que tão somente fazem recrudescer seu sofrimento: autocolocação em situações de expiação pública e de humilhação perante o marido, atitudes persecutórias direcionadas ao amante e sonhos traumáticos. E é justamente desse movimento repetitivo que ela retirava sua satisfação paradoxal, eis que sempre permaneceu latente o “sincero desejo de sofrer”. Só a iminência do desastre lhe apaziguava.

A literatura está a ilustrar um caso específico em que a compulsão à repetição desempenha papel dominante no processo de destruição pessoal[1]. Seria possível, então, inferir que a pulsão gregário-conservativa (de vida) constitui elemento acidental da pulsão por excelência, que é a pulsão de morte? Lacan, no Seminário 11, sustenta a distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte, porém, não como espécies diversas do gênero pulsão, nos moldes do dualismo proposto por Freud, mas como dois aspectos desta konstante Kraft cujo destino é contornar o objeto a. Isso, ele pondera, desde que se possa

“(…) conceber que todas as pulsões sexuais se articulam no nível das significações no inconsciente, na medida em que, o que elas fazem surgir, é a morte — a morte como significante, e, nada mais que como significante, pois será que se pode dizer que há um ser-para-a-morte? Em que condições, em que determinismo, a morte, significante, pode ela brotar toda armada na cura? É o que só pode ser compreendido por nossa maneira de articular as relações” (LACAN, 1964, p. 249).

Éric Guillot propõe que em “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” há um “novo giro” na abordagem da pulsão. Quando Lacan recorre ao simbólico, “é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte” (GUILLOT, 2014). “Gozo” torna-se nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.

Lembra-se, a partir das lições de Miller (2012), que, no Seminário 7, diferentemente do que foi elaborado no seminário sobre “Os quatro conceitos…”, “temos o gozo conectado ao horror e é preciso passar pelo sadismo para compreender alguma coisa disso”. Verifica-se nessa fase do ensino lacaniano que, “Quando se está no lugar do gozo, algo da ordem de uma terrível fragmentação corporal se produz — e não basta, a Lacan, somente uma morte para dar conta disso: ele acrescenta uma segunda morte” (MILLER, 2012). Alude-se à tragédia de Antígona, que guarda semelhança com a de Ana Karenina. Em ambas, cai o semblante de bondade característico das personagens, emergindo a crueldade. Isso em paralelo com a total indiferença ante as “leis da cidade” e o destino sacrificial reservado aos criminosos.

É justamente pelo paradigma do gozo como “transgressão heroica”, estabelecido em “A ética da psicanálise”, que trabalhamos o percurso da personagem de Tolstói. Ana Karenina não se identifica com o círculo aristocrático ao qual pertence. Enxerga-se acima dos protocolos de falsidade que lhe envolvem. Reivindica o reconhecimento do Outro (opondo-lhe violência) pelo exercício de autonomia para, na condição de mulher casada, vincular-se a um homem pela via do amor. Então, despida do sentimento de igualdade ou altruísmo, goza tripudiando da moralidade hipócrita imposta pela alta sociedade. Não se opera na sua consciência o que Lacan denominou “lei de igualdade”, freio para submissão à vontade geral (inibindo o ato transgressor). Ao contrário. Seu prazer advém da agressividade incontrolável, cuja consequência é a solidão e a destruição pessoal. O processo da perversão se consolida com a passagem do sadismo ao masoquismo, retornando o ódio ao ponto de origem.

Da substituição da realidade ao suicídio

A ideia de suicídio tornou-se consciente para Ana Karenina quando a dúvida sobre o afeto de Vronski se fez acompanhar da fantasia de abandono. Ela não se limitou, nessa altura, a negar a realidade. Ana substituiu a realidade para sustentar o gozo de automartírio (“No seu ciúme cego, via em todas as mulheres a rival”). Um quadro psíquico delirante compatível tanto com a neurose quanto com a psicose (FREUD, 1924, p. 221). O ciúme projetado constitui mecanismo neurótico através do qual a pessoa infiel reconhece a infidelidade do amante em lugar da sua própria, mantendo-a recalcada, de maneira a aplacar a recriminação (FREUD, 1922, p. 194).

O ciúme não parece, todavia, ser o ponto chave para compreender o percurso da personagem ao autoextermínio, mas sim seu estado melancólico, reação à perda imaginária do objeto de amor. Em “Luto e melancolia”, texto fundamental sobre o tema, Freud define melancolia (ou “delírio de pequenez”) como abatimento doloroso acompanhado de “diminuição de autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição” (FREUD, 1915-1917, p. 173). Na tese de doutorado A dor moral da melancolia, Maria da Fátima Ferreira, ao abordar caso clínico envolvendo uma melancólica, percebe o predomínio de uma “culpa maciça” e de um “excesso desafiante”. E, exatamente como em Ana Karenina, as aventuras “só serviam para agravar seu desespero e seu sentimento de humilhação” (FERREIRA, 2014, p. 196).

Questão que surge é como esse quadro de empobrecimento do Eu pode se conciliar com a ideia de vingança, bem expresso no pensamento de Ana em relação a Vronski: “Tudo acabará com a minha morte. E, quando eu estiver morta, ele há de arrepender-se da sua conduta, há de chorar por mim, amar-me-á”. Freud observa que, na melancolia,

“os doentes habitualmente conseguem, através do rodeio da autopunição, vingar-se dos objetos originais e torturar seus amores por intermédio da doença, depois de se entregarem a ela para não ter de lhes mostrar diretamente sua hostilidade. (…) Assim, o investimento amoroso do melancólico em seu objeto experimentou um duplo destino: parte dele regrediu à identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito da ambivalência, foi remetida de volta ao estágio do sadismo, mais próximo desse conflito. Apenas esse sadismo nos resolve o enigma da inclinação ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante — e tão perigosa” (FREUD, 1915-1917, p. 184).

O que se percebe ao final de Ana Karenina é o acting out da protagonista, ato que, segundo Jésus Santiago, surge para tamponar a incapacidade do sujeito de falar ou simbolizar algo (apud CAMPOLINA, 2020, p. 126). Um apelo, sob a forma de cena pública, dirigido não apenas ao amante, mas principalmente à alta sociedade russa, modeladora da lei e da cultura, em cujos parâmetros a heroína transgressora optou por não se inserir. Uma demanda de amor que, ao fim e ao cabo, se revelou inútil, porque todo o amor possível já lhe havia sido dado. O “ganho secundário” do suicídio histérico (vingança) culminou no aniquilamento do objeto de amor, impotente diante de uma força destrutiva que nunca conseguiu compreender. Ana, tal como na tragédia de Sófocles, passou ao imaginário popular na condição de signo eterno.

 


 

Referências
CAMPOLINA, A. “O ato, o acting out, a passagem ao ato”. In: GRECO, M.; CARVALHO, D. e REGGIANI, N. (Orgs.) Ponto final? Indagações em torno da questão do suicídio. Belo Horizonte: Associação Imagem Comunitária, 2020.
FERREIRA, M. F. A dor moral da melancolia. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREUD, S. (1914) Introdução ao narcisismov. XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. v. XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
FREUD, S. (1922) Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidadeBelo Horizonte: Autêntica, 2016.
FREUD, S. (1924) A perda da realidade na neurose e na psicosev. XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GUILLOT, E. “Da agressividade à pulsão de morte”. Almanaque on-line – Revista Eletrônica do IPSM. N. 14. 2014.
LACAN, J. (1959-1960) O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
MILLER, J.-A. “Os seis paradigmas do gozo”. Opção Lacaniana online. Ano 3, n. 7, mar. 2012.
SANTOS, T. C. “A pulsão é pulsão de morte?”. Tempo Psicanalítico. Rio de janeiro, v. 25, p. 69-83, 1991.
TÓLSTOI, L. N. Ana Karenina. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
TOLSTÓI, L. N. Uma confissão. São Paulo: Mundo cristão, 2017.

[1] “Dizer que toda ‘pulsão parcial é por natureza pulsão de morte’ não quer dizer, certamente, que toda pulsão vai até a morte.” (GUILLOT, 2014).