A NEUROSE NA URGÊNCIA SUBJETIVA 

GIULIA CAMPOS LAGE
Residente em Psiquiatria pelo Instituto Raul Soares (FHEMIG)
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
giucamla3@hotmail.com

Resumo: Frente à experiência em uma instituição psiquiátrica, constata-se a dificuldade em manejar a neurose na urgência hospitalar. Este texto visa buscar, na teoria psicanalítica de orientação lacaniana, formas de entender a urgência subjetiva, principalmente na neurose, e como poder viabilizar saídas que acolham a subjetividade em questão, evitando a institucionalização.

Palavras-chave: psicanálise; urgência subjetiva; neurose.

NEUROSIS IN SUBJECTIVE URGENCY

Abstract: Faced with the experience in a psychiatric institution it is observed that there is a difficulty in managing neurosis in the hospital emergency room. This essay seeks ways to understand – through psychoanalytic theory of Lacanian orientation – subjective urgency, especially in neurosis, and how we can enable possible solutions that embrace the subjectivity in question, avoiding institutionalization.

Keywords: psychoanalysis; subjective urgency; neurosis.

Keywords: psychoanalysis; subjective urgency; neurosis.

 

 

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Dou início ao curso de psicanálise no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em meio ao meu primeiro ano de residência em psiquiatria no Instituto Raul Soares. Entre os diversos aprendizados que acontecem nesse momento, algo me intriga: a abordagem da neurose na urgência hospitalar. Haveria alguma forma de evitar a internação? Ricardo Seldes, em La Urgencia Dicha, aponta que a “urgência subjetiva é uma experiência que dá chance de fazer diferente com a palavra, e isso muda as coisas” (SELDES, 2019, p. 12).

A urgência em psicanálise é um tema intrínseco à prática psicanalítica. Frequentemente acolhemos pessoas que passam por um momento de crise no qual os recursos que elas têm para dar conta da sua existência se desestabilizam. Segundo Sandra Letícia Berta, em seu artigo “Localização da urgência subjetiva em psicanálise”, a urgência como subjetiva leva em conta a dimensão do real em jogo. Isso a Lacan não era decisivo, tampouco importava definir, mas, pelos motivos que nos interessam aqui, podemos delinear como sendo aquilo que, no discurso do mestre, não anda, isso que o discurso não consegue cernir, isso que têm algo muito singular para cada um. Nesse sentido, Berta define que uma questão preliminar sobre a urgência subjetiva em psicanálise deveria ser formulada a partir do conceito de angústia e da teoria do trauma, cujos referentes epistêmicos se encontram na obra de Sigmund Freud e no ensino de Jacques Lacan (BERTA, 2015).

Para Lacan, o sujeito do inconsciente não nasce nem se desenvolve; ele se constitui e só pode ser concebido a partir do campo da linguagem. O bebê, no seu nascimento, se encontra em um desamparo fundamental, de modo que não dá conta de sobreviver por si mesmo, exigindo a intervenção de um Outro primordial, que o implicará na lógica do significante (GUSMAN; DERZI, 2021).

Lacan menciona, no Seminário 6, que o sujeito só́ pode se instituir como tal enquanto sujeito que fala, enquanto sujeito de fala.

“Na medida em que o Outro é ele próprio marcado pelas necessidades da linguagem, já não é o Outro real, instaura-se como lugar de articulação da fala. Aí é que se constitui a primeira posição possível de um sujeito como tal, de um sujeito que pode ser apreendido como sujeito, como sujeito no Outro, na medida em que esse Outro o pense como sujeito” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 402).

O corpo, então, se encontra à mercê da linguagem, e é esse encontro com o corpo que Lacan considera traumático. O trauma é entendido como a entrada do sujeito no mundo simbólico. Ele não é um acidente, mas constitutivo da subjetividade. O trauma do sujeito é a exigência da linguagem e a dependência do sujeito ao significante. Devemos lembrar que o sujeito já é nomeado antes de ele ter nascido; já se encontra implicado na lógica do Outro. É então crucial que o Outro, geralmente materno, faça a função de nomear e reconhecer o bebê como um sujeito e que faça uma significação do seu grito, que deve ser interpretado pelo Outro como uma demanda de satisfação. O Outro é quem pode dar uma resposta ao apelo do bebê e lhe faz a pergunta fundamental: Che vuoi, que queres? Nesse momento, o sujeito tem seu primeiro encontro com o desejo como desejo do Outro (GUSMAN; DERZI, 2021, p. 8).

Para Lacan, no Seminário 6, o desejo do Outro é sempre traumático, já que o sujeito se encontra sem recursos, desamparado diante da opacidade do desejo do Outro. O sujeito se encontra em um ponto zero e o desejo do Outro é enigmático. O sujeito precisa então produzir uma resposta, a fantasia, no caso da neurose. Assim, “o desejo do Outro permaneceria como um núcleo enigmático, até que, depois, a posteriori, o sujeito possa reintegrar o momento vivido numa (…) cadeia geradora de toda uma modulação inconsciente” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 453), ou seja, o sujeito precisa inventar uma lógica, uma resposta para essa pergunta, e colocar a resposta em uma cadeia. É aqui que aparece a fantasia. “O que lhe dá seu valor de índice é um tempo suspenso, uma pausa, que corresponde a um momento de ação em que o sujeito só́ pode se instituir de uma certa maneira x” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 454).

Para Lacan, no começo, é a imagem do outro que constitui o suporte do sujeito e, depois, vem uma estrutura denominada fantasia, que é o suporte e o índice de certa posição do sujeito no desejo. Como menciona Miller:

“É a mesma lógica da fantasia que opera no âmbito do inconsciente, em que o sujeito não tem a possibilidade de designar a si mesmo, em que é confrontado com a ausência de seu nome de sujeito. É, então, à fantasia que ele recorre e é na sua relação com o objeto do desejo que reside a verdade de seu ser” (MILLER, 2014, p. 9).

Lembremos que o significante determina o sujeito, e é em posição de sujeição que ele será́ constituído pelo universo simbólico. Há sempre algo que fica de fora, que Lacan chama de real. O encontro com o real não tem correspondência no simbólico.

“O esbarrão com o real (…) desarranja a homeostase significante, tendo a importante função de romper com uma situação na qual o eu se reconhecia” (GUZMAN; DERZI, 2021, p. 9). Como tal, o acidente traumático é algo que impulsiona para a mudança, porque a desestruturação promovida na tessitura simbólica e imaginária do eu empurra o sujeito para um novo arranjo, em que a construção de uma narrativa tem um papel fundamental (RUDGE, 2009).

Segundo Favero (2009), o inconsciente estruturado como uma linguagem pode ser entendido a partir do que o inconsciente se apresenta como tropeço significante, atribuindo um sentido à falha do discurso por meio da repetição. A repetição do sujeito está ligada à procura do objeto perdido, na tentativa de reencontrá-lo. Assim, Lacan desenvolve o conceito de real como algo impossível de nomear e que sempre retorna ao mesmo lugar para o sujeito. A repetição “envolve algo que está excluído da cadeia significante, que o sujeito não lembrará, mas em torno do qual a cadeia de significantes gira” (FAVERO, 2009, p. 65). Isso quer dizer que a repetição envolve tanto o “impossível de pensar” quanto o “impossível de dizer”. Dessa forma, o real surge de um encontro faltoso que, via repetição, “reitera o impasse próprio da estrutura do sujeito. Essa repetição traz o retorno não do mesmo, e sim do diferente, de uma outra coisa, que até faz parecer que não é um retorno” (RUDGE, 2009, p. 43). Assim, o real lacaniano trata daquilo que escapa da cadeia significante como um trauma, um corte que impõe seus efeitos e limites (GUSMAN; DERZI, 2021).

No que se refere à urgência subjetiva, segundo Seldes, esta costuma aparecer relacionada a um trauma, e isso rompe os limites do imaginário e do simbólico. O trauma é um daqueles eventos psíquicos que tocam o real, assim como a alucinação na psicose ou a experiência do gozo no perverso. A neurose vivencia momentos de angústia que aproximam o sujeito inconsciente da realidade e o afastam de sua tendência de considerar a vida um sonho (SELDES, 2019).

Como localizar o espaço e o tempo hoje, quando, na urgência, tudo é da ordem do imediato? Com os tempos lógicos de Lacan, interpretamos que existe um curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, sem passar pelo tempo de compreender.

Tentamos elucidar a urgência com base no trio de descompensação, desencadeamento e desconexão. Três formas de crise que dão origem a um real como modos de hesitação do simbólico. A nova forma será restaurar o simbólico — não sem o imaginário —, talvez de um novo modo.

O que condiciona a possibilidade da invenção? Que o Outro não existe. Depois de uma emergência, talvez um trauma, o sujeito deve se reinventar a partir de um Outro que não existe mais. É preciso então “fazer” com que um sujeito perdido reencontre as diretrizes de vida com um Outro do qual se sentia perdido. Não há pedagogia, não se reaprende a conviver com o Outro; a proposta urgente é construir um novo caminho, um caminho que devemos ajudar a buscar ao lado da insensatez do fantasma e do sintoma, o que excede todo “sentido” possível na causa libidinal.

Por essa via, referir-se à urgência implica que partamos do gozo, e não do Outro do significante. A experiência analítica, a experiência da palavra, afeta o corpo, corpo afetado pelo significante. Nele, o corpo não é um corpo que fala, mas quem fala em análise não o faz sem o corpo (SELDES, 2019).

Do que temos medo, então? Lacan se pergunta.  Do nosso corpo.

“Isso se manifesta por aquele curioso fenômeno sobre o qual durante um ano inteiro dei um seminário que chamei de angústia. É o nosso corpo, justamente, a angústia está situada em um lugar diferente do medo. É o sentimento que surge dessa suspeita que nos assalta de que nos reduzamos ao nosso corpo. É muito curioso que esta fraqueza do parletre tenha conseguido chegar a este ponto, perceber que a angústia não é o medo de algo que pode motivar o corpo. É um medo de temer” (LACAN, 1975-1980/2015, p. 27).

A introdução da contingência é uma resposta lacaniana à urgência, ao contrário das psicoterapias que tentam retornar ao estado anterior, isto é, ao estado anterior à irrupção “daquilo” que causou o surto. É sobre a eclosão de uma verdade que se mostra impotente para definir o estado pelo qual alguém está passando.

A urgência é a oportunidade de apreender como as verdades imutáveis ​​de alguém se transformam em outra coisa, algo que não se sabe ser, mas, na verdade, não é mais. O sujeito em análise é extraído da operação lógica de alienação, simbólica, e separação, pulsional. Isso torna a distinção algo subjetivo, aquela que o discurso da ciência gostaria de silenciar (SELDES, 2019).

Ao receber um paciente que chega em uma instituição diante de uma urgência subjetiva, o diagnóstico estrutural não está dado. Não se pode dizer de um sujeito em análise. Qual seria, então, o papel do analista nesse dado momento? Viganó, em seu texto “A palavra na instituição”, traz que Lacan dá uma indicação acerca dessa tarefa: “talvez é do discurso do analista, que se completam os três quartos de giro, que pode surgir um outro estilo de significante–mestre” (XVII; p. 205 trad. italiana). Com essa tarefa, da qual Lacan não se cala diante do desafio da impossibilidade, somos confrontados a construir uma Escola do passe, onde o posto da exceção que a escola representa no social pode consentir a qualquer pessoa que se coloque diante do real da clínica como o mais-um que transforme a firmeza do gozo, escolhendo a identificação que a sustenta. A demanda estereotipada pode encontrar a via de uma nova modulação, caso encontre um interlocutor que encarne uma nova versão do posto de poder (VIGANÓ, 2006).

Portanto, conclui-se que não se pode afirmar que o encontro com o real, o trauma, a urgência subjetiva, nos conduza sempre a efeitos desastrosos na subjetividade. Pode-se também recolher efeitos surpreendentes, possibilitando remanejamentos subjetivos, ou, melhor, permitindo o sujeito a retificar sua posição subjetiva a partir da contingência. É necessário ressaltar que o encontro com o real pode fazer vacilar a fixação do fantasma, e o resíduo do traumatismo pode permitir que o sujeito descole do semblant, da ficção, do engodo, e possibilite a emergência da saída do desejo (GUZMAN; DERZI, 2021).

 


 

Referências
SELDES, R. La urgencia dicha. Buenos Aires: Coléccion Diva Ed., 2019.
BERTA, S. L. “Localização da urgência subjetiva em psicanálise”. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia, São Paulo, n. 1, 2015, p. 95-105.
GUZMÁN, M. C.; DERZI, C. D. A. M. “O Trauma e seu Tratamento: Contribuições de Freud e Lacan”, Revista Subjetividades, n. 1, 2021, p. 1-14.
LACAN, J. (1958-1959/2016). O Seminário. Livro VI: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2016.
MILLER, J.-A. “Apresentação do Seminário 6: O desejo e sua interpretação, de Jacques Lacan”. Opção Lacaniana onlinen. 14, 2014, p. 1-19.
RUDGE, A. M. (2009). Trauma: Coleção Psicanálise passo-a-passo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
FAVERO, A. B. A noção de trauma em psicanálise. Dissertação. (Tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC). Rio de Janeiro, 2009.
LACAN, J. “La Tercera”. Revista Lacaniana. Buenos Aires, n. 18, 2015, p. 27.
VIGANÒ, C. “A palavra na instituição”. Mental. Barcelona, n. 6, 2006, p. 27-32.



MOMENTOS DE VIRADA NO ENSINO DE JACQUES LACAN:  DO INCONSCIENTE TRANSFERENCIAL  AO INCONSCIENTE REAL 

PAULO DE SOUZA NOVAIS
Psicólogo
Aluno do  Curso de Psicanálise do IPSM-MG
paulovidanovais@hotmail.com

Resumo: Este artigo busca apresentar um percurso relativo às elaborações sobre o conceito de inconsciente, partindo do momento em que o interesse de Lacan estava voltado para a relação transferencial com o analista e para suas interpretações decorrentes dos conflitos edipianos e do Nome-do-Pai, até chegar às últimas teorizações de que o falasser e o gozo do Um surgem na pena do psicanalista. O testemunho de passe de Alejandro Reinoso será tomado como bússola para ilustrar essas conceituações.

Palavras-chave: inconsciente transferencial; inconsciente real; simbólico; real; gozo.

Abstract: This article presents a discussion about the elaborations on the concept of the unconscious, starting from the moment in which Lacan’s interest was focused in the transference relationship with the analyst and his interpretations arising from Oedipal conflicts and the Name-of-the-Father, to his last theorizations, in which there are the notions of the speaking being (parlêtre) and jouissance of the One. The pass testimony of Alejandro Reinoso will be used as a compass to illustrate these concepts.

Keywords: transferential unconscious; real unconscious; symbolic; real; enjoyment.

 

Imagem: Fred Bandeira….

 

“Uma escrita é, portanto, um fazer”
Jacques Lacan

Em seu texto “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Lacan (1975, p. 6) nos diz que “A contribuição de Freud foi a seguinte: não há necessidade de saber que se sabe para gozar de um saber”. Proponho, a partir dessa constatação do psicanalista francês, apresentar as elaborações sobre o conceito de inconsciente nas quais o interesse estava voltado para a relação transferencial com o analista e para suas interpretações, decorrentes dos conflitos edipianos e do Nome-do-Pai, até as últimas teorizações, em que o falasser e o gozo do Um surgem na pena de Lacan. Busca-se, portanto, uma pesquisa sobre os momentos de virada no seu ensino que demonstram a passagem do inconsciente transferencial ao inconsciente real.

Para ilustrar essas conceituações presentes do início às últimas elaborações do ensino de Lacan, vou me utilizar do testemunho de passe de Alejandro Reinoso (2020a; 2020b). Considero que não é o objetivo aqui fazer uma resenha ou comentário do seu trabalho analítico, mas uma tentativa de tornar possível, através de seu percurso e desfecho, uma melhor compreensão do tema abordado.

O relato é que a sua escolha por aquele analista especificamente se deu pelo fato de este falar a língua de seu avô materno, o italiano, e pela seriedade no trabalho. Há um significante-mestre importante: seriedade, decorrente da característica marcante presente nesse avô e, num menor grau, também no pai. Outro aspecto do analista era vivenciado no processo de análise, provocando no analisante uma certa inquietação, nas palavras do próprio: “seu sorriso e suas risadinhas sem sentido. Eram uma careta do real que me perturbava” (REINOSO, 2020a, p.110). O que se pode inferir, a partir dessa experiência ímpar, sobre essa pesquisa do inconsciente transferencial e do inconsciente real? Por que os sintomas que tanto afligiam o analisante eram fontes de perturbação diante do sem sentido dessas risadinhas por parte de seu analista? Veremos, posteriormente, portanto, uma analogia entre esses tais sintomas e uma indignação de si próprio vivenciada por Alejandro: “Era preciso, então, pensar bem antes de falar, apenas olhar e escutar o sofrimento dos outros; escutar demais, ocultando-se sem aparecer e com um desejo constante de fuga” (REINOSO, 2020a, p. 109).

 

Inconsciente transferencial

A interpretação do sentido do sintoma relatado por um sujeito diz respeito ao modo como a rede de significantes foi transmitida a ele. Ali, na cadeia simbólica, estão contidas as vivências infantis; o modo como a criança foi desejada, como recebeu os cuidados destinados à sua sobrevivência quando ainda era muito pequena. Toda a constituição das identificações com seus genitores, bem como com os adultos responsáveis pela sua educação e socialização, tem início nesse compartilhamento dos ideais paternos, nesses sintomas e segredos familiares. Enfim, ocorre aí uma espécie de construção do Outro do sujeito. No testemunho de passe que estamos tomando como ilustração, cabe aqui uma frase dita pelo avô do sujeito com um certo grau de severidade e que vai ter um valor e um peso de uma injunção durante a vida: “Você não sabe o que é fome” (REINOSO, 2020a, p. 109). O menino havia chegado em casa da escola gritando que estava com fome. Ainda em relação a essas vivências primárias, Lacan (1964) ensina, em O Semináriolivro 11: os quatro conceitos da psicanálise, que o sujeito passa pelas operações de alienação e separação. Ou seja, a alienação seria essa própria identificação a um significante-mestre vindo do Outro, o que já representa a divisão do sujeito em decorrência do recalque também presente nesse momento. Já na operação de separação, aparece em cena o objeto perdido, o objeto a. Jacques-Alain Miller (2012) explica, em seu brilhante trabalho “Os seis paradigmas do gozo”: “da mesma maneira que o sujeito vale como uma falta-a-ser, supõe-se que a pulsão seja definida como incluindo uma hiância ou uma pequena cavidade” (p. 19). Ou seja, a linguagem vem como uma estrutura que, em si própria, já comporta a castração.

Freud denomina realidade psíquica ou fantasia esse processo de absorção das influências da realidade externa sobre o sujeito e a consequente subjetivação de tais intervenções que vêm do Outro. A demanda que aparece ao analista quando alguém procura a análise está relacionada, portanto, a essas significações primeiras, e que permaneceram no psiquismo. Algo aí provoca uma espécie de obstáculo, dificuldades na vida cotidiana que se traduzem em uma não fluidez nas diversas modalidades de relação, tais como afetivas, amorosas, profissionais e também que dizem respeito à insatisfação ou a algum desconhecimento ou enigma no que tange ao próprio corpo. Miller, no texto acima citado, elucida o primeiro ensino de Lacan demonstrando que, para o psicanalista francês, “o narcisismo envelopa as formas do desejo” (MILLER, 2012, p. 5), o que é nomeado pelo autor, em sua doutrina do gozo, como “imaginarização do gozo”, e vemos, em seguida, no percurso desse ensino, que a pulsão foi reduzida a uma cadeia significante, o que caracteriza a significantização do gozo.

Seja pelo imaginário, seja pelo simbólico, o que prevalece na relação transferencial é o sentido atribuído ao modo de lidar com os fatos, com as pessoas e com as complicações e dificuldades decorrentes daí. Trata-se de um investimento libidinal naqueles significantes-mestres que estavam presentes desde o início. Podemos dizer, com Lacan, que aí se encontra o sentido gozado. E, na “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, Lacan (1975) é bem claro: “como sustentar uma hipótese como a do inconsciente — se não se vê que é a maneira que teve o sujeito, se é que há algum outro sujeito senão aquele que é dividido, de estar impregnado, poderíamos dizer, pela linguagem?” (p. 6). Já em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, o psicanalista afirma que o saber é um meio de gozo, ou seja, ao mesmo tempo em que há falta nesse saber, há mais-gozar (LACAN, 1969-70).

 

Inconsciente real

O nome de O Seminário, livro 24, de Jacques Lacan, é L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Em alemão, Unbewusste quer dizer inconsciente, o inconsciente tal como foi ensinado por Freud. O autor traduziu por une-bévue, tradução essa que tem o mesmo som, pela homofonia. Daí pode-se concluir que une-bévue, um-equívoco, um-lapso, um-engano vem como sendo a base do conceito de inconsciente. Em outra referência importante de Lacan, o “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, ele aponta: “Quando o esp de um laps — ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso — já não tem nenhum impacto de sentido (ou de interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consigo” (LACAN, 1976, p. 567). Esse momento do ensino vem nos demonstrar que houve esse giro na clínica lacaniana. Ou seja, o que prevalecia antes desse momento era o sentido gozado, um gozo atrelado ao significante, havendo até mesmo uma relação primitiva entre o significante e o gozo. Uma entropia ou um desperdício de gozo natural na linguagem era então o gatilho para uma exigência de um mais-de-gozar. Essa busca de gozo no objeto se expande até mesmo para os objetos da cultura, preferencialmente os gadgets, aqueles produtos e aparelhos tecnológicos lançados a todo momento no mercado, seguindo as diretrizes do discurso capitalista e ofertados para o consumo desenfreado.

O que então vem representar essa radical mudança no percurso teórico e clínico da psicanálise lacaniana? Que elemento comportaria e influenciaria a diferença nos modos de intervenção do analista nesse derradeiro ensino? A resposta é o corpo, um corpo separado do Outro. Um-corpo.

“No lugar do Outro, o corpo. Não o corpo do Outro, e sim o corpo próprio […]. E esse Um-Corpo […] é a única consistência do falasser. Eis que, com uma frase, ele reduz todos os reflexos oscilantes desse depósito que é o Outro maiúsculo. O Um-corpo como a única consistência” (MILLER, 2009, p. 110-111).

O significante incidindo no corpo vivo adquire um valor de trauma, pois ele é, primeiro, causa de gozo. É o acontecimento de corpo. Constata-se, então, que o falo já não é suficiente para evitar a não-relação sexual para o falasser. Miller (2010) fala da extimidade para marcar o que esse resto de Coisa tem de heterogêneo em relação ao Outro e, contudo, ao mesmo tempo, de localizável a partir do Outro.

O que Freud (1920) traz em Além do princípio de prazer, bem como nos seus conceitos de supereu e masoquismo, dá a pista para uma ampliação e contemporaneização da noção de sintoma, e, com o inconsciente real, isso se consolida. Não mais a falta no Outro, mas, no lugar do Outro, um furo. O furo remete à exclusão do sentido. A linguagem vem como elucubração de saber sobre lalíngua, dando ao sintoma a característica de ser feito da “reiteração inextinguível do mesmo Um” (MILLER, 2015, p. 21).

No inconsciente transferencial, o que vigora na relação com o analista é a interpretação, a decifração. Enquanto, no inconsciente real, o que há é uma operação de redução do sintoma, um fazer-uso. Savoir-y-faire. Saber-fazer-ali-com o sintoma. Alejandro Reinoso diz em seu testemunho: “Fazer-se sério para obter uma precária dignidade de vida, desprovida de vivacidade e vigor” (REINOSO, 2020a, p. 110). Relata o sonho em que comia, com gosto, o arroz cantonês, il riso a Lacan-tonese, o-riso-à-la-Lacan, como interpreta o analista. “Efeito imediato: ri às gargalhadas, vibrando com todo o corpo; o analista também riu. O que era esse riso-a-la-Lacan?” (REINOSO, 2020b, p. 45). Efeito: um reencontro com o riso que antes aterrorizava, que representava um ódio ao próprio gozo.

Em outro sonho, imediatamente antes da demanda do passe, aparece um livro. No centro do livro estava a palavra francesa Ouïr, em maiúsculas. Oui, Ouïr, Huir. Sim-ouvir-fugir. Letra que nomeia o sintoma e que não remete a nenhum sentido. É um saber-fazer com a fuga e com o ouvir. Um amor ao sinthoma.

 


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. “Conferência em Genebra sobre o sintoma” (1975). Opção lacaniana. São Paulo: Eólia, n. 23, 1998, p. 6-16.
LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” (1976). In: _____. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 567-569.
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010.
MILLER, J.-A. “Os seis paradigmas do gozo”. Opção lacaniana online. n. 7, 2012, p.1-59. Disponível em http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf Acesso em: 21 set. 2021.
MILLER, J.-A. “Ler um sintoma”. Opção lacaniana. São Paulo: Eólia, n. 70, 2015, p. 13-22.
REINOSO, A. “Da indignação de si à dignidade do sinthoma”. Opção lacaniana. São Paulo: Eólia, n. 82, 2020a, p. 109-112.
REINOSO, A. “Um despertar poético para o riso”. Papers+Um: Freud-a-la-Lacan, 2020b, p. 45-46. Disponível em https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/01_papers_trad.pdf. Acesso em: 22 set. 2021.