EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 28

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EDITORIAL – ALMANAQUE N 28

MICHELLE SENA

Desali, s/t

 

Está no ar a 28ª edição da revista Almanaque On-line!
Esta edição tem como tema Interpretação: um dizer que toca o corpo. A partir da continuidade do trabalho desenvolvido pelo IPSM-MG no segundo semestre de 2021 e seguindo a trilha do Almanaque 27, a temática da interpretação continua provocando ressonâncias que, nesta edição, serão abordadas evidenciando seus efeitos sobre o corpo.

Iniciamos, em Trilhamentos, com os textos de Esthela Solano-Suárez, Jésus Santiago, Antoni Vicens e Sandra Espinha. Em Do acontecimento ao advento, Solano traz um relato de sua análise, no qual transmite a constituição do seu sintoma e os efeitos do tratamento no corpo e coloca em evidência como a análise visa o real do sinthoma. Em Acontecimento de corpo, gozo místico e jaculação, Santiago aborda a jaculação enquanto uma versão renovada da interpretação, considerando a vertente da ressonância do significante e do equívoco. No texto Um corpo, Um: tradução e deciframento, Vicens empreende a tentativa de tradução e interpretação da frase lacaniana “UOM (…) kitemum corpo e só-só Teium” visando o corpo a partir das consequências do ter. Ainda nessa rubrica, contamos também com o texto de Sandra Espinha, Lições sobre Hamlet: o desejo da mãe, proferido no âmbito das Lições Introdutórias do IPSM-MG, dedicadas às Sete Lições sobre Hamlet.

Na rubrica Encontros, elegemos os textos de Esteban Klainer e Leonardo Gorostiza. Em O quarteto de Jacques Lacan, Gorostiza propõe o quarteto — injúria, opacidade, jaculatória e silêncio — como instrumentos de leitura da interpretação analítica enquanto incidência da palavra e do significante sobre o corpo, o gozo e o real. No texto Uma leitura sobre o sintoma como acontecimento de corpo, Klainer busca detalhar a construção da noção de sintoma como acontecimento de corpo no último ensino lacaniano partindo da diferenciação entre fenômeno e acontecimento de corpo, percorrendo a pista de Joyce, necessária para que Lacan pudesse formular essa noção.

Para a Entrevista, conversamos com Márcio Abreu, dramaturgo, diretor e ator, que nos conta sobre seu percurso nas artes, principalmente a relação da escrita e da atuação com o corpo. Márcio aponta a importância da palavra e sua materialidade, incluindo a dimensão do silêncio, bem como o aspecto do corpo do espectador, necessário na sua orientação dramatúrgica.

Em Incursões, temos textos que orientaram as discussões realizadas nos núcleos de pesquisa do IPSM-MG e no Atelier de Pesquisa: Psicanálise e Segregação no último semestre. Compõem essa rubrica os textos Racismo e Identidade: um guia lacaniano para entender a questão, de Andréa Guerra; O inconsciente: da criança até o adolescer, e mais, de Cristiane Barreto; Fenômeno e acontecimento de corpo, de Sérgio de Campos; As temporalidades da medida protetiva de acolhimento, de Carlos Henrique Nunes e Alzheimer como ruptura do laço social: uma leitura psicanalítica, de Guilherme Ribeiro.

E, por fim, em De uma nova geração, contamos com textos produzidos pelos alunos do IPSM-MG: Uma dificuldade a mais na análise de uma mulher?, de Luciana Romagnolli, ​e As duas mortes de Ana Karenina, de Cirilo Vargas.

Acompanhando os textos apresentados, vocês encontrarão os trabalhos de Desali[1], a quem agradecemos imensamente por colorir esta edição com sua singular produção artística.

Agradecemos também aos autores e à equipe de publicação desta revista, em especial à Cecília Batista, responsável pela tradução de todos os resumos para o inglês.

Desejamos aos leitores que desfrutem desses textos tão precisos e que sua leitura ecoe em um desejo vivo de trabalho!


[1] Desali, 1983, Contagem, MG. Desali é formado em Artes Plásticas pela Escola Guignard (UEMG). Participou das exposições “Enciclopédia Negra”, na Pinacoteca de São Paulo; “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”, no Instituto Moreira Salles; 36º Panorama da Arte Brasileira: “Sertão”, no MAM; Bolsa Pampulha, no MAP, e da 32ª Edição do Salão Arte Pará. Já fez parte de residências, exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior. É autor de obras adquiridas pelo Centro Cultural São Paulo (acervo Arte da Cidade) e pelos acervos do Museu de Arte da Pampulha (MAP) e da Pinacoteca de São Paulo. Criador do Coletivo Piolho Nababo, há dez anos em Belo Horizonte, viaja por múltiplas linguagens, incluindo grafite, fotografia, vídeo e intervenção urbana, promovendo o contato entre a margem e o centro e questionando as instituições artísticas tradicionais e seu colonialismo, contaminando esses espaços com as ruas.




DO ACONTECIMENTO AO ADVENTO[1] 

ESTHELA SOLANO-SUÁREZ
Psicanalista, Analista Membro da Escola, membro da ECF, EOL E NLS/AMP
solano-suarez@orange.fr

Resumo: A autora descreve em seu texto um antes e um depois de seu encontro com Lacan, na época de seu último ensino, “no momento em que ele deportava a prática da psicanálise do Outro em direção ao Um, visando o real do sinthoma”. Nesse sentido, sua experiencia de análise com Lacan teve, segundo Esthela Solano, a dimensão de um acontecimento. A autora destaca que essa análise lhe permitiu ler, no equívoco dos sons, o que escorre em lalíngua, isolando o Um do significante separado do outro.

Palavras chaves:real; sinthoma; acontecimento; lalíngua.

Abstract: The author describes us in her text a before and after her encounter with Lacan at the time of his last teaching, “at the moment when he deported the practice of psychoanalysis from the Other towards the One, aiming at the real of the sinthome”. In this sense, her analysis experience with Lacan had, according to Esthela Solano, the dimension of an event. The author emphasizes that this analysis allowed her to read in the misunderstanding of sounds what flows in lalangue, isolating the One from the signifier separated from the other.

Keywords: real; sinthome; event; lalangue.

Desali, s/t

 

Do acontecimento ao advento

Vários eventos pontuaram o percurso disso que posso chamar de minha vida, e isso desde meu nascimento. Eles deixaram traços, inclusive traços no corpo, inscrevendo um antes e um depois irreversível. Seu caráter de acontecimento só surgiu a posteriori.

As contingências que nos surpreendem aqui e ali escrevem os episódios constitutivos de uma trama da qual fazemos nosso destino. Contudo, nem toda contingência e nem todo episódio se torna um acontecimento. Ora, os encontros não se sustentam por nada, senão pela contingência, e há encontros que fazem acontecimento.

Posso adiantar hoje que houve para mim um primeiro encontro decisivo. Posso dizer primeiro? Com certeza não. Ele já estava inscrito na esteira das consequências de um primeiríssimo, fundamental e esquecido, do qual resultou o sintoma como consequência do impacto de lalíngua sobre o corpo. O sintoma veio assinalar, bem cedo, na infância, um modo de ser que me caracterizava: fui uma criança “perdida em seus pensamentos”, aérea, mas também muito presente, à escuta de tudo o que circulava nas reuniões familiares nas quais a conversação ocupava um lugar importante; os convidados eram numerosos e falantes. Sempre fui interpelada pelas falhas e pela inconsistência de suas recomendações, falhas que eu atribuía, sobretudo, às mulheres. De vez em quando, se as condições eram favoráveis, eu podia compartilhar minhas reflexões — mas apenas uma pequena parte de minhas inquietudes, pois não lhes dizia tudo — a meus dois interlocutores preferidos, meu pai e meu avô paterno, a quem eu supunha alguma segurança no nível do pensamento. Eles ficavam maravilhados e me elogiavam. Eu me sentia tão lisonjeada quanto decepcionada, pois esperava uma resposta que colocasse um fim a meus pensamentos.

Os pensamentos giravam em torno, precisamente, do enigma do sexo e da morte. Nessa família, que foi a minha, os homens não eram católicos, nem praticantes, nem crentes, enquanto as mulheres eram fervorosas. Assim, fui introduzida por minha mãe, desde o início, à crença. Ela me colocou em contato com Deus. A Bíblia foi o Livro que estruturou minha relação com o Outro e se torna o contexto das delícias de meus pensamentos. Eu não perdia de vista esse bom e velho Deus pai, embora isso se desse no temor e na compaixão. Sua vontade era um problema para mim, no sentido de um desejo que prescrevia os objetivos últimos do sentido da vida. Eu podia cumprir seus mandamentos, sem nunca ser capaz de me livrar da culpa que sempre se infiltrava sem que eu me desse conta, tanto em meus atos quanto em meus pensamentos. Por que pedia o sacrifício? Por que pediu a Abraão que sacrificasse seu único filho? Não era dele que viria uma descendência tão numerosa quanto as estrelas do céu e a areia do mar? E se o anjo não tivesse chegado a tempo de substituí-lo pelo carneiro? Por que sacrificou Jesus, seu próprio filho, para nos redimir de uma culpa original já que teria, tendo em vista seu poder divino, podido impedir? Ao mesmo tempo, eu justificava Eva por ter desejado, tentada pela serpente, ter acesso ao discernimento e ter provado a maçã da árvore proibida e desejável ao preço de ser expulsa do Paraíso. Do alto de meus cinco anos, o que se seguiu dessa ficção me desanimou: a culpa, o pecado, a doença e a morte e todos os tormentos da condição humana. Eu me encontrava irremediavelmente capturada aí.

Meu esforço de pensamento, mais precisamente, a imposição do pensamento, era minha maneira sintomática de encarar a falha, o erro, a falta inerente à relação do desejo com o desejo do Outro e de querer preenchê-lo. E, para além do desejo, o que se impunha a mim era algo do impossível de definir, escapando do sentido. Missão impossível, portanto, querer pensar o impensável. A falha sempre crescia. Mas, em resumo, eu decidi desde muito cedo me curvar à vontade divina, aceitando a sua face de mistério e supondo que, mais tarde, adulta, encontraria as respostas. Entretanto, jurei alimentar a consistência do Ideal para agradar a Deus e, por consequência, meus entes queridos. A mortificação do corpo caminhou de mãos dadas com esse programa de santidade cuja ambição visava, via anulação da carne, o corpo glorioso. O dito corpo glorioso, pendente do sonho de eternidade, conjugava a morte e o corpo, reduzindo este à sua pura consistência imaginária, à boa forma, ao saco vazio, esvaziado de gozo da vida. O ideal em jogo é apenas uma ficção. Esta, sendo introduzida pelo simbólico no corpo, torna-o servo da instância que vigia e julga, enquanto ignora que o corpo glorioso é somente o envelope do olhar, mais-de-gozar recuperado do esvaziamento da carne.

Bum! Plaft! O despertar da primavera vem para partir em pedaço a bela imagem, por irrupção disso que do corpo “se goza” sozinho, fazendo objeção às ficções do ideal proveniente do Outro. Esse momento de ruptura trouxe à tona uma violência vulcânica que já havia irrompido, bem cedo, na minha infância. Mas, dessa vez, sua força foi multiplicada pelo encontro efetivo com o amor e com o encontro com um outro corpo sexuado de outro modo. Eu me tornei, assim, Outra de mim mesma. Essa Outra, sendo uma, estava fora do modelo, estilhaçando o Um da identificação ao ideal, evidenciando que o Outro não se adiciona ao Um, que o Outro é um a menos. O descolamento do objeto olhar, face oculta da insígnia do ideal, roubou o semblante do ser cuja significância me serviu de apoio. Sem saber onde me estou[2], na aflição de me encontrar uma, e, consequentemente, exilada do significante mestre, fui sugada pelo S(Ⱥ). Sem a segurança de nenhum saber, nem de nenhuma elucubração ao alcance de meu pensamento, minha experiência me confrontou com a dura prova do Um do conjunto vazio.

Surge, então, uma interrogação crescente e relativa ao que eu sentia como sendo da ordem de um furo, um questionamento absoluto no nível da existência, tomando forma de descrença, descrença relativa à existência de Deus. Pela intrusão do gozo Um, do hétero, experimentei, na solidão extrema, a inexistência do Outro. O Outro, no meu sistema de pensamento, era sustentado pelo Um do pai, confundindo-se com ele. Mas esse semblante maior se empalideceu, mostrando sua insuficiência diante do real. Eu me vi arrebatada, por sua queda, em uma dor infinita.

Termina aqui o preâmbulo necessário para explicar o encontro que foi, para mim, um acontecimento. Tive, nesse momento, a sorte de encontrar e de levar a sério o acontecimento Freud. Esses textos me trouxeram consolo como uma razão, como uma elucidação. Descobri a dimensão do sintoma, do inconsciente, da pulsão e, assim, do fundo do poço de meu abismo, pude me reerguer para demandar uma análise.

Essa análise me salvou. Encontrei meu caminho. Numa boa hora, tendo terminado meus estudos, eu me instalei como analista. Tudo ia bem; o normal do que se chama de sucesso profissional estava ao meu alcance, um consultório que funcionava, um início de carreira docente na universidade, mais um encontro amoroso tão marcante quanto importante.

O real bateu à minha porta sob os tipos de uma reação terapêutica negativa e de uma erotomania, como demonstraram duas de minhas analisantes. As supervisões não me ajudaram em nada. Essas duas mulheres me confrontaram numa zona que minha análise havia deixado na sombra. Eu sabia que havia aí uma sombra espessa, mas não conseguia identificá-la naquele momento. Minha análise me permitiu elucidar as confusões das identificações, elaborar um certo saber no enquadre da lógica edipiana e confirmar a singularidade de minha maneira de ser mulher, construída contra o modelo materno. A elaboração de saber recobria e consolidava a consistência imaginária do corpo colocando uma tela sobre o real fora de sentido do gozo. O simbólico recobria o imaginário e o real deixando, então, na sombra, a triplicidade do Um.

Sobre isso, um milagre se produziu por acaso. Encontrei um texto de Althusser que me abriu a porta em direção a Lacan. Lendo, em seguida, “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise”, impôs-se para mim a evidência de um “É isso!”: a psicanálise era exatamente isso, e não outra coisa. Pouco tempo depois caiu em minhas mãos um texto de Jacques-Alain Miller, “A sutura (elementos da lógica do significante)”, que me pareceu brilhante. Esse foi o momento de concluir e a decisão estava tomada: ir a Paris para me formar.

Parece-me tão inacreditável como surpreendente ter encontrado Lacan e ter tido a sorte de fazer uma análise com ele. Quando me recebeu, ele tinha acabado de voltar de sua viagem aos EUA e iniciava o Seminário XXIII: o sinthoma. Encontrei Lacan no momento em que ele deportava a prática da psicanálise do Outro em direção ao Um, visando o real do sinthoma.

O começo de minha análise foi incontestavelmente troumatique, pois ele furou em ato o que eu acreditava ser a prática analítica fundada sobre a associação livre. Ele procedia de modo a cortar o laço dos significantes entre si, a contrariar o relato dos sonhos, das lembranças das elaborações, enfim, das elucubrações articuladas. Ele fazia objeção à ordem simbólica, a saber, ao que numa frase articula um sujeito, um verbo e um complemento, sustentando a intenção de significação. Ele quebrava a unidade da frase de maneira implacável, produzindo um efeito de furo no sentido. A sessão analítica se reduzia a um núcleo, isolando na pressa a fugacidade de um equívoco significante. Ele recuperava em ato o trauma inicial.

Foi preciso um certo tempo, um tempo duro que pôs à prova minha demanda, para que eu pudesse ouvir outra coisa no que havia dito, com intenção de dizer. Mas, a partir desse momento, eu aprendi a ler, a ler não o que se relaciona com significações e confusões do sentido, mas a ler no equívoco dos sons o que surge e escorre em lalíngua, isolando o Um do significante recortado de outro.

Assim, fui arrancada da ordem simbólica e deportada à lalíngua, isto é, ao lugar onde os traços fora de sentido deixaram marcas no corpo como letras de gozo, letras que ex-sistem ao dito. Assim, experimentei o que, naquilo que se diz, cessa de se escrever, daquilo que cessa no nível de afetação do corpo, daquilo que cessa de doer, sob a condição de que as palavras não tenham mais sentido.

Ter sido descolada do sentido desde o início me possibilitou parar de buscar uma saída do lado do ser, abrindo uma via do lado da ex-sistência. Na verdade, o sintoma me forçou a pensar o impensável e, por isso, a articulação significante foi convocada sem cessar, assim como a suposição de um saber que eu ia poder desenterrar de uma vez, para recobrir com suas miragens não a falta, mas o furo. No fundo, o sintoma e seu uso de gozo eram apenas a busca desesperada por um “je panse[3], a fim de recobrir com as miragens do ser o real fora de sentido, a saber, o impossível. O sintoma não cessa de se escrever no lugar do que não cessa de não se escrever, no lugar da impossível escrita da relação sexual que não há.

Perfurando o sentido, Lacan esvaziou o “je panse” colocando em evidência, assim, a solidariedade do ser de pensamento com a suposta harmonia da imagem unificante do corpo, enodado aos ideais, terreno de predileção onde reina o verdadeiro e o belo. A verdade mentirosa sendo desnudada, essas amarrações se dissiparam levando embora os atributos e os predicados do ser, estes sendo apenas o véu recobrindo a inexistência de Ⱥ mulher. Uma mulher tem apenas um semblante de ser, ali onde ela é causa de desejo para um homem no lugar do objeto a. Se o homem copula em sua fantasia com o objeto a e se ela se presta no parecer-ser, isso não deixa de implicar para um efeito de queda, em vez do vazio. A menos que o pare-ser se conjugue ao a-muro, então o acontecimento amoroso faz suplência na relação sexual. Assim, fui capaz de identificar a dor que me acompanhava desde o tempo do esquecimento como sendo o afeto vindo do impossível, isto é, o real.

Não há dúvida aqui da existência de uma dor, como eu tinha acreditado erroneamente no passado. Trata-se, acima de tudo, da dor de uma inexistência, aquilo que está inscrito do lado das fórmulas de sexuação, do lado mulher, como negação de uma existência. Do lado feminino não existe um x que vem negar a função Φx e, consequentemente, o gozo não é todo submetido à lei da negativação imposta pela linguagem como castração. Uma parte do gozo de uma mulher daí escapa, não sendo todo submetido à função fálica. Ele oculta, diante da lógica edipiana, fora do Um que, sendo exceção, traça o entorno do Todo do universal fálico. Ele é consequência louca, enigmática, fora de sentido.

O sintoma se constitui como uma resposta, como uma solução, como um operador de consistência visando a inclusão da parte do não-toda, a saber, real, na lógica fálica. Sua visada impossível se impunha como sendo da ordem de uma força (Zwang) impondo uma vontade de anulação do gozo não-todo, a fim de submetê-lo, todo, à castração. Eu era uma fervorosa do Aufhebung, da anulação operada pelo significante, me perdendo em seus labirintos. Mas a peculiaridade de l(a)pensée, do gozo sentido do (a) pensamento, é que ele anda em círculos, gira em torno do furo e essa rodagem em vão aumenta, não o efeito de falta, mas o efeito de furo. A outra face do (a)pensamento, então, como efeito de furo, me aspirava para o infinito, transportando o corpo para fora de si, um lugar de pura falta, um lugar de parte alguma. Nesse furo falhou a ilusão de encontrar, via falo, uma solução pelo universal.

A operação de Lacan consistiu em opor uma recusa categórica à estratégia neurótica. Pouco fascínio, ruptura dos semblantes, desarticulação do Um unificador, parada categórica do blá-blá-blá. É por uma redução do gozo fálico que a análise operou, fazendo cessarem, assim, as confusões do sentido. Isso só foi possível drenando a via do verdadeiro para abrir aquela do real.

Qual foi o acontecimento então? Aquele do advento de uma mulher, resultado do consentimento dos pontos de impossível localização. Esse consentimento acabou parando a dor e promovendo uma satisfação inédita.

Hoje é possível considerar que essa satisfação tenha vindo como consequência da operação de Lacan, esvaziando o campo da linguagem das significações para manejar a letra fora de sentido. Esvaziando o sintoma das miragens do ser, sua operação visava estreitar o real do sintoma, cujo gozo irredutível é fora de sentido e sem lei.

E nisso fui capaz de assumir o que, na diferença radical  enquanto uma, se singulariza como sinthoma ela (“sinthome elle”).

É esse o acontecimento que se produziu como consequência de meu encontro com Lacan.


Tradução: 
Letícia Mello
Revisão: Renata Mendonça

[1] Texto originalmente publicado na Revue La cause du désir, n. 100, 2018.
[2] N.T.: No texto original, me m’être é homófono com me mettre, que se traduz como me colocar.
[3] N.T.: “Je panse” ou “eu curo” que também é homófono a “je pense” – “eu penso”.
psicanálse – alzheimer – lacan – psicanalise – psychanayse – corpo – psicoanálisis



ACONTECIMENTO DE CORPO, GOZO MÍSTICO E JACULAÇÃO[1]

JÉSUS SANTIAGO
Psicanalista, membro e AME da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
santiago.bhe@terra.com.br

Resumo: O interesse do texto é mostrar que a jaculação é uma versão renovada da interpretação na medida que nela o objeto voz se orienta para a vertente da ressonância do significante, dando assim abertura ao equívoco. Para a jaculação, o significante é menos o que produz sentido e mais o que se ouve e ressoa como real. Por intermédio do objeto voz, a interpretação joga com o equívoco dos significantes que causam o gozo. E nisso a interpretação se apresenta diretamente conectada com a escritura. Apenas a escritura é capaz de circunscrever e isolar o real do efeito de sentido. O inconsciente torna-se um texto que se lê e no qual a leitura se equivoca, deixando ouvir efeitos sonoros que permitem esvaziar o sentido.

Palavras chaves: jaculação, interpretação, gozo, sentido e real.

BODY EVENT, MYSTIC JOUISSANCE AND JACULATION

Abstract: This essay has the intent to show that jaculation is a renewed version of interpretation, in which the object voice is oriented toward the resonance of the signifier, thus opening up to equivocation. In jaculation, the signifier is less what produces meaning and more what is heard and resonates as real. Through the object voice, interpretation plays with the equivocation of the signifiers that cause jouissance. In this case, interpretation is directly connected to writing. Only writing can circumscribe and isolate the real from the effect of meaning. The unconscious becomes a text that is read, and its reading is open to equivocation, letting the sound effects be heard and allowing the meaning to be emptied.

Keywords:  jaculation, interpretation, mystic jouissance, meaning, real.

Desali, s/t

 

Dois acontecimentos de corpo 

O interesse precoce de Lacan pela mística se inicia na década de 50 e é uma evidência de que o corpo atravessa, de diferentes maneiras, toda a trajetória de seu ensino. Particularmente, o gozo místico desempenha um papel fundamental nessa revolução conceitual concernente ao sintoma concebido como acontecimento de corpo. Antes de tratar da mística, é preciso dizer que o acontecimento de corpo concerne a uma mudança radical na concepção do sintoma na medida em que este passa a ser diretamente causado pelo trauma. Aliás, tanto o sintoma quanto o trauma são apreendidos como acontecimentos que deixam traços e marcas. Trata-se sempre da ação dos discursos que afetam o corpo. Assim, o trauma não é um acontecimento que possa se explicar no sentido de um acidente factível, como é o caso de um atentado ou abuso sexual. É um acontecimento que resulta do componente inerente de lalíngua, ou seja, sua abertura à contingência que se afirma por sua condição em causar impacto sobre o corpo. O trauma é o traço de afetação fundamental que deixará marcas na vida subsequente do corpo falante, gerando um desequilíbrio permanente que mantém um excesso de excitação que não se deixa reabsorver pela homeostase do prazer.

É diante do insucesso do princípio do prazer em regular o desequilíbrio do gozo gerado pelo trauma que se pode falar do sintoma como acontecimento de corpo. O sintoma é, assim, a pura repetição, pura reiteração, no real, desse Um de gozo que se depreende desse acontecimento primordial que é o trauma. Desde então, o sintoma passa a ser menos um objeto decifrável do que esse efeito de reiteração do gozo do Um no corpo e, nesse sentido, esse acontecimento passa a ser nomeado como sinthoma (com th), diferenciando-se daquele por não se esgotar com a decifração do sentido (MILLER, 2011, aula de 2/3/11). Enquanto acontecimento de corpo, o sinthoma não se confunde com fenômenos de corpo transitórios, em eclipses, mas apresenta-se, ao contrário, com uma temporalidade permanente (MILLER, 2003). Qualifica-se, assim, o acontecimento de corpo como sinthoma quando este se instala ordenando, de modo permanente, na vida do falasser. 

O Outro da mística é furo

A mística é exemplar no que caracteriza o sinthoma, pois fala-se com o corpo permanentemente com base no amor da língua, cujo destino é quase sempre a escritaPara as beguinas, mulheres místicas um pouco desumanizadas — que podem ser consideradas casos que Lacan nomearia como UOM —, é quase natural que escrevam, com o corpo, para o gozo que lhes transborda. A escrita testemunha a afinidade particular que existe entre o gozo e a experiência mística. Para além das miragens do narcisismo, fomentado pela relação dual e especular, a escrita mística para o gozo visa o amor que está do lado do real. O que vem a ser o amor real? O próprio Lacan colocará a questão sobre se o amor pode ir até o limite em que se visa, no Outro, o seu gozo nocivo e deletério. Enfim, pode-se amar o Outro em seu gozo? Esse amor calcado no gozo que se aloja no Outro se mostra com nitidez nas experiências místicas em que Angela de Folignio bebia com deleite a água na qual acabara de lavar os pés dos leprosos ou, ainda, em que Maria Allacoque comia, com não menos recompensas que as efusões espirituais, os excrementos de um doente (LACAN, 1969-70/1986).

Tanto a mística quanto o amor cortês consistem nas respostas de Lacan a respeito do real do amor concebido como “o que vem em suplência à relação sexual” (1972-73/1982, p. 62). No defrontamento com o impossível da não relação sexual — de onde se define o real —, a experiência mística aparece enquanto encontro com o seu parceiro privilegiado, que é Jesus Cristo, e não o Deus da religião monoteísta. O parceiro é o Cristo da paixão, crucificado, estigmatizado, de tal maneira que as místicas gozam do Filho de Deus, considerando que este morre sem o amparo do Pai. É o que se manifesta na súplica do Filho: “Pai, por que me abandonaste?”. Se a mística não tem o Deus monoteísta como parceiro de gozo, é porque não retém como Outro aquele que provoca trevas sobre a Terra e não responde a tempo no momento em que o filho se encaminha para a morte. A face negativa de Deus pode se apresentar como um puro abismo, um puro vazio, um furo e, por isso, Lacan (1972-73/1982), na lição “Deus e o gozo d’Ⱥ Mulher”, demonstra como o Outro das místicas equivale à “face de Deus, como suportada pelo gozo feminino” (p. 103). Esse Outro com o qual uma mística goza, Lacan o define como sendo um furo (p. 155), e nome desse furo é o S(Ⱥ).

Não se está mais do lado da existência da função de exceção do pai que funda o universo edípico do “todos submetidos à castração”. A face do Outro das místicas não é paterna, ela é crística. Pode assumir a figura do querubim ou do serafim, como é o caso dos que aparecem nas visões de Santa Teresa d’Ávila. A mística cristã é a experiência desse “não há nenhum Outro”, não há ninguém para suprir; é a experiência da ausência suplicante de Deus. A mística aprofunda essa ausência, cava fundo o abismo que é a condição do encontro com Deus, que, por ser puro e infinito amor, confunde-se com o não-toda do feminino.

Com a mística, torna-se possível distinguir duas faces do Outro que correspondem às duas faces de Deus. De um lado, a face de Deus que se apresenta como o Outro do pacto da palavra, que assume a função de um terceiro termo, pacificador e dotado da capacidade de simbolização, e, de outro, um Deus que se suporta do gozo suplementar d’ Ⱥ Mulher. Lacan inscreve essa face real de Deus do lado feminino das fórmulas da sexuação, no lugar em que se escreve a inexistência da exceção feminina -$x-Fx.

Caso fosse possível escrever o Totem e Tabu do lado feminino da sexuação, caso a exceção feminina existisse, realizar-se-ia a existência d’A Mulher. Se mulher existisse, constituiríamos o conceito universal das mulheres. O Ao-menos-Um não existindo para o não-todo fálico feminino, o que se escreve no lugar é o Menos-Um referente ao significante da falta no Outro S(Ⱥ) Justamente nesse lugar, Lacan situa o êxtase proveniente do gozo místico, que não se apazigua com nenhum universal, pois ele é o furo que bebe, é o abismo que tem sede.

A mística é acontecimento de corpo

Essa valorização do gozo do feminino no âmbito da experiência mística sofre um tratamento aprofundado por meio da arte barroca no cristianismo, que Lacan (1972-73/1982), em suas diversas manifestações, não recua em qualificar como obscena. É conhecida a força interpretativa do barroco com relação aos estados da alma e do corpo, das emoções e das paixões, suas exposições de modos de gozo e, notadamente, estados de sofrimentos característicos do martírio, do qual se extrai a etimologia de “testemunho”. Surpreende, no entanto, que as evocações do gozo de Santa Teresa d’Ávila se fazem no decurso do seminário Mais, ainda, sem nenhuma referência aos seus escritos. Lacan se vale da obra de arte do escultor barroco Gian Lorenzo Bernini, posterior em mais de um século da vida da santa, realizada em contexto cultural e teológico bem distinto do século XVI espanhol. Assim, não se sugere a leitura de suas obras, pois, segundo Lacan, basta olhar, como se o olhar fosse a única via para apreender não o savoir-faire do artista, mas o gozo da santa que se pretende exibir: “Basta que vocês olhem em Roma a estátua de Bernini para compreenderem que ela está gozando” (1972-73/1982, p. 103), diz Lacan.

Além do gozo feminino, a obra retrata o fenômeno místico da chamada transverberação, que descreve a ação das palavras jaculatórias representadas pelo dardo de ouro do serafim que lhe perfura o coração. Em seu relato, a santa fala de suas impressões de que o anjo lhe perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-lhe as entranhas. Quando o tirava, parecia-lhe que as entranhas também eram retiradas, ficando com o corpo todo abrasado, num imenso amor de Deus. Relata ainda que “(…) a dor era tão grande que soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa que a alma não desejava que tivesse fim”. Como prova de que se trata de jaculações que atingem o corpo, ela própria conclui: “(…) ainda que o corpo participe, às vezes muito, não se trata de dor corporal, é dor espiritual”.

Esse a mais do gozo tem lugar no corpo, como mostra o testemunho de vivências corporais nos relatos de Santa Teresa d’Ávila: “(…) a ampliação sem limites do amor é o que dilata o seu peito de uma tal maneira que o seu coração fica prestes a romper”. O querubim é um nome do real do gozo que trabalha em seu corpo. A flecha do anjo, ao perfurar seu corpo, delimita e circunscreve o êxtase proveniente do amor místico que Lacan correlaciona ao significante do Outro barrado (Ⱥ) Trata-se de um gozo enquanto tal excluído do lugar do Outro, fora da lei do significante, mas sem, no entanto, estar fora do corpo, como é o caso do gozo fálico, nem fora do real, como é o caso do gozo do sentido. Esse furo próprio do significante do gozo do Outro barrado S(Ⱥ) é o mais genuíno furo com o qual a prática analítica lida, visto que contrasta com o orifício referido ao gozo fálico, ou o umbigo do sonho como furo do sentido, no âmbito do tecido do inconsciente. É esse gozo que experimentam certas místicas como um gozo ao mesmo tempo envolvente e aniquilador da nudez de Deus. Pois o que o gozo místico coloca a nu é que no lugar de Deus há um abismo, um real inerente ao gozo feminino.

Faz-se necessário precisar que a mística Santa Teresa não se caracteriza pelo uso da poética, como é o caso de São João da Cruz ou Ângelo Silésius, pois prevalece, em seus escritos, as preces jaculatórias, que, como se viu, são palavras vivas e inflamadas que, segundo ela, “partem da alma e perfuram o coração”. Quando Lacan retoma a mística durante os anos 70, não se trata apenas de mostrar o que é o gozo não-todo fálico, mas objetiva-se, também, reinventar a prática da interpretação à luz da jaculatória mística. A abordagem da jaculação aparece, portanto, quando se depara com o fato que a interpretação, no último ensino de Lacan, se apresenta intimamente articulada com a definição do sintoma como acontecimento de corpo.

A jaculatória é palavra que fere

Quando se retoma a palavra jaculatória como horizonte para se renovar a prática da interpretação, trata-se de uma reinvenção que deve estar à altura do sintoma como acontecimento de corpo. Portanto, a jaculação, tal como ela é reinventada no ensino de Lacan, é, como propõe Éric Laurent (2021), um filão fecundo para tratar da interpretação como acontecimento. A interpretação elevada à altura do acontecimento exige, em primeiro lugar, fazer a distinção entre a fala e o dizer. É o que sugere o Seminário 20: Mais, ainda ao apresentar a jaculação mística como profundamente distinta do campo da fala, pois ela é escrita. Lacan diz assim: “essas jaculações místicas, não é lorota nem só falação, é em suma, o que se pode ler de melhor podem pôr em nota de rodapé (…) — Acrescentar os Escritos de Jacques Lacan, porque é da mesma ordem” (1972-73/1982, p. 103). Como se vê, recorre-se à jaculação como um dos pilares da interpretação porque, enquanto escrita, ela é um meio que permite interrogar o alcance da operatividade das palavras.

Essa mesma distinção entre a fala e o dizer reaparece no ano seguinte, em Les non-dupes errent:

“Notem que eu não disse a fala, eu disse o dizer, nem toda fala é um dizer, se assim fosse toda fala seria um acontecimento, o que não é o caso, pois, se o fosse, falas vãs não seriam faladas. Um dizer é da ordem do acontecimento” (LACAN[2] apud LAURENT, 2021, p. 184-185, grifo nosso).

Se a questão da interpretação está cravada como um pilar da prática analítica, é porque, desde o seu início, foi possível interrogar sobre o alcance e a operatividade das palavras. Nesse momento do ensino de Lacan, postula-se a interpretação como o instrumento que se distingue das “falas vãs”, pois lhe interessa atingir o dizer capaz de confrontar com o impossível de suportar do sintoma, única maneira de abrir uma porta ao real.

Portanto, a jaculação, enquanto um dizer da ordem do acontecimento, emerge como um meio em condições de enlaçar a intepretação e o sintoma, concebida como a reiteração do gozo do Um sobre o corpo. Para que a interpretação seja o emprego das palavras no sentido da jaculação, faz-se necessário ir bem mais longe do que é a função da fala, a saber, gerar efeitos de sentido. Ir além dos efeitos de sentido que se localizam na junção do imaginário com o simbólico supõe admiti-la como incompatível com um dizer esclarecedor, ou tradução, obtidos pelo acréscimo de um significante dois a um significante um (LAURENT, 2021). Assim, um ano após essa formulação da interpretação como um dizer da ordem do acontecimento, Lacan, em RSI, se refere expressamente à interpretação como jaculação:

“O que apresentamos como o nó borromeano já vai contra a imagem de concatenação. O discurso em questão não faz cadeia (…). Desde então, trata-se de saber se o efeito de sentido em seu real tem a ver com o emprego de palavras ou com sua jaculação (…). Acreditava-se que eram palavras que tinham peso. Mas, à medida que tivemos o trabalho de isolar a categoria do significante, acabamos vendo que a jaculação comporta um sentido isolável” (LACAN apud LAURENT, 2021, p. 178, grifo nosso).

Torna-se claro, com relação à jaculação, que o caráter propriamente a-semântico da interpretação não implica a simples erradicação do sentido, mas a necessidade de isolá-lo como efeito real. A chance de construir a interpretação como o que faz nó entre o dizer e o acontecimento de corpo implica ir contra o discurso que faz cadeia e que aparece sob o imaginário da concatenação. Mais adiante, ainda nessa mesma lição do RSI, reafirma-se essa visão borromeana da jaculação como uma forma para se obter o real do efeito de sentido, considerada, portanto, uma via apropriada para proceder o tratamento da disrupção do gozo.

Laurent (2021) ainda propõe que o enodamento entre o dizer e o acontecimento de corpo próprio da jaculação coincide com o que Miller trabalha como vociferação, na última lição de seu curso Todo mundo é louco (MILLER, 2015). O ponto de partida dessa conceituação da vociferação é admitir que não há equivalência entre ela e um enunciado proposicional submetido à matriz do binário “verdadeiro ou falso”. Com efeito, todo enunciado proposicional consiste num fato verdadeiro ou falso e, por consequência, jamais considerado sob o prisma de um juízo de valor. No entanto, se a vociferação e todo enunciado poético não estão subordinados ao critério do verdadeiro ou do falso, ambos se baseiam no par enunciado e enunciação. Para Miller (2015), o que define a vociferação é que, apesar dessa presença fundamental do enunciado e da enunciação, eles se mostram, nesse caso, indivisíveis. É exatamente nisso que a jaculação equivale à vociferação, ou seja, há nelas a suspensão da diferença entre o enunciado e a enunciação. Acrescenta-se, ainda, a essa indivisibilidade, o fato que, para vociferar, é preciso um corpo, é preciso pagar com sua condição de falasser. Isso quer dizer que tanto a vociferação quanto a jaculação implicam o uso da voz que, enquanto objeto a, deve ser considerada aquilo que mais se aproxima da consistência lógica do real do gozo. Entre as cinco substâncias episódicas do objeto a, a voz é a que menos se confunde com o semblante oriundo do aparelho do significante. Por estar mais do lado real do que do semblante, o objeto voz na jaculação é abertura à escritura e, como tal, à impressão, rasura e cunhagem das palavras sobre o corpo.

Não há escuta sem interpretação

A vociferação apenas constitui-se na versão renovada da jaculação na medida em que esta orienta a interpretação para a vertente da ressonância do significante, dando, assim, abertura ao conceito de equívoco. Para a jaculação, o significante é menos o que produz sentido e mais o que se ouve e ressoa como real. Por intermédio do objeto voz, a interpretação joga com o equívoco dos significantes que causam o gozo, e nisso a interpretação se apresenta diretamente conectada com a escritura. Apenas a escritura é capaz de circunscrever e isolar o real do efeito de sentido. Por isso, o inconsciente deixa de estar confundido com a revelação dos capítulos censurados e já escritos da história do sujeito para se tornar um texto que se lê e no qual a leitura se equivoca, deixando ouvir efeitos sonoros que permitem esvaziar o sentido. De fato, o texto escrito do inconsciente, com relação à linguagem, pode se autonomizar (MILLER, 2021a). A matemática é o grande exemplo de um escrito que funciona de maneira autônoma.

Para tornar o inconsciente um texto que se lê, é preciso desfazer-se da ideia de que a interpretação equivale à escuta das significações que derivam do que já está escrito. Com a interpretação, trata-se especialmente de leitura, e não de escuta. O que se escuta são as significações que evocam a compreensão, pois o gozo está sempre, nesse caso, implicado (MILLER, 2021a). Com efeito, quando se trata da escuta, parte-se do significado e tenta-se isolar o significante. A leitura é outra coisa, pois o significante é letra, ou seja, o significante opera como separado da significação, e parte-se do significante para eventualmente dar lugar às significações. Importa, assim, destacar a defasagem entre escuta e leitura. Para passar de uma coisa para outra, é preciso passar pela escrita.

Enfim, o uso da palavra apenas se efetiva como interpretação com a condição de ser uma leitura. A condição de existência do inconsciente também é a leitura e, portanto, nisso ele é homogêneo à interpretação. Os dois existem enquanto “escritos de palavras” (MILLER, 2021a, p. 29). Assim, tanto a letra é para se ler quanto o inconsciente, para o psicanalista, é suposto ler. Afinal, a jaculação é a letra que se lê da leitura que provém do inconsciente, e dela, precisamente, muito pouco se escuta. Não há escuta sem interpretação, ou seja, a palavra, na experiência analítica, não é sacralizada (MILLER, 2021b). Ao visar o real do efeito de sentido, a jaculação é a letra apofântica que fere o corpo falante mais aquém do verdadeiro e do falso e que não comporta nenhuma demanda, particularmente nenhuma demanda de consentimento.

 


Referências
LACAN, J. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 50, p. 168-188, 2021.
MILLER, J.-A. Conversation sur les embrouilles du corps. Ornicar? Revue du Champ Freudien, Paris: Navarin/Seuil, n. 50, p.227-291, 2003.
MILLER, J.-A. L’Un est lettre. La Cause du désir, Paris: Navarin, n. 107, 2021a.
MILLER, J.-A. Conversation d’actualité avec l’École espagnole du Champ freudien. La Cause du désir, Paris: Navarin, n. 108, 2021b.
MILLER, J.-A. (2011). L’être et l’Un. (Inédito)
MILLER. J.-A. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.

[1] Texto publicado sem a revisão do autor.
[2] LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. 1973-1974 (Texto inédito).
psicanálse – alzheimer – lacan – psicanalise – psychanayse – corpo – psicoanálisis

 




UM CORPO, UM. TRADUÇÃO E DECIFRAMENTO[1]

ANTONI VICENS
Psicanalista AME da ELP/AMP
avicens@me.com

Resumo: O autor empreende a tentativa de tradução e interpretação da frase lacaniana contida na conferência Joyce, o Sintoma, “UOM kitemum corpo e só-só Teium (…)”. A partir de questões sobre o ter e o Um, ele propõe algumas perguntas sobre o corpo a partir das consequências do ter: como UOM pode ter Um corpo? O que é ter? Como é Um? O que é corpo? E, para respondê-las, considera as três dimensões do dito: o imaginário, o simbólico e o real.

Palavras chaves: UOM, ter, Um, corpo.

ONE BODY, ONE. TRANSLATION AND DECRYPTION

Abstract: The author undertakes the attempt to translate and interpret the Lacanian phrase, contained in the Joyce, the Symptom lecture, “LOM, LOM de base, LOM cahun corps et nan-na Kun (…)”. Based on questions about having and the One, he proposes some questions about the body from the consequences of having: How can LOM have One body? What is having? How is One? What is a body? And, to answer them, he considers the three dimensions of what is said: the imaginary, the symbolic and the real.   

Keywords: UOM, having, One, body.

 

Desali, s/t

 

Na conferência de Lacan intitulada Joyce, o Sintoma (1975/2003a)[2], encontramos umas frases que reivindicam seu deciframento. A tradução publicada diz assim:

“UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium [nan-na Kum]. Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele éum (corp/aninhado). É o ter, e não o ser, que o caracteriza. […] UOM tem [a], no princípio. Por quê? Isso se sente, e uma vez sentido, demonstra-se (LACAN, 1975/2003a, p. 561)[3].

Antes de abordar os enigmas ali contidos, fazemos nossa a observação de Jacques-Alain Miller sobre

“o tipo de atenção que a inteligência de Lacan requer, sobretudo em seu último ensino, repleto de tantas coisas ditas e apressado por ter tantas coisas a dizer, cuja enunciação atua em várias direções e cujo enunciado toma várias faces por vez. As referências mais pertinentes nem sempre são as mais explicativas, e nenhum índice de nomes próprios poderá detectá-las. Seria preciso um índice de não-ditos, pensamentos de fundo, alusões crípticas, ressonâncias e outros invisibilia” (MILLER, 2007, p. 214).

O que se segue é uma tentativa de tradução e interpretação dessas frases intraduzíveis, na qual nos deixamos orientar precisamente pela impossibilidade, no limite de traduzir sentidos de uma língua a outra. Se o sentido é gozo e o gozo é sempre atual, o sentido está submetido à mesma inércia. Não sabemos nada do gozo de Lacan, logificamos o que podemos dentro de uma lógica baseada no não-todo. Talvez possamos aproveitar, uma vez que, na versão, o sentido original, por ser enigmático, se perde; a ressonância do real surpreende melhor nossos sentidos. Transformar o impossível da tradução e o impossível contido na mensagem é uma questão de sorte, que tentamos.

UOM de base

Vamos por partes, mas também por conjuntos aleatórios sem partes. “UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium”. UOM substitui aqui o “homem”, o homem das ilusões humanistas, humanitaristas, humanitárias, o conquistador do Universo no qual ele supõe se refletir; trata-se do “homem que tem um corpo”. O “homem” é substituído por três letras que configuram algo que é quase um matema, quase um impessoal, quase uma jaculatória. Mas isso não o priva de ter um corpo e não mais de um. Então, segue uma frase, cahun corps. Custa, mas se pode ler o relativo de determinação: “UOM que tem um corpo”. Ter um corpo o define (LAURENT, 2016, p. 57).

Às vezes uma cedilha pareceria mais adequada, çahun corps, “isso tem um corpo”. Se fosse assim, Lacan nos levaria a afirmar que o Isso, le Ça, ou, em alemão, das Es, não é um corpo, senão que o tem, no sentido de sua propriedade e no de tê-lo agarrado também. Mas o que lemos é cahun. O que nos leva a outro desvio.

Claude Cahun foi o pseudônimo de uma mulher artista, inserida no movimento surrealista, que, de acordo com Jean-Paul Clébert (1996), “viveu no ódio de sua feminilidade”[4]. Ao contrário, embora não seja incompatível com esse ódio, parece que ela viveu habitando a estranheza de seu corpo. Escritora, atriz, fotógrafa, vestia-se de maneiras muito diferentes, brincando sempre com a ambiguidade de seu gênero. Ela mesma se considerava sua própria criação, com a identidade de um terceiro gênero. O mais conhecido são suas fotografias, geralmente autorretratos nos quais aparece olhando o espectador, ou olhando-se no espelho enquanto olha o espectador, ou com os olhos fechados. Sua parceira foi uma mulher que utilizava como pseudônimo o nome de um homem, digamos, um homem. Enquanto seu próprio nome, Claude, é epiceno em francês; seu sobrenome, Cahun, que foi de um tio-avô seu, o escolheu pela sua semelhança com o nome Caim. Significava assim a ambiguidade de seu gênero e recordava ao homem que, se possui um corpo, não o possui sem ódio.

Voltemos a Lacan: “Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele é um” (LACAN, 1975/2003a, p. 561) cor/niché. Para começar, corniché nos remete a cornichon, que significa “pepino[5]”, mas também “tolo” ou “bobo”. Ter um corpo nos entontece. Ter um corpo nos condena a estar incorporados nele; niché significa alojado em algum tipo de habitáculo, o que inclui também estar metido no nicho funerário. Falando do corpo, Lacan (1970/2003b, p. 407) se refere a ele como corpse, “cadáver”, resto de um ser falante, de forma alguma uma carniça (LAURENT, 2016, p. 35). O corpo do homem como Um antecipa sua qualidade de resto de uma existência também Uma. Logo Lacan especifica que UOM, no princípio, tem. Tem um corpo. E o ser provém daí, de uma existência que tem corpo, que o toma como Um, antecipando então sua morte.

O corpo cartesiano 

O ser de UOM é ter um corpo. O ter é anterior ao ser: “o verdadeiro é que UOM tem [a], no princípio” (LACAN, 1975/2003a, p. 561). E logo se demonstra, no bordel epistemológico, como razão de ser.

Vamos ao começo: o Discurso do método, de Descartes. O pensamento cartesiano separa a alma do corpo: “a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo” (DESCARTES, 1996, p. 39). O corpo não lhe é necessário para pensar: “podia fingir que não tinha nenhum corpo” (Ibid., p. 38) na hora de acompanhar o pensamento com o ser. A partir dali, o corpo é entregue ao raciocínio geométrico, às leis estabelecidas por Deus na natureza (Ibid., p. 47). A luz, os astros, a terra, a água, o ar, o fogo, os minerais, as plantas, os animais, e “particularmente […] os homens” (Ibid., p. 52). Embora, para estes, Descartes confesse que lhe falta conhecimento:

“Contentei-me em supor que Deus tivesse formado o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto na aparência exterior de seus membros quanto na conformação de seus órgãos, sem o compor com matéria diferente daquela que eu descrevera, e sem nele pôr, no início, qualquer alma racional ou qualquer outra coisa que lhe servisse de alma vegetativa ou sensitiva” (Ibid., p. 52).

E supõe ao corpo um calor sem lume, semelhante ao que se produz no feno verde ou na fermentação do vinho. Trata-se de todas aquelas coisas que se produzem no corpo “sem que pensemos nisso” (Ibid., p. 52), e que igualmente se produzem nos animais desprovidos de razão. Para Descartes, tudo aquilo que pensa está separado do corpo. E a partir dali convida seus leitores para se proverem de um coração de boi para estudar a mecânica da circulação sanguínea. Mas não pode deixar de inserir nessa mecânica “a geração dos espíritos animais, que são como um vento muito sutil, ou antes como uma chama muito pura e muito viva que, subindo continuamente em grande quantidade do coração para o cérebro, daí se dirige pelos nervos para os músculos, e dá movimento a todos os membros” (Ibid., p. 61). Para Descartes, esses “espíritos animais” são materiais, partículas ínfimas que formam parte da circulação sanguínea e estão submetidas, portanto, às leis da mecânica[6]. Descartes atribui a eles não somente o movimento animal, como também, após sua visita ao cérebro, a causa do sono e da vigília, dos sonhos, do senso comum, da memória, da fantasia. Segundo sua concepção, o corpo é um grande autômato complexíssimo, feito pelas mãos de Deus, mais admirável que as máquinas que podem ser inventadas pelos homens.

Parece, então, que a diferença está somente na complexidade. Mas Descartes adiciona algo a mais: o uso da palavra e a faculdade de conhecimento. Sempre poderíamos distinguir esses autômatos, ainda que imitassem nossas ações tanto como fosse moralmente possível. O termo “moralmente” que utiliza Descartes se refere ao sentido prático no uso do corpo, na medida em que possamos considerá-lo em nossa possessão. A máquina pode chegar a proferir palavras e inclusive signos corporais que valeriam como discurso, como o gesto de tocar alguém para chamar sua atenção ou emitir um grito de dor, mas não poderá tomar a linguagem como um fato de significantes: não é “possível conceber que combine as palavras de outro modo para responder ao sentido de tudo quanto dissermos em sua presença” (Ibid., p. 63). Inclusive os homens mais embrutecidos podem fazê-lo. Esse é o automatismo dos mais perfeitos autômatos de hoje, como Siri, Alexa e outros dispositivos. A outra parte é que, embora possam executar ações ainda melhor que os homens, não atuam por conhecimento, quer dizer, pela faculdade de encontrar respostas singulares a ações imprevistas, “senão somente pela disposição de seus órgãos” (Ibid., p. 64).

Ter é sentir o não-ser 

Vemos, em todas essas considerações, então, como o pensamento de Descartes dá por suposta a possessão do corpo como algo próprio e como condição da qual deduzir o ser. Já dissemos que o que acrescenta Lacan é que, se contamos com o corpo, o ser é secundário, o primário é o ter. E esse ter toma o sentido de captar ou de ser captado. Lacan (1972/2003c) o diz com a expressão ça s’y sent, “isso se sente aí”, ou seja, que o sentido (oposto à significação) é questão de sentimento, o sentido se sente[7]. Ou inclusive somos sentidos, somos sentido, que somente em um segundo tempo terá razão. A expressão francesa se escuta também como o adjetivo saisissant: surpreendente, chocante, estonteante, impressionante, cativador. Quer dizer, esse “ter” é algo sentido: não é questão de dedução, mas de ponto de partida; não é questão de possessão, mas de captura. O ser, em contrapartida, não se sente, não angustia, é uma dedução, mais ou menos, de razão, não de corpo. Tal como o diz Lacan (1975/2003a, p. 561): “Isso se sente, e uma vez sentido, demonstra-se”. A interpretação na psicanálise aponta a esse sentido e a essa captura; a interpretação é uma ressonância, uma ré-son, uma razão que se mostra primeiro pelos seus ecos e logo se demonstra em seus efeitos. Temos então isto: o sentido, o Sinn, diferenciado da Bedeutung (traduzida ora como significação ora como referência), é um efeito de corpo, uma ressonância que será razão.

Assim, o parlêtre, o ser-de-falar-com-letra, enquanto homem, enquanto UOM, tem um corpo. O parlêtre, enquanto mulher, é sintoma de um corpo, como as produções de Claude Cahun. Perguntamo-nos o que quer dizer “ter” no “ter um” e o que quer dizer “um” em “um corpo”. Dentro da problemática da oposição entre o ser e o Um, podemos compreender que o ter não se aplica ao ser[8]. O ser, não se o tem; se o é, eventualmente. O que UOM tem é algo que supõe um Um, que ainda não é ser, chamado corpo inicialmente. Vejamos as qualidades paradoxais desse corpo que UOM teria.

UOM não tem, então, ser; mas tampouco é Um. O Um não se tem, como não se tem a palavra; o Um, existe. Então vem UOM e tem Um corpo. E isso é um avoyement[9],  que seria (em francês antigo) um “abrir caminho”; em francês atual se traduziria algo como uma terência, palavra que, se existisse, seria um sinônimo não exato de possessão. Como um ter sem possuir, sem agarrar. A palavra avoyement (LACAN, 1975/2003a, p. 561)além disso, guarda semelhança com aboiement, ladrido. Latir não é falar, mas se fazer escutar um som, com valor de semblante, que abriria o caminho… à formação do sintoma, com um discreto desprendimento. Talvez não seja demais recordarmos aqui o cachorro do conto de Sir Arthur Conan Doyle: seu silêncio era mais eloquente que seu ladrido, sempre que alguém escutasse esse Ø. O ladrido obtura o silêncio.

Perguntas 

Recapitulemos nossas perguntas: Como pode UOM ter Um corpo? O que é ter? Como é Um? O que é o corpo? Muitas perguntas?

A civilização, ou a biopolítica (LAURENT, 2016), é o imperium, o un-pire, o um-pior, o império sobre os corpos, que nos dirige ao pior modo de ter um corpo (LACAN, 1975-76/2007). Um Império se baseia efetivamente no domínio sobre os corpos tomados de uma vez, como Uns reunidos em algum modo de totalidade. Ali se assenta a diferença entre Aristóteles e Lacan. Na primeira versão de Joyce, o Sintoma, Lacan carrega ainda mais as tintas: “Somente deportados participam da história: já que o homem tem um corpo, é pelo corpo que se o tem. Avesso do habeas corpus” (1975/2003a, p. 565)[10]. O habeas corpus, base do direito ocidental, é a possessão inalienável do corpo próprio, o fundamento da soberania. O Império é a despossessão, sem mística nem poética, do corpo de alguém. Dali os movimentos de corpos por centenas e por milhares: deslocam-se em razão de uma conquista que os despossui de todo o resto, não sem ameaçar essa mesma última possessão. O exílio do corpo se traduz em êxodos porque, se alguém pode “ter seu corpo”, por menor que seja, esse corpo pode passar a ser uma possessão (ou propriedade) de outrem.

Antes de tentar responder às perguntas sobre o corpo, examinemos o que é ter. Para isso temos uma resposta lacaniana direta: “Ter é poder fazer alguma coisa com” (LACAN, 1975/2003a, p. 562). Com isso que se tem. Recordemos que, a isso, Descartes o chamava moral. O que UOM faz com seu corpo é: um sintoma. O “poder fazer algo com isso” remete ao artifício de Joyce (2014)[11], ao savoir y faire, ao saber como lidar com isso que se tem, ainda que não se saiba de que maneira o tem ou como funciona, porque nunca se o tem totalmente. Quando não se tem Todo, fica o recurso do que há, embora não se possa possuí-lo: o Um. Com os semblantes, que são a forma eminente do Um na linguagem, na lalangue, no conjunto de todos os conjuntos que nunca chegam a dizer-se a si mesmos, pode-se fazer um nó, mais ou menos, emaranhado, mais ou menos apertado, que tenha, que seja uma tensão sustentada, algo que UOM possa ter por consistente.

Vamos, então, às perguntas sobre o corpo de acordo com as consequências do ter. Para isso, levamos em consideração três respostas, segundo as três dimensões do dito: o imaginário, o simbólico e o real. 

O corpo imaginário 

No imaginário, o corpo tem o poder de cativar. O corpo é uma forma imaginária que parte do saco ou da bolha. O corpo é a pele, a peau, que, em francês, se pronuncia como pot, como bote, ou bunda, ou sorte. Dali nos vem a ideia de consistência, de algo que um recipiente mantém junto, fazendo conjunto. É a ideia de que a pele envolve os órgãos. Embora isso seja assim graças à corda que amarra o saco, acontece que, no imaginário, essa corda não pode fazer nó. E vai ser no discurso do mestre que os corpos serão contados, de um em um, graças à corda (de presos).

Por outro lado, “o amor-próprio é o princípio da imaginação” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64). E continua Lacan:

“O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante. […]

O corpo decerto não se evapora e, nesse sentido, ele é consistente, trata-se de um fato constatado mesmo nos animais. É precisamente o que é antipático para a mentalidade, porque ela crê nisso, ter um corpo para adorar. É a raiz do imaginário” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64).

E Lacan faz uma brincadeira sobre o cogito cartesiano: “Je le panse… je le fais panse, donc je l’essuir” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64)[12]. Vejamos que versões podemos ter desse cogito — que consoa com o original cartesiano do je pense, donc je suis — em dialeto corporal: je le panse, o cuido, coloco-lhe um curativo (um band-aid), quer dizer, eu o faço penso, logo je l’essuie, o enxugo, o seco, o suporto (como em essuyer une défaite, “sofrer uma derrota”), o limpo. Seco-lhe os fluídos que às vezes transbordam (sangue, suor e lágrimas e também mucos, sêmen, saliva, urina, etecetera) ou as escamas que caem (pele morta, pele seca, cabelo, unhas). O ser, posto a ter, torna-se líquido. Mas essa crença não deixa de ter uma importância às vezes crucial na clínica do sinthome. O suor pode valer como um recobrimento do corpo, como uma segunda pele ou um vestido. A maquiagem pode também servir de concha macia para um semblante.

Uma vinheta clínica sobre as lágrimas: uma mulher chega ao meu consultório para formular uma queixa absurda. Enquanto fala, chora amargamente e vai formando uma pilha de lenços de papel úmidos que, no final, atira como produto, ou evacuação, ou signo de pontuação, na minha lixeira; paga e vai embora aliviada, até a próxima. Por um tempo, recuperou alguma consistência para seu corpo. Outra vinheta, de uma apresentação de pacientes: uma mulher está marcada desde sua mais terna infância pelo suor, sintoma que tem guiado sua vida. Seus estudos se limitaram, pois o suor dificultava-lhe a aprendizagem com livros e blocos encharcados. Muitos trabalhos lhe são impedidos pelo mesmo motivo. Nenhuma cadeia significante sustenta esse sintoma, que envolve seu corpo, frouxamente investido pela pulsão, amarrado só por uma costura sem fio.

Voltemos a Lacan: “Em suma, é isso. É o sexual que mente lá dentro, ao ficar se relatando demais” (LACAN, 1975-76/2007. p. 64)[13]. A coisa sexual conta muitas histórias, vangloria-se, tem a sua arrogância, é muito convencida. O imaginário do corpo é sua geometria. O início da geometria não é a linha, nem os axiomas de Euclides, senão a bola, ou o globo, que provém do gozo oral-anal. Nesse sentido, Joyce (2014) nos ensina algo no Retrato do artista quando jovem quando, depois da surra, seu corpo se desprende como uma casca. Ele nos mostra que ter um corpo (e não sê-lo) não exclui senti-lo como um estrangeiro. Daí a necessidade de supor uma alma, uma Ideia Uma para resolver essa estrangeiridade. O original de Joyce é que resolve essa estrangeiridade não com a alma, mas com o ego.

O corpo simbólico

Por outra parte, se consideramos em sua dimensão simbólica o saco da forma imaginária, veremos que se traduz em uma oscilação entre o 1 e o 0. O saco é um, mas está vazio. Lacan dá uma formulação dessa tradução nos termos da teoria dos conjuntos e Jacques-Alain Miller a desenvolve na sétima Nota passo a passo. Enquanto o corpo aristotélico (o da psicologia, o da mentalidade, o da saúde mental) é o corpo tomado como Um, para Lacan, o corpo faz presente o conjunto vazio, que se escreve Ø. A partir daqui, o desenvolvimento se apoia em dois princípios cantorianos: em primeiro lugar, que o conjunto vazio é subconjunto de todo conjunto; em segundo lugar, que todo conjunto é subconjunto de si mesmo. Então, se partimos do Um do corpo, podemos escrevê-lo na teoria dos conjuntos como um conjunto de dois elementos: o Ø e o 1. Isto, dito na linguagem dos conjuntos, é {1, Ø}. Ou seja, o corpo é um conjunto de dois elementos, de forma que, com o Um, criamos o 2. Comentando Lacan, Miller o expressa assim: “o conjunto, o saco cantoriano, merece ser conotado como uma mistura de 1 e de zero” (MILLER, 2007, p. 213). Dito de outra maneira e resumindo o raciocínio de Miller, o corpo, um saco vazio no imaginário, tomado no simbólico como Um, entra na conta como duplo. Essa duplicidade, em termos lacanianos, se escreve: l’Un-tout-seul, o Um totalmente sozinho, e l’un-en-plus, o um que está a mais. A esse l’Un-tout-seul, ao um sozinho, ao um-todo-só (onde “todo” é ao mesmo tempo adjetivo e advérbio), poderíamos chamá-lo de solitodo. Se o solitodo é “significante, marca, traço, corte” (MILLER, 2007, p. 213), o um-a-mais dá à matemática o modelo do conjunto vazio. É o saco de pele, vazio, o corpo por fora de seus órgãos o que Lacan, em outro lugar, chama de l’un-en-peluce, o um de pelúcia, que se pronuncia em francês como l’un en plus. Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan (1953/1998, p. 284) alude a algo assim, ao citar ao poeta T. S. Elliot: We are the hollow men / We are the stuffed men. “Somos os homens ocos / Somos os homens empalhados / Todos encostados / Com o capacete cheio de palha. Ai de nós!” (LACAN, 1953/1998, p. 284). Poderia ser também o misterioso “corpo sem órgãos”, do qual falavam o filósofo Gilles Deleuze e o psiquiatra Felix Guattari no seu Anti-Édipo (MILLER, 2007).

O corpo real

O dois do simbólico nos leva ao três: 1, Ø e, como terceiro elemento, o conjunto que formam ambos, {1, Ø} (MILLER, 2007, p. 213). Esse é o nó do real, 1, o solitodo é o significante do mestre. O Ø é o S2, porque indica o par “1, Ø”. Esse casal separado constitui o símbolo, esse objeto ao qual lhe falta sua metade. Vemos então que, separados, eles são necessários um ao outro no simbólico. Para indicar o que não está, faz falta um 1; que deixará de ser solitodo para ser falta de complemento. Para constituir o três do real, faz falta o conjunto {1, Ø}, que é a arbitragem do signo linguístico, o que enoda o 1 e o 0. Refiro-me aqui à substituição que Lacan faz do que Saussure considerou uma relação arbitrária por uma relação de arbitragem, uma solução de compromisso, na qual não está ausente um mestre, entre o som e o sentido. E o que liga o significante ao significado, ou, mais primariamente, o símbolo com o sintoma, é a forma de ressonância dessa arbitragem (LACAN, 1975-76/2007, p. 20).

A surpreendente conclusão de Lacan, de amplas consequências clínicas, é que o real não é o corpo, como tampouco é a linguagem, mas é a ressonância ou consonância, essa arbitragem que cria uma concordância inesperada entre ambos. Lacan utiliza um termo em francês para descrever as consequências da interpretação como modo de criar uma nova ressonância que não havia se produzido anteriormente; utiliza para isso o termo épisser, emendar, um vocábulo pertencente à arte da cordoaria e que se refere à operação pela qual se unem duas cordas entrelaçando seus cabos ou extremos. Para seguir esse procedimento, primeiro tem que desfazer os extremos das cordas a unir e, em seguida, fazendo uso de uma ferramenta apropriada, entrelaçar os cabos soltos de cada extremo com os do outro.

Assim, “ensinamos o analisante a emendar (épisser), a fazer emenda (épissure) entre seu sinthoma e o real parasita do gozo” (LACAN, 1975-76/2007, p. 71). Porque “é de suturas e emendas que se trata na análise” (LACAN, 1975-76/2007, p. 71)[14]. A ressonância da interpretação afeta o imaginário-real do corpo com a finalidade de fazê-lo simpatizar com o real parasita do (seu) gozo. O gozo parasita do corpo deve emendar-se com o corpo. O corpo deve admitir esse parasita como próprio: assim chega ao nó do amor pelo seu sinthoma.

 

 

Tradução: Ernesto Anzalone e Paula Nocquet
Revisão: Michelle Sena

Referências
CLÉBERT, J.-P. Dictionnaire du Surréalisme. Paris: Seuil, 1996.
DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.
LACAN, J. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b, p. 400-447.
LACAN, J. (1972). O aturdito. In: ______, 2003c, p. 448-497.
LACAN, J. (1975). Joyce, o Sinthoma. In: ______, 2003a, p. 560-566.
LACAN, J. (1975-76). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J.-A. “Nota passo a passo”. In: LACAN, J. (1975-76). O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

[1] Texto originalmente publicado com o título “Un cuerpo, uno. Traducción y desciframiento”, na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, ano XV, número 28, ago. de 2020.
[2] Há duas versões para essa conferência. A primeira foi publicada nas Atas do V Symposium Internacional James Joyce (Paris, 1975), em Joyce avec Lacan (Paris: Navarin, 1987) e nos Autres écrits (Paris: Seuil, 2001) e Outros escritos (Rio de Janeiro: Zahar, 2003). A segunda se encontra em Jacques Lacan, O seminário, livro 23: o sinthoma (trad. Sergio Laia; revisão André Telles) (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007). O fragmento considerado aqui pertence à primeira versão, Outros escritos, 2003, p. 561.
[3] No original: “LOM, LOM de base, LOM cahun corps, et nan-na Kun. Faut le dire comme ça: il ahun…et non: il estun… (cor/niché). C’est l’avoir et pas l’être qui le caractérise. […] LOM a, au principe. Pourquoi? ça se sent, et une fois senti, ça se démontre“. cor/niché (corps niché), corpo aninhado, alojado, escondido, faz lembrar ainda cornichon, termo com que, na linguagem coloquial, faz-se referência àquele que é tolo, fácil de enganar (N.E.) (LACAN, 1975/2003, p. 561).
[4] Em seu Diccionnaire du Surréalisme, Paris, Seuil, 1996.
[5] N.T: Esse termo Cornichon, conforme podemos ler na nota do tradutor do livro de Éric Laurent, O avesso da Biopolítica. Uma escrita para o gozo, à p. 56, também pode ser traduzido por pepino que, na gíria francesa, designa o órgão sexual masculino.
[6] Nota de É. Gilson em sua edição comentada do Discours de la méthode, Paris: Vrin, 1925, p. 414-415.
[7] Lacan introduz esta expressão no “O Aturdito” (1972/2003, p. 481-482). Primeiramente grafado como çasysent, e linhas abaixo como sacysent. A tradução é “isso se sente ai”, “issaisecente” em português. Diríamos que responde ao duplo sentido da palavra “sentido”: como efeito do dito, e como sentimento. Os tradutores consideram que a segunda grafia contém uma alusão a Lemaistre de Sacy. As linhas citadas ao início deste artigo contêm a terceira grafia. Mais adiante (LACAN, 1975/2003, p. 566) Lacan volta a tomar esta expressão para certificar a leitura possível de Finnegans Wake: se sente que Joyce gozou o escrevendo.
[8] Um dos temas do último curso de J-A Miller de 2011, Um inteiramente só, conhecido inicialmente como O ser e o Um.
[9] Il y a de l’avoiement dans qu’as-tu? Intraduzível como “Há algum ladrido nele, que tens tu?” que os tradutores comentam: “o que de um ladrido há na pergunta pelo ter”. Na edição em português: “Há uma terência [avoyement] no ‘que que você tem?’ (LACAN, 1975/2003, p.561)
[10] Cf. MILLER J.-A. Habeas Corpus. Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 73, p.31-37, 2016.
[11] Ao final do Retrato do artista quando jovem: “Old father, old artificer”. “Velho pai, velho artífice” (JOYCE, 2014, p.313)
[12] Traduzido como “Eu o penso, isto é, eu o faço penso, logo eu o enssoufro” (LACAN, 1975-76/2007, p.64). Nota do tradutor: Condensação dos verbos “ser”. “enxugar” e “sofrer”, contidos no verbo “essuyer”
[13] O original diz “C’est à ça se résume. C’est le sexuel qui ment là-dedans, de trop s’en raconter”. O sexual se conta demais.
[14] O original diz: “nous apprenons à l’analysant á épisser, à faire épissure entre son sinthome et le réel parasite de la jouissance […] C’est de sutures et d’épissures qu’il s’agit dans l’analyse”.



LIÇÕES SOBRE HAMLET: O DESEJO DA MÃE[1]

SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA
Psicóloga, analista praticante, membro da EBP/AMP.
sandra_espinha@uol.com.br

Resumo: O texto é um comentário da lição XV de O Seminário, livro VI: o desejo e sua interpretação, de Jacques Lacan, que tem como título “O desejo da mãe”. Trata-se de um comentário proferido no âmbito das Lições Introdutórias do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, dedicadas às Sete Lições sobre Hamlet, que compõem a quarta parte do Seminário VI, de Lacan. Após localizar o momento do ensino de Lacan em que esse seminário é proferido, o texto comenta as principais questões contidas em cada uma das três partes da lição XV, na qual Lacan realça o poder de fascinação de Hamlet como uma obra literária que apresenta o drama do desejo humano e cujo valor de estrutura é equivalente ao de Édipo Rei. O texto acompanha as elaborações de Lacan sobre a prevalência do desejo da mãe como o que desregula, em Hamlet, o acordo entre seu desejo e seu ato, levando-o a procrastiná-lo para realizá-lo apenas no e pelo seu próprio desaparecimento. Para Lacan, Hamlet se debate com o desejo de sua mãe, uma vez que esse desejo não encontrou seu lugar no simbólico em uma relação com a castração, ou seja, com a lei paterna e o falo.

Palavras chaves: Desejo, Hamlet, Édipo, desejo da mãe, falo, castração.

Lessons on Hamlet: Mother’s desire

Abstract: This essay is a commentary on Jacques Lacan’s Lesson XV of The Seminar, Book VI: the desire and its Interpretation, entitled “Mother’s desire”. It is a commentary given in the context of the Introductory Lessons of the Institute of Psychoanalysis and Mental Health of Minas Gerais about the Seven Lessons on Hamlet, which make up the fourth part of Lacan’s The Seminar, book VI. After situating the moment in Lacan’s teaching in which this seminar was given, the text comments on the main issues in each of the three parts of Lesson XV, in which Lacan highlights Hamlet’s fascination power as a literary work that presents the drama of human desire and which structure value is equivalent to that of Oedipus king. The text follows Lacan’s elaborations on the prevalence of the mother’s desire as what disrupts, in Hamlet, the agreement between his desire and his act, leading him to procrastinate it in order to fulfill it only in and through his own disappearance. For Lacan, Hamlet struggles with his mother’s desire since this desire did not find its symbolic place in relation with castration, that is, with the paternal law and the phallus.

Keywords: Desire, Hamlet, Oedipus, mother’s desire, phallus, castration.

Desali, s/t

 

Introdução ao capítulo XV do Seminário VI, de Lacan

O Seminário VI, proferido no ano letivo de 1958-1959, faz parte do tempo da construção do grafo do desejo, que surge em sua forma definitiva no texto “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo”, em setembro de 1960. Junto com “A direção da cura e os princípios de seu poder”, pronunciada em julho de 1958, esse seminário reflete as consequências da passagem, ao primeiro plano, da lógica do significante, quando a primazia do simbólico atinge seu ponto máximo no ensino de Lacan. A ênfase, deslocada das leis da palavra para as leis da linguagem, determina um corte com a tese do reconhecimento do desejo pela palavra plena e a palavra passa a ser a prova da falta-a-ser do sujeito, a prova de que nenhuma palavra apagará esse efeito da palavra sobre o sujeito que é o S(Ⱥ).

O sujeito, definido como um efeito do significante, aparece marcado pela barra intransponível do recalque, índice da discordância fundamental entre o significante e o significado. O desejo torna-se o nome do que do significado resiste ao significante. Inarticulável na palavra, ele não deixa de estar a ela articulado para cada sujeito na particularidade dos significantes das demandas que o Outro lhe proferiu, para além das quais surge a pergunta sobre seu desejo, sobre o que o Outro quer: “Que queres?”. O desejo está nas entrelinhas e somente nas entrelinhas, ele é metonímico, não podendo jamais vir à tona. Dele só há interpretação: o desejo é sua interpretação.

O efeito do acento colocado sobre as leis da linguagem é a concepção da sexualidade como vinculada intrinsecamente ao sistema significante, através de um significante privilegiado: o falo, que se define, nesse momento, como o significante da vida que escapa à mortificação significante do sujeito, vestígio da perda de um gozo primário do corpo que faz deste um corpo humanizado. Como um emblema dessa perda, o falo que tem importância é o falo da mãe, o falo ali onde ele falta. A castração materna é o paradigma da privação que caracteriza a falta feminina como só podendo ser articulada à falta de um objeto simbólico.

Ao partir do fato que a estrutura é o drama do sujeito em relação ao desejo do Outro, vários capítulos desse Seminário serão consagrados às consequências, para todo sujeito, da sexualidade feminina, ou seja, da mãe como mulher. A mãe tem uma relação com o falo e são duas as possibilidades para o sujeito em relação a esse significante: a de sê-lo ou tê-lo. Não se pode sê-lo e tê-lo ao mesmo tempo. Para tê-lo, é preciso a renúncia a sê-lo. Entre a identificação ao falo e a repartição dos papéis sexuais, temos a assunção da castração: para o homem, ele não é sem tê-lo; para a mulher, ela é sem tê-lo.

A introdução do sujeito na dialética do falo supõe a lógica que se desenrola no inconsciente das diversas etapas da identificação, desde a relação primitiva com a mãe até a entrada em jogo do Édipo e da lei. O que se elabora da relação mãe-criança passa, antes, pelo lugar do falo na economia do desejo da mãe, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo.

É pela via do desejo da mãe que a criança é confrontada com o falo em sua polaridade imaginária e simbólica. Se, na estrutura pré-edípica, a criança se identifica com o falo imaginário da mãe, a crise propriamente edipiana só se resolve pela castração, pivô da passagem do imaginário à ordem simbólica na qual é o pai que priva a mãe ao dar provas de que o falo é ele quem o tem. Na saída do Édipo, nessa passagem do ser ao ter, o pai faz a lei ao falo imaginário materno, permitindo à criança sair da vacilação infinita entre “ser ou não ser” o falo. De falo imaginário da mãe (φ), o falo passa para o nível significante do desejo do Outro como falo simbólico (Φ), que inscreve a castração no Outro e aparece no imaginário como o que falta à imagem desejada (-φ). No Édipo, o desejo da mãe ganha o sentido sexual de uma orientação em direção ao pai como portador do significante do desejo sexual do Outro materno. Não é mais a criança que oferece seu corpo para ser inteiramente o equivalente fálico do que falta à mãe. O sexual pode, então, se estabilizar fora dela.

Nessa doutrina freudiana clássica, o falocentrismo significa a prevalência de uma ordem simbólica na qual os dois sexos se inscrevem a partir de uma única instância, a fálica, e a partir de dois complexos: o de Édipo e o de castração. O falo é o único símbolo que inscreve no inconsciente o sexual e só conta na diferenciação dos sexos na condição de perder sua naturalidade como órgão.

O capítulo XV, parte 1

A lição XV desse seminário começa com a afirmação de Lacan de que estamos em cheio na clínica, embora ele deixe claro que não fará de Hamlet um caso clínico e tampouco terá como propósito uma análise do inconsciente do autor. Para Lacan, trata-se, antes, de abordar os problemas clínicos e a teoria psicanalítica a partir do extraordinário poder de fascinação de uma obra literária que apresenta o drama do desejo humano. “Se Hamlet tem, para nós, um alcance de primeira ordem, é porque seu valor de estrutura é equivalente ao de Édipo” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 295). O interesse volta-se para o que compõe a estrutura de Hamlet, “em cujo interior pode encontrar lugar a dimensão própria da subjetividade humana (…) o problema da articulação do desejo” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 295-296).

É a partir dessa perspectiva que, antes de apresentá-la, Lacan dá continuidade à leitura das críticas feitas pelos diversos autores sobre Hamlet, destacando as especulações de Ernest Jones e a pertinência do seu comentário de que não se trata de um personagem real. Lacan descarta ou deixa em suspensão algumas críticas, mas também ressalta que seu aspecto inconciliável e contraditório “sugere haver aí algum mistério” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 292). Para Lacan, a existência de tantos Hamlets quanto foram os atores vai além da constatação de uma diversidade e conjuga-se à importância de tudo o que se disse a respeito de Hamlet, mesmo que isso se constitua como “uma ampla gama de opiniões que não se equivalem” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 293) que vão conduzi-lo ao que, para a psicanálise, deve verdadeiramente estar em questão na obra.

O mistério do fascínio por Hamlet é, então, considerado por Lacan a partir dos dois ganchos que ele havia anunciado haver em toda obra de arte:

1- a existência de um fenômeno que é da ordem de uma ilusão, na relação de Hamlet com o leitor ou com o espectador;

2 – o discurso como sendo o que confere ao herói, que é Hamlet, seu mais alto valor dramático.

No primeiro gancho, a articulação da produção do efeito ilusório de Hamlet com a imagem real do espelho côncavo do esquema ótico é uma alusão ao campo do imaginário e aos impasses desse personagem frente à desestabilização que vai sofrer em decorrência da perda de suas coordenadas simbólicas, causada pela revelação do espectro de seu pai, e dos impasses constituídos por suas tentativas de tentar resolver a questão do desejo pelo viés do imaginário.

A imagem real do espelho côncavo representa a porção do corpo que escapa à mortificação significante e que resta inacessível ao sujeito, constituindo-se como algo que não tem imagem e que não passa para o nível especular senão como uma falta. Nesse esquema, o espelho plano representa a matriz simbólica a partir da qual o eu se constitui como totalidade pela forma unitária da imagem do outro que recobre a fragmentação significante do corpo. O corpo é alguma coisa que necessita de um princípio de articulação para sustentar-se, o que Lacan formalizou de diversas maneiras ao longo do seu ensino. Aqui, a imagem do corpo próprio como outro, sustentada pelo enquadramento simbólico do espelho plano, recobre o que concerne à falta, ou seja, à castração. O afeto de jubilação que ela provoca é um desmentido da castração que sustenta o eu em sua função de desconhecimento, podendo vacilar, em sua instabilidade, para a depressão.

A distinção, feita nesse momento, entre o vazio e a ilusão é uma referência à distinção entre o Eu e o Sujeito, entre a ilusão da forma unitária da imagem, que recobre a falta no simbólico, e o que está para além da imagem, como o lugar vazio do sujeito, representado entre um significante e outro.

A aposta de recobrir o vazio pela imagem como uma estratégia do sujeito para não ter que se haver com a castração se traduz, no drama de Hamlet, pelo “lento caminhar em zigue-zague, um lento parto, por vias tortuosas, da castração necessária” (LACAN, 1958-1949/2016, p. 270).  Hamlet, “mais capaz que os outros homens de ler o coração e a razão dos outros, é totalmente incapaz de ler os próprios” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 294), diz Trench, citado por Ernest Jones[2]. Preso no circuito especular, ele tenta animar seu desejo dando corpo a algo que passa por sua imagem especular. Na play scene, ele introduz um duplo de si mesmo e o usa como um espelho que se arma, segundo Lacan, não como uma ratoeira para seu tio, mas para ele próprio. Mesmo assim, ele não consegue executar o ato. No lugar deste, a hiperatividade que o invade, e que não deixa de ser uma cobertura de sua inibição, se traduz em uma série de actings outs como resposta ao desejo do Outro.

O espelho, representado pela representação sobre a cena, é insuficiente para desencadear o ato. Ao mobilizar o imaginário e fazer recair a culpa sobre um outro, sobre Claudius, Hamlet permanece de fora, sem se posicionar. Porém, mortificado, ele se recrimina e dirige a si mesmo as injúrias que deveriam designar o seu duplo Claudius: “Vilão, obsceno e sanguinário! Traidor sem remorsos, concupiscente sem coração, vilão baixo e ignóbil!” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 284).

O circuito imaginário das identificações não oferece uma saída para sua inibição, embora mobilize o que nesse campo se constitui como o lugar dos mal-entendidos, das rivalidades imaginárias, do amor e do ódio, das tensões geradas pela pequena diferença e pelo predomínio da agressividade. É o luto do objeto Ofélia que vai articular a falta necessária para estruturar o campo do desejo, constituído pela relação do sujeito com o objeto na fantasia, como uma saída para o enlouquecimento do desejo de Hamlet após a revelação do Ghost.

O segundo gancho refere-se à ordem simbólica, é o gancho do discurso ao qual Lacan faz equivaler o herói e o poeta, como sendo tudo o que escapa ao que se pode dizer sobre a consistência imaginária do personagem. Hamlet torna-se a obra exemplar, pois “o modo como uma obra nos toca (…) da maneira mais profunda, ou seja, no plano do plano do inconsciente, decorre de sua composição” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 295). O que interessa a Lacan é o que compõe a estrutura de Hamlet, na qual “o desejo pode encontrar seu lugar, situado de maneira suficientemente correta, rigorosa, para que ali possam se projetar todos os desejos ou, mais exatamente, todos os problemas suscitados pela relação do sujeito com o desejo” (LACAN, 1958-1958/2016, p. 298). É na medida em que Hamlet nos oferece o lugar do que em nós se esconde como problemático na nossa própria relação com o nosso próprio desejo que o que compõe sua estrutura pode responder por seu efeito.

Para Lacan, que reconhece que a morte do seu pai “marca uma virada manifesta na produção de Shakespeare” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 296), o drama do autor é, todavia, secundário em vista do que compõe a estrutura de HamletHamlet, diz Lacan, “é o lugar vazio onde podemos situar nossa ignorância” (LACAN, 1958-1958/2016, p. 297). E, uma ignorância situada, acrescenta, “nada mais é do que a presentificação do inconsciente. Ela dá a Hamlet sua força e seu alcance” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 298).

Aqui, a concepção do inconsciente como estruturado como uma linguagem é ilustrada pela representação teatral, pela relação da plateia com Hamlet, ficando claro que, nela, “o inconsciente se presentifica sob a forma do discurso do Outro (…). Ali, o herói só está presente por meio desse discurso, assim como o poeta. Morto há muito tempo, é (…) seu discurso que o poeta nos lega” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 298).

Quanto aos atores, diz Lacan, a dimensão da representação é análoga àquela que constitui nossa relação com o inconsciente. O corpo apresenta-se como o que oferece sua matéria ao significante e se transforma em significante. Cito Lacan:

“…o significante (para ser claro) somos nós que fornecemos seu material (…) com nosso imaginário, isto é, com nossa relação com nosso próprio corpo, já que o imaginário é isto.

(…)

É com nossos próprios membros que fazemos o alfabeto desse discurso que é inconsciente. (…) De modo análogo, o ator empresta seus membros, sua presença, não simplesmente como uma marionete, mas com seu inconsciente bem real, a saber, a relação de seus membros com certa história que lhe é própria” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 298-299).

Na parte 3 do texto, nós vamos ver que esses dois ganchos, o da ilusão, referido ao circuito imaginário do eu, e o do vazio, que situa o sujeito do inconsciente, serão localizados, respectivamente, no piso inferior e superior do grafo do desejo.

 

Parte 2

 

Aqui, Lacan retoma o enigma que consiste na inibição de Hamlet quanto ao seu ato, cuja procrastinação ele já havia relacionado com o fato de que, desde o início, Hamlet, à diferença de Édipo, sabe do crime edipiano, revelado pelo espectro de seu pai. Lacan salienta que a resposta da tradição analítica, que repousa sobre o desejo pela mãe, é insuficiente para explicar o fato de Hamlet ser aquele que não sabe o que quer e que se queixa de não fazer nada, embora tenha tudo para fazê-lo. Para Lacan, supor que a autoridade do pai e o amor que Hamlet lhe devota, bem como a tendência a querer defender a mãe e guardá-la para si, impedem-no de atacar Claudius por despertarem em si mesmo um desejo infantil, ressentido como culpável, equivaleria a supor que ele poderia encontrar uma forma de aplacar sua própria culpabilidade, fora de si mesmo, ao atacar seu padrasto.

Lacan se pergunta, então, como Hamlet, movido por essas duas tendências positivas, que deveriam levá-lo a agir, não age? Para Lacan, o que torna o ato difícil e coloca Hamlet em uma posição problemática com relação a ele é o seu desejo, o caráter impuro e não desinteressado desse desejo. A chave do enigma que a tragédia de Hamlet apresenta sobre as vacilações do herói entre seu desejo e seu ato reside na clivagem que Lacan estabelece entre o desejo pela mãe e o desejo da mãe. Há uma oposição entre a normalização edipiana pelo desejo do sujeito pela mãe, que encontra uma saída no complexo de castração, e a desregulação do Édipo, em Hamlet, pelo desejo da mãe. Em Hamlet, o problema é que a castração não é assumida, diferentemente de Édipo, que paga com sua própria castração, pelo crime cometido, furando seus próprios olhos. O que se passa com Hamlet é que ele se debate com o desejo de sua mãe, uma vez que esse desejo não encontrou seu lugar no simbólico em uma relação com a castração, ou seja, com a lei paterna e o falo, tal como se escreve na fórmula da metáfora paterna.

Na cena que ele arma com os comediantes, Hamlet busca um índice da culpa de Claudius e o obtém. Contudo, esse índice não lhe serve para matar Claudius, apesar da oportunidade que lhe é oferecida. O encontro com a mãe, que ocorre após a play scene, mostra que o que Hamlet mais quer é buscar uma resposta da mãe, um limite capaz de freá-la. Esse encontro, que Lacan toma como a cena central da peça, mostra Hamlet conclamando sua mãe a tomar consciência do ponto em que ela está. A partir de seu pai, da ordem, da decência, da dignidade, ele se dirige à mãe para conjugar seu desejo à lei. Ele lhe solicita que respeite o luto por seu pai morto, que “recomponha-se, domine-se, tome (…) a via dos bons costumes, comece por parar de ir pra cama com [seu] tio” (LACAN, 1958-1959, p. 304). Ele faz a diferença entre o herói que é seu pai e o lixo criminoso que é seu tio, mas o desejo de sua mãe os faz equivaler. Hamlet fracassa em tentar conjugar o desejo da mãe à lei paterna. A prevalência do desejo da mãe é o que desregula o acordo entre seu desejo e seu ato, levando-o a procrastiná-lo para realizá-lo apenas no e pelo seu próprio desaparecimento.

As coisas chegam a tal ponto entre Hamlet e sua mãe que o espectro de seu pai reaparece para protegê-la da agressividade do filho. O pai recomenda a Hamlet colocar-se “entre ela e sua alma em conflito” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 304), revelando-se como um pai igualmente submetido ao desejo da mãe, um pai ideal que, no entanto, fracassa em ser a causa desse desejo e leva Hamlet de volta à resposta da mãe, frente à qual ele se curva. O pai falha em fornecer a Hamlet a orientação do desejo por uma mulher e de uma mulher.

Ao não encontrar seu lugar no simbólico, o insaciável do desejo da mãe se traduz no imaginário pela figura de um abismo que ameaça o sujeito de destruição, em sua oferta inútil de satisfazê-lo. Na alternância entre ser ou não ser, não sabendo nem mesmo o que ele é no desejo do Outro, Hamlet tenta responder ao enigma do desejo materno em um conflito incessante frente ao que se apresenta, mais além, como indigno e aviltante.

A adjuração de Hamlet é um pedido que se faz, diz Lacan, “em nome de algo que não é simplesmente da ordem da lei, mas da dignidade” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 304). Com efeito, é como se a indignidade de Claudius tornasse impossível a aceitação, por parte de Hamlet, do desejo da mãe como um desejo fora dele. Na ausência de um desejo articulado à lei, que o interditaria em sua busca infinita e incestuosa de ser o objeto desse desejo, a indignidade desse objeto, que é Claudius, recai também sobre Hamlet, que não renuncia à posição de querer ser o falo e permanece fixado à potência materna.

No final da cena com sua mãe, Hamlet rende as armas “perante algo que parece inelutável. O desejo da mãe recupera, então, para ele, o valor de algo que não poderia de jeito nenhum ser dominado” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 304). O desejo de sua mãe faz com que, mesmo depois do assassinato do pai, sem um verdadeiro luto por essa perda, o falo esteja sempre lá, encarnado por Claudius, falo real que satisfaz a mãe, cujo desejo é desejo do órgão, e não desejo que envie ao significante como traço de uma perda.

 

Parte 3

 

Na parte 3 do texto, Lacan nos conduz ao que “o grafo nos indica sobre a situação do desejo” (LACAN, 1958-1959, p. 305). Ele localiza, no primeiro andar do grafo, o discurso elementar da demanda, que “submete a necessidade do sujeito ao consentimento, ao capricho, ao arbítrio do Outro como tal [que tem] o poder de estruturar a tensão e a intenção humanas na fragmentação significante. É a primeira etapa, a primeira relação com o Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 305).

A célula elementar do grafo descreve a inversão como um efeito estrutural da demanda, que faz com que o emissor da mensagem seja o receptor. É do Outro que o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida, o que confere a esse Outro sua “obscura autoridade”.

É no jogo de presença-ausência da mãe que o objeto da necessidade entra na dialética das trocas simbólicas. Nesse jogo, a mãe se torna uma potência real, da qual a criança depende para ter acesso aos objetos. A necessidade, que atravessou o código, surge transformada em demanda: não mais da satisfação da necessidade, mas da presença do Outro, do dom de seu amor. O que passa a importar não é tanto o objeto, mas quem o dá. Quando a mãe acede a esse poder, quando ela se torna essa potência real, ela se revela como qualquer coisa de enigmática, como um impossível de simbolizar.

A mãe lacaniana é um personagem extremamente inquietante. Suas idas e vindas, esperas, reprimendas e encorajamentos, todas as manifestações de sua presença não têm nelas mesmas outro sentido que o de seu capricho. A mãe lacaniana é uma fera, que aparece primeiramente como uma potência opaca, sem lei, que vai e vem e que se constitui como uma ameaça constantemente presente para a criança. No Seminário XVII, Lacan dirá que:

“O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isto. Não se sabe o que pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isso” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 105).

O fracasso estrutural da demanda, que nenhum objeto da necessidade pode satisfazer, remete a criança à pergunta sobre o que a mãe deseja, esboçando-se, nesse Outro da demanda, uma falta que se torna a meta do desejo como desejo do Outro. O desejo resulta da impossibilidade da demanda de anular completamente a particularidade da necessidade e é desse resíduo irredutível à demanda que se pode resgatar a particularidade do desejo como sua condição absoluta. Ao incondicional da demanda de amor responde a particularidade do desejo como condição absoluta. A onipotência do Outro da demanda é substituída pela potência do desejo, que introduz no Outro a barra da castração que o torna desejante, nada sendo mais neurotizante do que não querer que o Outro seja castrado.

A problemática da castração freudiana é ressituada por Lacan nessa dialética da demanda e do desejo, escrita no grafo do desejo. É mais além da demanda do Outro que o sujeito deve encontrar seu próprio desejo, cuja condição é a castração materna, que não é a revelação anatômica da falta de pênis da mãe, descoberta em sua nudez, mas o momento em que essa anatomia encontra sua significação no falo como um ponto de falta no Outro. Significante do desejo, o falo inscreve a impossível redução da falta do desejo à falta da demanda. Se a falta da demanda anula o vivente da necessidade, transformando-o em significante, a falta do desejo anula o próprio significante sobre o qual recai a barra do recalque, que lhe nega a função de representar o significado. O significante barrado é o símbolo do sujeito que, anulado, subsiste indefinidamente na cadeia significante como falta-a-ser, não havendo “outro signo do sujeito além do signo de sua abolição como sujeito” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 119).

O desejo, em sua dimensão interrogativa, como um enigma, é representado por Lacan, na primeira figura desse capítulo, pelo gancho da interrogação (figura da p. 305), que indica esse além da demanda localizado no segundo andar do grafo do desejo. Além do gancho da interrogação, há o que permite que o sujeito se reencontre: a cadeia significante inconsciente desenhada em pontilhado (figura da pág. 306), na qual está escrito, no lugar do código, uma relação privilegiada do sujeito com sua própria demanda, com sua própria palavra, com os significantes que o marcaram e que foram determinantes em sua vida ($ ◊ D). A linha do gancho da interrogação consciente do sujeito é escrita com um traço cheio, e o circuito inconsciente do desejo, escrito em pontilhado, é o que vai situar o x do desejo na linha que retorna da demanda inconsciente do sujeito até d [($ ◊ D) → d], em sentido contrário à linha intencional, “flutuando em algum lugar para além do Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 307), porém, regulado pela sua fixação na fantasia ($ ◊ a), escrita no meio do caminho que vai da mensagem inconsciente S(Ⱥ)ao significado imaginário do Outro s(A).

Lacan aponta a homologia entre os dois pisos intermediários do grafo, que escrevem a relação do desejo com a fantasia [d → ($ ◊ a)] e aquela do eu com a imagem do outro [m →i(a)], sinalizando que, assim como o desejo se sustenta na fantasia, o eu se sustenta na imagem do outro. A articulação entre esses dois pisos mostra que a vestimenta do objeto, que constitui o i(a), a imagem do outro, é tecida pela fantasia. O circuito imaginário do piso inferior do grafo está determinado pela fantasia e constitui uma resposta ao piso superior, o que determina um desconhecimento, o do eu, montado sobre um outro, o da fantasia. A alienação imaginária escamoteia para o sujeito a sua alienação estrutural ao simbólico.

Após acompanhar o circuito inconsciente da formação do desejo no grafo, que passa por essa relação do sujeito com um objeto na fantasia como resposta à castração do Outro, Lacan vai articulá-lo ao movimento do desejo de Hamlet. Ele volta à cena da alcova para afirmar que “não há outro momento em que a fórmula o desejo do homem é o desejo do Outro seja mais tangível” (LACAN, 1958-1969/2016, p. 309). Em um comentário projetado sobre o grafo, Lacan mostra que Hamlet tenta alcançar o nível do código, da lei [($ ◊ D)], mas volta a recair no significado do Outro [s(A)], por não poder se reencontrar com seu próprio desejo, na linha d → ($ ◊ a), uma vez que, por ter rejeitado Ofélia, ele se encontra sem desejo, ele se encontra separado de seu desejo e alienado ao desejo de sua mãe. Hamlet não pode encontrar a vontade para consumar seu ato porque essa vontade decai como decai a vontade de sua mãe quando ela cede ao seu desejo por Claudius.

Hamlet cede não sem que “o mundo inteiro se torne para ele uma viva recriminação de nunca estar à altura de sua própria vontade” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 332). Fracassado em seu intento de unir o desejo à lei, Hamlet, cujo desejo não está fixado em nenhum objeto, é conduzido à significação do desejo de sua mãe como fora da lei, desejo desenfreado, sem um ponto de basta, sem nenhuma espécie de simbolização e, por isso, sem sentido, que presentifica o falo em sua dimensão do real do órgão encarnado por Claudius. Observemos que, nesse momento do ensino de Lacan, o que o falo representa como sendo o vivo do sujeito, que resta fora do Outro por escapar à negativização significante, chamar-se-á, mais tarde, gozo.

Eis os termos utilizados por Lacan para designar a resposta da mãe de Hamlet como um gozo que não se integra à ordem significante: “verdadeiro genital” que não conhece o luto; “boceta arreganhada”, quando um sai o outro chega (LACAN, 1958-1959/2016, p. 309). Entre o objeto exaltado, que é o pai de Hamlet, e o objeto depreciado, que é Claudius, ela não escolhe.

“Se a mãe não escolhe é devido a algo que, nela, é da ordem de uma voracidade instintiva. Digamos que o sacrossanto objeto genital de nossa recente terminologia se apresenta nela como não sendo nada mais que o objeto de um gozo que é realmente satisfação direta de uma necessidade” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 331).

Acrescentemos que, frente à vacilação da localização do falo na linhagem paterna, Hamlet recua para uma identificação ao falo imaginário materno e, ao não renunciar a sê-lo, ele se encontra em uma posição que o feminiza e o impede de matar Claudius, que passa a encarnar também para ele esse objeto frente ao qual sua mãe se rende. Um vínculo narcísico o une a este que encarna o falo que atrai a mãe e que ele, Hamlet, não renuncia a ser.

A partir da personagem de Ofélia, Lacan vai articular o objeto perdido com a falta fálica como sendo a chave do desejo e fazer deste o vetor do sujeito e de seu ato.  A via do luto, do encontro com Ofélia como objeto perdido, e a via do ciúme do luto, que se dá pela identificação imaginária de Hamlet com Laertes, o levarão a recuperar seu próprio desejo. A dignidade ou a indignidade do objeto serão também lidas pelo viés do luto ou da sua ausência. Lacan constata que é pelo viés do luto que o objeto entra em jogo e que chegamos aí ao cerne do problema.

Se, em um primeiro tempo de sua relação com Ofélia, esta ocupa para Hamlet o lugar de objeto na sua fantasia, objeto revestido de valor fálico e constituído como um objeto de exaltação suprema, a revelação do Ghost faz com que ela se dissolva para ele como objeto de amor e seja rebaixada ao lugar de um objeto conotado pelo horror da feminilidade e de seu gozo. Na ausência da função simbólica garantida pelo pai, surge o horror à maternidade pela assimilação da mulher à mãe, que, ao excluir o pai, goza ao engendrar filhos. O encontro de Hamlet com o espectro de seu pai é o levantamento de um véu que rompe com o circuito do desejo inconsciente e, como um encontro com o real da castração, tem todas as características de um encontro traumático. No capítulo sobre o objeto Ofélia, Lacan vai escandir esse momento como o do enlouquecimento do desejo de Hamlet, momento patológico que acontece quando algo vacila na fantasia, fazendo surgir seus componentes, revelados nas experiências de despersonalização ou no fenômeno do estranho, do infamiliar, do Unheimlich. O que desorienta Hamlet é a ruptura da ligação entre a falta fálica e o objeto, que o luto de Ofélia vai restabelecer (a/-ϕ).

Lacan dirá que, em Hamlet, de uma ponta a outra, só se fala de luto. Desde a ausência do luto de sua mãe pela morte do marido — e dos ritos clandestinos dos funerais de Polonius e Ofélia — até as exigências do luto, que ressurgem do caráter inexpiável dos pecados do pai — cuja sombra volta para queixar-se de ter sido assassinado antes que pudesse pagá-los e estar à altura de comparecer ao juízo final —, isto é, nessa sucessão de lutos, cujos rituais não se cumprem, até o único luto verdadeiro, aquele de Laertes por Ofélia, é a relação do drama do desejo com o luto que Lacan busca estabelecer.

Em Hamlet, trata-se de um luto que não foi possível, o que levará Lacan, no capítulo XVIII deste Seminário, a comparar novamente as tragédias de Hamlet e Édipo Rei, a partir dos mitos freudianos do pai, mostrando que, no fundo do luto, há sempre um crime. Lacan assinala que todo luto verdadeiro é o eco do luto mítico do pai primevo, o luto do gozo perdido, através do qual a lei se institui a partir do crime e da morte. “O gozo é proibido a quem fala” é a enunciação lacaniana do mito freudiano do pai primevo.

Édipo, ao pagar sua dívida e assumir a castração, fornece a chave do que, no declínio do Édipo, todo sujeito tem que fazer: o luto do falo. No declínio do Édipo, o complexo de castração é a elaboração da falta a partir da fantasia de que se foi ou se pode ser privado do pênis. A negativização do falo como órgão é o preço a pagar para que o sujeito o reencontre como significante do desejo. O sujeito pode ter ou não ter o falo, mas o fundamental é que ele não seja o falo (-ϕ). O objeto na fantasia é o que se vestirá com os valores fálicos para sustentar a relação do sujeito ($) ao que ele não é (a), na medida em que ele não é o falo.

A particularidade de Hamlet como uma tragédia edípica está nessa relação do crime com o luto. Em Hamlet, ao contrário do que ocorre em Édipo Rei, a questão da dívida está presente o tempo todo: há um luto que não foi feito, há uma dívida que não foi paga pelo pai e há uma castração não assumida. O falo não se encontra negativizado e, pois, não relacionado à castração. Ele permanece presente encarnado, como já vimos, por Claudius.

Lacan define o luto como o buraco de uma perda no real que mobiliza todo o sistema significante. O buraco no real do luto coincide com a falta no simbólico, tratando-se do encontro com um impossível de simbolizar, com a castração do Outro [S(Ⱥ)]. “Só nos enlutamos — diz Lacan — por alguém de quem possamos dizer: Eu era a sua falta” (LACAN, 19632-1963, p. 156). Uma perda e uma falta não são a mesma coisa. A perda se impõe no real e a falta só pode existir no simbólico. O esforço do trabalho do luto é o de ligar o real da perda à falta no simbólico.

No Seminário X, Lacan afirma que é a ausência do luto que faz desvanecer o desejo de Hamlet e, se seu desejo falta, é porque seu Ideal se desmoronou. O contraste entre a relação idolatrada de Hamlet por seu pai, esse rei supremo que encarna a potência Ideal, e a “evasão animal” de sua mãe Gertrudes, que contradiz esse Ideal, tem como resultado o desmoronamento do Ideal e o desaparecimento da potência do desejo, que só será restaurada a partir de um luto verdadeiro com o qual Hamlet vai entrar em concorrência: o luto de Laertes por sua irmã, o luto pelo objeto amado e do qual ele se viu subitamente separado pela carência de seu desejo (LACAN, 1962-1963/2005, p. 363). O que se trata de restaurar, no trabalho do luto, é essa ligação com o objeto fundamental em jogo no desejo como tendo valor de causa desse desejo.

A morte de Ofélia permite a Hamlet, pelo suporte que lhe dá Laertes como duplo imaginário com quem ele se rivaliza, o vislumbre de ter causado o desejo do Outro e o resgate de uma dignidade para a sua existência. Ofélia torna-se esse objeto cuja perda vai retificar a posição edipiana de Hamlet. Ela se torna o objeto narcísico sacrificado e, por essa relação à castração, ela se reveste de valor fálico. Sua perda presentifica o falo em seu valor de falta, que define todo objeto como faltante.

Hamlet era causa do desejo de Ofélia, e não de seu gozo, tratando-se em Ofélia de um desejo ligado à lei. Por saber-se causa do desejo de Ofélia, esta é reconhecida retroativamente como objeto do desejo de Hamlet, uma vez que o desejo é sempre desejo do Outro, desejo do desejante no Outro. Se Hamlet se identifica com o objeto desse desejo, é porque se identifica com a falta que habitava Ofélia. É o desejo que está em causa no menor luto, podendo-se afirmar que, se não há luto, é porque não há desejo. A fácil substituição da perda do objeto, a ausência do luto, é sinal do rebaixamento da dignidade do sujeito, no que ela se funda no lugar da causa do desejo do Outro. Para Lacan, ficamos de luto quando o Outro de quem fomos a causa do seu desejo desaparece; quando nos faz falta a sua falta.   

Hamlet assume o luto de Ofélia na relação narcísica existente entre o eu (m) e a imagem do outro i(a). O luto de Laertes, que pula na cova de sua irmã para abraçá-la,

“representa para ele, num outro, a relação passional de um sujeito com um objeto. É essa cena que o engancha e lhe oferece o suporte que faz com que, subitamente, se restabeleça sua própria relação de sujeito, $, com Ofélia, o objeto pequeno a que fora rejeitado (…). E é esse nível subitamente restabelecido que, por um curto instante, fará dele um homem, ou seja, fará dele alguém capaz — por um curto instante (…) que basta para que a peça termine —, capaz de lutar e capaz de matar” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 311).

Hamlet encontra seu desejo em troca de sua própria vida, ao contrário do que se dá na saída normal do Édipo. No lugar da castração necessária, como diz Lacan, outra coisa vem ocupar seu lugar: o sacrifício do sujeito. O sacrifício narcísico, que começa com a perda de Ofélia, só se completa quando Hamlet se sabe mortalmente ferido. O luto do falo, que deve ser feito no declínio do Édipo, é encarnado pela morte do herói. A identificação de Hamlet com o falo, que coincide com a morte do sujeito, apresenta o desejo em sua radicalidade como desejo de morte.

Como diz Lacan, Hamlet perde as estribeiras ao ver um outro que não ele próprio exibir um luto transbordante. Ele atira-se sobre Laertes em um abraço apaixonado do qual emergirá literalmente outro com o grito: Este sou eu, Hamlet o Dinamarquês!, sendo esse o momento em que ele recupera seu desejo. Hamlet recupera as coordenadas simbólicas de sua fantasia que vão sustentar a estabilidade do imaginário pela identificação a um significante Ideal do Outro — I(A).

Para concluir, Lacan vai dizer que o sentido que o estudo de Hamlet tem para nós é o da articulação da estrutura da experiência analítica na qual o essencial é situar o lugar do desejo que Hamlet representa como uma placa giratória em que se podem encontrar todos os seus traços. Hamlet, afirma Lacan, anunciando o que vem pela frente, é o desejo do neurótico que se articula na fantasia; ele é tanto o desejo insatisfeito do histérico como o desejo impossível do obsessivo.

Com o grafo do desejo, Lacan indica o lugar de onde devemos operar, levando-se em conta que o sujeito resiste ao fazer girar em círculos, no primeiro piso do grafo, o conteúdo das associações que se sustentam das significações nas quais ele se apoia para conformar-se ao Ideal do eu. O desejo do analista opera a partir da falta do Outro para que o sujeito aceda ao discurso inconsciente que ele quer ignorar, situado no piso superior do grafo.

O desejo é um traumatismo, ele é opaco, além de concernir a um gozo que deve ser suportado e que implica que se possa querer aquilo que se deseja. A fantasia é uma saída para o neurótico, que nada quer saber sobre o gozo implicado no desejo. Na neurose, a fantasia escreve a divisão do sujeito entre o reconhecimento e o desmentido da castração. Ela é uma espécie de mestiço que oculta a castração ao mesmo tempo em que a mantém. Para que o neurótico aceda à castração do Outro, a psicanálise promete um traumatismo cujo cuidado será o de fazer cair lentamente, um ao um, os significantes-mestre ideais, de modo que o sujeito possa prescindir do Outro não sem antes servir-se dele.

 


Referências
LACAN, J. (1958-59) O Seminário. Livro VI: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2016.
LACAN, J. (1962-63) O Seminário. Livro X: a angústia.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
SOSA, J. Hamlet y Edipo. Barcelona: Paidós, n. 15, p. 111-122, 1995.
[1] Aula apresentada nas 56º Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG em 28/09/2021.
[2] Nota:  Trata-se de uma citação de Trench, recortada por Lacan em “Hamlet and Ӕdipus”, de Ernest Jones.
psicanálse – alzheimer – lacan – psicanalise – psychanayse – corpo – psicoanálisis



ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA MÁRCIO ABREU 

 

Desali. Para os

 

Ator, diretor e dramaturgo, natural do Rio de Janeiro, sua formação tem passagens pela EITALC (Escola Internacional de Teatro da América Latina e Caribe) e pela ISTA (Escola Internacional de Antropologia Teatral). Nos anos 1990, em Curitiba, fundou o Grupo Resistência de Teatro, com o qual trabalhou por seis anos. Diretor da companhia brasileira de teatro em 1999, sediada em Curitiba, desenvolveu pesquisas e processos criativos em intercâmbio com artistas de várias partes do Brasil e de outros países. Entre seus trabalhos recentes estão PROJETO bRASIL (2015) e PRETO (2017), com os parceiros da companhia brasileira de teatro. Dirigiu o Grupo Galpão no espetáculo Nós (2016) e Outros (2018). Em 2021 estreou Sem Palavras, uma criação junto à companhia brasileira de teatro.

 

ALMANAQUE ON-LINE: É um prazer poder conversar com você sobre seu trabalho. Gostaríamos que nos falasse dos caminhos que te levaram ao teatro.

 

MÁRCIO ABREU: Todos os percursos têm as suas singularidades, e o meu desliza entre os campos da experiência, do conhecimento, dos saberes. Desde muito cedo fui ligado às artes, pois sempre tive, desde criança, muito estímulo e pendor para a criatividade, para a leitura. Sempre fui muito estimulado às letras. Eu me lembro, já falei disso em algumas entrevistas, que existem imagens marcantes da minha infância que significam muito, que insistem quando eu vou falar de mim, da minha trajetória, do que faço hoje. Uma dessas imagens, que define muito por onde eu fui caminhando, é o meu interesse por literatura desde muito cedo. Na escola em que estudava no Rio de Janeiro, havia uma espécie de cerimônia, quando éramos alfabetizados, que se chamava festa do livro. Nessa cerimônia, cada criança tinha um padrinho ou uma madrinha, que a presenteava com um primeiro livro. Isso era um acontecimento! Eu me lembro disso, tenho até uma foto no palco de um teatro, com a minha mãe, que foi a minha madrinha. Ela me dando o livro, fazendo um gesto para baixo e eu no palco, recebendo um livro que se chamava Os patinhos de prata; me lembro dele até hoje. Isso é tão inscrito na minha memória, essa imagem recebendo um livro, a minha mãe a me dar, e a de ter sido muito interessado por leitura… Talvez eu tivesse também uma personalidade mais introspectiva, e os livros, de alguma maneira, eram também uma espécie de companhia, de refúgio, como também de abertura.

Quando eu mudei do Rio para Curitiba, aos quinze, dezesseis anos, foi um momento bem importante também para mim. Naquele momento em que me mudei, Curitiba era uma cidade muito efervescente culturalmente; ela era muito menor que o Rio de Janeiro naquele final dos anos 80, início dos anos 90, e tinha um tipo de cultura menos mainstream, mais alternativa, mais underground, que me fascinou. Fiquei muito estimulado pelo movimento de poesia marginal, de músicos, de poetas, do próprio teatro, da dança, do centro cultural onde havia um teatro grande, como o Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Havia quatro montagens de ópera por ano, festival de música antiga, renascentista, a cidade ficava lotada…

Ao mesmo tempo, havia as cenas de rock and roll, de música do movimento punk e uma forte veia literária. Curitiba é uma cidade de grandes autores, autores e autoras. São coisas que me marcaram muito. Fui muito influenciado, na minha adolescência, por essa cena curitibana.

Quando chegou a época de fazer vestibular, eu não tinha muito interesse em fazer a faculdade de teatro, que hoje é a Faculdade de Artes do Paraná. Acabei fazendo direito, embora me interessasse também por arquitetura, por filosofia. Terminei esse curso por vários motivos e só depois eu fui percebendo o porquê de não ter nenhuma ligação profissional com o direito.

Eu ingressei em uma escola de teatro, uma escola bastante singular, que se chama Escola Internacional de Teatro da América Latina e do Caribe, criada no início dos anos 80, em Cuba, por representantes de vários países latino-americanos de um modelo itinerante e antropológico de ensino. Foi uma experiência radicalmente marcante para mim. Eu fazia viagens para alguns países e tinha experiências de formação, de compartilhamento e de vivência de situações em comunidades específicas. Por exemplo, para citar uma dessas experiências de formação, na Nicarágua, no final dos anos 90, eu fiquei trabalhando com o movimento artístico de camponeses que tinha sido criado na época da Revolução Sandinista e que ainda se mantinha ativo e muito forte. Ele era orientado por professores de alguns países da América Latina, muito ligados — quase discípulos — das técnicas do Augusto Boal. Essa formação fora dos moldes da clássica formação acadêmica, que era justamente uma dissidência desse modelo de ensino hierárquico, tradicional, foi fundamental para mim. Era uma espécie de esquizofrenia, pois também participava de uma escola hipertradicional do direito, que é como uma torre do saber.

Naquele momento, a Universidade Federal do Paraná e, justamente, a escola de direito, era para mim — depois fui entender isso — um microcosmos de uma vida institucional e política brasileira que me causava muito horror. Eu queria terminar aquele percurso do curso de direito pelo fato de estar em uma escola pública importante; não queria abandonar uma oportunidade que eu tive, de ter acesso ao ensino público, quando pessoas que talvez necessitassem mais do ensino público do que eu não tinham acesso. Mas, claro, ali eu também encontrei estímulos em determinados campos do estudo. Foi na Faculdade de Direito que comecei a realmente me interessar por filosofia, que é um campo de estudo permanente para mim, pois participo de grupos de estudo, de grupos de leitura, tenho muita interlocução com filósofos. Isso me foi inoculado na Faculdade de Direito, por mais que aquele campo fosse meio minado e que eu me visse como uma espécie de E.T. naquela paisagem humana. Ainda assim, foi lá que uma outra luzinha se acendeu na criação de uma certa consciência reativa, combativa a determinados lugares, a modos de entendimentos de mundo e a pessoas com as quais realmente não há condição de diálogo nem negociação. Então eu vivi muito esses extremos na minha formação e, evidentemente, já fazendo muito teatro, criando grupos, viajando.

 

AOL: Ainda como ator?

 

M.A: Ainda como ator, mas sempre escrevendo. A escrita sempre teve um papel importante para mim, foi um lugar de expressão desde cedo. E, aos poucos, o meu processo foi me tirando da cena, tirando meu corpo da cena… O meu corpo na perspectiva da encenação, pois ele não é um corpo de fora. Sempre entro em debate diante dessa noção do encenador, do diretor de teatro, desse fazer teatral com a ideia de que é um olhar de fora. Eu não entendo o lugar da criação como um olhar e muito menos como um olhar de fora. Eu entendo como um campo de articulação de vários níveis e perspectivas de linguagens, e isso tem a ver com composição, com criação. No sentido de você poder justamente habitar o seu corpo multiplamente. O seu corpo precisa se reconhecer e ser atravessado por perspectivas diversas, múltiplas. É uma atividade bastante exigente! Muitas vezes me sinto exaurido por estar tão dentro, tão implicado, fisicamente, nessa atividade da encenação, nesse campo de criação que é a encenação. A dramaturgia e a encenação são, para mim, zonas de interseção muito fortes, difíceis de separar, sobretudo para mim, que me coloco em uma perspectiva de escrever e de entender a escrita como algo muito ligado ao corpo, na medida em que eu busco escritas que, sim, têm muita influência da literatura. A escrita para a cena tem a ver com uma dimensão da oralidade, e a oralidade é a dimensão do corpo enunciativo. Esse corpo que inscreve a experiência da oralidade, o corpo memória. Então, nesse sentido, eu me vejo muito implicado fisicamente.

 

AOL: Aproveitando essa sua referência sobre a implicação do corpo, quero engatar uma outra questão. Assistimos a um vídeo, da série de entrevistas chamada “Conversas com Galpão[1]”, no qual você usa uma expressão sobre a qual ficamos muito interessados em saber do que se trata: acontecimento de teatro. Ao falar dela, você aponta uma distinção entre o diretor teatral, cujo modo de direção coordena a cena, e uma outra perspectiva como diretor, na qual você se coloca. Você chega a dizer que a dramaturgia é, ou deveria ser, uma máquina de acontecimentos de teatro.

 

M.A: É interessante abordar essa questão, porque eu a acho absolutamente fundamental. De um modo geral, o senso comum sobre o teatro comumente traz a ideia de representação, claro! Isso está inclusive na história do teatro, todos nós sabemos disso! Acontece que, quando a gente fala de representação, ao que exatamente a gente está se referindo? a que teatro? Nesse sentido, é preciso também que a gente abra para perspectivas outras, as de perceber esses fenômenos, ou essas atividades humanas que são sedimentadas pela história, não somente a partir da história do ocidente, mas também por outras perspectivas, pela história de outros povos. É evidente que o Ocidente inscreve e, digamos assim, de forma predominante, hegemônica; ele define para nós muitas coisas, entre elas, o que é o teatro, o que é representação. Mas existem outros modos de entender isso e de estudar e de pensar sobre isso. Em geral, a ideia de teatro está muito ligada a um certo entendimento de representação. É evidente que eu não sou contra nem ingênuo o suficiente para recusar toda e qualquer ideia de representação, naquilo que eu falo como artista, nem qualquer ideia de drama naquilo que eu faço como dramaturgo ou encenador. No entanto, eu busco, nos trabalhos que faço, incluir isso que seria a dimensão relacional, convivial, ou seja, incluir esse outro que é o espectador — ou isso que a gente chama de público. Aliás, esse é um conceito enrijecido, pois a gente fala “o público” como se fosse uma generalidade, como se fosse uma massa. No entanto, esse “o público” é formado por comunidades que se afinam mais ou menos, que se reconhecem entre si mais ou menos, por indivíduos, por sujeitos, que têm corpos, memórias, que têm inscrições sociais diversas.

Para mim, é muito importante pensar nesse campo relacional. Quando eu imagino uma peça de teatro que tem uma duração de duas horas, uma hora e meia, seja lá o que for, eu vou ao teatro e imagino que vou viver aquela uma hora e meia, duas ou três horas e, mesmo inconscientemente, percebo que aquilo é um ato, um rito. Isso está no corpo daquelas pessoas que nunca foram ao teatro, por ser uma reiteração tão realizada ao longo da história que, mesmo aquela pessoa que nunca teve condição, nunca quis ou nunca pode ir ao teatro, quando ela vai — mesmo inconscientemente —, ela leva um pouco desse condicionamento de que ela vai viver aquele tempo, aquela duração como algo que já está dado, com comportamentos já pautados, já cifrados, como códigos já decifrados. No entanto, na vida, nessa dimensão que a gente chama de realidade, ou que, no senso comum, chamam de realidade — existem muitas perspectivas para falar de real e realidade, né? —, mas, de um modo mais geral, as pessoas vão ao teatro para separar realidade de ficção. Esse é também o entendimento mais comum, a pessoa vai passar por ritos culturais que não irão afetá-la. É quase como um pacto coletivo — mais ou menos consciente — de não afetação, de não vivência de uma experiência, de um acontecimento, de um afastamento. Cada um se posiciona um pouco por aí.

E o que eu acho mais instigante, mais provocativo e motivador nas artes presenciais — não estou falando só do teatro, estrito senso, mas de todas as artes que envolvem a presença dos corpos, seja de quem faz como o do espectador, que também faz, porque todos os corpos, mesmo o do espectador, é um corpo que faz. Aí se trata de não se ter a priori a definição de quem é ativo e quem é passivo, de quem faz e quem não faz, quem dá e quem recebe — não tem esse pensamento cristão de dar e receber, não é isso. Existe algo que está sendo mobilizado numa perspectiva coletiva. Então isso responde um pouco ao que é o núcleo das minhas inquietações, das minhas pesquisas e tentativas… Eu tento estabelecer uma relação tanto das atrizes e dos atores com essa matéria, seja um texto, espaço, um campo dramatúrgico mais amplo, que envolve sonoridades, história, contexto político, o momento específico que cada um está vivendo, subjetividades, evidentemente, ou seja, todo um campo de materialidades que vão compor aquela experiência ético-estético que é uma peça. Aquele tempo de duração precisa ter textura de um acontecimento…

São acontecimentos que a gente reconhece no nosso corpo, que a gente faz parte deles, seja quando eu me desloco na cidade, seja quando eu fico confinado na minha casa, ou quando eu estou aqui conversando com vocês, eu me dou conta de que isso está acontecendo. Essa textura implica os corpos de determinada maneira. Sim, ela tem camadas representacionais, tem traços de representação em alguma medida. No entanto, quando a gente vai para o teatro, costuma se pensar que agora é preciso representar, como se a gente não estivesse lá, como se fosse um pacto de ausência coletivo, onde se emulam acontecimentos. Fixa-se aí um limite que, na minha opinião, é muito difícil de aceitar, porque é quase um pacto com a exclusão, com a ausência, como se todo mundo se colocasse em modo stand by durante duas horas: nada me afeta, eu não estou implicado em nada, saio e nada me aconteceu, eu me retirei do mundo. Chamaria isso de ficção? Não. Eu aprendi com a literatura, desde muito cedo, que a ficção é um lugar de vida intensa, é um lugar que ressignifica campos do real de um modo como poucas coisas fazem. Então, mesmo que eu trabalhe em uma perspectiva ficcional, por exemplo, em Nós[2] (2016), a peça do Galpão não é uma peça sobre o Galpão, nem são, necessariamente, histórias estritamente pessoais da vida de cada um. Claro que existem traços, todas as ficções são compostas também de elementos que vêm de algum lugar e, muitas das vezes, esse lugar é o real. Mas toda aquela composição que é o Nós, que nos chega de um campo da ficção, ativa aqueles corpos de atrizes e atores envolvidos naquilo; é uma sucessão de acontecimentos, desde os mais pequenos, imperceptíveis, como um copo que cai e derrama água, até acontecimentos mais simbolicamente significativos, quase arquetípicos, como a expulsão de um corpo dissidente de um ambiente coletivo, como a recusa de uma mulher mais velha, cujo corpo já tem restrições de deslocamento e de movimento. Então, essa ideia de acontecimento de teatro está ligada a uma vivência do tempo e da matéria dramatúrgica na relação com o tempo real, e não com o tempo da representação, porque o tempo da representação nos exclui um pouco da vida, é como se a gente estivesse olhando para um tempo que está fora da gente.

 

AOL: Como se tivesse um caráter de farsa?

 

M.A: Exatamente. A gente visita aquele tempo, mas, ao mesmo tempo, sai. Em Nós, por exemplo, o que eu tentei fazer foi dar textura de acontecimento real a todo ato representativo. Muitas vezes, por exemplo, a gente ouvia: “nossa, vocês estão improvisando, parece que vocês estão falando aqui agora”. Não, eles estão falando agora, mas para falar agora e ter essa noção de que estão improvisando, de que aquilo é uma fala que está nascendo, um texto que está nascendo naquele momento, existiu um trabalho de elaboração gigantesco: que tipo de linguagem esse texto vai ter, como nasce esse texto, de onde ele vem, qual é o processo criativo que gera esse tipo de texto com esse nível de oralidade que ele tem e como esses atores e atrizes se preparam, até quimicamente mesmo, para realizar aquilo de novo e de novo e outra vez e mais uma vez, sem que aquilo pareça uma mera representação, sem que pareça a execução de a prioris definidos. Eu sempre falo isso para os atores, pois trabalho com dispositivos e fico buscando e pesquisando como dar condição a eles de passar por uma extrema elaboração — técnica, inclusive — para buscar uma precisão tal que possibilite a cada um deles, a cada uma delas, no momento da peça, esquecer: fazer o exercício do esquecimento. Então, há uma extrema elaboração para ter confiança em esquecer e se lançar na experiência. Todo um arsenal de dispositivos que eu fico criando e trazendo e colocando no ensaio/estudos/ leituras tem a ver com isso.

 

AOL: Nesse sentido, você diria que é indissociável o ator do sujeito que está ali?

 

M.A: Um pouco, é um pouco indissociável, o sujeito não como imposição da subjetividade naquele ato, mas do contorno daquele indivíduo, da memória daquele indivíduo. Essa também é uma armadilha muito grande no teatro, muitas atrizes e atores têm esse vício de derramar, impor a sua subjetividade àquele fazer quando, na verdade, há uma negociação importante ali. Não se trata só disso, pois eles têm que lidar com muitas coisas que estão fora do seu contorno, fora dessa matéria subjetiva e que, em muitos casos, são mais importantes. Como você vai, por exemplo, realizar a mesma estrutura, se você derrama a sua subjetividade, e se se trata só disso, como você vai fazer de novo no dia seguinte? Tem que ter algum esteio estruturante que esteja fora de você, fora do sujeito, para negociar com esse sujeito.

 

AOL: Nessa conversa com o Galpão, você fala um pouco sobre a lida com a palavra e com as diversas dimensões da palavra, da materialidade da palavra e como acessar isso. E eu queria ouvir um pouco sobre como você entende essas dimensões e como você trabalha isso com os atores.

 

M.A: É, a palavra é um caso sério. Eu faço análise lacaniana, percebo o quanto isso age. É muito importante para mim esse trabalho da linguagem. Bom, eu tenho muita dificuldade de falar sobre isso agora. Acabei de fazer um trabalho e ainda estou mergulhado em uma criação que acabou de estrear, que se chama Sem palavras, e, apesar desse título, esse texto está repleto delas. Eu me sinto fazendo parte de um mundo no qual há uma tentativa frequente e, muitas vezes, bem-sucedidas, de apropriação das palavras para fins de violência, de exclusão, de impedimentos. Estou em uma sequência de trabalhos, desde 2012, 2013, dos quais os dois que fiz com o Galpão fazem parte, que decorrem de uma inquietação muito grande em relação ao lugar dos discursos, da palavra pública, dessa confusão entre público e privado. Essa é uma questão muito importante no trabalho da pesquisa e em tudo o que a gente fez para criar o Nós. E acho que a gente está vivendo hoje, não só no Brasil, mas com muita nitidez no Brasil, um assalto a nossa língua mãe. Eu acho que essa estratégia de se apropriar daquilo que é mais longínquo subjetivamente, e, ao mesmo tempo, tão fundante de cada um, tão ontológico, tão fundamental como a nossa própria língua, essa estratégia de tomá-la de assalto é muito violenta, e não é nova. Historicamente, a gente encontra outros momentos, na história do ocidente, e não tão longe, em que a língua e as linguagens foram a arma. Todos os estados de exceção se valem também de estratégias de linguagem. Veja a história do nazismo, das revoluções abafadas da América Latina e das contrarrevoluções patrocinadas pelo imperialismo norte-americano. Muito pouca gente se dá conta disso, mas, por exemplo, Porto Rico, em determinado momento, foi uma colônia dos EUA. Quando deixou de ser colônia e passou a ter uma representação na assembleia dos EUA, uma das primeiras coisas que fizeram foi impedir de falarem a língua local borinquen. Assim como na ascensão do nazismo, toda aquela heráldica, a maneira de reunir as pessoas, de promover imagens que eram publicizadas em espaços públicos, o modo como a multidão se organizava, gritava ou proferia frases de ordem ritmadas, palavras escolhidas para fazer determinadas saudações, tudo isso aponta para o uso da língua e das linguagens como estratégia de dominação e de extermínio. Estou muito afetado por isso como artista desde algum tempo.

As peças que eu criei nesse período, a primeira se chama PROJETO bRASIL[3]. É uma peça que estreou em 2014-15, mas que começou a ser criada a partir de uma pesquisa longa que fiz em uma viagem pelas cinco regiões do país. Pesquisando para essa peça, eu me debrucei, por exemplo, sobre a linguagem discurso. Então eu estudei o discurso público de toda sorte e, assim, criei uma peça que é uma sucessão de discursos verbais e não verbais. São dezoito discursos, alguns reais (dois são extraídos de acontecimentos reais). Um é o discurso que o Pepe Mujica fez, em uma ocasião, na assembleia da ONU, com a plateia quase vazia, como se estivesse proferindo palavras para ninguém. E, no entanto, eram palavras tão radicalmente importantes, proferidas nesse lugar de uma quase não escuta. O outro é uma sequência de discursos da então ministra da justiça francesa, Christiane Taubira, que é uma mulher negra, da Guiana Francesa, que conseguiu ser ministra da justiça da França, um dos cargos mais intocáveis de um país que se entende como um país branco e que nunca tinha sido ocupado por uma mulher, muito menos por uma mulher negra, e muito menos por uma mulher da França ultremer, a França não metropolitana, antiga colônia. Ela, em nome do governo francês, propôs o casamento entre pessoas do mesmo sexo, dando direitos parentais, ou seja, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Ela fez uma série de discursos, ao longo de vários meses, na assembleia, no senado, em defesa desse projeto que, finalmente, foi aprovado. O conjunto desses discursos, em minha opinião, são peças não só literárias, talvez até psicanalíticas, peças históricas para pensar o nosso tempo, para pensar quais corpos podem habitar determinados espaços, quem deve viver e quem deve morrer, discursos para pensar a necropolítica. Achei que valeria a pena visitar esses discursos. Então, fiz uma espécie de colagem não colagem… eu articulei o conjunto desses discursos e os coloquei na estrutura da peça. Mas de que maneira esses discursos reais lá estão? Eles estão não como representação; não coloco lá alguém fazendo o Mujica, alguém fazendo a Christiane Taubira. Eu tentei criar dispositivos que gerassem uma escuta coletiva. O acontecimento que está em jogo ali, no momento que a peça se dá, é uma convocação para ouvir essas palavras.

É como se a gente tivesse perdido a capacidade de ouvir determinadas vozes, determinadas falas e determinadas palavras, especificamente. Ou, ainda, é como se a gente tivesse que reaprender a escutar e reaprender determinados sentidos atribuídos a determinadas palavras. Eu tenho feito esse exercício de tentar restituir alguns sentidos e algumas palavras e de tentar atribuir outros significados e outros sentidos a palavras que têm sentidos que a gente não quer mais.

Eu fiz uma outra peça que vai nessa esteira, uma segunda parte, digamos, do PROJETO bRASIL. É uma peça chamada PRETO (2017), que é uma pesquisa sobre negritude, pretura, racismo e que pensa a palavra na perspectiva da transmissão e da oralidade. Eu a pensei como uma conferência de uma mulher negra, só que, em cena, não tem só uma mulher negra. Tem mais de uma, tem homens brancos, homens negros, têm corpos diversos e coexistentes. E a linguagem conferência, palestra, vai sendo atravessada por outras possibilidades. Muitas vezes essa conferência se transforma em outras coisas — diálogo, dança, disputa, ato de amor —, e ela vai se configurando e reconfigurando de muitos modos, mas sempre volta para a memória que aquilo que está acontecendo é uma conferência, é a fala pública de uma mulher negra. Em um dos primeiros momentos do processo criativo dessa peça, ainda longe de ela estar configurada como uma peça, de ser apresentada ao público, eu realizei, em Belo Horizonte, uma parte do seu processo criativo em um evento que se chamava “Polifônica negra”. Era um festival, uma mostra de processos criativos. Nesse momento, dentro dos ensaios, a gente realizou uma mostra pública na qual Grace Passô, uma das atrizes da peça, ficava falando a palavra macaca durante 15 minutos. Ela pronunciava essa palavra diante do público durante 15 minutos e, bom, aí ela saia. Isso foi no Teatro Espanca!, na sede do grupo Espanca!, que fica na rua Aarão Reis, perto do viaduto de Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte, um lugar com a presença de uma diversidade muito grande de gente. Essa ideia de restituir ou de retirar o estigma da palavra macaca, por exemplo, é uma das perspectivas dessa performance: desestigmatizar, dar a essa palavra outra escuta, outro corpo.

 

AOL: Isso é muito interessante, tem muita relação com a psicanálise.

 

M.A: Realmente. E isso foi feito publicamente. Na peça Nós havia uma questão muito fundamental, que era como eu percebia o mundo, os acontecimentos do mundo, como o movimento da história batia e me atravessava, atravessava o meu corpo e como eu reagia a isso que me afetava. Qual era o meu gesto artístico em resposta, em reação ou em diálogo? Esse era o princípio do trabalho, da pesquisa para o trabalho. Evidentemente, o que chega em cada um de nós são também palavras. O que se ouve? Quem se ouve? O que eu depreendo daquilo que eu recebo? Então chegamos em algo que é essa profusão, essa espécie de rumor, esse rumor social que eu fui trabalhar, com mais radicalidade, na peça Outros. Em Nós eu queria estabelecer estruturas de convívio e dessas estruturas fazer emergir temas urgentes. Mas eu não queria falar sobre esses temas. Em geral, às vezes eu me ouço falando isso, e eu tenho um certo incômodo, porque é quase como se eu quisesse fazer uma frase de efeito, mas não é. Talvez seja porque eu já falei sobre isso tantas vezes, que talvez eu precise achar um outro modo de falar disso. Eu não faço peças sobre um assunto, o PROJETO bRASIL não é uma peça sobre o Brasil, nem PRETO[4] é uma peça sobre o racismo, nem Nós é uma peça sobre a vida coletiva, não é isso. É a partir disso, de certo modo, é mais a partir disso do que sobre isso. Todas essas peças, de algum modo, fazem, ou querem fazer, as questões que são indesviáveis e lhes dar lugar, acontecer, emergir naquela estrutura dramatúrgica.

Em Nós, como isso se deu? Em uma polifonia. A construção daquela dramaturgia teve uma perspectiva da convivência, de corpos e de histórias diferentes. O Grupo Galpão está há quase quarenta anos junto. E são pessoas — eu falo isso sempre, inclusive em entrevistas — que são para mim um exemplo maior de uma espécie de laboratório de democracia, pois elas desenvolveram uma capacidade, com muito trabalho e exercício, de conviver na diferença por tanto tempo. Elas são pessoas inteiramente diferentes, em todos os sentidos — pensamento, ideologia, muitas vezes, como história, como memória, como geração, origem… Está lá a Teuda, com 80 anos, e o Júlio, com 50 e poucos. Entre eles há muitas diferenças, inclusive de classe social. Não é simples articular esse diálogo ao longo de tanto tempo. Que acordos são feitos ali? Eu acho um grande aprendizado conviver com o Galpão, eles têm tecnologias de convivência na diferença, de escuta e de respeito. Eles se respeitam. E não é preciso amar o outro para o respeitar, pode-se amar também, mas não precisa admirar profundamente para escutar. Tem uma coisa ali que é muito interessante e muito bonita.

 

AOL: Não é fácil não segregar, pois o outro pode portar algum detalhe que o distingue que pode torná-lo insuportável. E nem sempre é uma diferença radical, você concorda?

 

M.A: É difícil não segregar. Parece que a segregação está sempre na iminência de acontecer. A peça traz à tona tudo isso. No entanto, a palavra não diz, diretamente, as coisas importantes. Na peça, o que está sendo dito está por baixo da palavra. Eles estão ali conversando, aparentemente, sobre banalidades, falando ali uma bobagenzinha, trocando uma ideia, uma receita, falando de uma coisa que lembrou, de uma coisa que viu, do outro. Mas porque não é para falar sobre essas coisas, as coisas falam também. Os assuntos, eles mesmos falam, eles se falam através desses corpos. Eu quis criar ali atos fortes de convivência, onde essa polifonia pudesse ser articulada e todos esses assuntos viessem à tona, aparecessem pelas brechas. E fazê-los acontecer no outro, na realização de quem vê, de quem participa, de quem faz como espectador. São perspectivas diferentes de entender a palavra, mas sempre com essa inquietação e a consciência desse momento muito perigoso que a gente vive, de captura das linguagens, da manipulação, do império da mentira, tudo isso que a gente está vendo.

Você pode falar que qualquer coisa é verdade e qualquer opinião pode adquirir valor de pensamento e de verdade também. E de ideologia. Alguém diz: “É a minha opinião!”. Assim, por exemplo, diz que veado tem que morrer. Essa pessoa diz que tem direito a dizer isso, porque é a opinião dela, mesmo que isso cause a violência e a morte do outro.

 

AOL: Márcio, essa nossa conversa nos leva a um debate a que assistimos, com a sua presença e a da professora Helena Vieira[5]. Ela falou algo muito interessante a propósito da sua peça Sem palavras[6], na qual os atores entram em cena e incorporam, encarnam algumas cenas próprias do nosso cotidiano. Numa delas, aborda-se o uso que hoje fazemos dos recursos tecnológicos que permitem a nossa presença virtual no mundo. O seu texto não faz um juízo de valor, não diz que isso é algo bom ou mau, mas aponta a presença de uma exigência em se fazer ver no mundo virtual e que, muitas vezes, a isso se segue a angústia em não se saber se virão ou não muitos likes sobre o que foi publicado. A esse respeito, Helena Vieira observa que vivemos em um mundo no qual a palavra de ordem é a de estar em um estado de permanente excitação, de felicidade, em razão de “um discurso que nos impele a gozar sem intervalos”. Nesse ponto, ela alude ao título de sua peça Sem palavras e finaliza dizendo que “o teatro, por exemplo, pode ser um lugar de fazer cessar esse ruído”, por meio do que ela chamou de um “silêncio ativo”, um silêncio que “pode provocar a emergência de novas palavras”. Gostaria que você falasse sobre isso.

 

M.A: Eu acho isso de uma lucidez muito grande, Helena é uma pensadora extraordinária nesse sentido de se deslocar, de transitar entre saberes diversos e formular proposições que também inspiram deslocamentos na gente. Essa ideia do silêncio, por exemplo…. O silêncio entendido como acordo mútuo, digamos assim, ele se opõe nitidamente ao ato de silenciar — essa é uma distinção importante de fazer. Silenciar denota uma ação, justamente isso que você está dizendo. Eu tenho sempre que ocupar o meu tempo, eu estou sempre conectado, por isso, eu vou silenciar, ou, ainda, eu preciso ficar quieto. Então, vou fazer meditação, ou vou fazer um curso de ioga, vou aprender a ficar em silêncio, da mesma maneira que eu vou comprar um iPhone novo no Mercado Livre. Tudo no mesmo pacote de uma sociedade adoecida, deserotizada, profundamente deserotizada, desprovida do sentido erótico da alegria. E pressionada ao consumo de tudo e a uma fala incessante que ocupa todos os lugares possíveis. As pessoas desaprenderam a ficar quietas, em silêncio observando alguma coisa, mesmo entre os seus, ficar quieto ao lado de alguém. Ouvir simplesmente, para nada, só para ouvir — tirar a funcionalidade da escuta que implica ouvir para responder, ou, ouvir para aprender, para rebater, para reagir… Ouvir é em si, é uma condição. Mesmo quem, fisiologicamente, não escuta, percebe sons com o corpo, percebe algo que repercute. O som gera ondas que repercutem e chegam no corpo de quem tem impedimentos fisiológicos para ouvir. Então, acho que esse silêncio do qual a Helena fala não é o silenciar alguém ou a si mesmo, é ceder a uma percepção, a uma vivência, que a gente pode chamar de silêncio. O silêncio também não é algo natural, tudo soa… “ah, então vamos ficar em silêncio”… não. No teatro, por exemplo, o silêncio é algo que precisa ser criado, o mero fato de não ter nenhum som, não significa silêncio necessariamente. Muitas vezes o silêncio, no teatro, precisa ser criado por contraste, para que se tenha uma aparência de silêncio, por haver ruído antes. Entretanto, talvez o silêncio seja algo um pouco mais profundo, e não ausência de ruído ou ausência de som, ou de palavras, mas algo que é habitado, é uma matéria, uma textura, uma percepção que inspira a escuta que convoca a escuta. Então, opor o silêncio à palavra, ao som, à escuta, está fora disso. Mas o silêncio como perspectiva de percepção do que você ainda não sabe, como abertura, é algo muito fundamental para o meu trabalho, fundamental para reencontrar as palavras quando nós as perdemos.

 

AOL: Márcio, obrigada por compartilhar conosco ideias tão interessantes!

 

Entrevista por: Cecília Batista e  Patrícia Ribeiro

[1] https://www.grupogalpao.com.br/sobre
[2] Peça estreada pelo Grupo Galpão no ano de 2016 em Belo Horizonte.
[3] Peça estreada pela companhia brasileira de teatro em 2015.
[4] Peça estreada pela companhia brasileira de teatro em 2017.
[5] Pesquisadora, transfeminista e escritora. Estudou gestão de políticas públicas na USP. O debate citado pode ser assistido através do link: https://www.youtube.com/watch?v=-TNiyRxr7qo&t=2971s
[6] Nova criação (2021) de Márcio Abreu e da companhia brasileira de teatro.
psicanálse – acolhimento – lacan – psicanalise – psychanayse – psicoanálisis – corpo



UMA LEITURA SOBRE O SINTOMA COMO ACONTECIMENTO DE CORPO[1] 

ESTEBAN KLAINER
Psicanalista, membro da EOL/AMP
eaklainer@gmail.com

Resumo: O autor busca, no último ensino de Lacan, esclarecimentos sobre o que faria a diferença entre os chamados fenômenos de corpo e os acontecimentos de corpo. Baseando-se principalmente na conferência de Lacan em Roma, em 1974, “A terceira”, ele explora as noções de gozo fálico como um gozo fora do corpo, no enlaçamento simbólico-real, tendo como marca os objetos a, e um gozo no corpo, resultado do enlaçamento imaginário-real, gozo que situa o ser falante em relação a seu encontro com lalíngua.

Palavras chaves: fenômeno de corpo; acontecimento de corpo; sintoma; gozo fora do corpo; gozo no corpo.

A reading on the symptom as a body event

Abstract: The author pursues clarification in Lacan’s last teaching about what would be the difference between the so-called body phenomena and body events. Based mainly on Lacan’s 1974 Rome lecture, The Third, he explores the notions of phallic jouissance as jouissance outside the body, in the symbolic-real linkage, marked by the objects a. And jouissance on the body, as a result of the imaginary-real intertwining, a jouissance that situates the speaking being in relation to the encounter with lalangue.

Keywords: body phenomena; body event; symptom; jouissance outside the body; jouissance on the body.

Desali, s/t.

 

O convite da COL (Colección de la Orientación Lacaniana) para escrever um texto sobre o sintoma como acontecimento de corpo implica o desafio de explorar uma noção do último ensino de Lacan. Do que se trata a seguir é fornecer uma leitura a respeito das últimas ideias de Lacan sobre o sintoma e do horizonte que aí se abre para a prática analítica.

Como apontado há alguns anos por Jacques-Alain Miller, se seguimos Lacan em seu último ensino, não é apenas por um gosto pelo deciframento, mas porque ali se encontram alguns destaques que podem orientar a clínica e permitem repensar a eficácia da nossa prática (MILLER, 2016).

Creio que o uso que fazemos da noção de “acontecimento de corpo” se presta a múltiplas leituras e equívocos que poderiam se resumir no seguinte problema: o sintoma como acontecimento de corpo remete ao acontecimento traumático, que desenlaça ou, pelo contrário, a um acontecimento que enlaça e que consegue fazer sentir que se tem o corpo.

Tentarei dar algumas respostas ao problema colocado, primeiros passos de uma elaboração em curso.

Fenômenos de corpo e acontecimento 

De onde partir? Talvez começar por localizar que, no corpo, se sucedem permanentemente muitas coisas que o afetam: incômodo, angústia, medo, prazer, pranto, felicidade, etc., etc. Inclusive nos sonhos os afetos corporais estão em jogo. Já em Freud podemos ler que

“as manifestações afetivas no sonho não permitem o tratamento depreciativo com o qual, ao despertar, costumamos nos livrar do conteúdo do sonho: ‘Quando tenho medo de ladrões no sonho, os ladrões são imaginários, mas o medo é real’, e o mesmo acontece quando me alegro no sonho” (FREUD, 1900/2019, p. 506).

Pois bem, podemos pensar todos esses fenômenos de corpo como “‘acontecimentos de corpo”, no sentido que Lacan dá a essa expressão?

O termo acontecimento, desde sua etimologia, seus usos na linguagem ou seus usos históricos, faz referência a um fato particularmente importante. Sua etimologia se deriva do substantivo latino adventos, que significa “chegada” ou “vinda”, e teve um uso em latim eclesiástico para designar a chegada de Jesus Cristo (BLOCH, 2002). Também se aproxima do termo “contingência” na medida em que se trata de um fato que pode ou não acontecer.

Nessa perspectiva, e supondo em Lacan um uso preciso das palavras, podemos deduzir que nem todo fenômeno corporal toma o valor de um acontecimento. Cabe, então, perguntar o que dá valor de acontecimento a um fenômeno corporal.

Para avançar, parece-me necessário localizar alguns passos no último ensino de Lacan.

Um primeiro passo, que me parece importante assinalar, encontramos no texto “A terceira” (LACAN, 1974/2011). Pode-se considerá-lo um texto fundamental do último ensino e, nesse sentido, uma dobradiça no que diz respeito às elaborações de Lacan sobre a noção de sintoma.

Com a nova escrita do nó borromeano como o real da estrutura, Lacan pôde diferenciar radicalmente, no campo do gozo, duas modalidades absolutamente distintas. É assim que distingue um tipo de gozo que se localiza na interseção do simbólico e do real, o qual se caracteriza por ser um gozo fora do corpo, e outro tipo de gozo que se localiza entre o imaginário e o real, cuja característica é ser um gozo no corpo.

A escrita do nó borromeano permite não só a distinção entre esses dois gozos, como também mostra o que fica excluído para cada um deles. É assim que o gozo que se articula entre simbólico e real está fora do imaginário, e o que resulta da articulação entre imaginário e real está fora do simbólico.

Lacan nomeia gozo fálico o gozo localizado na interseção simbólico-real. Parece-me importante assinalar, nesse ponto, como entendo a expressão gozo fálico nessa altura do ensino de Lacan. Não creio que se refira ao gozo articulado ao significante fálico, isto é, à operação de castração simbólica ligada ao Nome-do-Pai, mas àquele que responde pelos efeitos da entrada de lalíngua no corpo vivo.

Pois bem, como entender que se trata de um gozo fora-do-corpo? Trata-se de um gozo que produz o simbólico, a entrada de lalíngua no corpo, e que é justamente esse efeito o que constitui os objetos a que se localizam nas bordas do corpo. J.-A. Miller, em seu curso Sutilezas analíticas, se refere ao gozo fora do corpo nestes termos:

[…] o significante afeta o corpo do falasser porque fragmenta o gozo do corpo, e esses pedaços são os objetos a. Então, se nos detemos nessa fórmula, supomos que há um primeiro estatuto do gozo, que eu chamava gozo da vida, e que, pelo fato de que esse corpo na espécie humana é falante, seu gozo se vê modificado na forma de fragmentação e de condensações no que são as zonas erógenas, segundo Freud, cada uma relativa a um tipo de objeto (MILLER, 2011, p. 278, tradução nossa).

É um gozo que se experimenta nas zonas erógenas e, portanto, nunca consegue se espalhar para o resto do corpo. Marca, assim, um regime de vazio e excesso, de um mais e um menos ilimitado, que, em seu funcionamento próprio, diz Lacan, reinventa a tela “porque não vem de dentro da cena” (LACAN, 1974/2011, p. 22). Se o seguimos em “A terceira”, quando assinala que

“o corpo se introduz na economia do gozo. Foi daí que parti. Se na relação do homem — do que chamamos por esse nome — com seu corpo, se há algo que destaca bem que ele é imaginário, é o alcance que a imagem aí adquire” (LACAN, 1974/2011, p. 22),

se se entende que o gozo fálico esteja fora do corpo porque, precisamente, é um gozo que está fora do imaginário, é contraditório com a sustentação da imagem corporal.

A novidade que aparece no último ensino de Lacan, mais além do que, a partir daí, numerosos antecedentes podem ser encontrados e relidos, é que o campo do gozo não se reduz ao gozo fálico-pulsional. A dimensão imaginária também tem seu real, um real diferente daquele que articula o simbólico. Trata-se de um gozo que, por definição, está fora da linguagem e que se experimenta, se sente, no corpo. É justamente esse enodamento, o de um gozo com o imaginário, o que dá consistência à imagem corporal, uma vez que lhe fornece uma sustentação real. É por esse gozo no corpo que o falasser sente que “tem um corpo”. Esse enodamento, que dá um peso real à imagem corporal, caso se produza, é logicamente anterior à montagem do Outro e ao recurso ao Ideal, que, a partir do “esquema óptico” do primeiro ensino de Lacan, era a maneira que tínhamos para entender como se sustentava o imaginário corporal.

Pensar que é o que mantém o imaginário enodado, creio ser uma boa via em direção às últimas elaborações de Lacan sobre o sintoma.

Reformulação da noção de sintoma 

Um segundo passo, que me orienta nessa trajetória, consiste em assinalar duas novidades sobre o sintoma que encontramos também em “A terceira” (LACAN, 1974/2011).

Em primeiro lugar, Lacan assinala que chama “de sintoma ao que vem do real” (LACAN, 1974/2011, p. 17). Essa simples formulação é toda uma novidade da qual talvez ainda não tenhamos pesado todas as suas consequências. Dizer que o sintoma vem do real implica tomar muita distância de Freud e do próprio Lacan, no retorno a Freud. Em Freud, o sintoma era algo vinculado à ação repressora do pai, ou seja, a um produto do simbólico. A exigência pulsional se encontrava com o “não” da função paterna, que promovia o recalque, e o sintoma era o resultado de uma transação entre a exigência pulsional e a instância repressora, uma formação de compromisso. Redefinir o sintoma como proveniente do real o separa de toda referência ao Nome-do-Pai para deixá-lo no plano da contingência.

A segunda novidade que encontramos nesse mesmo escrito é que o sintoma, que vem do real, “não se reduz ao gozo fálico” (LACAN, 1974/2011, p. 25). Isso significa, nem mais nem menos, que o sintoma não apenas articula o gozo simbólico-real, fora do corpo, mas também esse outro gozo, imaginário-real, gozo no corpo.

Localizadas essas duas novidades na reformulação de Lacan sobre o sintoma, creio que posso entrar, sem me perder muito, na definição do sintoma como “acontecimento de corpo”.

Sintoma como acontecimento de corpo: a pista de Joyce 

Como expressão de Lacan, encontramos, em seu escrito “Joyce, o Sintoma”“Deixemos o sintoma no que ele é: um evento corporal […]” (1975/2003, p. 565).

Nesse ponto, e retomando a questão levantada no início do texto, em Joyce localizamos o acontecimento de corpo na cena de confronto com seus colegas de colégio, em que ele perde seu imaginário corporal, que cai como uma casca, ou, pelo contrário, na cena na qual conquista a certeza de ser “o artista”, na qual sente a entrada de um gozo que lhe permite recuperá-lo.

Se seguimos Lacan nesse mesmo escrito, ele afirma que o sintoma é um acontecimento ligado ao corpo que se tem; quer dizer, ligado a uma experiência de gozo a partir da qual sente-se que se tem o corpo. É interessante que ele se refira através de um jogo de palavras, do qual ele diz que, às vezes, se canta “[…] l’on I’a, I’on I’a de l’air, l’on l’aire, de l’on l’a”[2] (LACAN, 1975/2003, p. 565), com o qual ele parece aludir a essa experiência de gozo. Nesse sentido, parece que é justamente em Joyce que Lacan pode localizar a função do sintoma como acontecimento de corpo, como o recurso que lhe permite enodar seu imaginário corporal.

Em sua apresentação no Seminário 23 (LACAN, 1975-76/2007, p. 179), Jacques Aubert, guiado por Lacan, localiza, em uma passagem de Ulisses, aquilo que pode ser lido como o momento em que advém, para Joyce, o acontecimento que assume valor sintomático. O personagem de Stephen escuta, no jornal onde trabalha, o relato que seu sócio, J. J. O’Molloy, faz da alegação de um advogado em um caso de fratricídio, em que se cita Moisés de Michelangelo, no Vaticano:

Ele disse sobre isso: aquela efígie de pedra numa música congelada, cornífera e terrível, da forma humana divina, aquele eterno símbolo de sabedoria e de profecia que, se alguma coisa daquilo que a imaginação ou a mão de um escultor talhou no mármore da almatransfigurada e da almatransfigurante merece viver, merece viver” (LACAN, 1975-76/2007, p. 179).

No justo momento em que O’Molloy pronuncia as palavras “deserves to live” (merece viver), ele as dirige a Stephen, que sente uma emoção que se manifesta como um “rubor”. Efeito de comoção corporal ligado a ser “o artista”, que Aubert se ocupa em rastrear em outras obras de Joyce e que enodam para ele a questão “da validade e também a da certeza” (LACAN, 1975-76/2007, p. 180).

Poderíamos ler ali o acontecimento de corpo que, para Joyce, implicou a certeza que lhe deu um corpo e lhe permitiu sustentá-lo frente aos efeitos intrusivos que sofria de lalíngua.

Então, nessa perspectiva, seria precisamente Joyce — a quem Lacan não acidentalmente chama de “Joyce, o Sintoma” — quem mostraria que o sintoma como acontecimento de corpo tem uma função de enodamento que permite sustentar o corpo frente aos ataques mortificantes de lalíngua, como permite enodar um gozo no corpo e, assim, fazer sentir que, a esse corpo, se o tem

Assim, a partir da leitura que proponho, um acontecimento assumiria um valor sintomático, caso se verifique o enodamento de um gozo no corpo, quer dizer, um Outro gozo diferente do gozo fálico.

 

Tradução: Daniela Dinardi
Revisão: Beatriz Espírito Santo

Referências
BLOCH, O.-Von Wartburg, W. Dictionnaire étimologique de la langue française, Quadrige/PUF, Paris., 2002.
FREUD, S. (1900); Os afetos no sonho. In: Sigmund Freud, Obras completas, volume 4. A interpretação dos sonhos – 1900, São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 2019, p. 506 -536.
LACAN, J. (1974) A terceira. Opção Lacaniana, São Paulo: Editora Eólia, n. 62, p.11-34, 2011.LACAN, J. (1975) Joyce, O sintoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1975-76) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
MILLER, J.A. Filosofia do gozo. In: Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011, p.269-280.
MILLER, J.A. O inconsciente e o corpo falante. Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016. Wapol, 2016. Disponível em: <https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9> Acesso em: 08 nov. 2021.

[1] Texto originalmente publicado em: KLAINER, E., (2019) Acontecimentos. ¿El psicoanálisis cambia? ¿Qué es lo nuevo? Colección de la Orientación Lacaniana. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2019.
[2] N.T: Conforme traduzido em Outros Escritos, p. 565: a gente o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem.
psicanálse – alzheimer – lacan – psicanalise – psychanayse – corpo – psicoanálisis



O QUARTETO DE JACQUES LACAN[1][2] 

LEONARDO GOROSTIZA
Psicanalista, Analista Membro da Escola. EOL/AMP
gorostizaleonardo@gmail.com

RESUMO: Leonardo Gorostiza localiza algumas escansões, ao longo do ensino de Lacan, que antecipam e apontam para a mudança de ênfase operada, posteriormente, “da verdade para o real”, considerando as questões que essa mudança lança sobre a interpretação analítica. Desse modo, Gorostiza afirma que as noções de injúria, opacidade e jaculatória, juntamente com a de silêncio, constituem um quarteto — num sentido musical e que vai contra a ideia de “concatenação” — com o qual Lacan se orienta para desdobrar a questão: como é possível, com a palavra, influenciar o corpo, o gozo e o real?

PALAVRAS-CHAVE: injúria; opacidade; jaculatória; silêncio; interpretação.

JACQUES LACAN’S QUARTET

ABSTRACT: Leonardo Gorostiza locates in this text, somes scansions along Lacan’s teaching that anticipate and point to the change of emphasis “from truth to rela” that is later operated, and considers that this change raises questions about analytical interpretation. Gorostiza states that the notions of injury, opacity, ejaculation, and silence, constitute a quartet – in a musical sense and that goes against the idea of “concatenation”- through which Lacan unfolds the issue: how is it possible to reach the body, jouissance, and the real, with words?

KEY WORDS: injury; opacity; jaculation; silence; interpretation

Desali, s/t

 

Já nos primeiros tempos de seu ensino, Lacan declarou, de forma sutil, e não explícita — como faria em seu Seminário 21 —, que o primeiro significante, o S1, e o segundo, o S2, não fazem cadeia; disse per se que não se articulam. Ele intuiu muito precocemente essa problemática que mais tarde teria repercussões decisivas na prática da interpretação, indicando “Há em todo saber”, já concebido como coerência formal e articulação, “uma vez constituído, uma dimensão de erro, que consiste em esquecer a função criadora da verdade em sua forma nascente” (LACAN, 1985, p. 30). Ou seja, esquecer “o valor da intervenção simbólica, do surgimento da fala” (LACAN, 1985, p. 29).

Além disso, ali ele enfatizou — em uma leitura primorosa do diálogo platônico Mênon (ou da virtude) — que nós, analistas, não poderíamos esquecer a função criadora da palavra que opera nessa dimensão da verdade em sua forma nascente (LACAN, 1985). Verdade que, no contexto desse diálogo, se liga à virtude e à opinião verdadeira. Como é sabido, o que Sócrates enfatiza em resposta à pergunta de Mênon é que não há episteme da areté, ou seja, da virtude (LACAN, 1985). Em outras palavras, que a virtude — entendida como ação política e ligada à interpretação — corresponde à ortodoxia, a uma ação definida pelo fato de que o verdadeiro que há aí não é apreensível por um saber.

Embora Lacan tenha tido que percorrer um longo caminho para mudar a ênfase da verdade para o real, até chegar à formulação de que S1 e Snão fazem uma cadeia, e para sustentar que, para que a interpretação analítica tenha um alcance efetivamente real, será no significante isolado, somente no S1, onde ela deverá incidir, localizamos, no entanto, em seu ensino, algumas escansões que indicam o desenvolvimento de sua intuição original. Uma intuição da qual Jacques-Alain Miller disse certa vez: “Não há nada mais próximo ao que Lacan orquestra em seu último ensino do que a nota que ele faz ouvir em seu primeiro comentário sobre o Mênon” (MILLER, 2001, [s. p.], tradução nossa).

Desse ponto de vista, creio que se pode afirmar que as noções de injúria, opacidade e jaculatória, juntamente com a de silêncio, constituem uma espécie de quarteto — no sentido musical — com o qual Lacan repetidamente executa essa nota na tentativa de responder ao seu problema, que também é nosso: como com a palavra, com o significante, é possível influenciar o corpo, o gozo e o real. Assim, numa leitura mais avançada e renovada do Mênon, indicando a fixação de um significante ao corpo, ele virá a afirmar: “Do não-ensinável, eu criei um matema, por assegurá-lo fixão da opinião verdadeira — fixão escrita com x, mas não sem recorrer ao equívoco”[3] (LACAN, 2003a, p. 484).

Agora, situarei algumas escansões em seu ensino que, entendo, o levaram a propor, no contexto de questionar mais uma vez a interpretação analítica, se não será especificamente sua jaculação — e não o uso habitual das palavras — aquilo que poderia dar origem a um efeito de sentido real, ou seja, “um sentido isolável” que vai contra a ideia de “concatenação” (LACAN, 1975, p. 17, tradução nossa)[4].

A injúria e sua opacidade 

A injúria (do latim iniuria, ofensa ou malfeito a uma pessoa, in: sem; iuria: direito) é toda expressão proferida ou ação realizada para a desonra, descrédito ou menosprezo de outra pessoa. No direito penal, é considerada um crime contra a honra ou a boa reputação e é punível.

Mas, além disso, em seu outro significado e por extensão, também podemos falar de injúria no caso de danos materiais que alguém ou algo causa a uma coisa ou pessoa. Por exemplo, pode ser dito de alguém que foi espancado ou esfaqueado, que sofreu injúrias em seu corpo.

Assim, a palavra injúria reúne duas dimensões. Uma, a da palavra ou do significante, mas também a de um alcance real, de certa forma traumático. Acontece que a injúria ou o insulto é tanto a primeira quanto a última palavra (LACAN, 2003b), porque é a que procura, a que visa — uma vez que perde toda a significação — nomear o ser ou alcançar o real.

Lacan fala de injúria em vários pontos de seu ensino. Um deles está em um artigo intitulado “A metáfora do sujeito”, no qual ele lembra a cena das injúrias da criança que mais tarde se tornaria o Homem dos Ratos e nos diz da “dimensão de injúria onde se origina a metáfora” (LACAN, 1998d, p. 905).

A referência completa é a seguinte:

“A metáfora radical se dá no acesso de raiva, relatado por Freud, do menino ainda inerme, em grosseria, que foi seu Homem dos Ratos antes de se consumar em um neurótico obsessivo, o qual, ao ser contrariado pelo pai, interpela-o: “Du Lampe, du Handtuch, du Teller, du Teller, usw”. (“‘Seu’ lâmpada, ‘seu’ toalha, ‘seu’ prato… e assim por diante”). Com que o pai hesita em autenticar o crime ou o talento. Com o que nós mesmos entendemos que não se perca a dimensão de injúria onde se origina a metáfora. Injúria mais grave do que se imagina, quando ela é reduzida à invectiva[5] da guerra. Pois é dela que provém a injustiça, cometida gratuitamente contra qualquer sujeito, de um atributo com que um outro sujeito qualquer é levado a atingi-lo. “O gato faz au-au, o cão faz miau-miau.” Eis como a criança soletra os poderes do discurso e inaugura o pensamento.

Haverá quem se surpreenda por eu sentir necessidade de levar as coisas tão longe no que concerne à metáfora” (LACAN, 1998d, p. 905).

O que é que Lacan aponta aqui sobre levar as coisas tão longe em relação à metáfora? Que não se trata apenas da substituição de um significante por outro significante, a fórmula clássica da metáfora que fornece a matriz da interpretação analítica tradicional, mas uma substituição entre duas ordens heterogêneas, a substituição do ser, ou, por assim dizer, do real, por um significante. E como existe uma incompatibilidade radical entre as duas ordens, tal substituição — que Miller uma vez chamou de “metáfora heterogênea” — é necessariamente sempre injuriosa e… violenta.

É em um escrito anterior que Lacan associa a injúria a uma opacidade. Essa é a passagem em que ele comenta, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível de psicose”, o exemplo já clássico de uma apresentação de pacientes, “Porca!”, e onde ele explora de forma precisa a maneira pela qual o significante pode passar para o real. Vamos ver como ele o faz.

Depois de descrever o relato da paciente segundo o qual o amante da vizinha “havia-lhe dirigido” (LACAN, 1998b, p. 540) a injúria quando passaram um pelo outro, ele aponta que:

“No lugar em que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra se faz ouvir […] vinda no lugar daquilo que não tem nome [e] unindo-se em sua opacidade aos dardejamentos[6] do amor, quando, na falta de um significante para denominar o objeto de seu epitalâmio[7], ele emprega a intermediação do imaginário mais cru: “Eu te como, — Chuchuzinho!”. “Estás todo derretido… — gato!””. (LACAN, 1998b, p. 541).

Em outras palavras, tanto a injúria quanto a jaculatória do amor compartilham a mesma opacidade. A opacidade própria da pulsão, do gozo e do real. E ambos mostram como o significante, quando tenta alcançar o real, por sua vez, torna-se ou deve tornar-se opaco; em outras palavras, fora do sentido.

Digamos de passagem que Miller, ao comentar a cena das injúrias no Homem dos Ratos, aponta que o obsessivo também tem uma relação com o indizível e que é aqui que se situa a função da injúria na obsessão. “A injúria é lançada ao que há de mais querido”, e nisso supera o “amor crítico” (MILLER, 1985, [s. p.]), que está situado no registro do imaginário.

“Esta injúria é muito valiosa para o sujeito [refere-se ao Homem dos Ratos], é muito valiosa para que ele se sustente no mundo. Ele elabora ali um significante capaz de tocar o real do Outro, ao custo de que [o dito significante] perde toda a significação. É ele, o Homem dos Ratos, quem o elabora; é ele quem o formula. Isto é o que faz a diferença entre neurose obsessiva e psicose” (MILLER, 1985, [s. p.]).

Assim, é compreensível que Lacan conclui dizendo que o exemplo da “Porca!”

“[…] é aqui destacado apenas para captar no ponto essencial que a função de irrealização não é tudo no símbolo. Pois, para que sua irrupção no real seja indubitável, basta que ele se apresente, como é comum, sob a forma da cadeia rompida” (LACAN, 1998b, p. 542).

Ainda é cedo, é obvio, mas antecipo o que ele chamará mais tarde como seu S1, significante-letra, desde que se escreva sem nenhum tipo de sentido (LACAN, 2011); a injúria mostra afinidades com o real.

Antes de continuar, vale a pena destacar que Lacan também fala da opacidade em numerosas ocasiões. Enumeraremos algumas delas.

Por exemplo, no seminário contemporâneo “De uma questão preliminar…”, em seu Seminário 5, ele diz:

“Não há sintoma cujo significante não seja trazido de uma experiência anterior. […] é o significante do A barrado (Ⱥ) que se articula no complexo de castração, mas que não está forçosamente presente, nem sempre totalmente articulado. […] O que é isso, portanto a não ser essa vida apreendendo-se numa horrenda percepção dela mesma, em sua estranheza total, em sua brutalidade opaca, como significante puro de uma existência intolerável para a própria vida, a partir do momento em que ela se afasta dele para ver o trauma e a cena primária? É isso que aparece da vida perante ela mesma como significante em estado puro, que não pode, de maneira alguma articular-se nem se resolver” (LACAN, 1999, p. 477).

Em minha opinião, aludindo, ao que pouco antes chamou de “o significante enigmático do trauma sexual” (LACAN, 1998a, p. 522), Lacan indica que tal significante, aquele que tem afinidade com o real, aquele da injúria radical em que se assenta toda metáfora do sujeito, não estando articulado a outro significante, torna-se opaco e nos orienta a direcionar por essa via nossa elucidação do que chamará mais tarde de interpretação jaculatória.

Mas a palavra opacidade retorna em seus Escritos. Assim, em “Posição do inconsciente”, no contexto da caracterização da operação lógica da separação, ele aponta:

“Sem dúvida, o ‘ele pode me perder’ é seu recurso contra a opacidade do que ele encontra no lugar do Outro como desejo, mas restitui o sujeito à opacidade do ser que lhe coube por seu advento de sujeito, tal como ele se produziu inicialmente pela intimação do outro” (LACAN, 1998c, p. 858).

Penso que se pode deduzir dessa indicação que a opacidade tem duas faces: uma corresponde a uma falta radical, de um significante no Outro, que indica seu desejo; outra corresponde à pulsão, já que, nessa operação em que o sujeito vai responder com a perda, cede uma parte de seu corpo. Em ambos, um traço, o silêncio; mas um silêncio que também é de duas faces, que se desdobra: o silêncio da pulsão e o silêncio de um furo no simbólico que se conecta com um real.

E é essa dupla face de opacidade que ele retoma pouco tempo depois em sua “Resposta a uma pergunta de Marcel Ritter” (LACAN, 1976, [s. p.], tradução nossa). Ele afirma que o real pulsional não é o mesmo que o não reconhecido, o Unerkannte, ou seja, que o real pulsional não é o mesmo que o umbigo do sonho que reconduz ao recalque primário, ao Urverdrängt. No entanto, ele sugere que exista uma “analogia” entre os dois. Uma analogia que também gira em torno de sua opacidade. Vamos ver como ele disse.

Primeiro, ele diz que, em relação ao furo do inconsciente, que é o Unerkannte, “é aí também que a pulsão se opacifica completamente”. Então, “desde a origem, no reconhecimento do próprio inconsciente, existe a noção de que, de fato, o Real, propriamente dito, é um ponto de opacidade. É um ponto infranqueável, é um ponto impossível” (LACAN, 1976, tradução nossa). Finalmente, encontramos o termo novamente na conhecida fórmula de sua conferência “Joyce, o Sintoma”, quando ele caracteriza o “gozo próprio do sintoma” como “gozo opaco por excluir o sentido” (LACAN, 2003c, p. 566).

Deste último se desprende a opacidade, seja a da pulsão, a do recalque primário, seja a do gozo do sintoma, que é o que marca o limite do sentido. Portanto, podemos afirmar que a interpretação, quando já não remete mais à ideia clássica da tradução, supõe levar em conta a dimensão de opacidade constitutiva do parlêtre, que se opõe precisamente a uma suposta transparência de uma possível tradução.

Mas o que quer dizer opacidade? A definição mais simples é a do opaco como aquilo que impede a passagem da luz e impede de ver através de sua massa o que está por detrás. Sem dúvida, é uma noção que ressoa para um mais além do fundo, que o próprio Lacan colocou em seus Escritos, o debate do século das luzes. “É preciso [disse ele na contracapa original de seus escritos] haver lido esta coletânea […] para perceber que prossegue sempre o mesmo, […] pode ser visto como o debate das luzes” (LACAN, 1998e, [s.p]).

Como essa referência recorrente à opacidade deve ser entendida? Como uma indicação de que o Iluminismo, o século das luzes, que a Razão tem um limite que não deve ser ignorado, tampouco deve ser relegado à categoria do inefável. Precisamente aí reside essa sutil torsão pela qual Lacan, citando o poeta que quis dar a palavra às coisas, para fazer com que as coisas assumam a palavra — refiro-me a Francis Ponge —, sustentou até o final de seu ensino que a interpretação analítica, que está advertida da opacidade sobre a qual temos discorrido, deve se situar não no nível da razão, senão da réson.

Assim, ressoa de passagem como uma indicação de Miller em sua conferência “Uma fantasia”, em 2004, em Comandatuba. Ali, diante do “Tudo marcha”, próprio ao discurso hipermoderno, em minha opinião, congruente com o discurso do Capitalista, uma vez escrito por Lacan, que também elide o impossível, Miller propôs como divisa para a psicanálise de prática lacaniana a de um “Isso falha” (MILLER, 2004, [s. p.]), que não é nada mais que aquilo a que os sintomas dão testemunho, na medida em que são sinais da “não-relação sexual”. (MILLER, 2004, [s. p.]). Sintomas que, com a opacidade da diferença absoluta, ou seja, incomparável, e sua ligação com o impossível, constituem um limite fundamental à tirania do imperativo de transparência de nosso tempo (HAN, 2016).

Por isso, Miller também propôs que isso exigiria “elevar a interpretação à potência do sintoma”. Cito: “A poética da interpretação não é para ser bela […]. Ela é um materialismo (moterialisme) da interpretação. […] É preciso colocar o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma” (MILLER, 2004, [s.p.]).

Entendo que é por essa via que devemos talvez tentar reintroduzir a opacidade e o silêncio do impossível, essa opacidade que a outra opacidade e o outro silêncio, os da pulsão, podem velar. Porque, para a pulsão, com seu impulso constante que não conhece primaveras nem outonos, assim como para o discurso capitalista, aliado ao discurso da ciência, tudo marcha, tudo é bem-sucedido. Porque, no nível da pulsão, em que o sujeito é feliz, não há impossível, é pura realização. E é então nesse lugar, onde uma interpretação é elevada à potência do sintoma, que existe a possibilidade de introduzir o impossível (MILLER, 2012).

Essa seria uma forma de interpretar, tentando induzir, através de uma ressonância moterialista, um limite para o monólogo da apalavra, um limite para a pulsão. Nesse ponto, a injúria se encontra com a jaculação.

Silêncio e jaculação

Lacan refina o alcance da operação jaculatória em seu último ensino. Jaculação ou jaculatória é uma palavra que vem da religião cristã e designa uma breve oração ou invocação dirigida fervorosamente a Deus. Mas também, etimologicamente, vem do latim iacular, ou seja, “lançar”, que, por sua vez, deriva do iaculum, que significa “dardo”. Portanto, um uso da palavra que implica lançá-la, atirá-la. Poderíamos assim falar de violência da jaculação.

A que aponta a jaculação em sua equivalência estrutural com a injúria ou o insulto? Nomear o indizível do e no Outro. Ou seja, seu ponto de opacidade. É por isso que Lacan elogia, em seu Seminário 20, as jaculações que povoam os testemunhos dos místicos. “Essas jaculações místicas, não é lorota, nem só falação, é em suma o que se pode ler de melhor — podem pôr em rodapé, nota — Acrescentar os Escritos de Jacques Lacan, porque é da mesma ordem” (LACAN, 2008, p. 82).

Não são lorotas nem falação, pois um silêncio precisamente sempre acompanha a jaculação. Poderíamos até propor que haja um silêncio inerente à jaculação, na medida em que esta última, embora proferida, indica que é impossível dizer.

Assim, São João da Cruz sublinha a importância do silêncio no impulso místico: “Naquele sossego e silêncio da referida noite, bem como naquela notícia da luz divina, claramente vê a alma uma admirável conveniência e disposição da sabedoria de Deus” (CRUZ, 1960, p. 95). Uma espécie de harmonia musical que a alma chama “música calada, porque é conhecimento sossegado e tranquilo, sem ruído de vozes; e assim goza a alma, nele, a suavidade da música e a quietude do silêncio” (CRUZ, 1960, p. 95).

Como devemos entender essa equivalência que Lacan coloca entre seus Escritos e os testemunhos dos místicos? Arrisco uma resposta: porque em ambos os casos é uma questão de testemunhar uma relação com o impossível de dizer, o impossível de nomear.

Por exemplo, São João da Cruz reitera que termos — jaculações — como “‘Oh!’ e ‘quão’, […] cada vez que são ditos, revelam do interior mais do que tudo quanto se exprime pela linguagem” (CRUZ, 1960, p. 237-238). Ou Santa Teresa de Jesus, quando exclama: “Oh, Senhor […] quem teria palavras para fazer entender […] (D’ÁVILA, 2010, p. 208).

Mas se afirmamos que os Escritos de Lacan, que surgem de sua prática da psicanálise, e os testemunhos dos místicos são do mesmo registro, devemos nos perguntar qual é sua diferença. Ambos testemunham um furo, o do indizível, do silêncio do que escrevemos como S(Ⱥ). Os místicos provam, de alguma maneira, a experiência desse furo, mas também sua fascinação com ele, com o indizível. E por isso eles o leram como prova da correspondência e da harmonia da alma com Deus[8]. Considerando que, na psicanálise — os testemunhos de passe devem apontar a isso —, não se trata de um fascínio pelo indizível, pelo mistério, mas de fazer com ele, com o furo, um matema que o constate e localize, e isso ao preço do fora de sentido. “O caminho que deve ser percorrido”, salienta Miller,

“[…] vai do indizível ao matema ou, por que não, do indizível ao insulto. Não só o matema pode ocupar o lugar do indizível [mas também] o insulto nesta função: já não há mais palavras para dizê-lo completamente, supera qualquer limite, ele supera todas as possibilidades da linguagem, e então do tesouro da língua, como S(Ⱥ), um significante se solta para pegar o real. Somente a partir desta perspectiva o insulto e o matema são o mesmo” (MILLER, 2000, p. 128-129, tradução nossa).

Por essa mesma razão, o passe tem uma relação com o indizível e pode provar o furo e localizar sua opacidade, mas se trata de fazer dele matema e transmiti-lo, e não apenas se fascinar com o mistério.

Vemos, então, que o que chamei anteriormente de violência da jaculação pode ser tanto a interpretação proferida pelo analista — quando ele não opera como uma tradução, mas isola com sua intervenção um S1 que não faz cadeia — como um novo significante ou um novo uso de um significante inventado pelo sujeito, desvinculado do analisante. Tanto é assim que, na jaculação, o enunciado e a enunciação já não se diferenciam; isso nos permitiria falar de “o dizer da análise”. Um dizer jaculatório que se desprende da referência daquele que o enuncia.

Seja como for, em ambos os casos é uma questão de indicar tanto o que não existe — dizer de um impossível — quanto o que existe: um gozo opaco para excluir o sentido. Essa operação interpretativa — se podemos chamá-la assim — é caracterizada por Éric Laurent como o que pode fazer “ato de um novo olhar do aperto do nó em torno do acontecimento de corpo” (LAURENT, 2018, tradução nossa). Talvez essa seja outra forma de dizer o que acontece ao elevar a interpretação à potência do sintoma. Uma potência disruptiva que poderia obter, de um contraponto sonoro e do “ângulo da surpresa” (MILLER, 1996, p. 39, tradução nossa), toda a sua força.

Assim, numa análise, uma jaculação pode vir para retificar o gozo, e não apenas o sujeito; ou seja, o gozo opaco do sintoma pode ser concebido, vivido, como satisfatório (MILLER, 2011, p. 268). Mas para que isso seja possível, não há outro caminho senão, através do amor de transferência, recorrer ao sentido para resolver o gozo desvalorizado do sintoma (LACAN, 2003c). Desse modo, uma vez percorrido o caminho do esgotamento da transparência do gozo-sentido (jouissens), talvez possam ser constatadas ambas as opacidades: a opacidade do impossível, o Urverdrängt, e a opacidade da diferença absoluta. Para ele, o desejo do analista segue sendo o instrumento privilegiado para que, sem se deter no impasse da piedade imaginária, possa apontar com a jaculação ao mais digno do sujeito golpeando ao outro “de uma boa maneira” (MILLER, 1999, p. 105, tradução nossa), quer dizer, indicando reduzir o Outro ao seu real — o que o faz incomparável — e desprovê-lo de sentido (MILLER, 2014, p. 29).

Assim, o que propus chamar de quarteto de Lacan, composto pela injúria, a opacidade, o silêncio e a jaculação, quem sabe possa ser concebido como o conjunto de quatro instrumentos destinados a executar também uma “música calada”. Mas uma música calada que, além de toda aspiração mística, não aponta a nenhuma ideia de harmonia ou correspondência, senão a indicar o nó silencioso e opaco que se aninha no coração do parlêtre. Esse nó que, em algum momento, Lacan mesmo chamou “o nó do ininterpretável” (LACAN, 2003a, p. 338).

 

 

 Tradução: Rodrigo Almeida
 Revisão: Giselle Moreira

Referências
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LACAN, J. O seminário livro 22: R.S.I; lição de 11 de fevereiro de 1975. (Inédito)
LACAN, J. “Réponse à une question de Marcel Ritter”. Lettres de l’École Freudienne, n. 18, p. 7-12, 1976.
LACAN, J. (1954 – 1955) O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
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LACAN, J. “Posição do inconsciente no congresso de Bonneval” (1960, retomado em 1964). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998c. p. 843-864.
LACAN, J. “A metáfora do sujeito”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998d. p. 903-907.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998e.
LACAN, J. (1957-1958) O seminário livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. “O engano do sujeito suposto saber”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003a. p. 329-349.
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LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003c. p. 560-566.
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TERESA D’ÁVILA, S. Livro da vida. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2010.

[1] Texto original publicado na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, [s. l.], ano XV, n. 28, p. 37-45, ago. 2020.
[2] Nota do autor: Este texto retoma e amplia algumas ideias expostas na conferência “La injuria y su opacidad”, que ocorreu em 2 de novembro de 2019 durante as VI Jornadas da Seção La Plata da EOL, intituladas: “Interpretar la violencia”.
Disponível em: http://www.eol-laplata.org/blog/index.php/conferencia-la-injuria-y-su-opacidad/.
[3] Para um desenvolvimento mais detalhado desta referência, ver GOROSTIZA, L., La fixión de la opinión verdadera. Disponível em:     http://www.revistavirtualia.com/storage/articulos/pdf/tEIGT0uFzyR92vgAN5Rhma9Qixmt2d6UOEHja08p.pdf.
[4] Retomado também por Éric Laurent em “L’interpretation événement”. In: La Cause du Désir, n. 100, 2018, p. 70.
[5] Invectiva: discurso oral ou escrito que contém uma censura violenta, áspera e dura contra alguém ou algo.
[6] N. T.: A tradução para o espanhol em que nos baseamos para esta versão em português, traz o termo “jaculatórias”, termo que acreditamos que colabore para a compreensão do texto.
[7] Epitalâmio: composição poética lírica para a celebração de um casamento.
[8] Mesmo que — como assinala Lacan em seu Seminário 20 — seja outra face do Outro, a face de Deus, como aquela que dá suporte ao gozo feminino, a experiência mística não deixa de fazer existir um Outro de harmonia e correspondência.
psicanálse – acolhimento – lacan – psicanalise – psychanayse – psicoanálisis – corpo



RACISMO E IDENTIDADE: UM GUIA LACANIANO PARA ENTENDER A QUESTÃO[1]

ANDREA MÁRIS CAMPOS GUERRA
Psicanalista. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFMG
e do Programa de Pós- graduação em Psicologia da UFMG.
andreamcguerra@gmail.com

Resumo: O tema da raça reduzido à perspectiva imaginária, nega a articulação entre os três registros – real, simbólico e imaginário – na sua conformação. Numa lógica decolonial, retomamos a matriz inconsciente que articula toda forma de segregação, para problematizá-la, em seguida, a partir do esquema óptico de Bouasse, localizando a dimensão do Outro, cujos poder, saber, ser e gênero sofrem epistemicídio sistemático. Nesse diálogo, apostamos numa teoria e numa práxis psicanalíticas que abalem pulsionalmente essa estrutura hegemônica e normativa.

Palavras chaves: Psicanálise; Racismo; Colonialidade; Segregação; Gozo

Racism and Identity: a lacanian guide to understanding the issue

Abstract: The theme of race, reduced to an imaginary perspective, denies the articulation between the three registers – real, symbolic and imaginary – in its conformation. In a decolonial logic, we return to the unconscious matrix that articulates all forms of segregation, to then problematize it from Bouasse’s optical scheme, locating the dimension of the Other, whose power, knowledge, being and gender suffer systematic epistemicide. In this dialogue, we bet on a psychoanalytic theory and praxis that unsettles this hegemonic and normative structure.

Keywords: Psychoanalysis; Racism; Coloniality; Segregation; Jouissance.

Desali, s/t

 

A segregação em Psicanálise

A tese psicanalítica da segregação, enunciada em Freud, encontra no gozo seu articulador móvel segundo Lacan. Freud, a partir do narcisismo das pequenas diferenças, funda sua condição de possibilidade. O outro “merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, que eu possa me amar nele” (FREUD, 1930 [1929], p. 131).

Ele pinta um cenário ainda mais corrosivo. “Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que no máximo podem defender-se quando atacadas; pelo contrário são criaturas em cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade” (FREUD, 1930 [1929], p. 133). Sabemos que o resultado disso é o de que o próximo sirva de ajudante potencial e objeto sexual, sobre o qual agressividade, abuso, exploração humilhação, sofrimento, tortura e morte seriam destinos plausíveis.

Lacan introduz a distinção entre próximo e Outro. “O próximo é a iminência intolerável do gozo. O Outro é apenas sua terraplanagem higienizada” (LACAN, 1968-69/2008, p. 219). O gozo é por ele retomado como centralidade de uma zona proibida na qual o prazer seria intenso demais. Essa distribuição do prazer, no seu limite íntimo, é o que condiciona a proibição do que, em síntese, constitui o que é mais próximo, embora seja externo. Extimidade.

Lacan distingue Die Sachen – a coisa circunscrita pelo simbólico – e Das Ding – A Coisa em si, real. “É numa exterioridade jaculatória que se identifica esse algo pelo qual o que me é mais íntimo é, justamente, aquilo que sou obrigado a só poder reconhecer do lado de fora” (LACAN, 1968-69/2008, p. 219). Das Ding é introduzido por Freud exatamente pelo complexo do Outro – Nebenmensch. O mais próximo que não consigo situar: “onde existirá fora desse centro de mim mesmo que não posso amar, alguma coisa que me seja mais próxima” (LACAN, 1968-69/2008, p. 219). Miller colocará a radicalidade do gozo na matriz da segregação:

Sabemos que o estatuto fundamental do objeto é o de sempre ter sido roubado pelo Outro. Esse roubo de gozo é o que escrevemos como menos fi (-ϕ) que, como se sabe, é o matema da castração. Se o problema tem o ar de insolúvel, é porque o Outro é Outro dentro de mim mesmo. A raiz do racismo é o ódio de meu próprio gozo. Não há outra raiz a não ser essa. Se o Outro está no interior de mim mesmo em posição de extimidade, trata-se igualmente de meu próprio ódio (MILLER, 1985-1986).

Uma segunda distinção milleriana, agora entre ódio e agressividade, destaca que o ódio visa o real no Outro. Se a agressividade, especular, dirige-se ao objeto pela vertente do ideal [i(a)], o ódio radica na mais absoluta impossibilidade de especularização ou representação [-ϕ e S(A)].

Não basta questionar o ódio do Outro, pois isso colocaria justamente a questão de saber por que esse Outro é Outro. No ódio do Outro há, certamente, algo mais do que a agressividade. Há uma constante dessa agressividade, que merece o nome de ódio, e que visa o real no Outro. O que faz com que esse Outro seja Outro para que se possa odiá-lo, para que se possa odiá-lo em seu ser? Pois bem, é o ódio do gozo do Outro. É exatamente essa a forma mais geral que se pode dar a esse racismo moderno tal como o verificamos. É o ódio da maneira particular segundo a qual o Outro goza (MILLER, 1985-1986).

Em síntese: a segregação se define como ódio que visa o real do meu gozo, vivido extimamente como Outro no próximo.

Racismo, o Outro e o Gozo

No seminário 18, Lacan reafirma que “basta um mais-de-gozar para que se constitua um racismo […] o que nos ameaça quanto aos próximos anos” (LACAN, 1971/2009, p. 29). A noção de raça, como discurso em ação (LACAN, 1972/2003, p. 462-463), implica o vazio central do ser, de onde qualquer tentativa de sutura, seja ela real, simbólica ou imaginária, emana.

Laurent fala de um trauma vivido pelo avesso, um real impossível de ser absorvido pelo simbólico e vice-versa, um simbólico impossível de ser absorvido pelo real. Se “de fato, o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam, […] conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível” (LAURENT, 2014). Esse gozo implica o vazio central na estrutura do saber, que angustia e edifica defesas.

O racismo implica, assim, radicalmente, uma rejeição primordial no nível do simbólico que retorna como modo de gozo no real e se articula com efeitos imaginários. “A raça se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aquele com que se perpetua a raça dos senhores e igualmente dos escravos” (LACAN, 1972/2003, p. 462). Nesse plano RSI, onde se situa o Eu? “Sabemos que um espelho esférico pode produzir, de um objeto situado no ponto de seu centro de curvatura, uma imagem que lhe é simétrica, mas, sobre a qual, o importante é que ela é uma imagem real” (LACAN, 1961/1998, p. 679).

Lacan introduz o espelho plano no experimento óptico, de modo a elaborar um modelo teórico para “as relações do Eu Ideal com o Ideal do Eu” (LACAN, 1961/1998, p. 679), permitindo distinguir nela a dupla incidência do imaginário e do simbólico (LACAN, 1961/1998, p. 680-681). A montagem lacaniana que completará o aparelho será́ a introdução de um espelho plano, como constatamos abaixo.

Assim, não há uma unidade do Eu. O Eu se identificaria, no nível do i(a) com uma imagem real, articulada simbolicamente pelo Ideal de Eu, I(A), restando sempre não especularizável o objeto subtraído (- ϕ), ponto de ancoragem do gozo, resto matricial nos fenômenos segregatórios. O resultado é a imagem virtual, que comporta a imagem real – i’(a)-, refletida no espelho plano. Miller indica que o racismo advém exatamente da localização desse vazio que a interposição do espelho plano visa ocultar.

Certamente, ao se invocar as causas econômicas, sociais e geopolíticas, pode-se explicar um vasto campo desse fenômeno; mas resta, apesar de tudo, alguma coisa que faz pensar que ele não se dá somente nesse nível. Há um resto que poderíamos chamar de causas obscuras do racismo, e não é certo que seja suficiente protestar contra isso. Pode ser que protestar contra isso seja o mesmo que esconder o rosto e desviar o olhar do que está em questão (MILLER, 1985-1986).

A segregação toma forma de racismo no ponto mesmo dessa causa obscura que aloca como I(A) — espelho plano matricial da constituição de qualquer imagem de Eu no Ocidente – a branquitude como referente universal. Enquanto S1, o Branco equivalido ao Humano, coloca em marcha os discursos em ação (SESHADRI-CROOKS, 2002). Forjamos uma especularidade pretensamente universal de Ideal de Eu na composição do agrupamento humano ocidental, a partir da ilusão de que o Branco não é uma cor, uma raça, mas que, invisibilizado, é o próprio Humano.

A matriz decolonial do racismo

Essa forja nasce com a conquista das Américas e o nascimento da modernidade no ano de 1492 (DUSSEL, 1993). Até nosso século, esse espelho foi assentado com a argamassa do capital neoliberal, com a força militar estatal e tecnológica e o discurso do mestre imperial, fixando o Ideal como se ele fosse verdadeiramente universal e imóvel. Entretanto o real, não mais equivalido à estabilidade da natureza, deixou ver que eram semblantes que ali velavam o vazio central. “As categorias tradicionais que organizam a existência passam para o nível de simples construções sociais, votadas à desconstrução. Não é apenas o fato de os semblantes vacilarem, mas de eles serem reconhecidos como semblantes” (MILLER, 2016). O espelho plano, assim fixado, enquadra o gozo e invisibiliza a raça. Porém, branco não é sem cor. Daí a necessária distinção heideggeriana entre idêntico e mesmo com Miller:

Com efeito, se o gozo pode postular esse estatuto de Outro do Outro, eu diria que é na medida em que, tal como o colocamos em função na experiência analítica, ele aparece como o mesmo. Ele aparece como o invariável. Eu disse o mesmo, e não o idêntico a si. Quando falamos de identidade, de identidade a si, já alojamos a questão no registro significante, com os paradoxos e as dificuldades que ele comporta. Mas o gozo nos obriga a pensar um estatuto do mesmo, que não é o idêntico no registro significante. […] Dizemos o mesmo para não implicar os paradoxos significantes da identidade, para opor às variações do Outro, à alteridade que é interna ao Outro, a inércia do gozo (MILLER, 1985-1986).

Nessa partilha do gozo, o par sadismo-masoquismo deixa seu lastro histórico como ferida aberta que ganha nas cicatrizes fantasmagóricas da escravização o legado vergonhoso de nosso país e do assentamento devastador da modernidade no solo latino-americano.

O gozo maligno em jogo no discurso racista é desconhecimento dessa lógica. Ela está no fundamento de todo laço social. O crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito. Portanto, sempre o antiracismo é a reinventar para seguir as novas formas do objeto do racismo, se deformando à medida dos remanejamentos das formações sociais (LAURENT, 2014).

Na fuga além-mar do avanço muçulmano em seu território, a Europa criou o Norte e o Sul, abaixo do Equador, e inventou o Ocidente, colocando-se como seu centro. Os mapas-múndi — de antes e depois das grandes navegações — , testemunham a consolidação simbólica e cartográfica do Novo Mundo sob a estrutura do gozo imperial. Estamos bem longe da facilidade imaginária dos processos identitários. Trata-se do choque dos gozos. Daí a tentação de apelo a um Deus unificador pela egologia cartesiana como estratégia unificadora na conquista das Américas. Foram necessários quatro epistemicídios (GROSFOGUEL, 2016) para fundar violentamente essa nova gestão epistêmica, ontológica e ética das gentes:

  1. Contra os muçulmanos e judeus em nome da pureza do sangue em Al-Andaluz;
  2. Contra os povos indígenas nas Américas e depois na Ásia;
  3. Contra os africanos, aprisionados em seu território e depois vendidos e escravizados no território americano;
  4.  Contra as mulheres queimadas vivas sob a alegação de serem bruxas.

A dimensão central dessa composição do discurso colonial é a raça como seu constituinte necessário. “O que deve nos reter é o racismo como moderno. Isso não tem nada a ver com o racismo antigo. Trata-se de um racismo […] da época da ciência e, também, da época da psicanálise” (MILLER, 1985-1986). Quijano (2017) mostra que a substituição do sangue pela raça, institui a modernidade iluminista, racional e liberal que assenta uma nova lógica discursiva para nosso tempo. Seu nome é colonialidade. “Isso se encarnou sob a fachada – em geral humanitária – do colonialismo”, reforça Miller (1985-1986).

Conclusão

Classificar é identificar (MIGNOLO, 2017). A identidade, submetida a esse regime, não é simplesmente imaginária, mas conexão que garante o fio do poder e legitima um modo de gozo destrutor tomado como civilizatório. Assim define-se o lugar hierárquico de um corpo pela cor, pelo gênero, pela classe e se mantém o regime alteritário do estrangeiro pelo Estado Nação. “Quem classifica controla o sentido e quem é classificado tem que confrontar o sentido que lhe impõe a classificação” (MIGNOLO, 2017, p. 45).

O sistema não funciona per se. É dessa maneira lógica e material que se reduz a negritude ao identitarismo, que se nega a branquitude e seus privilégios invisibilizados, que se transforma o gozo sádico do plano real em queixa imaginária no plano virtual. Pelo movimento de ocupação da experiência racial, a psicanálise tem escutado e lido a necessidade de levantar o espelho plano e enfrentar o gozo branco – não invisibilizado na cor – que lhe subjaz. É uma porta aberta. Entra quem se implica.

 


Referências
DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do Outro. A origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
FREUD, Sigmund. Mal estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976 (Trabalho original publicado em 1930 [1929].
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas. Dossiê: Decolonialidade E Perspectiva Negra. Sociedade e Estado. 2016, 31 (1). https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003.
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_____. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade”. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 (Obra original publicada em [1961]/1966).
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MILLER, Jacques-Alain. Racismo e Extimidade. Derivas analíticass/p, 2014. Disponível em: http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-2/o-entredois-ou-o-espaco-do-sujeito#_edn2).
SESHADRI-CROOKS, Kalpana. Desiring whiteness: a lacanian analysis of race. Londres: Routledge, 2002.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Psicose da Seção Clínica do IPSM-MG, em 17/09/2021.
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