EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 29

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EDITORIAL- ALMANAQUE N 29

Daniela Dinardi

Imagem: Fred Bandeira

 

Caros leitores,

Apresentamos a 29ª edição da Almanaque on-line!

Animados pelo desejo de transmissão do trabalho de pesquisa produzido no IPSM-MG e pelos demais colegas da nossa comunidade analítica, nos dedicamos a recolher textos alinhados ao tema de investigação do Instituto neste primeiro semestre de 2022: “Acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje” é a bússola que nos orienta.

Instigante, esta pesquisa trouxe para os nossos espaços de discussão a relação que liga o analista à dimensão política e à subjetividade de sua época, nos impulsionando a refletir sobre a prática da psicanálise nos nossos dias face ao discurso do mestre contemporâneo. Se para Freud a política é o inconsciente, Lacan inverte essa lógica afirmando que “o inconsciente é a política”, abrindo assim novas vias de estudo e reflexão.

Abrimos a revista com Trilhamentos, em que, em uma orientação epistêmica, vocês encontrarão textos que percorrem os caminhos traçados por Freud e Lacan relacionados à nossa pesquisa.

Frederico Feu de Carvalho propõe retomar a lição “Do nó como suporte do sujeito”, do Seminário 23 de Lacan, acrescentando a ela algumas reflexões sobre “o acontecimento de corpo político” e o que dele podemos extrair para pensar a prática com as psicoses. Ricardo Seldes, nosso colega da EOL e convidado para a aula inaugural do IPSM-MG, pergunta sobre como ser solidário com o futuro da psicanálise em meio à tendência de homogeneização de nossa época. Philippe La Sagna, em seu texto “O discurso como saída do capitalismo”, indica que, no discurso capitalista, o falasser se vê submetido à condição de consumidor e objeto consumido. O discurso analítico, tal como esse autor localiza, seria a possibilidade de desvendar essa maquinaria do mais-de-gozar e de arejar os seus efeitos. Véronique Voruz, em “Interpretar o material humano”, sublinha um efeito da interpretação que toca na vergonha face ao falasser reduzido a “material humano”, com vistas a restituir sua condição de sujeito barrado. Gustavo Stiglitz, no texto “Psicanálise e política, uma amizade estrutural”, afirma que a psicanálise sempre esteve ligada à política. Articulando inconsciente e política, ele traz elementos para pensar no papel que a psicanálise tem no enfrentamento de uma sociedade previsível, na qual desejo, risco e amor se dissolvem diante do regime do Todo.

Na rubrica Entrevistas, nosso colega Sérgio Laia conversa conosco sobre as possíveis saídas para que o discurso psicanalítico possa se manter como aquele que faz objeção à universalização, ao apagamento do desejo e ao império do mais-de-gozar presente na atualidade. Nosso entrevistado também se refere às mudanças provocadas pelo movimento de globalização do mundo sobre o que chamamos de raça, fraternidade e racismo e nos esclarece sobre como a psicanálise pode intervir na política.

Em Encontros, reservamos para vocês os artigos de Tânia Abreu, Silvia Baudini, Anaëlle Lebovits-Quenehen, Fabián Naparstek e Rodrigo Almeida. As duas primeiras nos brindam com uma leitura aguda do que está em jogo no documentário Pequena garota, trazendo à discussão um tema que tem mobilizado o debate no campo freudiano, refletindo sobre as repercussões das questões trans sobre as crianças. No texto “Psicanálise e Política: quatro modalidades de uma relação”, Anaëlle Lebovits-Quenehen expõe seus pontos de vista sobre a posição do analista em relação ao político e diante da política a partir de diferentes aspectos. Fabián Naparstek discorre sobre “Psicanálise e política” e destaca que a política da psicanálise implica em abrir a via da palavra e da interpretação para que cada sujeito possa produzir sintomas singulares que não caminhe em direção à consistência ideal imaginária das identificações.  Em “Discursos de gênero e psicanálise: possíveis interlocutores”, Rodrigo Almeida privilegia alguns pontos dos “discursos de gênero” e de suas teorias, especialmente naquilo que os contrapõem à psicanálise, interrogando sobre de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para a leitura dos psicanalistas sobre a subjetividade de sua época.

Em Incursões, apresentamos textos dos colegas que estão presentes nos espaços de investigação do Instituto. Suzana Faleiro e Sandra Espinha, em seus respectivos textos, discorrem sobre como um analista pode permitir à criança separar-se do lugar de objeto para reinventar sua família em um tempo marcado por uma desordem simbólica e na vigência de discursos de remediação cognitiva e comportamental que não levam em conta o real. Ainda nesse contexto, Maria Rita Guimarães recorta alguns elementos das reflexões de Ian Hacking para subsidiar o debate sobre a biopolítica reinante fundada em protocolos e classificações, para deles extrair as consequências para a clínica psicanalítica, sobretudo, a clínica com crianças e com autistas. Maria Wilma S. de Faria, em “O acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje”, indaga sobre o que pode a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Ana Maria Lopes e Henrique Torres, em “Corpos anoréxicos e o avesso da biopolítica”, partem de seus estudos sobre a clínica da anorexia para ressaltar a importância de uma aposta nas invenções sintomáticas singulares que cada sujeito inscreve nas marcas de seu corpo, destacando a importância da escuta clínica, hoje tão fragilizada na prática médica. Elaine Maciel, em “O corpo: do clínico ao político”, aborda a noção de corpo em psicanálise articulada à sua dimensão clínica e à dimensão política. No artigo “Psicopatologia do racismo cotidiano: do corpo político ao acontecimento de corpo”, Luís Couto investiga os efeitos sobre os corpos oriundos da história política de segregação racial em nosso país, particularmente, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo.

No que ressoa como efeito de transmissão para os alunos do Instituto, De uma nova geração, temos os trabalhos de Giulia Campos Lage, com “A neurose na urgência subjetiva”, e de Paulo de Souza Novaes, com “Momentos de virada no ensino de Jacques Lacan: do inconsciente transferencial ao inconsciente real”. Tais trabalhos evidenciam o estatuto ético da psicanálise na relação do sujeito com seu inconsciente e com a sua época.

Por fim, agradecemos aos autores que, generosamente, contribuíram para esta edição; à equipe de publicação, pelo cuidado na pesquisa, tradução e revisão dos trabalhos; à colega e fotógrafa Cecília Velloso Batista, assim como aos fotógrafos Fred Bandeira e Nelson Martins de Almeida, o nosso muito obrigado pela cessão de tão lindas e impactantes imagens! Aos nossos leitores, fica o convite para a apreciação dos textos desta edição, na expectativa de que eles possam contribuir em um debate tão atual e caro a nós psicanalistas e, dessa forma, como conclamou o nosso colega Ricardo Seldes, “solidarizar com o futuro da psicanálise”.

Boa leitura!




DO NÓ COMO SUPORTE DO SUJEITO[1] 

Frederico Feu de Carvalho
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
fredericofeu@uol.com.br

Resumo: A partir do terceiro capítulo do Seminário 23, de J. Lacan, o texto se propõe a esclarecer a utilização do nó borromeano por Lacan e algumas de suas aplicações à clínica das psicoses. Nesse contexto, confere-se privilégio à noção de Sinthoma como suporte do sujeito.

Palavras-chave: Nó borromeano; Sinthoma; sujeito.

From the node as support of the subject

Abstract: Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.

Keywords: Borromean knot; Sinthome; Subject,

 

 

Imagem: Nelson de Almeida

O título desta intervenção, “Do nó como suporte do sujeito”, refere-se ao terceiro capítulo do Seminário 23, de Lacan, proferido no dia 16 de dezembro de 1975. Proponho retomar aqui essa lição acrescentando algumas reflexões sobre o tema do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais para o primeiro semestre de 2022, “O acontecimento de corpo político”, de forma a extrair consequências para nossa prática com as psicoses.

A clínica borromeana, se podemos chamar assim a clínica pensada a partir do paradigma dos nós, se conforma à psicose joyceana, assim como a clínica estrutural se conforma à psicose schereberiana. Mais do que abordar as formas ditas não desencadeadas da psicose, a clínica borromeana nos permite pensar formas de encadeamento não referidas ao discurso ou à norma social. Nesse sentido, podemos dizer que a psicose joyceana se refere à psicose funcional, ou seja, à psicose do ponto de vista de uma solução, uma invenção, uma armadura singular que suporta a existência de um sujeito. Chamamos de sinthoma essa armadura singular, a ser lida como cifra de gozo. Acredito que podemos formular assim a questão que nos ocupa este semestre: sem dúvida alguma, a política é capaz de produzir acontecimento de corpo. Isso ocorre toda vez que o sinthoma de cada um, na medida em que ele é suportado pelas marcas que uma cultura inscreve no corpo do falasser, é afetado pelo acontecimento político.

– I –

Um nó borromeano é um tipo de amarração de três anéis, traçado de forma com que cada anel mantenha sua independência com relação aos demais. Essa é a condição borromena. O nó borromeano, diz Lacan, é “o forçamento de uma nova escrita (…) e é também o forçamento de um novo tipo de ideia (…) que não floresce espontaneamente apenas devido ao que faz sentido, isto é, ao imaginário” (LACAN, 1975/76, p. 127). Há diferentes formas de se conceber a amarração borromeana, assim como diversas formas de reparar uma amarração que apresenta um erro, como em Joyce. Uma política do sinthoma seria aquela que se atém a essa diversidade e condições singulares. Isso implica, como diz Lacan logo no início dessa lição, “que tivéssemos na análise o sentimento de um risco absoluto” (LACAN, 1975/76, p. 44). Esse risco parece condizente com a clínica borromeana, assim como o cálculo interpretativo parece se adequar melhor à clínica estrutural. Trata-se do risco inerente ao manejo dos nós, na medida em que o ato analítico é capaz de amarrar, afrouxar, apertar ou desfazer uma determinada amarração sinthomática que suporta a vida de um sujeito.

Lacan deixa no ar essa advertência para se ocupar, em seguida, de uma exigência derivada do que poderíamos chamar de realismo nodal. Qual é o mínimo de elos possíveis para que ocorra a propriedade borromeana? Como vimos, a propriedade borromeana pode se dar entre três anéis, se eles estabelecem entre si um traçado específico e se eles se amarram uns aos outros, estabelecendo uma continuidade entre eles de forma que o corte de um libera os outros dois.

 

Mas como manter juntos três anéis que não se amarram entre si, que não se amarram borromeanamente, por serem descontínuos devido à heterogeneidade entre eles, como é o caso do Real, do Simbólico e do Imaginário? Aqui é preciso supor que Real, Simbólico e Imaginário não se enodam espontaneamente, que o nó borromeano não é uma formação natural ou uma criação ex-nihilo e que é necessário acrescentar um quarto anel para que a amarração borromeana aconteça. É o que distingue o sinthoma como invenção de um sujeito.

 

Vejamos o que diz Lacan no referido capítulo do Seminário 23:

“Para que alguma coisa, que é preciso dizer que seja da ordem do sujeito — uma vez que o sujeito é apenas suposto —, encontre-se, em suma, sustentada no nó de três, será que basta que o nó de três se enode, ele mesmo, borromeanamente a três? Não nos parece que o mínimo em uma cadeia borromeana é sempre constituído por um nó de quatro?” (LACAN, 1975/76, p. 49).

(…) “É sempre em três suportes, que nesse caso chamaremos de subjetivos, isto é, pessoais, que um quarto vai se apoiar. Se vocês se lembrarem do modo com que introduzi esse quarto elemento em relação aos três elementos, cada um deles supostamente constituindo alguma coisa de pessoal, o quarto será o que enuncio este ano como o sinthoma” (LACAN, 1975/76, p. 50).

O quarto anel, que nomeamos sinthoma, escrito com “th”, tem a propriedade de manter junto o que, por definição, está separado (RSI). Nessa perspectiva, quando se considera que Real, Simbólico e Imaginário não estão amarrados borromeanamente, mas soltos, não tendo relação um com o outro, é o sinthoma que faz a amarração borromeana e é nesse sentido que ele é suporte do sujeito.

– II –

O que significa dizer que o nó suporta o sujeito? Significa que o sujeito não existe sem relação com seu sintoma. Ou seja: ele não existe a não ser pelo sintoma que o suporta, o que faz do sintoma a unidade clínica fundamental e irredutível de todo falasser. Mas o sujeito desconhece o seu sintoma, que para ele pode ser um estorvo, um desarranjo, um imperativo de gozo que contraria seus ideais ou uma forma clandestina de existência. No melhor dos casos, o sujeito é uma resposta ao real do sintoma. É essa resposta do sujeito ao real do sintoma que Lacan vai escrever de forma distinta, recorrendo a uma grafia antiga, como “Sinthoma”. Essa resposta se limita a um saber-fazer com o seu sintoma, ou sintomas, com isso que não se pode recusar, na medida em que o sintoma é o que suporta um sujeito.

Lacan cunhou, em seu último ensino, o termo falasser para expressar a relação entre o inconsciente e o gozo cifrado do sintoma que se estabelece sobretudo nas neuroses. A abordagem estrutural das formações do inconsciente, que são em geral fugazes e ligadas à expressividade do desejo, é tributária da lógica do significante e comporta mal a lógica do sintoma, ou seja, aquilo que perdura, que insiste e resiste à interpretação e que parece não querer dizer nada a ninguém, sendo, antes, tributário do gozo do corpo. Nesse sentido, em uma análise, é o sintoma que nos conduz das formações do inconsciente ao real. Dito de outra forma: se o inconsciente supõe o Outro da linguagem, sendo “estruturado como uma linguagem” e, portanto, interpretável — e mesmo infinitamente interpretável —, o resíduo do sintoma, o seu núcleo duro, ex-siste ao inconsciente e é nesse sentido que ele tem a ver com o real.

A identificação ao sinthoma, como destino de uma análise, seria então uma identificação a esse resíduo do falasser e comporta um paradoxo, pois, se por um lado, o sujeito é suportado pelo sintoma, se ele é imanente e não transcendente em relação ao sintoma, por outro lado, o sintoma é sempre “estrangeiro” ao próprio sujeito. A identificação ao sinthoma não é uma condescendência ao sintoma, mas uma resposta possível ao seu núcleo real, àquilo que o ultrapassa e determina o seu modo de gozo.

Essa identificação comporta um forçamento, o advento de uma nova escrita, como a “metáfora delirante discreta” do paciente B., “Déf(ier D)ieu”, caso relatado na Conversação de Arcachon por de Jean-Pierre Deffieux (1998, p. 18) e debatido por nós no Núcleo de Psicose. Essa escrita é forçada porque ela é suportada pela letra do sintoma que podemos seguir, no relato do caso, desde a queixa inicial, “falta-me energia”, até a “centelha de vida” do laço com o analista. Mas a letra do sintoma, que fala com o corpo, permanece como tal, fora do sentido. Ela excede toda elucubração do saber. Um sintoma, isso se lê, e é só a partir dessa leitura — a ser distinguida da interpretação de uma formação do inconsciente — que temos uma ideia do que poderá ter sido esse acontecimento de corpo primordial que cifrou o sinthoma. É como um procedimento de leitura que Deffieux isola analiticamente o que faz suporte para B., tomando os elementos literais da cena traumática ocorrida aos 8 anos — o mês de março, o bordão, a madeira, a nudez — para verificar aquilo que o mantêm amarrado — o artesanato, a preocupação com o bem e o belo, o laço paterno, o exibicionismo do corpo —, mas também os pontos de ruptura que levam a novas amarrações.

Vale comparar com o caso Emma, que Freud explora no Projeto, igualmente a partir de uma cena aos 8 anos, em relação à solução encontrada (FREUD, 1895/1969, p. 463-468). Em Emma, a mediação do inconsciente resulta na construção de uma fantasia, anteparo frente ao real, que se torna possível pela extração do objeto olhar. De fato, o caminho da formação do sintoma na neurose supõe que a fantasia seja suportada pela letra do sintoma para que se possa constituir o semblante do objeto causa do desejo. Nesse fragmento freudiano, vale lembrar, a cena traumática se inscreve no inconsciente a partir de alguns significantes, como “riso”, “roupa” e “loja”, em torno dos quais a fantasia se constrói. A fantasia é uma fachada para a implicação do sujeito no sintoma, diz Freud, e o sintoma é o que resta após a travessia da fantasia, como “gozo puro de uma escrita” (MILLER apud LAURENT, 2016, p. 48). É o que leva Freud a dizer que a cena traumática ocorrida aos oito anos de idade, que podemos equivaler, nesse caso, a um acontecimento de corpo, modula a realidade sexual de Emma, levando-a a reencontrar a mesma cena aos doze anos de idade, como uma contingência da qual ela extrai o seu próprio gozo graças à reversibilidade da pulsão, que faz com ela se sinta desejada e olhada ao olhar e desejar.

Em B., de forma distinta, o exibicionismo do corpo nu, que Deffieux compara à “função da fantasia na pantomima do sujeito neurótico” (1998, p. 18), mostra que o sujeito mesmo está no lugar do objeto olhado, sem dele se separar. Essa pregnância maior do sintoma, na falta da mediação do desejo na fantasia, parece exigir então formas suplementares de amarração, como “a inscrição sobre o corpo de um fenômeno psicossomático, a psoríase, e uma metáfora delirante discreta” (DEFFIEUX, 1998, p. 18).

– III –

A concepção do nó borromeano de quatro anéis, à qual Lacan se aferra no referido capítulo do Seminário, Livro 23: O sinthoma, se refere sobretudo às neuroses. Nela encontramos uma vinculação mais estreita entre o sintoma e o inconsciente do que encontramos, em geral, na psicose. O inconsciente trabalha a partir da letra do sintoma; ele é uma elucubração de saber sobre o acontecimento de corpo político, no sentido que demos a essa expressão, ou seja, a radicalidade da incidência de um gozo que afeta o corpo do falasser, a fim de que esse acontecimento, que tem lugar na pólis — não há acontecimento de corpo autóctone, que não seja derivado da irrupção de um gozo que se apresenta como outro para um sujeito —, seja minimamente subjetivado como sintoma. Dessa forma, o real, ou melhor, o pedaço de real que cabe a um falasser, pode ser conjugado com o imaginário e o simbólico.

Não é o que acontece, por exemplo, na paranoia.

Na medida em que um sujeito enoda a três o imaginário, o simbólico e o real, ele é suportado apenas pela continuidade deles. O imaginário, o simbólico e o real são uma única e mesma consistência, e é nisso que consiste a psicose paranoica (LACAN, 1975/76, p. 52).

Lacan diz que a amarração que caracteriza a paranoia é o que define também a personalidade. “Paranoia e personalidade não têm, como tais, relação, pela simples razão de que são a mesma coisa” (LACAN, 1975/76, p. 52). Como podemos entender essa igualdade? Ela sugere que personalidade e paranoia se equivalem porque, em ambas, os três registros não se distinguem, como seria o caso da consistência, atribuída ao imaginário, do furo proveniente do simbólico e da ex-sistência própria ao real, como veremos adiante. O que nos leva a concluir que a personalidade mantém sua própria coesão a partir do artifício que podemos definir como uma exclusão do sujeito que seria suportado pelo sintoma. De fato, a estrutura paranoica se mostra, para todos os efeitos, impenetrável, como um bloco monolítico que tudo interpreta de forma rígida e especular, como reflexo da própria personalidade, sem nada querer saber do sintoma que a concerne.

Poderíamos conceber ainda, a partir de outras indicações de Lacan para além do Seminário 23 — embora jamais desenvolvidas por ele e, sim, por autores do Campo Freudiano, como Nieves Soria e Fabian Schejtman[2] —, outras formas de enodamento próprias das psicoses, como a parafrenia, a mania e a melancolia.

No caso da parafrenia, essa indicação de Lacan é extraída de uma apresentação de paciente ocorrida em 1975, portanto, contemporânea ao Seminário 23. Trata-se da paciente conhecida como Sra. B., que Lacan identifica a uma parafrenia imaginativa pelo fato de que ela se reduz a uma “pura vestimenta”, ou seja, a um puro semblante, sem a menor ideia do corpo que leva sob essa vestimenta, daquilo que poderia fornecer um lastro a esse ser de puro semblante. Certamente, essa referência ao corpo por baixo do vestido deve ser tomada em sua ex-sistência real, e não em sua dimensão de consistência imaginária, que seria, justamente, aquela de um corpo recoberto por um vestido. Essa configuração parafrênica poderia, assim, ser apresentada como uma interpenetração do simbólico e do imaginário que deixa solto o real.

Em relação à mania e à melancolia, as indicações de Lacan são aquelas que encontramos em Televisão (LACAN, 2003a), texto de 1974. Nessas estruturas clínicas, é o simbólico que permanece desligado, enquanto real e imaginário se interpenetram. Nesse texto, no capítulo em que Lacan analisa os afetos a partir da estrutura da linguagem, o desligamento do simbólico foi por ele referido ao rechaço do inconsciente. Tal rechaço equivale, no plano ético, a uma covardia moral. A diferença é que, na melancolia, o real predomina e submete o imaginário, como “pura cultura da pulsão de morte”, da qual falava Freud (1923/1969, p. 69), esmagando assim a imagem narcísica em que o Eu se sustenta, enquanto, na mania, é o imaginário que se sobrepõe ao real na forma da excitação maníaca, produzida a partir de um “retorno no real daquilo que foi rechaçado da linguagem” (LACAN, 2003a, p. 524).

 

A psicose de Joyce, por sua vez, pressupõe um lapso da amarração RSI, como indicado no desenho abaixo, à esquerda, do qual resulta a interpenetração entre o Real e o Simbólico que deixa solto o Imaginário. Essa seria a forma predominante dos enodamentos encontrados na esquizofrenia. No diagrama à direita, esse lapso se encontra corrigido por um quarto elo, que restabelece a amarração entre eles, configurando o sinthoma.

 

Mas essa correção só realiza em parte a propriedade borromeana. De fato, podemos dizer que, dessa forma, o Imaginário passa a se amarrar ao Simbólico e ao Real. Lacan identificou esse quarto elo ao Ego de Joyce, cuja consistência é dada por sua obra. Contudo, a independência entre RSI, a outra condição essencial à propriedade borromeana, não é verificada. A interpenetração entre o Simbólico e o Real persiste na forma peculiar da escrita de Joyce, que Lacan comparou a uma dissolução da linguagem, uma escrita que não diz nada a ninguém, que não fala ao inconsciente de ninguém, marcada pelo enigma e, por isso mesmo, capaz de fazer trabalharem os universitários. É por isso que Lacan vai dizer que Joyce era desabonado do inconsciente.

O paradigma Joyce abre um leque de pesquisas que torna possível pensar as psicoses sinthomatizadas, ou seja, psicoses nas quais uma amarração a partir de um quarto elo permite ao sujeito se sustentar pelo sinthoma, de forma que a psicose não se desencadeie. Resta saber em que essa forma de psicose se distingue da pré-psicose, aquela, por exemplo, que manteve Schreber estabilizado até os 50 anos de idade graças às suas identificações imaginárias.

Uma hipótese, apontada por Nieves Soria a partir de Fabian Schejtman (SORIA, 2008, p. 69), permite fazer a seguinte distinção: uma psicose sinthomatizada seria aquela em que a correção do lapso do nó, como apontou Lacan na conclusão do Seminário 23, ocorre no mesmo lugar onde ocorreu o lapso do nó. É o caso do Ego de Joyce, que se sustenta justamente da natureza de seu sinthoma. Essa solução se distinguiria de outras, supostamente mais frágeis, nas quais a correção não incide sobre o ponto do lapso ou a solução encontrada se apoiaria em identificações imaginárias que se dissolveriam frente a um apelo simbólico ao Nome-do-Pai, como ocorreu com Schreber.

– IV-

Vimos que a amarração borromeana pressupõe a independência, mas também a equivalência entre os registros Simbólico, Imaginário e Real, diferentemente da clínica estruturalista, que postulava a primazia do simbólico sobre o imaginário como condição para que o real fosse enquadrado. Essa eficácia do simbólico será relativizada pela clínica borromeana, assim como o valor da interpretação analítica, em direção a uma pragmática que busca discernir como o sujeito se arranja, como ele se vira para se sustentar com o seu próprio sintoma, ou seja, como ele se vira com o que, para ele, constitui essas três “subjetividades” denominadas Real, Simbólico e Imaginário, que, mesmo sendo equivalentes, não deixam de ser heterogêneas. Lacan caracteriza essa heterogeneidade da seguinte maneira:

“Não é por acaso, mas como resultado de uma concentração que seja no imaginário que eu coloque o suporte do que é a consistência, assim como faço do furo o essencial do que diz respeito ao simbólico e o real sustentando especialmente o que chamo de a ex-sistência” (LACAN, 1975/76, p. 49).

consistência atribuída ao Imaginário é o que resulta da “ideia de si mesmo como corpo”, ideia para a qual Lacan utiliza o termo “Ego”, o mesmo termo que ele utiliza para nomear o sinthoma de Joyce. Isso define uma relação de propriedade do sujeito com o seu corpo. De fato, o sujeito tem um corpo; ele não é um corpo. Mas isso é apenas uma crença. “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem”, diz Lacan. “Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN, 1975/76, p. 64). Portanto, a consistência imaginária, ou seja, “aquilo que mantém junto” o falasser e seu corpo, se refere a uma ideia, como a ideia de um saco, e é sustentada por uma crença. A propriedade borromeana atribuída ao sinthoma, no sentido do que mantém junto RSI, deve ser distinguida da consistência do Imaginário que mantém junto o falasser e seu corpo. Trata-se de uma consideração importante, especialmente se referida ao campo das psicoses, na medida em que a recomposição do imaginário pode vir a ser, em alguns casos, uma orientação clínica. Se tomamos o exemplo de Joyce, vimos que essa recomposição se faz por meio do sinthoma, ou seja, a escrita e a publicação de uma obra, o que implica tomar Joyce como um artífice de seu próprio sinthoma, na medida em que isso tem efeito de suplência do lapso que deixa solto o imaginário.

furo do Simbólico, por sua vez, advém da característica fundamental do significante, a de ser aquilo que representa um sujeito para um outro significante. Se partimos dessa definição, é o sujeito mesmo que aparece como esse furo, no sentido da sua falta-a-ser. O simbólico, portanto, ao qual se deu primazia quando a clínica lacaniana se orientava por uma busca da verdade, é sem esperanças, se quisermos nos apoiar nele para nos sustentar como sujeitos. Os obsessivos que o digam. Vale relembrar, no entanto, que Lacan distingue o furo do simbólico, que o “especializa” enquanto um sistema de linguagem marcado pelas substituições metafóricas e deslizamentos metonímicos, do que Lacan chama de “o verdadeiro furo”, Ⱥ, que ele situa fora do simbólico, na confluência do real com o imaginário, como veremos adiante. Não há Outro do Outro. Isso reduz o simbólico ao sentido imaginário, mesmo quando interpretamos uma formação do inconsciente seguindo as trilhas das leis do significante que herdamos de Freud. Essa condição não nos impede de fazer ciência, isto é, de utilizar a via lógica para nos orientar na busca da verdade no campo da realidade, para além do que almejamos como a consistência do imaginário que, como sabemos, nos engana o tempo todo, por ser essa crença sustentada por uma miragem. É o furo do simbólico, portanto, o que nos permite figurar a verdade dos fatos para além de uma crença subjetiva.

ex-sistência do Real, por sua vez, deriva primeiramente do fato de que o sentido está foracluído do Real (LACAN, 1975/76, p. 117). Na medida em que o sentido é o que enquadra para nós o campo da realidade, o real não diz respeito à realidade das coisas, como ocorre em relação à ciência, tampouco se confunde com o que poderíamos chamar de uma natureza humana, que não sabemos bem a que se refere, uma vez que ela é atravessada pela linguagem. Seria o real uma pura potência negativa? Lacan vai dizer que o fato de o Real não poder ser imaginado ou pensado não quer dizer que o Real seja um limite da experiência humana. Pelo contrário, o Real incide o tempo todo, no sentido de que ele é uma experiência cotidiana, a experiência de um acontecimento de corpo. O Real também não se atém ao Ⱥ, o furo do simbólico, que é o limite da imaginação humana. O que confere certa esperança em relação ao real é ele poder ser contido pelo nó borromeano para um sujeito. Se não fosse assim, não haveria como suportá-lo. O nó borromeano é o que permite ao falasser cernir um pedaço do real, para chamar de seu, podemos dizer. É nesse sentido que Lacan (2003b) aproxima o sinthoma do acontecimento de corpo. É por ser um acontecimento de corpo que o sinthoma tem a ver com um real, com um real que Lacan chama de “orientável”, mesmo que essa orientação exclua o sentido. A ex-sistência é uma forma de existência específica do nó. Vejamos o que diz Lacan sobre isso:

“Ao sistir fora do Imaginário e do Simbólico, o real colide, movendo-se especialmente em algo da ordem da limitação. A partir do momento em que ele está borromeanamente enodado aos outros dois, estes lhe resistem. Isso quer dizer que o real só tem existência ao encontrar pelo simbólico e pelo imaginário a retenção” (LACAN, 1975/76, p. 49).

– V –

Lacan retoma, na quarta parte do capítulo III do Seminário 23, que estamos examinando, o esquema do nó borromeano já trabalhado em seu Seminário 22, RSI. A planificação do nó permite estabelecer três campos de contato, cada um sendo o resultado da articulação de dois registros, com a concomitante exclusão do terceiro. O campo central, como sabemos, é preenchido pelo objeto a, que não aparece representado nesse esquema do Seminário 23. Lacan observa, em primeiro lugar, que a notação (Ⱥ) se refere ao axioma “não há Outro do Outro”, o que quer dizer que nada se opõe ao Simbólico. Por conseguinte, não há também J(Ⱥ), o gozo do Outro do Outro (LACAN, 1975/76, p. 54), a não ser no imaginário da paranoia, na medida em que essa estrutura clínica identifica o gozo com o lugar do Outro. É nesse espaço entre Imaginário e Real, que se escreve como Ⱥ, que Lacan vai localizar, como acabamos de observar, o que ele chama, no capítulo IX, de o verdadeiro furo, a ser distinguido da falta inerente à castração, que devemos situar em um outro campo, aquele do gozo fálico. Esse furo, ao qual não corresponde nenhuma ordem de existência, remete, por outro lado, àquilo que podemos chamar da inibição própria do Imaginário em relação ao Real. É a essa inibição que Lacan recorre, na elaboração desse seminário, para justificar as dificuldades e os erros cometidos por ele mesmo ao traçar imaginariamente os seus nós borromeanos, o que, para ele, é um índice do real do . Embora as diversas configurações dos nós tenham como suporte uma imagem, como essa que está agora diante de nossos olhos, a dificuldade de imaginação é patente quando se trata de seus entrelaçamentos, da mesma forma que as dificuldades de escrita dos nós. Nesse sentido, vemos que o nó não é o matema, essa escrita lacaniana clarificadora e reduzida à qual podemos associar uma espécie de mecânica que condensa uma série de relações entre o imaginário, o simbólico e o real.

O segundo termo evocado por Lacan nessa lição é o sentido, localizado por ele na confluência entre o imaginário e o simbólico. Esse campo mostra que o sentido atribuído ao simbólico está em continuidade com o imaginário, e não em oposição a ele. O máximo que podemos atingir pela via do sentido, como quando interpretamos, é alguma ordem de ficção, uma vez que o verdadeiro, em se tratando da análise e não da ciência, não pode ser dito com os instrumentos da linguagem. Disso, resulta o que Lacan chamou de juis-sens, o gozo do sentido, que é o gozo próprio da confluência do simbólico com o imaginário ao qual podemos relacionar o modo de satisfação do delírio, assim como o do trabalho do inconsciente. O que se opõe ao simbólico não é, portanto, o imaginário, como na clínica estrutural, mas Ⱥ. Por outro lado, o que se opõe ao sentido é o real.

Finalmente, temos o gozo dito do falo, que Lacan distingue aqui do gozo peniano:

“O gozo peniano advém a propósito do imaginário, isto é, do gozo do duplo, da imagem especular, do gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o corpo é o suporte imaginário. O gozo fálico, em contrapartida, situa-se na conjunção do simbólico com o real. Isso na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário, devido a essa própria fala, devido ao falasser” (…) Portanto, inscrevo aqui o gozo fálico contrabalançando o que concerne ao sentido. É o lugar do que é em consciência designado pelo falasser como poder” (LACAN, 1975/76, p 55.).

Lacan não desenvolve, ao menos nesse capítulo, a aproximação entre o gozo fálico e o poder, mas podemos supor que se trata de um destino possível a ser dado ao acontecimento de corpo político pelo sintoma. De qualquer maneira, é preciso sublinhar a distinção entre o gozo do sentido e o gozo próprio ligado à função de fonação que caracteriza o gozo fálico. O gozo fálico participa do real por ser um gozo “fora-do-corpo”, na medida em que está associado à fala, e é por isso que ele não se refere ao gozo peniano, o gozo próprio do corpo que concerne ao imaginário.

Resta saber em que consiste, propriamente falando, o gozo do sinthoma. Podemos deduzir que o gozo do sinthoma refere-se a um saber-fazer a partir do qual o sujeito pode ligar um pedaço do real ao semblante, uma vez que o semblante que permite enquadrar a realidade onde pisamos depende da amarração do real, isto é, de forma que um acontecimento de corpo, aquele que é próprio a um falasser singular, possa ser concernido.

É nesse sentido que se pode dizer que o gozo do sinthoma é um gozo possível que resulta de um tratamento do impossível. A clínica borromeana pode ser então concebida a partir de uma pragmática que concerne ao sintoma. Em suas várias facetas, se considerarmos as variedades e as exigências borromeanas das quais resulta essa possibilidade, poderíamos afirmar, de acordo com essa pragmática, que “é de suturas e emendas que se trata na análise” (LACAN, 1975/76, p. 71).

Proponho, para concluir, lembrar simplesmente em que consiste essa pragmática analítica Ela diz respeito às diferentes conexões do falasser que o sinthoma busca concernir como suporte do sujeito: o corpo, o laço social, o pensamento e o sexo.  

 


Referências
DEFFIEUX, J.-P. “Um caso nem tão raro”. In: Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998, p. 13-18.
FREUD, S. (1895) “Projeto para uma Psicologia Científica”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1969, vol. I, p. 381-533.
FREUD, S. (1923) “O eu e o id”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1969, vol. XIX, p. 13-85.
LACAN, J. (1975/76) O Seminário, Livro 23o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2007.
LACAN, J. “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003a, p. 508-542.
LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003b, p. 560-565.
SORIA DAFUNCHIO, N. Confines de las psicoses. Buenos Aires: Del Bucle, 2008.
SCHEJTMAN, F. Las dos clínicas de Lacan. Buenos Aires: Tres Haches, 2000.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

[1] Texto apresentado no  Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose da Seção Clínica  do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 29 de abril de 2022.
[2]  Conforme destacado por nós nas referências bibliográficas para este texto.



O INCONSCIENTE E O CORPO POLÍTICO: A PSICANÁLISE HOJE[1] 

RICARDO SELDES
Psicanalista, AME da EOL/AMP
ricardoseldes@gmail.com

Resumo: O futuro da psicanálise é algo que está sempre em questão, pois está ligado ao lugar de onde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado, algo que exige a abertura para o desconhecido e não ao que já está categorizado. Nessa perspectiva, se indicações ao analista existissem, elas estariam ligadas a uma transmissão da psicanálise, que se faz de analisante a analista e pela transferência de trabalho, apresentando o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.

Palavras chaves: futuro da psicanálise; transmissão.

Interpretation: The Unconscious and the body politic: psychoanalysis today.

Abstract: The future of psychoanalysis is something that is always in question because it relates to how each person managed to do with their analyzed symptom, something that requires an opening to the unknown and not to what is already categorized. From this perspective, if analyst referrals existed, it would be linked to a transmission of psychoanalysis, which happens from analysand to analyst and through transference of work, and having Lacan’s desire, which is always alive and new, against the freezing standards of an experience that can’t help but be as alive as this desire.

Keywords: future of psychoanalysis; transmission.

 

Imagem: Fred Bandeira

 

Agradeço este convite por vários motivos: primeiro, pela amizade que tenho com vocês há muitos anos, pois não é novidade que eu gosto da Escola Brasileira de Psicanálise, e porque acredito que, nestes tempos em que existem tantos ataques à liberdade da palavra e o conseqüente ataque à psicanálise, os psicanalistas e, em particular, os de orientação lacaniana, têm que conseguir ficar mais unidos do que nunca.

Claro que, como o sangue não-todista corre em nossas veias, a pergunta que nos fazemos é: como podemos ser solidários com o futuro da psicanálise? Isso é algo que está sempre em questão.

Essa mesma proposta exige alguns princípios e alguns acordos que, como a verdade, nunca são definitivos, nem devem nos levar à burocratização da prática clínica ou da prática institucional, que são duas experiências subjetivas. Claro que o coletivo, o individual, as forças que fazemos juntos estão sempre em questão, mas pelo discurso analítico, desde o lugar aonde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado ou, podemos dizer, com seu “sinthoma”, na medida em que é sempre um arranjo.

Há alguns anos, em preparação para um dos Congressos da Associação Mundial de Psicanálise que aconteceu no Brasil, na Bahia[2], tive o prazer de fazer parte do Comitê de Ação junto com meus amigos Esthela Solano, Jésus Santiago e Marco Focchi. Na ocasião, o tema que escolhi foi o das indicações e contraindicações à psicanálise a partir de uma intervenção de Miller na International Psychoanalytical Association (IPA), na qual ele falou sobre as não-indicações à psicanálise, o que é uma forma de conceber a prática diferente daquela de muitos dos colegas da IPA.

O essencial poderia ser resumido dizendo que, com a psicanálise aplicada, não temos contraindicações, e podemos acrescentar: se, no passado, se falava das indicações para uma análise, era para localizar se uma determinada estrutura psíquica era adequada ou não. No tempo do falasser, quase todo mundo pode ser analisado.

Qual foi a principal contraindicação de Freud? Ele afirmou:

“Nos anos anteriores à guerra, quando a afluência de pacientes estrangeiros me tornou independente da simpatia ou antipatia de minha própria cidade, eu seguia a regra de não tratar pacientes que não fossem sus juris, ou seja, que não fossem independentes nas questões essenciais da vida.” (FREUD, 1917, p.610)

Sui juris é uma frase latina que significa, literalmente ‘em seu próprio direito’. Em Direito Civil, indica a capacidade jurídica para administrar seus próprios negócios. Mas, é claro, continua Freud: “Não é algo que todo psicanalista pode se permitir” (FREUD, 1917, p.610).

Freud assim se manifesta: “Os senhores perceberão, naturalmente, como as perspectivas de um tratamento são determinadas pelo meio social e pela condição cultural de uma família“ (FREUD, 1917, p.610). Freud mesmo teve que suportar abusos da família de uma paciente que foi retirada do tratamento por ter  revelado em análise segredos extraconjugais da mãe.

No início de um tratamento ainda não há um caso, mas há condições para que isso ocorra. Desde a primeira consulta, localizamos dados clínicos que nos permitam captar a decisão do sujeito. Estamos no limite do sujeito suposto saber, estamos nas provas que o analista, sutilmente, pede para que se permita que o sujeito suposto saber se instale.

Nos tempos atuais, tentamos trabalhar a inconsistência, ou seja, algo diferente da psicanálise construída na lógica das classes, a que permite dizer isso é ou isso não é. Assim como a primeira psicanálise foi erguida na lógica do para todo x, neste momento atual ela visa não a classe, senão a série, pois com ela temos a invenção, os arranjos e a abertura mais para o desconhecido do que para o que está categorizado.

Os trabalhos do IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise que investigou a prática sem standards, mas não sem princípios[2], estavam em andamento quando me detive sobre um Simpósio da IPA, do ano de 1967,[3] para pesquisar sobre como as regras técnicas, das quais Lacan nos dispensa, tentavam localizar o real que encontravam em sua prática. Nesse Simpósio descobri, em princípio, três períodos diferentes sobre as regras técnicas que interrogavam aqueles pontos limites, nos quais a experiência do real estava dentro ou fora da experiência analítica.

O esforço dos analistas das décadas de 1920 e 1930 se concentrou em conceituar o obstáculo que limita a intervenção analítica — não para retroceder, mas para tentar inventar uma maneira de ultrapassar o obstáculo. No segundo período, proliferaram as listas de contraindicações baseadas em traços de inadequação dos pacientes ao dispositivo. Também coincide com o que chamaram de um entusiasmo excessivo dos colegas para cuidar de pacientes decepcionados com a psiquiatria.

O terceiro e atual momento da IPA é aquele em que a psicanálise se desprende das regras — não em busca de desregulamentar os padrões e capturar a singularidade do gozo de cada pessoa, mas, ao contrário, para homogeneizar todos os gozos.

Para Lacan, não se trata de escolher os pacientes, mas de que eles possam dar forma de pergunta à sua demanda, que a problematizem. Estamos obrigados a saber o que se pede; mais precisamente, o que define a demanda é que nunca se sabe o que se deseja. Lacan pergunta: “O sujeito suposto saber de onde é suportada, definida a transferência é suposto saber o quê? Como opera? (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa). E acrescenta:

“Seria totalmente excessivo dizer que o analista sabe de que modo operar. O que seria necessário é que ele saiba operar convenientemente, ou seja, que possa se dar conta  do alcance das palavras para seu analisando, o que incontestavelmente ignora.” (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa)

Daí a indicação de não compreender. No lugar de técnicas e regras, que já vimos a que conduzem, colocamo-nos sob a noção de enfrentamento do real. Neste ponto, sabemos que não apostamos em interpretações padrão, mas que nossas interpretações são feitas sob medida.

O risco de assimilar a interpretação como formação do inconsciente é acreditar que ela é o que responde à associação livre, com a consequência de tomar a interpretação como associação do analista. Confundir interpretação com associação é pensar que o significante da interpretação preencheria um buraco nas associações do sujeito, supondo que o preenchimento desse buraco permitiria ao sujeito dar um passo. Partimos da ideia de que é a interpretação que vai ao encontro da transferência — não uma associação que proporciona ao sujeito a ligação com o S2, mas que opera no vetor de uma dissociação, de um corte na cadeia significante entre S1 e S2. Isso nos confronta com a dimensão do S1 sozinho.

Quando estamos nesse nível, podemos considerar que existem certas palavras que o sujeito distingue, que  lhe tocam; quaisquer palavras, inclusive palavras banais que  foram ditas a um terceiro e escutadas por acaso. Mas, se o sujeito as toma para si, elas adquirem um status de palavras primeiras, separadas, não binárias, como está na moda, pois a cadeia significante é binária. Visamos então o não binário para capturar, produzir, isolar o S1. O corte da interpretação produz uma separação significativa do S2 como se pode ver no andar inferior do Discurso do Analista.

Como evitar que a intervenção do analista, que denominamos, genericamente, de interpretação, não acrescente mais um significante à cadeia, mas a produção daquele S1? Vamos partir do mais básico, da idéia de que a psicanálise é uma oferta explícita de palavras: fale, estou ouvindo. O que está implícito é o não entendimento, sem limitar a curiosidade necessária ao que a palavra dita produz.

Entretanto, no momento em que o enquadramento analítico fica explícito ao estabelecer as regras do jogo, adiciona-se uma explicação: você associa, fala tudo, a mais plena bobagem, e aí eu vou interpretá-la. Alguns chamavam de devolver, termo de que nunca gostei, como uma espécie de reembolso; não há virtude em supor um dar e receber quando, muitas vezes, o que se impõe é o silêncio do analista.

Lacan vai propor no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), naquele momento de ruptura definitiva com a IPA, a função do analista como objeto, destacando, especialmente, a tensão que existe entre o inconsciente e a interpretação. Já não se trata do inconsciente como reservatório dos significantes do sujeito, pois, quando se trata do discurso do analista, é o inconsciente que interpreta. O que poderíamos acrescentar que não seja para redobrar essa interpretação?

Como dissemos antes, Lacan trará à tona a questão do fechamento do inconsciente, e há ai um paradoxo, pois ele nos dirá que esperamos esse efeito da transferência para interpretar, ao mesmo tempo em que a transferencia fecha o sujeito ao efeito de nossa interpretação. São os enganos do amor…

Isso não impedirá Lacan de avançar dizendo que a transferência é o amor que se dirige ao saber, o que implica que a interpretação não obtém seu alcance senão nos momentos em que o saber inconsciente é interrompido. E o que isso quer dizer?

Tentamos localizar uma erótica da presença do analista quando Lacan definiu a transferência como a atualização (no sentido do ato) da realidade do inconsciente como sexual.

Para entender isso, temos que fazer um pequeno loop porque, se o sujeito entra em jogo a partir do suporte fundamental que é o Sujeito Suposto Saber, isso não acontece simplesmente, sem que haja um porquê. Há uma causa anterior e Lacan aponta, de modo claríssimo, que, se há uma suposição de saber, isso se dá porque há um sujeito do desejo. Não é pouca coisa dizer isso. Se existe um suposto  saber, é porque o analista é o sujeito do desejo.

Disso decorre a dificuldade quando o Sujeito Suposto Saber é instalado em outra parte, em outra pessoa. Essa é uma estranha formulação, porque, nesse ponto, Lacan já não coloca mais  a análise como intersubjetiva. A torção que ele faz é percebida. Quando há amor de transferência isso remete ao narcisismo ou, como disse Freud, ama-se ser amado.

Mas que tipo de efeitos pretendemos? Os efeitos lacanianos são o que definem a experiência analítica como uma pesquisa clínica para encontrar os pontos onde se alcança a certeza, no encadeamento entre a cadeia significante e o gozo pulsional. Se existe um fenômeno lacaniano, isso implica que ele é escutado e, se existe, é porque ele é apresentado com um sentido. No entanto, o inconsciente tem mais a ver com o Witz. Esse é um princípio que nos leva a evitar a compreensão emocional dos pacientes.

Se indicações ao analista existissem, elas  indicariam aquele ponto em que a transmissão da psicanálise, que se faz de sujeito a sujeito e pela transferência de trabalho, apresenta o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.

Ao contrário da tarefa complicada e impossível de tentar homogeneizar os gozos, seja por decreto, seja por invasão, interrogamo-nos sobre algo que nos retira da lógica de um certo totalitarismo psicanalítico. Sabemos que o totalitarismo é uma esperança, a de reabsorver as decisões singulares, a multiplicidade da verdade. No totalitarismo só existe uma verdade, que é a enorme tarefa de estabelecer o reino do Um. No campo da política temos claramente o que Freud indicou em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). Na política cidadã, o totalitarismo tem boas intenções; a aspiração a um mundo de harmonia, todo mundo reconciliado, como algumas religiões o buscaram (na superfície, é claro). Mas ainda é uma ilusão que não se sustenta.

Não preciso explicar muito quando digo que, se falamos do sujeito do inconsciente, pensamos em desejo, e, quando colocamos a questão do falasser, estamos do lado do gozo e da pulsão, em que o sujeito é sempre feliz. Ele é feliz porque a pulsão é sempre satisfeita, direta ou indiretamente; do ponto de vista econômico, ela é satisfeita dolorosamente ou agradavelmente, do lado do prazer ou do desprazer. Esta tese corresponde a apontar que existem arranjos ou modos de gozo, como sugere Lacan, em Televisão (LACAN, 1974/2003), nos quais  o sujeito é sempre feliz na satisfação da repetição.

Assim, afirmamos que la urgencia dicha, como dizemos em espanhol, dita no sentido de falada — nos remete àquela estranha felicidade do silêncio das pulsões que podem atingir o mais mortífero.

Miller disse que afirmar que o sujeito é feliz é uma vociferação. Uma vociferação é uma exclamação que vem de uma voz muito alta. Não é uma afirmação, nem uma proposição. A  proposição sempre vem com sua suposta afirmação: é um fato sem valor de verdade ou falsidade. A vociferação, por outro lado, supera a divisão do enunciado e da enunciação, pois não suspende, nem se distancia de quem a pronuncia, mesmo quando não há outro que não se distancie de onde se pronuncia. Ela é, fundamentalmente, seu ponto de emissão.

Somos consultados, em várias ocasiões, devido à depressão:

“O que a tristeza tem de central é que ela é um saber; existe lucidez na tristeza, mas é um saber triste, por ser cortado da vida, separado do real do gozo. É um saber que se articula só, e que perdeu o vazio que o articularia ao gozo em si.” (LAURENT, 2000, p.88)

O analista é aquele que se orienta pela ética do bem dizer, que prescreve encontrar um acordo, uma harmonia, sim, mas se trata de uma certa harmonia entre o significante e o gozo. O problema da depressão é uma questão de saber, é fundamentalmente um saber triste, que não pode ser dito. Recebemos pacientes deprimidos, muitas vezes como uma emergência, moderados ou graves, que não conseguem colocar em discurso algo do não dito. Paradoxalmente, a chamamos de “a dita urgência”, aquela que se desfruta sem saber. A escuta da demanda de cada um marca uma virada, pois, para o discurso analítico, os fatos do desejo e a resposta do gozo são singulares.

Se a temporalidade da análise é a angústia, e isso vale também para a urgência, para aquele momento de perplexidade em que a palavra fica presa na garganta, como diria Chico Buarque. Temos a função operativa do desejo do analista que visa despertar um contorno de espera. Não de esperança, isso sempre complica. Podemos caracterizá-la como uma proposta que permite uma mistura de aborrecimento, nos momentos de agitação – o tédio está sempre à espera de Outra Coisa –  com a oferta de encontrar uma surpresa mais eficiente que a disjunção ou o desapego do Outro.

Freud descobriu  que o corpo do falasser fala. Mas também goza, especificou Lacan. É o que a psicanálise demonstra: não há gozo sem corpo e que uma análise não visa apenas decifrar a verdade, mas também o gozo produzido no sinthoma.

Na aula V do seminário Mais Ainda, Lacan dirá que “todas as necessidades do ser falante estão contaminadas pelo fato de estarem implicadas com uma outra satisfação – sublinhem as três últimas palavras – à qual elas podem faltar.” (LACAN, 1973, p.70)

Já sabíamos que não basta pensar na satisfação da necessidade para entender o que é satisfação, pois existe outra. Qual é o outro termo ao qual essa outra satisfação se somaria? Essa outra satisfação dará origem ao inconsciente, que se satisfaz no nível da linguagem, diz Lacan nessa aula do seminário Mais, ainda, na qual já está preparando seu conceito de falasser.

O inconsciente é o lugar da satisfação, e não apenas do que é interpretado ou decifrado.Nesse seminário, o salto é perceber que o significante não tem apenas efeitos de significação, mas também de gozo, ou seja, o significante não apenas mortifica o organismo do ser vivo, mas também produz gozo. E é com isso que temos que lidar na análise, que é, fundamentalmente, uma experiência de fala.

Isso é também, particularmente, verdadeiro para a interpretação que é o modo de intervenção do analista. A interpretação não é solicitada por seus efeitos de sentido, mas de gozo, por seus efeitos corporificados. Trata-se aí de colocar, junto à dimensão da verdade, a da materialidade do significante, ou seja, o som, o que nos leva à noção de lalíngua, na qual é o som, o fonema, que tem uma importância especial. Isso dá à interpretação uma cor especial, essa sua emigração da comunicação do saber para um grito, uma jaculatória, um uso do significante sem o uso do sentido, pois, o que importa é a sua consistência, “o que poderia fazer soar o sino do gozo de maneira conveniente para satisfazer-se com ele” (MILLER, 2011, p.268, tradução nossa).

E aqui estamos no ponto em questão: devemos separar o gozo da satisfação. Não haveria experiência analítica se o gozo fosse satisfatório. Somente a jaculação pode retificar, não o sujeito, mas o gozo para que possa ser concebido como satisfatório. Em outras palavras, temos um gozo que seria satisfatório e um outro que não.

Faço um curto-circuito para pensar no discurso da ciência que tende a ser universalista, pois não pode responder à questão que nos é colocada em consequência do que chamamos de a modalidade do gozo ou, pode-se dizer, o imperativo de gozo do qual cada um é escravo. E isso é em si uma resposta.

Pretende-se que o discurso científico ofereça respostas para o gozo, mesmo aquele  que vemos muito grosseiramente em nosso campo, que atua como um discurso científico, com suas extrações absurdas e estatísticas sugestivas.

 

Revisão: Beatriz Espírito Santo

REFERÊNCIAS: 
FREUD, S. (1917). Conferência 28, A terapia analítica. In: Sigmund Freud, Obras Completas, v. 13, Conferências introdutórias à psicanálise (1916-17), São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FREUD. S. (1921) Psicologia das massas e análise do eu. In: Sigmund Freud, Obras Completas, v. 15. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos – 1920-23, São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1974). Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1973). Aristóteles e Freud: a Outra satisfação, In: O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1977). Una práctica de charlataneria. In: O Seminário, livro 25: El momento de concluir, inédito.
LAURENT, E. (2000). As paixões do ser. Seminário da VII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise. Salvador, Bahia: Escola Brasileira de Psicanálise, 2000.
MILLER, J.A. (2011). El goce no miente, In: Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2020.

[1] Conferência pronunciada na Aula Inaugural do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 07 de março de 2022.
[2] IV Congresso, em Comandatuba, 2004: “A prática lacaniana da psicanálise: sem standard mas não sem princípios”
[3] IV Congresso, em Comandatuba, 2004: “A prática lacaniana da psicanálise: sem standard mas não sem princípios”
[4] Trata-se do 25º. Congresso da International Psichoanalytical Association (IPA), ocorrido em Copenhagen, sobre o tema “Tratamento Psicanalítico da Neurose Obsessiva”



O DISCURSO COMO SAÍDA DO CAPITALISMO[1] 

 

PHILIPPE LA SAGNA
Psicanalista,  A.M.E. da ECF/AMP
plasagna@free.fr

Resumo: Lacan aponta uma afinidade entre o discurso capitalista e o discurso da ciência, no qual o desenvolvimento do primeiro acompanha o segundo. Nessa aliança, a verdade passa a ficar envolta em brumas e o saber vira um objeto de mercado. O discurso capitalista se apresenta sob a égide do consuma-se e deixe-se consumir, sempre com um mais-de-gozo que se impõe ao sujeito contemporâneo. O discurso analítico tem a possibilidade de desvendar a maquinaria do mais-de-gozar e, ao fazer do objeto a causa de desejo, arejar os efeitos do mais-de-gozar.

Palavras-chave: mais-de-gozar; mais-valia; mercado; discurso.

Discourse as a way out of capitalism

Abstract: Lacan points out that there is an approximation between the capitalist discourse and the discourse of science, where the development of the first follows the second. In this alliance, truth becomes surrounded by mist and knowledge becomes a market object. The capitalist discourse is presented under the mandate of consume and get consumed, always with a surplus jouissance that is imposed to the contemporary subject. The analytical discourse presents the possibility to unveil the machinery of the surplus jouissance, and freshen its effects by making the object the cause of desire.

Keywords: surplus jouissance; surplus value; market; discourse.

 

Imagem: Fred Bandeira

 

 

“A crise consiste justamente no fato de que o antigo morre
e que o novo não pode nascer: durante esse intervalo
os mais variados fenômenos mórbidos são observados.”
Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere

Do capitalismo de produção ao discurso capitalista 

Muito cedo, Lacan foi um leitor de O capital, de Karl Marx. Mas ele soube tornar essa leitura útil ao longo de toda a elaboração de seu pensamento. Em seu Seminário 18, Lacan explica como ele utilizou o “godê da mais-valia” (LACAN, 1971/2003, p. 46) para despejar nele a relação de objeto de Freud. Essa homenagem a Marx é ambígua: se ela não apaga a mais-valia, ela a torna um pouco antiquada ao apresentar a categoria do mais-de-gozar. Hoje, a mais-valia, no sentido de Marx, não é mais o que era. A direita liberal a considera uma noção obsoleta e pouco científica. Curiosamente, uma parte crescente da extrema-esquerda questiona a tese clássica segundo a qual a apropriação da mais-valia representa o alfa e o ômega da força da exploração do homem pelo homem. Se considerarmos que essa exploração é também a das mulheres ou dos colonizados, o economismo subjacente à teoria da mais-valia marxista vacila. A construção teórica da mais-valia deve distinguir o trabalho e a força de trabalho e pensar esta última através da noção de um trabalho abstrato. O valor do trabalho, agora abstrato, poderia ser mercantilizado sem problema algum. Mas, se Lacan, em 1968, retomou seu debate com Marx, foi também no contexto do debate entre Sartre e Lévi-Strauss sobre a ação da história e da cultura. Em 20 de novembro de 1968, durante uma sessão de seminário, Lacan postula que a ideia de Marx de trabalho abstrato, necessária à teoria de mais-valia, passa pela “absolutização” do valor trabalho, o que não pode ser pensado sem um “desenvolvimento de certos efeitos de linguagem”, ao qual ele acrescenta: “e foi por isso que introduzimos o mais-de-gozar” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 37). Trata-se, portanto, de pensar o capitalismo como um discurso — para aquele que dirá “eu” para expressar sua frustração de “sujeito”, assujeitado, do discurso capitalista.

 

Mercado do trabalho/mercado do saber

Esse discurso capitalista supõe uma afinidade com o discurso da ciência. O desenvolvimento do primeiro acompanha o segundo. Pouco antes, em seu texto “A ciência e a verdade”, Lacan havia afirmado que a ciência se especifica por nunca querer conhecer a verdade como uma causa. Do lado da verdade, o proletariado encarna a verdade do sistema capitalista e é para os marxistas o instrumento de sua subversão e da saída do discurso capitalista. Ora, a modernidade permitiu verificar a dificuldade que constitui o fato de que essa ação louvável supõe uma consciência de classe que, como mostra a história, muitas vezes não existe. O proletariado moderno não hesita em adotar os ares do narcisismo egoísta da sociedade dos indivíduos, ele sabe como oprimir sua “burguesia” e rejeitar, ou mesmo explorar, o colonizado; o que coloca a função despercebida da cultura na luta de classes, identificada por Gramsci.

Lacan observa, portanto, a função despercebida por uma parte na questão social do saber. A novidade, para Lacan, no final dos anos sessenta, é que o saber tem um preço, há um “mercado do saber”. Para Lacan, esse preço vem pagar uma perda: “a renúncia ao gozo” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 39), aquela que justamente supõe o trabalho. Na época, Lacan vai chocar o auditório ao colocar que o saber não precisa necessariamente do trabalho para exercer seu papel no gozo! “Não é pelo fato de o trabalho implicar na renúncia ao gozo que toda renúncia ao gozo só se faz pelo trabalho” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 39).

O que é novo, observa então Lacan, é que o saber se tornou uma mercadoria, como testemunha na época a crise da universidade. Podemos dizer que esse fenômeno, esse “mercado do saber”, assumiu uma dimensão enorme hoje, na era dos big data! Para Lacan, é o efeito da ciência ao reduzir todos os saberes a um único mercado. Essa operação, no entanto, deixa resto; há um saber que não é pago e, portanto, obtido para nada. E aí está a fonte do mais-de-gozar no processo de produção do saber. O mercado do saber, de um saber que serve ao gozo, produz o mais-de-gozar. Ele revela que, “A partir do saber, percebe-se, enfim, que o gozo se ordena e pode se estabelecer como rebuscado e perverso” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 40).

 

Coletivização da verdade

O efeito do discurso capitalista no final do século XX é, portanto, fazer deslizar o tratamento do gozo do mercado de trabalho para o gozo do mercado do saber. O que se perde nessa passagem, por causa da ciência, é a singularidade da verdade. Ela não fala mais “eu”. Lacan nos diz que ela se tornou “social média, abstrata” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 40). Em outros termos, ela fica suspensa no conformismo social da “multidão solitária”, tão bem retratada por David Riesman. O reino do mais-de-gozar como efeito do mercado do saber anda de mãos dadas com essa “coletivização” da verdade. Isso é o que fará Lacan dizer, a respeito da “comoção de maio”, que aí está de fato a “greve da verdade” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 41). Há aqui um equívoco sobre a verdade na greve: é uma questão de defendê-la ou de imobilizá-la?

O que é certo é que perdemos o “eu” e que o grito do proletariado se perde como verdade que fala “eu”: 1968 será um “nós” no discurso! E depois teremos um “todos juntos!”. A geração Facebook vai levar essa coletivização da verdade a um estágio superior, sob a forma da falsa verdade que não mente mais, por não ter chance de dizer a verdade! A internet é o lugar da pós-verdade e onde o “eu” que fala se apaga diante do sujeito que sou para os outros. Como mostrou Alain Supiot (2015) em seu livro La gouvernance par les nombres (A governança pelos números, em tradução livre)isso vai bem com um retorno da fidelidade nas relações sociais em detrimento da cidadania política real. O Facebook é o momento em que o “eu” se torna um “ele”, aquele que sou para os outros, aos olhos dos outros. Lacan se diverte e sublinha que a greve “é justamente uma espécie de relação que une o coletivo ao trabalho” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 41). O sucesso da greve supre a crise do trabalho! A verdade coletiva é também a estupidez das verdades que o Maio de 68 escreveu nos muros. Joseph Heath e Andrew Potter mostraram em seu livro Révolte consommée (Revolta consumida, em tradução livre) que a contracultura produziu os estereótipos do modo de gozar mercadológico contemporâneo: “Para que alguém suba na hierarquia do status ou do estiloso, ou do estilo, chame-o como quiserem, é preciso que algum outro seja rebaixado um degrau” (HEATH; POTTER, 2005, p. 408, tradução nossa). Os novos meios de comunicação tornaram exponencial a estupidez da verdade. O êxtase contemporâneo não chegou bruscamente. Em seu último livro, Il faut dire que les temps ont changé (É preciso dizer que os tempos mudaram, em tradução livre), Daniel Cohen (2018) assinala que, desde os anos cinquenta do último século, Jean Fourastié anunciava que iríamos passar da sociedade de produção, que sucedera o mundo agrícola, para se dedicar à matéria — e não à terra —, a uma sociedade de formação onde reinaria o mercado do saber!

Essa reviravolta foi também a da “sociedade do culto de si mesmo” e dos indivíduos isolados em uma formação contínua do ego. Vemos, portanto, que o capitalismo, antes de se tornar mais do que um mero discurso do capitalismo, já era, de alguma forma, uma “saída” do capitalismo de produção material produzida pelo capitalismo. A crise sanitária atual nos mostra que essa mutação não apagou a produção: ela a exportou para países supostamente menos avançados, como a China.

Para o Lacan desta época nos livramos da verdade, esta que insistia na palavra do “eu”. Nesse mundo dos ditos e dos não ditos, o que vai ser raridade é o dizer.

 

Necessidade de um novo discurso

Em um artigo escrito para o jornal Le Monde e nunca publicado[2], a respeito da reforma universitária, Lacan acentua a clivagem entre saber e trabalho. Ele postula ainda que o saber não precisa de nenhum trabalho! Ele distingue também o mais-de-gozar da mais-valia marxista para dizer que ele é a causa, e não o efeito do mercado. No mundo do consumo, a pressão do mais-de-gozar é a condição da existência do mercado, é a lei do consumismo. Se o mais-de-gozar fica confinado, o mercado desaparece…

Acontece que, para Lacan, nesse mundo do saber disponível e do “eu” difícil, o sujeito humano deve trabalhar para se identificar. O self é um permanente canteiro de obras que supõe fazer com que o saber contribua para construir uma identidade para o sujeito com o status social que lhe convém. Quando o discurso do mestre reinava, ele distribuía os lugares e, portanto, as identidades, mesmo a do proletariado! Hoje, é o discurso capitalista e o mercado do saber que perderam a necessidade da castração. Resta, portanto, tentar encontrar a dimensão da castração. O mais-de-gozar capitalista ignora o limite da castração, e é nisso que ele nos apreende e torna impossível o amor, já que o amor supõe que o gozo consente com uma perda que é constitutiva do desejo.

Eva Illouz mostrou que, quando o amor se torna um mercado, a tendência ao afastamento se torna muito mais forte do que o compromisso: “O gozo se tornou o verdadeiro modo de desejo de uma sociedade de consumo onde os objetos, os afetos e a satisfação sexual deslocam o centro moral do eu. Mas, no gozo, é impossível encontrar ou constituir corretamente objetos de interação, de amor e de solidariedade” (ILLOUZ, 2020, p. 319, tradução nossa).

O mais-de-gozar é, no entanto, apenas um “mais” em relação a uma perda de gozo, já que representa de algum modo a frágil contrapartida da perda de gozo que supõe o saber que se torna somente “meio de gozo”. Esse saber e o mais-de-gozar que o acompanha apagam, então, da paisagem, o gozo que seria de uma outra natureza, que não a deles. O discurso capitalista ignora a castração, assim como o discurso da ciência ignora a verdade como causa. Nesse mercado, do saber que serve ao gozo, o problema será então de manter um desejo de saber. Lacan rapidamente identificou a ausência do desejo de saber quando o mais-de-gozar satura o desejo, transformando-o em adição.

Vemos que começa a se desenhar a necessidade de um novo discurso que possa dar lugar, nessa paisagem, ao mesmo tempo à castração e à verdade do desejo. Em particular, o discurso do Outro no feminino. A psicanálise, ou seja, o discurso analítico, é o que poderá fazer surgir do amor de transferência um outro amor por um outro saber: o saber inconsciente. Um amor pelo que é real nesse saber, real que escapa ao mercado.

Em 1970, em seu seminário O avesso da psicanálise, Lacan retoma esse fio condutor, segundo o qual a verdade coletiva se tornou irmã do gozo. Elas são irmãs em sua origem comum, que é o mercado do saber. Ao mesmo tempo, Lacan demonstra que a linguagem, em sua metonímia, serve ao gozo e ao mais-de-gozar, por falta de uma metáfora que venha oferecer uma saída. Lacan retoma também o fato que o capitalismo, a fim de assegurar seu desenvolvimento, deve assegurar o que era chamado na época de subdesenvolvimento. Hoje é o saber cujo subdesenvolvimento asseguramos, inclusive o da ciência que vive sob o reinado da burocracia de avaliação nas mãos das potências do mercado. A crise sanitária mostrou os efeitos deletérios da burocracia sanitária sobre o saber científico e a ação política.

Os GAFA[3] estão na vanguarda do mercado do saber e parecem destinados a comprar o conjunto dos valores do mercado. O Google o fez de tal forma que o consumidor é também produtor de um saber, saber que lhe é roubado e transforma aquele que o produz em produto, em mais-de-gozar invisível. Nesse mundo que parece gratuito, o produto é você! É uma ironia da história que a civilização da difusão esteja caindo devido à propagação de vírus invisíveis. Com o Facebook, trocamos o saber produzido pelo sujeito pelo mais-de-gozar da visibilidade obtida pelo sujeito que cria, ele próprio, a adição. Poderíamos sonhar, como os trans-humanistas, que isso levará os corpos a se emparelharem às máquinas para acabarem se tornando indistintos, reduzidos a saberes incorporais recarregáveis remotamente. Uma série inglesa traz uma adolescente anoréxica decidida a não mais poluir o planeta ao se postar post-mortem na web[4].

 

Sintoma e discurso do psicanalista

A pandemia nos mostrou que o gozo continua sendo, entretanto, o gozo dos corpos! E que o mercado do saber ainda não apaga o objeto produzido. Mas o objeto é desejável na medida em que se torna o semblante ou o caminho para um resto de saber imaterial que ele representa. Se tomamos o gadget como um “ter”, é para tentar fazer dele um parecer que nos faça encontrar a singularidade subjetiva perdida. Aquela que se torna o valor em um mercado coletivo que o apaga sempre mais. O objeto, no mercado do saber, não está conectado: ele nos conecta ao mercado do saber.

Lacan, em 1971, em seu Seminário 18, observa que a descoberta de Freud surge em um mundo onde o conhecimento, no sentido da singularidade da experiência, não tinha mais nenhum sentido. Nesse mundo, o que permanecia, no entanto, era o sintoma. Sem dúvida não foi por acaso que Lacan se apoiou em Marx para revisar o lugar do sintoma. O sintoma indica um furo no tecido que o mercado do saber tece. As crises, econômicas, sociais, sanitárias, fazem parte disso. Lacan pode, portanto, dizer: “A única coisa que lhe interessa e que não é um completo fiasco, que não é simplesmente inepta como informação, é aquilo que tem o semblante de sintoma, isto é, em princípio, coisas que nos dão sinal, mas das quais não compreendemos nada” (LACAN, 1971/2009, p. 49). O psicanalista faz parte disso!

Todos esses dados serão retomados por Lacan em Milão, em 12 de maio de 1972, em sua conferência “Sobre o discurso psicanalítico”. A Itália foi um país onde a crise política foi a mais forte, ao mesmo tempo crise econômica do capitalismo, mas também crise do comunismo e surgimento de movimentos revolucionários que pregavam a ação direta, desde o projeto de insurreição do livreiro Feltrinelli até as Brigadas Vermelhas. Nessa conferência, Lacan anuncia a crise do capitalismo e prevê que ele estaria “condenado a explodir”[5]. Esse termo de 1856 (crevaison) designa evidentemente o destino de um pneu e a morte na linguagem popular, assim como uma fadiga extrema. Lacan diz: “isso funciona rápido demais, se consome, se consome de tal forma que é consumido”[6].

E, com efeito, a lógica do mercado necessita de uma aceleração permanente, teorizada hoje por Hartmut Rosa (2013). Acrescenta-se a isso um desperdício permanente dos recursos do planeta. Mas essa lógica do mercado também consume na adição os recursos dos corpos em direção a um-mais-de-gozar obeso. Lacan via em tudo isso algo da peste!

Lacan escreve no quadro o discurso capitalista como uma variante do discurso do mestre: /S1, S2/a. O significante-mestre não parece mais ser um semblante ativo, o encontramos dissimulado no lugar da verdade e, portanto, mais inapreensível. A verdade do sujeito, por outro lado, como no discurso do mestre, desaparece. O sujeito torna-se o agente por excelência do discurso. Vimos como esse sujeito não é mais o “eu” que fala, é de um outro sujeito que se trata. Também não é o sujeito “assujeitado” da política. O sujeito agente do discurso capitalista é livre, desassujeitado e desidentificado, ignorando o significante que o comanda, mas pronto a abrir mão de sua liberdade para todas as adições e todas as submissões. A própria lei se tornou um produto econômico: sofremos e aplicamos a lei da economia mais forte (o dólar!) ou da mais rentável (os paraísos fiscais). O sujeito está, portanto, submetido ao efeito do objeto mais-de-gozar diretamente, de um modo viciante. Por outro lado, esse sujeito não terá mais laço com o saber, exceto ao passar por um acesso à sua verdade no significante-mestre, que o comanda sem que ele saiba. Separado de S1 e de S2, esse sujeito que perdeu sua identidade irá procurar a si mesmo, seja através da transidentidade líquida, seja através de sua recusa em identidades delirantes regressivas e étnicas que são tão fixas quanto fabricadas.

Multiculturalismo e nacionalismo iliberal tornam-se produtos de mercado! Na ausência de um livre acesso ao saber, o sujeito deverá aprender a ser ele mesmo através de técnicas de vida e de corpo (desenvolvimento pessoal) que ditam seus comportamentos com a cumplicidade do Estado. O Estado, que se tornou um grande pedagogo, quer, de fato, mudar o povo pela formação/informação. É o que está por trás do slogan “mudar os comportamentos”, ignorando o saber do povo.

O discurso analítico, ao colocar o objeto a na posição de semblante, tem a possibilidade de desvendar a maquinaria do mais-de-gozar e de fazer valer o objeto a causa do desejo para que ele venha arejar os efeitos do mais-de-gozar. Ao produzir o S1, o discurso analítico pode dar acesso a um sujeito que o comanda e produzir daí o , a queda. Esse significante-mestre é também o coração do que anima seu sintoma.

A saída do discurso capitalista é, portanto, dupla. Enquanto tal, ele só pode sair de si mesmo e, então, encontrar novas formas, sendo que seu discurso faz parte delas. Mas esse capitalismo de mercado permanece preso ao fato de que há apenas gozo dos corpos. A vida nua, a longo prazo, poderia muito bem ser o agente invisível de sua morte.

Tradução e revisão: Márcia Bandeira e Rodrigo Almeida

Referências
COHEN, D. Il faut dire que les temps ont changé. Paris: Albin Michel, 2018.
HEATH, J.; POTTER, A. Révolte consommée : le mythe de la contre-culture. Les Editions l’Échappée: Paris, 2005.
ILLOUZ, E. La fin de l’amour. Paris: Seuil, 2020.
LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN. J. O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
ROSA, H. Accélération: Une critique sociale du temps. Paris: La Découverte, 2013.
SUPIOT, A. La gouvernance par les nombres. Paris: Fayard, 2015.

[1] Texto publicado originalmente em La Cause du désir, 105, julho de 2020.
[2] Cf. LACAN, J. “De uma reforma em seu furo”, texto publicado com a amável autorização de Jacques-Alain Miller em La Cause du désir, nº 98, março de 2018, p. 9-13. Cf. igualmente LACAN, J. O Seminário, livro 17: O Avesso da psicanálise, texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1991, p. 196.
[3] GAFA: acrônimo de Google, Amazon, Facebook e Apple, refere-se às quatro maiores companhias da internet. O termo surgiu pela primeira vez na imprensa em 2012 no jornal francês Le Monde. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/GAFA.
[4] Years and Years, série britânica da BBC (2019) exibida na França pelo MyCanal, disponível por streaming.
[5] “Du discours psychanalytique. Discours à l’Université de Milan, le 12 mai 1972”, publicado na obra bilíngue Lacan in Italia 1953-1978En Italie, Lacan. Milan: La Salamandra, 1978, p. 48.
[6] “Du discours psychanalytique. Discours à l’Université de Milan, le 12 mai 1972”, publicado na obra bilíngue Lacan in Italia 1953-1978En Italie, Lacan. Milan: La Salamandra, 1978, p. 48.



INTERPRETAR O “MATERIAL HUMANO”[1]  

VÉRONIQUE VORUZ
Psicanalista, AE da NLS e da ECF /AMP
verovoruz@me.com

Resumo:  A autora correlaciona o estatuto do falasser, reduzido a material humano, e a interpretação analítica, na medida em que, alienado ao imperativo capitalista de consumo, o sujeito se deixa desabonar de sua honra. A autora sublinha que é sobre isso que a interpretação deve intervir, a fim de lhe restituir sua dignidade de sujeito barrado.

Palavras-chave: material humano; interpretação; vergonha; dignidade.

Interpret the human material

Abstract: The author makes a connection between the parlêtre reduced to human material, and analytical interpretation. Trapped in the capitalist condition of unbridled consumption, the subject allows to be discredited of its honor, and this is where the analyst intervenes in order to restore the subject to its dignity as a barred subject.

Keywords: human material; interpretation; honor; dignity..

Keywords: human material; interpretation; honor; dignity.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Meu título, interpretar o “material humano”, resume, a meu ver, a alternativa que Lacan oferece a “revolução”, no Seminário XVII, “O avesso da psicanálise”, desde que se dê à palavra “interpretar” o sentido de intervenções, e não o sentido de dizer aquilo que significa o que o falante ou escritor diz. A expressão “material humano” é apontada por Lacan na aula II desse seminário nos seguintes termos:

“O sinal da verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser produzido pelos que substituem o antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto os outros. Sociedade de consumo, dizem por aí. Material humano, como se enunciou um tempo — sob os aplausos de alguns que ali viram ternura” (LACAN,1969-1970/1992, p. 30).

Sem dúvida, o termo se refere a uma certa leitura[2] do século XX, um século confrontado com a questão da gestão das populações, dos seres vivos, numa escala sem precedentes. É isso que dará origem, a partir do final do século XIX, às práticas que Foucault reunirá sob o nome de “biopoder” ao final de seu curso de 1976, “É preciso defender a sociedade”. Lembremos que esse é um curso que termina com uma análise crítica dos racismos de estado no coração dos totalitarismos do século XX.

Quanto à metaforização do termo “interpretação” pelo de “intervenção”, é Lacan quem a opera na mesma página, quando se prepara para formalizar na lógica as “intervenções do analista” e, certamente, não é por acaso que, na página 30, ele oporá o nome de Lacan ao de Paul Ricœur, filósofo da hermenêutica. Tanto para o título, que encontrará múltiplas ressonâncias ao longo deste texto — e sobre o qual concluirei com referência ao último capítulo do mesmo seminário, “O poder dos impossíveis” — quanto para o novo significante que Lacan introduz ali, o da vergonha, a vergonha de viver uma vida reduzida ao primum vivere, que a sociedade de consumo oferece como único “ideal”.

 

Uma descontinuidade epistêmica

Ao reler “O avesso da psicanálise” no último verão, depois de um ano fazendo um seminário sobre “Radiofonia”, eu disse a mim mesma que se tratava realmente de um seminário sobre a interpretação. De fato, mesmo que, para Lacan, a interpretação nunca tivesse consistido em postular uma linguagem-objeto (aquela do analisante) que pudesse ser traduzida por meio de uma chave de decodificação — a lecton[3] dos estoicos, de quem ele faz pouco caso em “Radiofonia” — ou de uma metalinguagem, por acréscimo de significação, o Seminário XVII introduz uma descontinuidade epistêmica. É a partir desse Seminário que a ênfase será realmente colocada por Lacan, de um lado, no tratamento do gozo e, de outro, na estrutura como distinta do sentido.

É, aliás, nesse ponto que, em “Radiofonia”, Lacan se distanciará de Lévi-Strauss e da corrente estruturalista, para a qual o sentido é efeito do conjunto da rede significante e que desconhece a incidência do objeto a. Os pontos de apoio de Lacan passarão então a ser Malinowski e Marx, dois autores que têm um lugar conceitual; o primeiro, com relação ao búzio, uma concha que só tem valor de troca para os Argonautas do Pacífico, o outro, para a chamada mais-valia “foracluída do discurso capitalista” (LACAN, 1970/2003, p. 423). Esses dois autores abrem, assim, o campo da economia do gozo, e o que interessará a Lacan a partir de agora será intervir na economia do gozo.

Recordemos que o Seminário XVI: “de um Outro ao outro” foi aberto sob a égide desta frase: “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 1968-69/2008, p. 11). Dizer que a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala é dizer adeus à verdade que, supostamente, se revela pela palavra através das formações do inconsciente e reorientar a teoria analítica no discurso como estrutura, máquina ou matriz, tendo um produto (encontra-se aí, portanto, o termo usado por Lacan na citação inicial, os seres humanos sendo “produtos consumíveis como quaisquer outros”).

Aqui está o terreno pronto para se ouvir a intervenção radical que Lacan propõe ao seu público em “O avesso da psicanálise”: interpretar não é dizer o que alguém ou alguma coisa quer dizer — esta é a degradação aflitiva a que as práticas psicoterapêuticas submeteram a invenção freudiana e que se encontra a cada passo da vida contemporânea — nem mesmo substituir uma verdade por uma outra, um princípio alternativo de inteligibilidade que permite outra leitura que não aquela anteriormente hegemônica (pensemos, por exemplo, nas interpretações mais conhecidas de Foucault: as prisões não são uma humanização de castigo, mas uma disciplinarização dos corpos; as proibições sexuais não são uma censura, mas uma incitação a falar de sexo, etc.). A partir de então, interpretar visará, sobretudo, a extrair o ser falante do registro da verdade: “é tentador sugar o leite da verdade, mas é tóxico” (LACAN, 1969–70/1992, p. 175): intervir, portanto.

 

Cartografia da intervenção

A partir dos elementos trazidos a título de introdução, várias modalidades de intervenção se articulam, se desdobram, se ampliam no seminário, bem como no texto “Radiofonia”, que Lacan escreveu durante aquele ano de seu ensino em resposta a diversas questões, muito informadas pelo Lacan dos Escritos, de um jornalista da RTB, Robert Georgin. Vou, portanto, desenvolver uma série de pontos, que apresento aqui brevemente, antes de entrar em mais detalhes:

  1. Ato analítico

Em primeiro lugar, gostaria de fazer a ligação entre o ato analítico tal como Lacan o havia elaborado em “O ato analítico”, “A lógica da fantasia” e a “Proposição de 67”, e o ato analítico tal como ele especifica no Seminário XVII.

  1. Interpretação-deslocamento

deslocamento é destacado por Lacan em oposição à dialética, movimento da negatividade da linguagem formalizado por Hegel visando à realização do real por sua incorporação dialética ao pensamento (Aufhebung). A dialética pertence ao registro da verdade, ou mesmo em seu horizonte, ao da coincidência entre saber e verdade, enquanto o deslocamento é a maneira que Lacan escolhe, a partir do Seminário XVI, para operar com a linguagem a fim de produzir um efeito de interpretação que não esteja no registro da verdade.

  1. Interpretação e semi-dizer

No início do Seminário XVII, Lacan situa a modalidade de intervenção do analista como o agente do discurso analítico no registro do semi-dizer. Ele dá dois exemplos: a citação e o enigma, duas técnicas que se baseiam na dissociação entre enunciação e enunciado e que têm a vantagem de colocar o analisante numa posição de implicação subjetiva.

  1. Da metáfora e da metonímia como operações sobre o gozo

Em “Radiofonia” Lacan desloca o sentido dado a esses termos da linguística para torná-los operações, não mais sobre o sentido, mas sobre o gozo:

“É que não metaforizo a metáfora nem metonimizo a metonímia para dizer que elas equivalem à condensação e à transposição no inconsciente. Mas desloco-me com o deslocamento do real no simbólico, e me condenso para dar peso a meus símbolos no real, corno convém para seguir o inconsciente em sua pista” (LACAN, 1970/2003, p. 418).

Observamos aqui a falta de referência ao imaginário na formulação de Lacan: trata-se de operações sobre a estrutura.

  1. seixo na poça[4] na vergonha de viver

O último capítulo do Seminário XVII propõe uma nova modalidade de interpretação: a interpretação pela introdução de um significante novo; não o lecton que permite grampear significante e significado segundo os usos em vigor, ou seja, o ponto de basta entendido sem a determinação que Lacan lhe pretendia dar, mas um significante que, como o medo em Athalie, desenvolvido no Seminário III, é “seixo na poça” que perturba o senso comum.

 

O ato analítico no Avesso

Nos seminários que precederam a “Proposição”, o ato analítico era tratado ao nível da passagem a analista, passagem que deveria ser demonstrada no dispositivo do passe. Na aula II de “O avesso da psicanálise”, após sua referência ao material humano, Lacan passa, imediatamente, a dizer que o que nos concerne agora é “interrogar do que se trata no ato psicanalítico” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 30). Há uma ligação, portanto, entre o estatuto dos seres falantes reduzidos ao estatuto de material humano e o ato analítico: o analista deve intervir sobre esse material humano, restituir-lhe sua dignidade de sujeito barrado, desagregá-lo da lógica de massa na qual está preso, governado pela burocracia que Éric Laurent chama, com Hegel, de “nova clericatura dos funcionários do universal”[5] (LAURENT, 2003, tradução nossa).

A referência implícita de Lacan nesse capítulo é Alexandre Kojève, para quem “é a extensão da forma ‘burocracia’ que é o elemento essencial da civilização” (LAURENT, 2003, tradução nossa) no pós-guerra. É o que Lacan vai traduzir em termos da passagem do discurso do mestre para o discurso universitário, ou seja, o advento do saber no lugar de agente para fins de gestão do material humano. Reconhecemos aqui também o que Foucault denominou biopolítica em seus cursos no Collège de France na década de 1970, isto é, o governo da espécie humana apreendida pelo viés de suas características biológicas, e não mais como indivíduos especificados, senão pelas categorias que os ordenam. Esse governo se dá pelo viés de um saber estatístico e de cálculos de probabilidade respaldados pela norma. De fato, se o indivíduo é ingovernável, as massas não o são: a imprevisibilidade do comportamento de um determinado humano se desvanece diante da previsibilidade estatística dos comportamentos de massa (por exemplo, não sabemos qual indivíduo vai se divorciar, mas sabemos que um em cada dois casamentos resulta em divórcio).

Eis aqui, portanto, o contexto no qual Lacan visa intervir, e não interpretar, fazendo uma análise crítica de seus recursos ou desvelando a verdade de opressão ou de relações de dominação, como os marxistas faziam sem grande efeito. É por isso que, em “Radiofonia”, Lacan ironizará o termo revolução, útil ou fútil, que é sem efeito sobre a estrutura, ao contrário das rotações de discurso identificadas por Lacan e às quais acrescenta a rotação realizada pelo discurso analítico.

É, portanto, com essa finalidade de operar sobre a estrutura (cf. resposta à pergunta IV de “Radiofonia”) que vem à tona uma nova acepção do ato analítico. Cito Lacan em “O avesso da psicanálise”:

“Não vou considerá-lo no nível onde eu esperara, há dois anos, poder fechar o circuito — que ficou interrompido — do ato em que se fundamenta[6], em que se institui como tal o psicanalista. Vou considerá-lo no nível das intervenções do analista, uma vez instituída a experiência em seus limites precisos” (LACAN, 1969-70/1992, p. 30).

O primeiro ato do analista é, portanto, “instituir a experiência em seus limites precisos”, antes mesmo de poder intervir. Aqui encontramos uma bela metáfora de Lacan sobre o S2, saber que não se sabe, em relação com a necessidade que o analista institui a experiência:

“Esse ventre é aquele que dá, como um cavalo de Tróia monstruoso, as bases para a fantasia de um saber-totalidade. É claro, porém, que sua função implica que de fora venha alguma coisa bater à porta, sem o que jamais sairá nada dali. E Tróia jamais será tomada” (LACAN, 1969-70/ 1992, p. 31).

Com essa metáfora imaginada, Lacan introduz o agente-analista do discurso analítico. Seu primeiro ato, sua primeira intervenção, é, portanto, vir “bater à porta”. Em que isso consiste? Nesse capítulo, Lacan se inspira na filosofia, no qual ele acabara de dizer que ela fez com que o Discurso do Mestre fosse permutado no Discurso da Universidade: nisso ele ensina sobre que um agente pode não revelar uma verdade, mas introduzir uma rotação dos discursos e, portanto, operar não no sentido, mas na estrutura. Isso nos permite fazer a ligação com meu segundo ponto, a interpretação-deslocamento.  

 

Interpretação-deslocamento

Lacan não explica, ele opera mostrando. O que o Seminário XVII demonstra não é uma interpretação do momento presente, mas o efeito do deslocamento, essa Entstellung freudiana à qual Lacan dá todo o peso ao sentido do deslocamento em “Radiofonia”:

“Pena que, por um retorno a Freud em que gostariam de se mostrar superiores a mim, eles ignoram a passagem do Moisés em que Freud deixa claro ser assim que entende o Entstellung, a saber, como deslocamento, porque, apesar de arcaico, é esse, no dizer dele, seu sentido inicial” (LACAN, 1970/2003, p. 418).

Voltarei mais tarde à frase que se segue à passagem de “Radiofonia” — “Fazer o gozo passar para o inconsciente, isto é, para a contabilidade, é, de fato, um deslocamento danado” (LACAN, 1970/2003, p. 418) —, no meu ponto 4. Procuro aqui fazer a ligação entre o deslocamento e o ato do analista instituindo a experiência. Recordemos aqui o que todos em nossa comunidade sabemos: “O avesso da psicanálise” é o seminário em que Lacan formaliza seus quatro discursos a partir dos três impossíveis freudianos: governar, educar, psicanalisar, aos quais ele acrescenta o feminismo. Divididos entre impotência (Discurso Universitário e Discurso Histérico) e impossível (Discurso do Mestre e Discurso Analítico), eles dão conta da linguagem como estrutura que inclui um efeito mais-de-gozar específico a cada um. O sentido não tem lugar aí, ou melhor, só tem seu lugar aí como sentido gozado.

Dois pontos aqui:

  1. Deve-se notar que à Questão VII, de Georgin, sobre os três impossíveis freudianos, Lacan responde distinguindo analisar e curar: “Governar, educar, curar, portanto, quem sabe? (LACAN, 1970/2003, p. 444). No que diz respeito ao Discurso Analítico, seu objetivo, de fato, não é a cura.
  2. O analista como agente do discurso tem a função de efetuar um deslocamento, ou seja, introduzir uma permutação que Lacan chama de “a histerização do discurso” (LACAN, 1969-70/1992, p. 31). Por que essa histerização é necessária? Lacan continua: “a histérica fabrica como pode, um homem — um homem que seria animado pelo desejo de saber” (LACAN, 1969-70/1992, p. 31). Essa frase enigmática da página 31 pode ser esclarecida à luz do que disse Lacan em Vincennes, que se encontra no “Analyticon”, na página 193: “Quero um homem que saiba fazer amor”, frase que pode ser distribuída nos respectivos lugares do Discurso Histérico: $ = eu quero; S1 = um homem; S2 = que sabe; a = fazer amor. Ou ainda, a histérica quer que o outro produza um saber sobre aquilo que causa seu desejo. E Lacan acrescenta:

“Não estará aí, afinal, o próprio fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela dá ao outro, como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histeriza seu discurso, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer referência que não seja a das quatro paredes que o envolvem, e que produzam significantes que constituam a associação livre soberana, em suma, do campo” (LACAN, 1969-70/1992, p. 32).

Eis, então, o efeito da permutação operada pelo analista no lugar de agente no Discurso Analítico, no início da experiência analítica: bater de fora sobre o ventre do Outro para que surjam os significantes-mestres, mestres do destino do sujeito sem que ele saiba.

Mas outras interpretações-deslocamentos estão em jogo nesse seminário e no escrito contemporâneo que é “Radiofonia”:

  • Deslocamento radicalizado da psicanálise do imaginário em direção ao simbólico, esse deslocamento sendo modelado na passagem da ciência-conhecimento (intuição, imaginação, a priori) para a ciência-saber (fórmulas que só podem ser verificadas a partir de seus produtos, como o LEM[7] do pouso lunar e as leis de Newton)A referência de Lacan aqui é ao trabalho do epistemólogo Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao Universo infinito;
  • Deslocamento das referências e disciplinas conectadas à psicanálise das ciências humanas (etnologia, antropologia, linguística) em direção às ciências duras e à poesia, ou seja, em direção à estrutura e seu produto, por um lado, e em direção à materialidade da linguagem, por outro — assim, a frase de “Radiofonia”: “pois o poeta se produz por ser… devorado pelos versos/vermes [vers] que encontram entre si o seu arranjo, sem se incomodar. Isso é patente” (LACAN, 1970/2003, p. 420);
  • Deslocamento do estatuto do corpo em direção à sua forma lógica, ou seja, superfície de inscrição dos significantes do Outro, corpse, correlacionado aos instrumentos do gozo;
  • Deslocamento do inconsciente-verdade (inconsciente como dispositivo hermenêutico para todos os propósitos) para modos de gozar formalizados pelos discursos;
  • Deslocamento de Freud e sua crença no Pai em direção a um tratamento da matéria linguageira e do efeito de sentido, etc.

A interpretação por deslocamento está, portanto, no cerne desse momento do ensino de Lacan. Talvez já possamos ver o rastro disso na escolha que Lacan fez de associar o desejo à metonímia, e não ao Nome-do-Pai, como Miller pôde comentar em um de seus comentários sobre o Seminário VI, “Mais além do Édipo”[8]. No entanto, a máquina dos discursos, os quadrípodes, como Lacan às vezes os chama, permite estreitar justamente a função do analista-agente, ocupando como objeto-causa o lugar que é o do mestre no DM — “Ele, o analista, é que é o mestre. Sob que forma? (…). Por que sob a forma de a?” (LACAN, 1969–70/1992, p. 33).

 

Interpretação e semi-dizer

Tendo introduzido o primeiro ato do analista como sendo o de produzir a rotação dos termos do discurso em Discurso Histérico nessa bela aula II, Lacan propõe dois tipos de interpretação sustentáveis analiticamente​, o enigma e a citação, que são duas formas do semi-dizer. Ele introduz o enigma com muito humor, com as seguintes frases: “O que é a verdade como saber? (lembremos que, no Discurso do Analista, o saber é produzido no lugar da verdade) Seria o caso de dizê-lo: — Como saber sem saber? É um enigma. Esta é a resposta — é um enigma” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34).

Enigma e citação têm em comum o fato de serem ditos apenas pela metade, o que é “o próprio da verdade”. Lacan retoma então o enigma que a Quimera coloca ao Édipo. Não resisto em citar algumas frases do texto de Lacan:

“E a Quimera propõe um enigma ao homem Édipo, que talvez já tivesse um complexo, mas não certamente aquele ao qual haveria de dar seu nome. Ele lhe responde de uma certa maneira, e é assim que se toma Édipo. À pergunta da Quimera, poderia ter dado muitas outras respostas. Por exemplo, poderia ter dito: — Duas patas, três patas, quatro patas, é o esquema de Lacan. Isto teria dado um resultado completamente diferente. Também poderia ter dito: — É um homem, um homem quando criança de peito. Aí, começou com quatro patas. Prossegue com duas, retoma uma terceira e, no mesmo movimento, sai correndo como uma bala, direto para o ventre de sua mãe. Isto é o que de fato se chama, com bons motivos, complexo de Édipo. reio que vocês vêem o que aqui quer dizer a função do enigma — é um semi-dizer, como a Quimera faz aparecer um meio-corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34).

Essa passagem muito engraçada de Lacan indica claramente a disciplina à qual o analista deve se atentar para não virar sugestão, para deixar para o analisante a responsabilidade de seu enunciado, para deixar o campo livre para sua implicação subjetiva. Com efeito, no enigma colocado ao Édipo, não é a Quimera quem interpreta, mas Édipo: “O enigma é provavelmente isso, uma enunciação. Encarrego vocês de convertê-lo em enunciado. Virem-se como puderem — como fez Édipo —, vocês sofrerão suas consequências” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34).

E Lacan esculpe uma definição de interpretação adaptada a esse momento de seu ensino: “Um saber como verdade — isto define o que deve ser a estrutura do que se chama uma interpretação” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34). Não vou retomar aqui o segundo exemplo, o da citação, a não ser para dizer que, se no caso do enigma, a enunciação está do lado do analista, no caso da citação, ela está do lado do analisante, e aposta “na participação em um discurso pelo leitor suposto” (LACAN, 1969-70/1992, p. 35). Esses dois registros têm em comum o fato de colocar o analisante na posição de ter que completar o semi-dizer por meio dos significantes produzidos por associação livre, dos quais sabemos que “(…) no surgimento ao acaso dos significantes — pelo próprio fato de tratar-se de significantes — não há nada que não se reporte àquele saber que não se sabe (…)” (LACAN, 1969-70/1992, p. 32).

 

Metáfora e metonímia

Uma das questões que Georgin faz a Lacan visa assimilar psicanálise e linguística em vista do privilégio concedido pelas duas disciplinas à metáfora e à metonímia. Com sua habitual má-fé, Lacan se distancia de Jakobson ao retomar as definições das duas operações significantes:

“(…) substituição de um significante por outro em uma e seleção de um significante em sua sequência, na outra. Daí resulta (e somente com Jakobson, nesse aspecto; para mim, o resultado é outro) que a substituição é feita de semelhanças, e a seleção, de contiguidades” (LACAN, 1970/2003, p. 413).

Lembramos que metáfora e metonímia foram localizadas por Lacan no princípio das formações do inconsciente: a combinação significante permitindo a decifração do inconsciente.

Ora, em “Radiofonia”, em outro deslocamento operado por Lacan, os termos se relacionam com as operações freudianas de condensação e deslocamento, mas na medida em que elas são operações linguageiras sobre o gozo. Assim, vou reler para vocês esta frase já citada anteriormente:

“É que não metaforizo a metáfora nem metonimizo a metonímia para dizer que elas equivalem à condensação e à transposição no inconsciente. Mas desloco-me com o deslocamento do real no simbólico, e me condenso para dar peso a meus símbolos no real, corno convém para seguir o inconsciente em sua pista” (LACAN, 1970/2003, p. 413).

Portanto, não é uma metáfora dizer que a metáfora é condensação, nem uma metonímia dizer que a metonímia equivale a passar o gozo à contabilidade. Por que Lacan insiste em eliminar esses termos da linguística para fazê-los à sua maneira? Porque a psicanálise é uma prática linguageira, ainda que a significação não tenha mais voz no capítulo e que o sentido esteja reduzido a esse efeito de sentido gozado, que é o objeto a. Esta é a definição contemporânea do Seminário XVII: “objeto a, esse grande incorpóreo dos estóicos” (LACAN, 1970/2003, p. 399). É por essa redução do sentido ao sentido gozado, ao mais-de-gozar, que é importante preservar a possibilidade de operações linguageiras sobre o gozo. Assim, a metonímia é redefinida na p. 416 como metabolismo do gozo, enquanto a metáfora “obtém um efeito de sentido (não de significação) a partir de um significante que faz-se de seixo lançado na poça do significa”.

 

A vergonha de viver

É nessa nova definição da metáfora como pedra na poça do significado que Lacan se apoia, por analogia com o temor de Deus evocado por Racine em Athalie, e que ele havia utilizado para introduzir o ponto de basta[9] em “As psicoses”, para lançar a pedra da vergonha na poça da agitação de maio. O ponto de basta não é a significação que permite decifrar a cadeia significante, mas o que Lacan “condensa para dar peso a meus símbolos no real” (LACAN, 1970/2003, p. 418).

De fato, o capítulo 13 do Seminário XVII começa com as palavras “morrer de vergonha”, depois correlaciona a vergonha não a um significado, mas a um signo:  “(…) morrer de vergonha (…). Contudo, é o único signo cuja genealogia se pode assegurar, ou seja, ele descende de um significante” (LACAN, 1969-70/1992, p. 172).

Se lermos bem o que diz Lacan, o signo é definido pela degeneração de um significante. Para compreender essa proposição, volto a me referir a “Radiofonia”, em que o signo é definido como signo do gozo de um ser falante (na p. 411, Lacan fala também do significante que recai no signo). Leio, então, essa proposição de Lacan da seguinte forma: ele impõe, com todo seu peso, um peso que espera ser equivalente ao do temor de Deus, a vergonha que há de viver quando somente o signo de nosso gozo nos representa, e não mais os significantes que governam nosso destino. É a vergonha de viver do material humano animado pelo mais-de-gozar que o capitalismo lhe imprime, preocupado unicamente com sua própria sobrevivência. O primum vivere, única promessa da biopolítica, que se tornou bioeconomia no século XXI, dá origem ao que Lacan chama de “uma fenomenal vergonha de viver” (LACAN, 1969-70/1992, p. 174). A constatação arrepiante do Seminário XVII é que não só as burocracias sanitárias reduziram os seres humanos a material humano, mas que esse material humano é, além disso, excessivo, sem outra função social que a de consumir para que torne sem freios o discurso capitalista, em detrimento da honra de uma vida que assumiria sua dependência em relação aos significantes que a representam.

Se Lacan joga a pedra da vergonha na poça do marasmo contemporâneo, não é para fazer ressurgir a honra, pois só pode haver vergonha se houver desonra? E ele está disposto a pagar com sua pessoa, pois se oferece, na última linha desse magnífico seminário, para ser aquele que “acontece provocar-lhes vergonha” (LACAN, 1969-70/1992, p. 184). Aqui, novamente, Lacan indica o que custa estar na posição de agente do discurso analítico: posicionando-se como a, ou seja, como um olhar sob o qual se pode ter vergonha, ele empresta seu corpo ao deslocamento que tenta produzir para desagregar o material humano e restituir suas letras de nobreza a uma singularidade desvinculada de sua servidão ao mais-de-gozar. O analista não pode estar na posição de agente do discurso analítico sem pagar com sua pessoa.

 

Conclusão

Para concluir, retomo minha tese inicial segundo a qual o seminário “O avesso da psicanálise” é um seminário sobre a interpretação, tomada nos múltiplos sentidos de intervenção. Lacan, como Freud, se confronta com o mal-estar da civilização, com “os crescentes impasses da civilização”[10]. Diante dos acontecimentos de 68, ele não se detém nas interpretações marxistas que atribuem o mal-estar à opressão ou à dominação, mas problematiza a economia do gozo na era do capitalismo. É ao nível dessa economia que se situa o mal-estar contemporâneo a Lacan, e hoje de forma ainda mais radical. Os seres falantes são cada vez mais produzidos e geridos como objetos, não tendo outro valor além de seu poder de compra; os pobres são excedentários, os ricos são representados apenas pelo sinal de seu mais-de-gozar. O Seminário, livro 17 combina os três tipos de interpretação em psicanálise identificados por Jacques-Alain Miller em “Coisas de Fineza”: interpretação da civilização, interpretação da teoria analítica e interpretação no âmbito do tratamento. O século XX, com seu cortejo de genocídios, sua industrialização da morte, deixou pouca dúvida ao falasser quanto ao seu status obsoleto, substituível. O século XXI não se afasta desta constatação: eutanásia, gestão dos idosos, migrações — climáticas e outras — formam nosso presente, constituirão o nosso futuro próximo. Diante dessa constatação, admiremos a tentativa de Lacan que, com esse significante novo que é a vergonha, tenta devolver a honra às vidas humanas. Verdadeiro fogo de artifício, a teoria analítica se renova com ferramentas operacionais que vão da formalização do discurso analítico ao significante novo, passando pelas figuras do semi-dizer, dando todo lugar à implicação subjetiva que, por si só, permite que um ser falante se responsabilize por sua existência, sem a desculpa do destino.

 


 

Referências
LACAN, J. (1955–56) O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. (1968–69) O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. (1970–71) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. (1970) “Radiofonia”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 400-447.
LAURENT, É. Le dialogue Lacan-Kojève sur la bureaucratie et l’Empire, 2003, disponível em https://wapol.org/ornicar/articles/lrn0059.htm.

[1] Texto inédito gentilmente cedido pela autora.
[2] Por exemplo, o recente livro de Chapoutot, J., Libres dóbéir: Le management du nazisme à aujord’hui, Paris: Gallimard, 2020, p. 18: “Na esteira do trabalho [sobre as indústrias do Terceiro Reich], pudemos considerar que o manejo e a ‘gestão’ de ‘recursos humanos’ tinham em si algo de criminoso… Da objetificação de um ser humano, reduzido ao status de ‘material’, ‘recurso’ ou ‘fator de produção’, à sua exploração, até a sua destruição, a concatenação tem sua lógica, da qual o campo de concentração, lugar de destruição pelo trabalho e produção econômica, é o lugar paradigmático” (Tradução nossa).
[3] “Do que torna legível o significado”: LACAN, J. (1970/2003) “Radiofonia”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 413-414).
[4] Essa expressão francesa, “Le pavê dans la mare”, tem, em português, o sentido de algo que irrompe no contexto de uma situação, até então, tranquila e que, inesperadamente, a abala, a perturba, como uma pedra atirada em uma poça de água.
[5] LAURENT É. Le dialogue Lacan-Kojève sur la bureaucratie et l’Empire. Disponível em: https://wapol.org/ornicar/articles/lrn0059.htm.
[6] Observemos que, em “Radiofonia”, Lacan retorna a esse elo que não se fecha ao acrescentar à sua elaboração anterior sobre a passagem do analisante à analista: “não tomo como acidental que a comoção de maio me haja impedido de ir até o fim”, antes de acrescentar, como resultado de seu trabalho no Seminário, que “faço questão de assinalar que alguém só vem a sentar-se nesse lugar pela maneira, ou melhor, pela desmaneira que nele impõe a verdade” (LACAN, 1970/2003, p. 426).
[7] LEM: sigla para Lunar Excursion Module, o módulo lunar usado pela NASA no Projeto Apolo.
[8] A esse respeito, remetemos o leitor à página 11 do artigo Apresentação do Seminário 6o desejo e sua interpretação, de Jacques Lacan, por Jaques-Alain Miller, publicado em Opção Lacaniana online nova série, ano 5, n. 14, julho 2014. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_14/Apresentacao_do_seminario_6.pdf
[9] LAURENT, É., Fils de faire: intervention à la London Society. Julho de 2020, inédito. Nesse texto Laurent propõe que medo e vergonha são homólogos no ensino de Lacan.
[10] LACAN, J. A psicanálise. “Razão de um fracasso”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1970/2003 p. 349.



PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA AMIZADE ESTRUTURAL[1]

GUSTAVO STIGLITZ
Psicanalista, AME da EOL/AMP
stiglitz.gustavo@gmail.com 

Resumo: O autor investiga a relação entre a psicanálise e a política e considera que Lacan tenha operado uma inversão na premissa freudiana. Se, para Freud, a política é o inconsciente, para Lacan, o inconsciente é a política. A partir daí, o autor delimita uma definição da política a partir da discussão sobre o final de análise, o que o conduz a abordar a política a partir de uma perspectiva não-toda. Por fim, se pergunta sobre qual seria a participação do psicanalista no campo político.

Palavras-chave: psicanálise; política; inconsciente, final de análise; não-todo.

Psychoanalysis and Politics: a structural friendship

Abstract: The author investigates the relationship between psychoanalysis and politics and proposes that Lacan operated an inversion of the freudian premise. If, for Freud, politics is the unconscious, for Lacan, the unconscious is politics. From there, the author delimits a definition of politics through the discussion of the end of analysis, which leads him to approach politics from a not-whole perspective. And finally, questions the participation of psychoanalyst’s in the political field.

Keywords: psychoanalysis; politics; unconscious; end of analysis; not-whole.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

A psicanálise, desde sua origem, esteve ligada à política.

Não é uma causalidade que tenha nascido na Viena de Freud, cosmopolita, multirracial e multirreligiosa, na qual o reinado do pai começava a se rachar e onde o social prescrevia a repressão da sexualidade.

Freud estabeleceu a relação entre psicanálise e política nos primeiros parágrafos de “Psicologia de grupo e a análise do ego”, ao afirmar que “a psicologia individual é, ao mesmo tempo, também psicologia social”, já que “Algo mais está envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente” (FREUD, 1921/1996, p. 81).

Para Freud, portanto, a política é o inconsciente no sentido de que ambos respondem à mesma estrutura e causa. Lacan, por sua vez, foi imprimindo sua própria marca a essa relação até invertê-la.

Uma ideia inicial — a encontramos no Seminário 1 — é a de relacionar o final da análise com a política. Cito-o:

“Uma vez realizado o número de voltas necessárias para que os objetos do sujeito apareçam, e sua história imaginária seja completada, uma vez que os desejos sucessivos, tensionários, suspensos, angustiantes do sujeito estejam nomeados e reintegrados, nem por isso tudo está acabado. O que esteve inicialmente lá, em O e depois aqui em O’, depois de novo em O, deve ir se reportar no sistema completado dos símbolos. A saída mesma da análise o exige. Onde deve parar esse reenvio? Será que deveríamos levar a intervenção analítica até diálogos fundamentais sobre a justiça e a coragem, na grande tradição dialética? É uma questão. Não é fácil de resolver, porque, na verdade, o homem contemporâneo se tornou singularmente inábil para abordar esses grandes temas. Prefere resolver as coisas em termos de conduta, de adaptação, de moral de grupo e outras banalidades. Donde a gravidade do problema que coloca a formação humana do analista” (LACAN, 1953-54/1986, p. 229-230).

Não seria esse um convite para a participação política do analista, ou, pelo menos, sua entrada no debate?

É claro, como disse Miller, que o debate fundamental de Lacan sempre foi com a civilização, na medida em que ela elimina a vergonha com o que está em curso na globalização (MILLER, 2002).

“Nem tudo está acabado”, como diz a citação, o que faz do final de análise não um ponto de fechamento, mas sim de abertura em relação a uma lógica não-toda. Nesse sentido, a pergunta de Lacan — precedida por esse “nem tudo está acabado” — contém uma armadilha.

A grande tradição dialética é a que opõe tese e antítese para chegar a uma síntese, o que fecha a questão em jogo; enquanto a experiência analítica nos confronta hoje com uma dialética no campo social, mas mais no estilo da “dialética negativa” de Theodor Adorno (1966), que ataca a tradição libertando-a de sua natureza afirmativa e questionando qualquer totalidade.

Hoje, teria que acrescentar, deveríamos impulsionar a intervenção analítica para dialogar com algumas tantas novidades na civilização: com os defensores da tese neuro, que pretendem uma ciência natural da mente e dos fundamentos neuronais do pensamento separado da linguagem; com aqueles que defendem tomar ao pé da letra os dizeres de uma criança que, sem saber direito do que se trata, afirma que quer trocar de sexo; com os que acreditam que as neuroimagens permitem ver “o invisível do pensamento” (SANCLAY apud CASTENET, 2008, tradução nossa.).

Por fim, há um laço entre psicanálise e política — tanto a nível de micropolítica (condução de um tratamento analítico, intervenções analíticas em instituições de saúde, educação, jurídicas) como no nível da macropolítica (impacto na elaboração e regulação das leis, a difusão dos tratamentos, etc.) — que pode ser resumido na ideia de que os analistas têm uma responsabilidade no campo social, a de ler e interpretar as inconsistências dos discursos através dos quais a sociedade contemporânea se sustenta.

Assim, à pergunta de Lacan sobre se deveríamos promover a intervenção analítica seguindo a tradição dialética, podemos responder à maneira do conjunto aberto colocado pela dialética negativa, que se aproxima mais da ideia de resto — e de resto sintomático —, própria do ensino mais tardio de Lacan.

 

A inversão lacaniana

Lacan (1967) inverte a ideia freudiana das relações entre psicanálise e política no seminário “A lógica do fantasma”.

Ao contrário de Freud, que explica a política através do recurso ao inconsciente pela identificação, repressão das representações e satisfação e retorno do recalcado, Lacan enuncia: “não digo que a política é o inconsciente, digo simplesmente que o inconsciente é a política” (LACAN, 1967, tradução nossa). É a inversão da posição freudiana.

No desenvolvimento de “Intuições milanesas”, Miller (2011) ressalta que o interesse de tal afirmação é que ela levanta a questão da política como o que explicaria o inconsciente e encontra uma boa definição “infiltrada de lacanismo” na obra A democracia contra ela mesma, de Marcel Gauchet: “É nisto que consiste especificamente a política: ela é o lugar de uma fratura da verdade” (GAUCHET apud MILLER, 2011). Ou seja, a política definida como um campo estruturado em torno de uma falta, que podemos escrever com o matema lacaniano S(A/).

Para esse autor, a democracia implica um efeito depressivo devido a um consentimento com a divisão da verdade. E diz:

“Doravante sabemos que estamos destinados a encontrar o outro sob o signo de uma oposição sem violência, mas também sem retorno nem remédio. Encontrarei sempre diante de mim não um inimigo que deseja minha morte, mas um contraditor. Há qualquer coisa de metafisicamente aterrorizante nesse encontro pacificado — gosto muito dessa ligação entre terror e pacificação — a guerra se ganha, diz ele, embora essa confrontação nunca tenha terminado” (GAUCHET apud MILLER, 2011).

Novamente encontramos uma analogia com a lógica dos conjuntos abertos, como na dialética negativa de Adorno. É uma visão da política a partir de uma perspectiva que se opõe ao todo dos ideais.

 

Uma perspectiva não toda

Em “Nota italiana”, Lacan afirma que o analista surge do não todo. Há também um confronto que nunca termina: aquele que se dá frente ao real do psicanalista. O que é um psicanalista? É a pergunta que condensa a fratura da verdade no campo da psicanálise, de onde emerge seu próprio real.

Há uma espécie de “amizade estrutural” entre a posição do analista e a política, não necessariamente a dos políticos.

Pela via da orientação lacaniana e com as perspectivas de Adorno sobre a dialética e de Gauchet sobre a política, podemos sustentar que, assim como a transferência analítica coloca em ato a realidade sexual do inconsciente — ou seja, a inexistência da relação sexual —, a política coloca em ato a inexistência do Outro.

A perspectiva não-toda, na psicanálise e na política, justifica e orienta a questão da incidência política da psicanálise.

 

O corpo político

“Lacan fala em algum lugar de uma participação política onde o psicanalista teria o seu lugar se fosse capaz disso. Vamos tomar como um desafio e ver se podemos enfrentá-lo”, disse Miller em 1997.

Esse desafio, ao qual nos convidou formalmente em 2017, na conferência de Madrid, com a criação da rede Zadig, tem seu fundamento no fato de que o não todo — aquele com que se depara ao final de análise — se conecta com a política entendida como a arte de lidar com o Outro que não existe (VICENS, 2018) e com os outros que, sim, existem.

É um desafio porque “o discurso político, o discurso do mestre, faz da identificação a chave de uma captura” (LAURENT, 2018), enquanto, no nível do corpo, temos que “Um corpo é o lugar que experimenta afetos e paixões, tanto o corpo político como individual. Paixões políticas novas surgem como acontecimentos de corpos políticos novos, e logo se transformam” (LAURENT, 2018).

Sobre o que aprendemos com os movimentos sociais no Brasil em 2013, Éric Laurent afirma que, nas mobilizações contemporâneas, se trata de

“[…] dois tempos da fantasia, que indicam perfeitamente um modo de laço social que não passa pela identificação de um traço comum, mas que, no entanto, funciona no registro de um corpo político produzido na qualidade de existência lógica, atravessado pelas paixões fantasísticas” (LAURENT, 2018).

O primeiro tempo do fantasma é do sujeito sem lugar, fading; o segundo é o “surgimento da articulação do sujeito com o gozo” (LAURENT, 2018).

A estrutura do Witz pode nos auxiliar a articular o corpo próprio com o corpo político. O Witz é um processo social em que a satisfação ressoa nos corpos ao mesmo tempo que produz, em cada um, uma satisfação singular no momento de rir (MILLER, 2011).

 

O destino é a política

O inconsciente é a política é um ponto de chegada que abre uma série de questões, dentre as quais destacamos a potência para a incidência política da psicanálise. Potência, que devemos dizer, não se efetiva como gostaríamos, questão que, no momento, deixaremos na nossa conta, como devedores.

É um ponto de chegada que tem como ponto de partida a ideia de que o sujeito do inconsciente é transindividual, como Lacan coloca em “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” e está demonstrado pela estrutura do Witz. Também é ponto de chegada a partir de “A anatomia é o destino”, de Freud (1924), que parafraseia “O destino é a política”, de Napoleão.

Se substituirmos a anatomia pelo corpo que fala, no lugar do destino teremos a palavra que condiciona o gozo, que, por sua vez, pela ausência da relação sexual, condiciona seu destino a ser social, político.

O destino do ser que fala é a política, devido à ausência de relação sexual.

E então?

Uma vez articulados inconsciente e política, qual seria a participação política da psicanálise?

“Talvez um efeito de despertar. Um despertar em relação ao que é, em última análise, sobre os ideais sociais” (MILLER, 1997, tradução nossa.), mesmo que isso seja… “pouca coisa”. Mas não importa quão pouco seja, não é pouco, por exemplo, demonstrar e transmitir a ideia do epistemólogo Georges Canguilhem de que a saúde é eminentemente social. Isso quer dizer que depende do discurso dominante, ou seja, para nós, os discursos da tecnociência e do capitalismo.

Não é pouca coisa apontar que as investigações no campo da saúde não começam por evidências, mas por decisões de mercado. E se há um tema em que a participação da psicanálise é necessária e urgente — inclusive para sua própria sobrevivência —, é o discurso avaliativo, e seu “grito estatístico”, que tem uma longa história.

Nosso adversário constante é a sociedade preditiva, na qual o desejo, o risco e o amor se desfazem frente à fascinação do regime do todo.

Não se trata de eliminá-lo, já que isso poderia nos eliminar, mas de mantê-lo assim, como adversário, porque, paradoxalmente, torna-se, desse modo, um fiador do não todo que pretende eliminar.

 

Tradução: Bernardo Micherif
Revisão: Cecília Batista 

Referências
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FREUD, S. “A dissolução do complexo de édipo”. In: obras completas de Sigmund Freud: o ego e o id, uma neurose demoníaca do séc. XVII e outros trabalhos. 1923-1925. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. “Psicologia de grupo e análise do ego”. In: Obras completas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. 1925-1926. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1953-54) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.
LACAN, J. (1966-1967) Seminario, libro 14: la lógica del fantasma.. Inédito.
LAURENT, É. “O traumatismo do final da política das identidades”. Opção Lacaniana online, ano 9, nº 25, mar.–jul. 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_traumatismo_do_final_da_politica_das_identidades.pdf
MILLER, J.-A. “Intuições Milanesas”. Opção Lacaniana online, ano 2, nº 5, jul. 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf
MILLER, J.-A. (1997). “El psicoanálisis, la ciudad, las comunidades”. Revista lacaniana de psicoanálisis, nº 22, Buenos Aires, EOL- Grama, 2017.
MILLER, J.-A. (2002). “El desengaño del psicoanálisis”. Revista lacaniana de psicoanálisis, nº 29, Buenos Aires, EOL- Grama, 2021.
VICENS, A. No todo es política en la orientación lacaniana. Barcelona: Gredos, 2019.

[1] Texto originalmente publicado em Lacan hispano. Olivos: Grama Ediciones, 2021.



ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA SÉRGIO LAIA A.M.E. da EBP/AMP 

 

Imagem: Fred Bandeira 

 

Almanaque On-Line: Há mais de trinta anos, em seu seminário O banquete dos analistas, Miller convocava os psicanalistas para uma tomada de posição diante do avanço de um discurso cujo cerne implicava o apagamento do desejo em favor de uma injunção ao mais de gozar.  Hoje, esse cenário se consolidou. Sabemos que, distintamente de um discurso que, por estrutura, faz barreira ao gozo, como vemos figurado no discurso do mestre, o discurso do capitalista, ao qual Miller se refere, possui uma configuração na qual o sujeito e o objeto mais de gozar gozo estão diretamente vinculados.

Uma de suas manifestações que interessa aqui isolar advém da parceria entre o discurso liberal — próprio ao capitalismo — e o saber da ciência, que exibe como palavras de ordem a utilidade e a rentabilidade, o que significa dizer que se ampara em uma lógica utilitarista que vai na contramão da existência do amor, do desejo e do gozo.

Nesse contexto, a prática analítica permanece sob a pressão de ceder a essas regras, seja, por exemplo, deixando-se incluir em sua burocracia, seja acatando o seu imperativo de eficácia medido por estudos e cálculos estatísticos. Diante dessa conjuntura, quais são as saídas para que a psicanálise possa se manter como um discurso que faz objeção a esse empreendimento de universalização ou de massificação anônima?

 

Sérgio Laia: Primeiramente, acho oportuno lembrar uma observação feita por Jacques-Alain Miller em uma de suas recentes apresentações virtuais, quando destaca que Lacan sempre se deixava tocar por uma oportunidade relativa a seu tempo, mas sem abrir mão de ser Lacan. O exemplo evocado, nessa ocasião, por Jacques-Alain Miller, é justamente o das referências que Lacan fez, no final dos anos 1960 e no início da década de 1970, a Marx e à mais-valia: elas não deixam de se valer da importância que o pensamento e a ação marxistas tinham, sobretudo entre os jovens comprometidos com lutas para um mundo mais justo e melhor, mas Lacan não se apresenta propriamente como mais um marxista ou alguém diretamente envolvido em ações anti-capitalistas, tampouco se coloca como um defensor do capitalismo — ele se serve, por exemplo, da noção marxista de mais-valia para ressaltar o que passa a formular, a partir da experiência psicanalítica, como mais-de-gozar.

Considero, por conseguinte, importante esclarecer que a formalização lacaniana dos discursos, embora passível de algum sequenciamento na história e de referência a certos contextos, não se restringe a essa historicização nem a esses referenciais. Em uma perspectiva que poderia ser qualificada de histórico-contextual, sabemos que o discurso do mestre foi relacionado por Lacan ao “roubo”, ao “rapto” e à “subtração” realizados pelo senhor; quanto ao “saber” que o escravo, particularmente na Grécia Antiga, derivava da própria prática, isso é como um savoir-faire que, exceto pela operação do senhor, jamais poderia ser articulado na forma de um saber valorizado e difundido como episteme (LACAN, 1969-1970/1991, p. 21). Igualmente por uma contextualização e uma localização histórica, o discurso universitário chegou a ser associado à universidade, que não mede esforços para colocá-lo “em posição dominadora” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 231). Em mais uma referência localizável historicamente, Lacan ressaltou a importância, para uma histérica, de “que o outro chamado homem saiba” o quanto “ela se torna nesse contexto de discurso” um “objeto precioso” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 37), e, certamente, no final do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX, Freud escutou como poucos o que suas pacientes diziam e favoreceu, com sua descoberta do inconsciente nessa experiência singular de escuta, a formulação lacaniana do discurso do mestre, do discurso da histérica e do discurso analítico. Todavia, com sua “produção dos quatro discursos”, Lacan visa dar corpo a “uma estrutura… que ultrapassa bastante a fala, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11). Por essa ultrapassagem, cada um dos quatro discursos não se limita a ocasiões histórico-contextuais, mesmo se elas são evocadas por uma das designações que corresponde a cada um como sendo o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso da histérica e o discurso analítico. Em cada discurso, trata-se, segundo Lacan, do que “subsiste em certas relações fundamentais” que, “literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem”, mas, “no interior” dessas relações, aborda-se também “alguma coisa que é bem mais ampla e vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11).

No que concerne à linguagem, os matemas lacanianos dos discursos são compostos pelo significante-mestre (S1), pelo significante referente ao saber (S2) e por esse efeito significante que tampouco deixa de ser uma espécie de rasura significante, designada como sujeito barrado ou dividido (S). Contudo, essa “alguma coisa” que, embora se amplifique e extrapole as enunciações efetivas, também se encontra inscrita nos discursos, é o que Lacan chama de mais-de-gozar e localiza no objeto a. Assim, em cada discurso, considero que Lacan — sem confundi-los — procura articular e, portanto, aproximar dois tipos de elementos que, ao longo uma parte de seu ensino, eram tomados como heterogêneos: os elementos concernentes à dimensão significante (S1, S2, S) e aquele referente à dimensão do gozo (a). Essa heterogeneidade entre significante e gozo não deve ser confundida com uma oposição na qual um excluiria necessariamente o outro impedindo-lhe a ação: ela tem a ver com certa distância, entre gozo e corpo, demarcada pelo impacto do significante nos corpos humanos.

Prefiro me ater, aqui, à especificidade lacaniana da acepção do objeto a como mais-de-gozar, sem desenvolver o modo como se evoca aí, também, a noção marxista de mais-valia. Assim, da própria ação do significante nos corpos, há um resto impermeável à mortificação e Lacan — localizando-o como objeto a — destaca nele, a meu ver, tanto a insistência quanto certa anulação do gozo, valendo-se de toda uma ressonância própria à língua francesa, ao designar esse resto como plus-de-jouir. Na tradução “mais-de-gozar”, perde-se essa ressonância e, talvez, algo dela poderia ser mantida se optássemos por traduzir plus-de-jouir  como “mais-a-gozar”. Trata-se concomitantemente de insistência e anulação porque, em francês, o advérbio plus implica sempre o que é mais e, acompanhado da preposição de, aponta, ao contrário, para o que não há mais. Logo, como plus-de-jouir, o objeto a nos discursos implica, sem cessar, um mais gozo que não deixa de ser também experimentado, embora sem que se queira saber disso, como uma ausência, um menos que, ao mesmo tempo, convoca um mais que, a cada vez, tampouco se alcança. Estimo que, na configuração do discurso do capitalista por Lacan, essa insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir será levada ao extremo, e foi isso que, a meu ver, o fez se interessar pelo que tal discurso opera. Em outros termos, diferentemente de muitos envolvidos com as lutas políticas dos anos 1960-1970, Lacan não me parece propriamente apostar na instauração de outro modo de produção avesso ao capitalismo, tampouco se coloca como um defensor desse modo de produção cada vez mais dominante. Ao mesmo tempo, ao localizar esse extremo da insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir, Lacan também vai se servir do discurso analítico para retificar ou, retomando um termo da questão de vocês, para fazer objeção a essa forma paradoxal de o gozo se impor e se esvair dos corpos dos seres afetados pelo significante.

Na formulação dos quatro discursos por Lacan no Seminário XVII, há uma vetorização ordenada da esquerda para a direita com relação ao giro dos quatro elementos (S1, S2, S, a) por quatro lugares diferentes entre si, mas que permanecem os mesmos em cada discurso. Respondendo a uma pergunta que lhe fiz no dia 19 de outubro de 2020, por ocasião de um evento virtual da Escola Brasileira de Psicanálise, Jésus Santiago pôde destacar que, no discurso do capitalista, essa vetorização ordenada deixa de se sustentar e vetores transversais e perpendiculares se impõem sem definir propriamente um giro dos elementos desse discurso cada vez mais dominante. O desmantelamento, no discurso do capitalista, dessa vetorização ordenada que, a princípio, norteava os discursos, me parece também destacar que nada gira como antes, mas o significante-mestre (S1) insiste e impera, com sua proliferação implacável e anônima, no adoecimento dos corpos e na configuração do que já designei certa vez como sujeitos objetalizados, ou seja, consumidos pelos objetos que muitas vezes eles mesmos consomem (LAIA, 2008). Por isso, o discurso do capitalista, embora seja, nos termos mesmo de Lacan, “o que se fez de mais astucioso como discurso”, acaba por ser tomado pela “explosão” (crévaison) na medida em que ele “se consuma (se consomme) tão bem a ponto de consumir-se (se consume)” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Há, no discurso capitalista e, ainda, na própria dimensão discursiva do inconsciente, uma espécie singular de autofagia, porque a degradação e a mortificação que lhe são concernentes colocam em perigo os corpos por ela impactados, mas também fazem desse risco sua consumação, ou seja, a realização de seu próprio domínio.

A pergunta de vocês também me faz indagar sobre como enfrentar essa dominação sem ser pela via sem saída da revolta, porque, nesta última, reitera-se o império do significante-mestre (S1) e a proliferação do mais-a-gozar (a). A via da incorporação do discurso tomado pela vontade imperiosa de gozo tampouco é uma saída, pois é o que já acontece quando — nos meandros obscuros da satisfação e na escalada contemporânea do capitalismo — passamos a ser todos capitalistas, agenciadores da linguagem do lucro, mas não menos segregados. Assim, o discurso do capitalista, inclusive como uma versão atualizada do discurso do inconsciente, é uma proliferação de mal-entendidos que mortificam todos aqueles por ele englobados. Porém, a experiência psicanalítica, tomando como seu princípio ativo o que é segregado na dimensão do gozo (a), endereça ao sujeito (S barrado) algumas interpretações quanto ao que o destitui de um corpo. Na escala, portanto, do discurso analítico, é encontrada, segundo Lacan, “uma forma de mal-entendido na qual” o sujeito, como hiância no campo dos significantes eivada de gozo, “se quita” e pode “subsistir” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Importante destacar que a utilização lacaniana do verbo quitar me parece introduzir, para o sujeito (S), no discurso analítico, a dimensão do pagamento da qual tanto o capitalista-do-mercado quanto o inconsciente-capitalista insistem em se safar condenando-se, de todo modo, à insaciabilidade do mais-a-gozar (a). Por sua vez, a esse sujeito que se quita e pode passar a subsistir, com sua própria hiância imiscuída de gozo, em uma forma de mal-entendido, outros usos do corpo se tornam viáveis, diferentemente do que acontece na fantasia, porque esta, em um circuito mais privado que o do mercado, não deixa de ser prisão no mais-a-gozar insaciável (a).

A experiência analítica dá acesso, então, a outros modos de “viver a pulsão” (LACAN, 1964/1973, p. 246), mas também o inconsciente, porque, pelo “espaço de um lapso”, ou seja, de um mal-entendido, sobretudo ao fim de uma análise, quando o discurso analítico toma a forma mesma do ato, o inconsciente deixa de ter qualquer “alcance de sentido (ou interpretação)” (LACAN, 1976/2001, p. 571). Os testemunhos de passe são profícuos em nos mostrar o quanto, no discurso analítico, os significantes-mestres (S1) determinantes da dominação subjetiva pelo Outro passam a iterar de outra forma, porque não funcionam apenas nos lugares do agenciamento, da verdade ou do outro: eles passam a ser localizados no lugar da produção-perda. Trata-se, então, efetivamente de outro tipo de mal-entendido: o significante-mestre (maître) que me faz ser (m’être) e me assola como sujeito, se apresenta, pelo discurso analítico, no lugar de produção perdida e, com isso, temos “um outro estilo de significante-mestre” (LACAN, 1969–1970/1991, p. 205).

a  à   S

S2  –>   S1

Como se trata, no discurso analítico, de encontrar outro estilo para o significante-mestre (S1), me parece possível sustentar que há, então, pela experiência analítica, uma saída do império e da insaciabilidade do discurso do capitalista, mas sem a re-volta que, conforme esclarece Lacan, tanto quanto a sujeição, acaba fazendo imperar o S1. Não é, portanto, sem razão, que Lacan insistia na peculiaridade do discurso analítico frente aos outros discursos: “só o discurso analítico é exceção” porque “exclui a dominação”, “nada ensina” e “não tem nada de universal” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Mas a exceção concernente a esse discurso no âmbito da dominação se vale também do outro estilo encontrado para o Sdominador, que, ainda assim, não deixa de ser dominador. Também a exceção referente ao ensino não se separa  do enfrentamento do desafio de “como fazer para ensinar o que não se ensina” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Por fim, se o discurso analítico pôde ser considerado por Lacan “até mesmo a saída do discurso capitalista”, ele também nos alerta que essa saída “não constituirá um progresso, se for apenas para alguns”. Nesse contexto de um progresso que pode até evocar o universal, considero oportuno destacar que, para lançar no universo esses produtos de uma análise que os analistas são, a escala é aquela do discurso analítico como “laço social determinado pela prática de uma análise”, ou seja, por uma experiência que é única e feita à medida de cada um que, como analisante e como analista, a ela se dedica.

 

A.O-L.: Em 1970, no seminário O avesso da psicanálise, Lacan nos apresenta a segregação como o fundamento de toda fraternidade. Só há fraternidade por estarmos isolados juntos, isolados do resto” (1969-70/1992, p. 107). Nesse momento, ele aborda a fraternidade como uma noção referida ao discurso, ao laço social como tal. Dois anos mais tarde, no Seminário 19, …ou pior, Lacan vai retomar a referência à fraternidade, mas, dessa vez, não mais sustentada no discurso, mas no corpo. Ele se refere ao racismo como algo que se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo” (1971-72/2012, p. 226). É curioso porque, no ano seguinte, Lacan definiria a raça como o que se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente dos escravos” (O aturdito, 1973/2003, p. 462). É uma clara referência ao período colonial a partir do qual noção de raça surgiu e se consolidou em seguida junto ao discurso nacionalista, o que desembocaria mais tarde no surgimento dos campos de concentração. Considerando a atualidade, poderíamos dizer que a era dos mercados comuns operou uma mutação nessas noções de raça, fraternidade e racismo? O que implica para essas noções quando Lacan transita entre a referência ao discurso e ao corpo?

 

Sérgio Laia: Como vocês mesmos destacam nesta segunda pergunta, Lacan conclui o Seminário …ou pior dizendo que a revalorização da palavra “irmão” implica uma “fraternidade do corpo” diversa dos “bons sentimentos”, porque nela se enraíza, também, o “racismo” (LACAN, 1971–1972/2012, p. 227). Foi seu modo de pôr em suspeição a noção de irmandade em um mundo em que cada vez mais ela se apresentava como uma solução, inclusive (para usar um termo frequente daquela época) contra-cultural. Assim, o que afeta os corpos (como eles se satisfazem) e o que os irmana (com que se identificam) têm uma função tão importante para a concepção lacaniana do racismo quanto o que os segrega.

No que concerne à satisfação, sabemos que, nos corpos humanos, ela não segue rigorosamente um programa estabelecido pelo organismo: é perturbada pelo que se escuta e se diz. Nossa satisfação toma, portanto, trajetórias desvairadas e, para designar e orientar essa satisfação, contamos apenas com o Outro, ou seja, com um lugar do qual estamos separados e que nos referencia. Porém, essa separação e até muitas dessas referências nos são também insuportáveis: não conseguimos, segundo Lacan, “deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo” e lhe impomos “o nosso” (LACAN, 1973/2003, p. 533). O racismo, então, se apresenta quando nosso desvairado modo de satisfação procura se orientar rejeitando as formas diferentes (ou mesmo desconhecidas) de o Outro se satisfazer. Em outros termos, como esclarece-nos Laurent, o racismo sempre tem a ver, “em uma comunidade humana”, com “a rejeição de um gozo inassimilável” e que é relacionado “a uma barbárie possível” (LAURENT, 2013, p. 32).

Com a “globalização” — nome mais atual para o que, na pergunta de vocês, é evocado como “era dos mercados comuns” —, considero que o racismo se agrava porque se torna cada vez mais difícil localizar o que faz as vezes de Outro: as diferenças (sobretudo aquelas referentes às alteridades) tendem a se apagar, dando lugar a uma irmandade generalizada — o termo “irmão”, destacado por Lacan desde a última lição de …ou pior, se desdobra hoje em “brother”, “bro”, “mano”, “véi”, aplicáveis a todo mundo, conforme constatamos sobretudo nas falas dos jovens, mas também dos que já não são assim tão jovens. Se o contorno do Outro já não é tão palpável, se seu corpo deixa de existir e seu modo de gozo não delimita mais o que nos concerne em termos de satisfação e de identificação, o desvario das satisfações se intensifica ainda mais sem direção. Os jovens, ao terem seus corpos impelidos a buscar Outros corpos para sua satisfação sexual e sua identificação, são particularmente sensíveis a esse desvario e, nos nossos dias, quando todo mundo é incitado a ser jovem, tal desorientação toma proporções avassaladoras e efetivamente globalizadas.

Com essa diluição do campo simbólico do Outro, com a proliferação das irmandades, são os grupos que se tornam mais propensos, a meu ver, para fazer as vezes não de uma alteridade simbólica que parece cada vez mais inapreensível, mas de uma alteridade-corpo no qual as pulsões podem se satisfazer diretamente. Hoje, encontramos exposto o que a experiência analítica aborda, mais intimamente, desde os primeiros pacientes de Freud: as identificações promovidas pelo Outro (e que são, inclusive, cada vez mais frágeis) não respondem efetivamente às exigências de satisfação; há discrepâncias cada vez maiores entre o que nos satisfaz e o que nos identifica, inclusive porque as referências identificatórias estão diluídas ou até ausentes.

Para este contexto atual, a noção lacaniana de identificação ao sintoma pode se apresentar, a meu ver, como um leme, pois conjuga elementos que, na cena sócio-cultural atual, apresentam muitas vezes desarticulados, ou seja, corpo e fala, satisfação e identidade.

 

A.O-L.: O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se comprova nossa política implica (…) que tudo o que se articula dessa ordem seja passível de interpretação. Por isso que tem toda razão quem põe a psicanálise à testa da política(1971/2003, p. 23). Nessa citação de Lacan em Lituraterra, podemos entender que, para ele, a política é a do sintoma e sua interpretação. Em nossa época, o singular do sintoma regula o sujeito e as construções do laço social (do individual para o coletivo). O sintoma serve para pensar o político?

 

Sérgio Laia: Estimo que já pude responder a essa questão sobre o sintoma e a dimensão política no final de minha segunda resposta, quando faço menção à noção lacaniana de “identificação ao sintoma” e, ao longo de minha primeira resposta, quando mostro como o discurso do capitalista configurado por Lacan é uma espécie de update do discurso do inconsciente. Ainda assim, mesmo que, a meu ver, vocês tenham dado uma conotação mais coloquial ao verbo “pensar” (ao utilizá-lo na expressão “pensar o político”), eu faria uma ressalva de que não se trata propriamente de, a partir da psicanálise, pensar o político ou a política, mas de intervir sobre esse campo. Essa intervenção, no entanto, não seria propriamente equivalente ao que teríamos na chamada militância política nem ficaria restrita à chamada “territorialidade” dos nossos consultórios ou da clínica. Para esclarecer os matizes dessa intervenção, eu lhes lembraria o próprio modo como a psicanálise, desde Freud, se faz presente no mundo. Por um lado, desde o início, essa presença não se dá sem a manifestação de resistência ao discurso analítico (inclusive, segundo nos ensina Lacan, da parte dos próprios analistas) — assim, as resistências à psicanálise, as críticas e os impedimentos que lhe são impostos têm a ver com nossa coragem de operarmos com o que Freud mesmo chamou certa vez de “substâncias perigosas”, aproximando-a da química. Por outro lado, entre todas as propostas que, desde o final do século XIX, se formulam com o prefixo psi-, a psicanálise é a única que tem conseguido fazer passar para o uso comum, sem qualquer banalização, o que para ela tem uma caracterização muito específica e, como exemplo, cito-lhes o ato falho. Antes de a psicanálise existir e se difundir no mundo, não tínhamos essa concepção — hoje amplamente partilhada, inclusive por aqueles que sequer conhecem Freud — de que uma troca de palavras produzida casualmente quer dizer alguma coisa. A meu ver, nenhuma resistência ou crítica que temos sofrido como psicanalistas abala a força de como, por exemplo, a concepção psicanalítica do ato falho se tornou uma propriedade comum. Sabemos que Lacan, no Seminário 23, aproximou a noção de sintoma da operação de “fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum” (LACAN, 1975–1976/2017, p. 86) — não é ela que se processa também nesse uso difundido que temos do ato falho? Logo, considero que a política que cabe a um psicanalista sustentar é diferente da militância e, mais ainda, da irmandade partidária, porque não se pauta pela instauração de uma nova ordem, pela consolidação de um projeto, por uma revolta quanto ao estabelecido, e muito menos pelo apreço quanto ao já vigente e estabelecido. Na perspectiva psicanalítica, trata-se de fazer passar o que é próprio para o comum ou, como certa vez formulou Éric Laurent, procuramos desfazer o que é recebido como unidade de significação para fazer ecoar uma leitura singular do que nos é apresentado como já pronto para ser usado (LAURENT, 2005).

 


LACAN, J. (1972) “Du discours psychanalytique“. ______. Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978.
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LAIA, S. “Os sujeitos objetalizados e o analista como ‘parceiro-sintoma’”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 52, São Paulo, setembro 2008.
LAURENT, É. “Da linguagem pública à linguagem privada, topologia da passagem”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 42, fevereiro de 2005.
LAURENT, É. “Racismo 2.0”. Opção Lacaniana, n. 67, 2013.
Perguntas formuladas por Bernardo Micherif, Patrícia Ribeiro e Rodrigo Almeida.



A INFÂNCIA É TRANS…[1]

TÂNIA MARIA LIMA ABREU
A.E. (2020-2023) EBP/AMP
taniaabreu.ta@gmail.com

Resumo: Este trabalho é fruto de uma pesquisa que tomou como eixo o documentário Pequena garota e as leituras que dele a autora pode fazer a partir de textos e vídeos com os quais dialogou.

Palavras chaves: infância; trans; sexuação; gozo.

Childhood is Trans

Abstract: This article is the result of a research that had as its guide the documentary Little Girl and the readings that the author could make of it through texts and videos with which she dialogued.

Keywords: childhood; trans; sexuation; jouissance.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 


Trata-se de um lindo documentário dirigido por Sébastien Lifshitz, que chegou aos cinemas e às plataformas digitais em dezembro de 2020. O longa emociona ao contar a história real de Sasha, uma criança de 7 anos que sempre soube que era uma garota, embora tivesse nascido menino, caracterizando, assim, o que no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 6 (DSM 6) aparece como disforia de gênero. Durante um ano o diretor acompanhou a pequena Sasha e sua família, que residem na Alta França (Hauts-de-France). O filme, com muita sensibilidade (o que não impediu de tamponar, com saber, a castração), foi selecionado no Festival de Berlim e garantiu o prêmio de melhor longa-metragem internacional do Festival de Cinema Mix Brasil.

Meu comentário se divide em duas partes, seguindo o que o título, por mim escolhido, aponta. Assim, parto da ideia de que a infância é trans e, depois, me dedicarei às reticências.

Na versão em vídeo (que circulou na Lacan WEB TV), Daniel Roy (2021a), retomando Freud, nos relembra que uma desarmonia entre o que acontece no corpo e as palavras é característico da sexualidade infantil, mas, hoje, ter “nascido em um corpo errado” é um “passaporte” para ser enquadrado em uma transidentidade, como se as crianças, em suas pesquisas infantis, em sua latência, não pudessem ter dúvidas, ambiguidades e qualquer transitoriedade. Como nos adverte Roy, “não há caminho normal para a sexuação”, tampouco uma instância interna ou externa à criança que possa julgar se o próprio corpo é um bom ou um mau corpo. Sigo Roy ao afirmar que nas crianças há afetos e sintomas, mas dos quais só saberemos se as escutarmos. E por falar em sintomas, relembro Maleval (2021) que, também em vídeo da Lacan Web TV, nos sublinhou que a disforia de gênero — nomeação que acalma algumas crianças, por encontrarem um lugar no discurso do Outro — nem sempre é o problema maior, visto que pode vir acompanhada de outros sintomas, tais como anorexia, autismo ou perturbações de humor.

Ainda na direção da minha pesquisa nos áudios da Lacan Web TV, chamou a atenção o que disse Hélène de La Bouillerie, a propósito do prefixo “dis”: “Na experiência com crianças, na prática clínica, é comum encontrarmos crianças diagnosticadas ‘dis’: dislexia, disortografia, discalculias, dispraxia…”. Diagnósticos que fazem série àqueles de outras letrinhas, tais como TDAH, TOC entre outros. A propósito disso, Roy nos diz que:

“Talvez tenhamos agora a fala e o espírito com mais liberdade para nos confrontar com essa criança-terrível, a hiperativa, os ‘dis’ (dis: elemento que significa dificuldade, problema, por exemplo: dislexia), aquele que morde, aquele que não dorme, e aos seus pais exasperados, aflitos ou desesperados” (ROY, 2012, n/p).

No ano de 2005, Miller, no curso Piezas sueltas, na aula de 19 de janeiro de 2005, segundo Roy, adverte para:

“(…) a questão da continuação da psicanálise na época da leveza”. Ele destaca que, face a esse ‘domínio da leveza’ — que visa a conduzir o sujeito da sua particularidade ao universal — a psicanálise não tem que entrar ‘em uma competição de poder terapêutico’, uma vez que, com Lacan, ela é a única a levar em conta o lugar do objeto a, tanto quanto como causa do desejo, como mais-de-gozar, mas, também, como consistência lógica, como um real ‘produto do simbólico’. Ele nos encoraja a tomar um ponto de vista ‘pragmático e de bricolagem’, que consiste em procurar, com os sujeitos, os significantes — os S1 —, que ‘ajudam a deixar legível o gozo’ e, portanto, ‘ajudam a deixar legível a história’” (ROY, 2012, n/p).

Assim, escutem as crianças: elas têm o que dizer, sobretudo sobre o mal-estar que lhes afeta o corpo. Posição, como mencionada acima, absolutamente freudiana — um pouco mais adiante, retomarei a questão da bricolagem, ao dialogar com Fórum Zadig (2021).

Para esta conversação, retomei um texto de Freud intitulado “O esclarecimento sexual das crianças” (1907), uma carta aberta endereçada ao Dr. Michael Fürst. Ali, encontrei a ferrenha defesa de Freud sobre a importância de se falar às crianças e, consequentemente, de escutá-las em suas curiosidades sexuais. Freud argumenta que:

“(…) certamente são a habitual hipocrisia e a própria má consciência em questões de sexualidade que levam os adultos a fazer mistério diante das crianças; mas é possível que influa nisso alguma ignorância teórica, contra a qual podemos agir mediante o esclarecimento dos adultos” (FREUD, 1907/2015, p. 221).

Passagem que se assemelha ao segredo de família, que, com Lacan, sabemos ser sempre um algo não dito sobre o gozo.

Na sequência, Freud traz o equívoco à tona, reinante, à época, nas famílias, nos educadores e na sociedade, ao suporem que “falta às crianças o instinto sexual, que somente na puberdade ele aparece, com o amadurecimento dos órgãos sexuais. Isso é um erro grosseiro, de sérias consequências para o conhecimento e para a prática” (FREUD, 1907/2015, p.221). Ainda, para Freud:

“Na verdade, o recém-nascido vem ao mundo com a sexualidade, determinadas sensações sexuais acompanham seu desenvolvimento no período da amamentação e da primeira infância, e pouquíssimas crianças deixariam de ter atividades e sensações sexuais antes da puberdade” (FREUD, 1907/2015, p.221).

O que, em termos lacanianos, quer dizer que as crianças gozam! Perversão polimorfa é gozo. Em sua argumentação, Freud segue, afirmando que:

“O que a puberdade faz é conferir aos genitais a primazia entre todas as zonas e fontes geradoras de prazer, forçando o erotismo a pôr-se a serviço da função reprodutiva, um processo que naturalmente pode sofrer certas inibições e que em muitos indivíduos, os futuros pervertidos e neuróticos, efetua-se apenas de modo incompleto. Por outro lado, bem antes de alcançar a puberdade a criança é capaz da maioria das atividades psíquicas da vida amorosa (ternura, dedicação, ciúme) e, com alguma frequência, a irrupção desses estados psíquicos vem acompanhada das sensações físicas da excitação sexual, de maneira que a criança não tem dúvida quanto à relação entre as duas coisas. Em suma, bem antes da puberdade, a criança é, tirando a capacidade de reprodução, uma criatura amorosa completa … O interesse intelectual da criança pelos enigmas da vida sexual, sua curiosidade sexual, manifesta-se insuspeitadamente cedo, portanto” (FREUD, 1907/2015, p.221).

Há um ponto que não desenvolverei, mas que gostaria de ressaltar, por permitir atualizar o texto freudiano ao confrontá-lo com o texto de Roy (2021b), uma vez que, ali, localizamos o lugar privilegiado do mal-entendido que transmite o gozo: “(…) a família está, daqui em diante, mergulhada no banho de nossa civilização, onde os objetos vindos da tecnologia, os objetos mais-de-gozar, se tornaram a autoridade e fundaram a lei de todas as formas de ideal. O gozo está aí em primeiro lugar” (ROY, 2021b).

Em um dos seus últimos seminários, de 10 de junho de 1980 — intitulado, por Jacques-Alain Miller, “O mal-entendido” —, Lacan extrai as consequências e evoca “(…) dois falantes que não falam a mesma língua (…), dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido realizado (…)”, dando a vida, transmitem esse mal-entendido (LACAN, 1980/2016, p. 11). Trata-se, aqui, de um mal-entendido que se refere ao gozo, acrescenta Roy.

Aí estão dadas as condições para podermos afirmar que a infância é trans, na acepção de transitar e transportar. A criança curiosa pergunta, investiga, hipotetiza, experimenta o seu corpo e o corpo do outro, identifica-se e, desse modo, exerce a sexualidade infantil. Identificações livres, influenciadas pelo afeto e pela pulsão, mas, também, livres em sua diversidade. Identificação que não se guia tanto pelo Outro, mas pelo gozo que habita o próprio corpo.

O enigma da diferença sexual não escapa a essa lógica infantil, e, como preconiza Roy (2021a), em vídeo já referenciado, seguindo Freud, “é um momento no qual a criança está só”, momento de crise, no qual descobre que o Outro é barrado, não possui respostas para tudo. Por outro lado, o fato de ser esse o caminho para todos, “a crise é a norma”, “não há um caminho padrão para encontrar sua via para sua sexuação”, completa. Freud nomeou essa fase de latência, aquela na qual o gozo, advindo do sexual, é desviado para atividades sublimatórias e fixa o sujeito em seu modo de gozar.

Partamos, agora, para o que me despertou atenção no filme, tendo como eixo norteador Sasha, sua família e, dentro dela, a relação mãe-criança.

Trata-se de uma família de quatro filhos, sendo a mais velha uma adolescente e os outros três nascidos meninos. Ao longo do filme, escutamos a mãe de Sasha, em consulta com um psicólogo, dizer de seu desejo de ter uma menina durante a gravidez de Sasha — único dos quatro filhos que possui um nome comum aos dois gêneros. É notório que Sasha nasceu em uma família amorosa e teve a sorte de ter uma mãe que olhava para cada filho em sua singularidade, embora tenha ficado claro o idílio amoroso que havia entre ela e Sasha, o que, por vezes, deslocava seu olhar dos outros filhos.

O pai, aquele que só tem direito ao amor e ao respeito ao fazer de uma mulher objeto a causa do seu desejo e se ocupar dos seus produtos, como nos ensinou Lacan (1974/1975), me pareceu bem em sua função de cuidar do produto Sasha, mas inoperante para barrar o desejo da mãe. Seu discurso é de normalizar o que se passava com a criança, não podendo alcançar o sofrimento que a atingia.

No tocante à mãe, é interessante como ela é sensível e se questiona sobre a força do seu desejo, mas o diretor do filme opta pela via do saber, aqui, representado pela psiquiatra infantil Anne Bargiacchi, do hospital Robert Debré, em Paris, que, de um golpe, elimina qualquer lugar tanto para o desejo quanto para o discurso psicanalítico: não sabemos a causa da disforia, mas não é fruto do desejo dos pais. Nesse ponto, detenho-me no vídeo que Fabian Fajnwaks (2021) gravou para a 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, no qual observou que as diferentes teorias do gênero e dos terapeutas querem “abordar a sexuação pelo viés do semblante, modo de gozo feminino ou masculino, curto-circuitando o Outro, e, como se o Outro não existisse, abolem o desejo (…)” (tradução nossa).

A partir daí, o que se vê é que a psiquiatria, tal como representada no filme, não deixou espaço para que o dito de uma criança pudesse ser escutado, o que, com o tempo e sob transferência, poderia ser transformado em um dizer. Afinal, Sasha afirmou que queria ser uma menina quando crescesse. A família passa a travar uma cruzada contra a escola na qual estudava e nas aulas de ballet, que não a aceitam porque, na certidão de nascimento, está registrado menino, ignorando o que recomendou Roy:

“Existe a possibilidade de uma criança decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais como ‘causa de seu desejo’ e ‘como dejeto de seu gozo’. Esse deciframento, uma criança o faz com os significantes que ela retira, que tomam o valor singular do gozo pulsional que os flexibiliza. Essa é a função privilegiada do jogo da criança, que enoda, em volta do objeto indizível, as extremidades do corpo, os fios de gozo e os fragmentos de discurso. Esse objeto é a válvula que abre, entreabre ou fecha, o espaço para uma separação” (ROY, 2021b).

Para concluir a primeira parte do meu trabalho, continuo com o referido texto de Roy, mas, agora, colocando-o frente a frente com o evento Zadig, recém ocorrido na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Nele, destaco a passagem

“Nós partimos, pois, de um outro ponto de vista, colocando que não existe ser falante que não seja de uma família, o que abre então muitas perspectivas para todos aqueles que estão numa situação delicada com suas famílias ou que se consideram “sem família”, mas também para todos os outros. Para cada criança, protegida ou abandonada, existem possibilidades de bricolagem. Respondendo a uma lógica do não-todo (pas-tout), a instituição ‘família’ oferece outros recursos: aqueles, para as crianças, de serem não-todo (pas-tout) dependentes das identificações familiares, não-todo (pas-tout) dependente do amor, filial e parental, quer dizer, de poder explorar as facetas menos amáveis. E isso vale também para os seus “parceiros no jogo da vida”, pai, mãe, padrasto, madrasta e outros ‘familiares’” (ROY, 2021b).

Do Fórum Zadig, ocorrido em 1º de julho de 2021, retiro a entrevista com Are Bolguesi, conduzida por Angelina Harari, e os ensinamentos extraídos dos dez minutos que nos concedeu, sobretudo no tocante à relação dela com a moda, que, ao vestir a própria pele, a liberta.

Sasha e Are têm, ambas, uma paixão que, entretanto, encontrou destinos distintos. Are relata como tem sido libertador cuidar de sua pele, por intermédio da moda. Sasha, uma criança cujo discurso foi, segundo Maleval (2021), tomado como “discurso científico”, não foi ouvida naquilo que a movia: a dança. A tristeza no olhar de Sasha poderia ter sido interpretada como a de quem não podia fazer o que o desejo lhe apontava? Nesse contexto, o da “bricolagem” acima citado, podemos questionar: Sasha poderia ter sido um “menino bailarino”? Bricolagem, por esse prisma, com o que a pulsão vivificava em seu corpo, ressonância do eco de um dizer? Teria sido essa sua saída sinthomática, seu modo de ser mulher?

 

Parto, agora, para as reticências…

É do conhecimento de todos que Jacques-Alain Miller denominou o ano de 2021 como “ano trans”. Toda nomeação implica alguma fixação. No campo epistêmico, estamos ainda no instante de ver, de produção de ideias decorrentes dessa fixação, cabendo, então, dúvidas: o que é um trans? Binário ou não binário? O que é sexo fluido? Necessitaremos de algum tempo para compreender o que é um fenômeno global, atemporal e diverso: a teoria do gênero. Eric Marty (2021), entrevistado por Jacques-Alain Miller sobre seu recém-lançado livro, O sexo dos modernos, elevou tais teorias à categoria de “última grande mensagem ideológica do ocidente ao resto do mundo”, destacando suas influências jurídicas em diversas democracias.

Diante da diversidade que o tema impõe — e assim deve ser tratado, a meu ver —, detenho-me agora em uma pequena digressão, contida no título do meu trabalho: as reticências, pois eles me levarão a tratar de outra fixação.

O que são as reticências? Quando usá-las? Em que contexto? A sua presença no título do meu trabalho levou-me a pesquisar as suas origens, e eis que me deparo com uma etiologia latina para os três pontinhos, que significam algo implícito. O que há de implícito no momento “trans”, que, de uma década para cá, assolou o mundo, levando as crianças em seu movimento? Será que a onda “trans” do mundo adulto pode ser “transportada” para o infantil que, em si, é uma transmutação por estrutura?

A infância é, por estrutura, “trans”: transição, transformação, transgressão. Mas, sobretudo, “transfixão”. Essa palavra é dicionarizada e significa um método de amputação cirúrgica em que se transpassa o bisturi de lado a lado, dividindo os músculos de dentro para fora, segundo o Michaelis. Qualquer semelhança com o que temos presenciado ao nível do esmagamento do infantil pelo discurso do adulto não é mera coincidência. É de “fixão” que se trata quando a ficção infantil é atravessada pelo discurso do Outro.

Freud nos legou o conceito de fixação, Lacan inventa a “fixão”. A criança do século XXI está a nos presentear, com sua divisão desde dentro, com os efeitos em seu corpo do Discurso do Mestre, aqui representados pela Ciência e pelas leis. Quem vem primeiro? Quem serve a quem? Isso não interessa ao infantil, pois, sobre ele, tombam os efeitos daí transportados. Se o músculo se divide de dentro para fora, a criança se divide de fora para dentro, a partir do que vê e ouve.

Voltemos às reticências, sem perder de vista que, além de apontarem para uma interrupção da frase, elas transmitem sentimentos: surpresas, dúvidas, suspense… Elas animam um texto! Eis o que interessa nesses pontinhos: a arte da vivificação que, no nosso affaire, tem como caminho privilegiado a prática clínica.

O que a psicanálise pode oferecer aos sujeitos falantes que sofrem por uma inadequação entre corpo e discurso? É de leitura do sintoma que se trata: encontro de significante e corpo.

Concluo lembrando que os significantes menina ou menino fazem eco no corpo de modo singular e o fazem gozar, uma vez que “um corpo, isso se goza” (LACAN, 1972–73/2008, p. 29), desde que tal gozo seja corporizado de modo significante. Sasha nos demonstra que, no sexo, não há nada mais que uma questão de cor, como ensina Lacan: “pode haver mulher cor de homem, ou homem cor de mulher” (LACAN 1975–1976/2005, p. 112).

 


Referências
FAJNWAKS, F. Entrevista concedida a Christine Maugin, publicada em Les Z’atelier 2, como atividade preparatória à 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, de 13 de março de 2021. Em https://institut-enfant.fr/organisation-jie6/zatelier-video-1/. Acesso em: 10 ago. 2021
FREUD, Sigmund (1907). O esclarecimento sexual das crianças (carta aberta ao Dr. M. Furst). Trad: Paulo César de Souza, In: Obras Completas. RJ: Companhia das Letras, 2015 vol. 8, p. 220/226.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXIII: o sinthoma. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975-1976/2005, p. 112.
LACAN, Jacques. O mal-entendido, lição de 10/06/1980, In: Opção Lacaniana, n. 72. São Paulo, março de 2016, p. 11.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XX: mais, ainda. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1972/1973/1985, p. 29.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXII: RSI. 1974/1975, inédito.
MALEVAL, J-C. La réassignation de genre chez l’enfant. In: Lacan Web Tv. YouTube.com. em 12 de abril de 2021. Acesso em: 10 ago. 2021. Tradução da autora.
MARTY, Éric. Entrevista sobre Le sexe des modernes, por Jacques-Alain Miller. Correio Express. 21 mar. 2021. Disponível em: https://www.ebp. org.br/correio_express/2021/04/14/entrevista-sobre-le-sexe-des-modernes/. Acesso em: 14 de abril de 2021.
MILLER, Jacques-Alain. Del objeto a al sinthome. In: Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 97/117.
ROY, Daniel. Être né dans le mauvais corps. (vídeo) In: Lacan Web TV. YouTube.com. em 28.6.2021a. Acesso em: ago. 2021. Tradução da autora.
ROY, Daniel. Parents exaspérés – Enfants Terribles. In: Zapresse : Lettre D’Information de L’Institut Psychanalitique de L’Enfant. Université Populaire Jacques Lacan.2021b. Disponível em : https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Acesso em: ago, 2021. Tradução da autora.
ZADIG. Fórum. Trans: Leituras. Evento da La movida Zadig Doces & Bárbaros, em 1º de julho de 2021, via Plataforma Zoom.

[1] Texto apresentado e debatido em forma de Conversação no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças, Seção-MG, em 18/09/2021.



PEQUENA GAROTA[1]

SILVIA BAUDINI
Psicanalista, A.M.E. da EOL/AMP
sbaudini@yahoo.com.ar

Resumo: a autora apresenta a sua leitura do documentário Pequena garota, que aborda a questão do transexualismo e sua incidência nos corpos das crianças. Sua análise o articula ao discurso de nossa época, o que lhe permite dizer que  se “na era vitoriana a histeria era a epidemia que explicava o impasse sexual da época, a causa trans é o que está em jogo hoje no impasse sexual de 2021”.

Palavras-chaves: transexual; crianças; corpos; impasse sexual. 

LITTLE GIRL 

Abstract: In this essay the author presents her thoughts on the documentary Little Girl that addresses transsexuality and its impact on children’s bodies. Her analysis articulates it to the discourse of our time wich allows her to say that if “in the Victorian era hysteria was the epidemic that explained the sexual impasse of the time, the trans cause is what is at stake today in the sexual impasse of 2021”. ” 

Keywords: transsexual; children; bodies; sexual impasse.

 

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Jacques-Alain Miller (2021) nos disse há um ano que a psicanálise corre e nós, analistas, corremos atrás, sempre atrasados[2]. A questão trans é um desses acontecimentos que nos fisgaram atrasados.

Embora na Argentina a Lei de Identidade de Gênero (lei 26.743) tenha sido sancionada em 9 de maio de 2012 e promulgada duas semanas depois, não começamos a questioná-la de maneira profunda até que Miller fizesse soar o alarme. Após as suas intervenções de março de 2021, posso identificar três questões centrais:

1) A escuta sem interpretação.

2) Os efeitos sobre a linguagem.

3) Os corpos a corrigir.

 

Pequena garota

Esse filme de Sébastian Lifshitz conta a história da vida de uma família confrontada com a experiência de uma criança que não sente que pertence ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Ao longo de um ano, o realizador filma e documenta momentos cruciais na vida de Sasha, de 7 anos, e sua família.

O documentário foi lançado em novembro de 2020, durante a pandemia, e recebeu críticas muito favoráveis por parte dos meios de comunicação. O jornal Le Monde [3] publicou o seguinte título: “Petite fille, a história da eclosão luminosa de uma criança transgênero”.

Benzine, uma webzine de essência cultural, diz: “Sasha é uma garota como qualquer outra, tirando o fato de ter nascido no corpo de um menino”[4].

As críticas entusiásticas atestam a delicadeza do filme e a qualidade do seu realizador. O respeito pela experiência atravessada por Sasha e sua família é evidente.

Em 9 de maio, na Web TV Lacan[5], ouvimos Caroline Eliacheff (psiquiatra infantil e psicanalista) e Céline Masson (psicanalista e professora universitária) falarem sobre seu livro, La fabrique des enfants transgenre (A fábrica de crianças transgêneros, em tradução nossa)Na capa, podemos ler: “Como proteger as crianças de um escândalo sanitário”.

Temos aqui dois níveis da questão: por um lado, o momento singular e íntimo na vida de uma criança confrontada com a marca significante sobre o corpo e sua família. Por outro, o empuxo atual midiático das redes, do movimento woke, da cultura do cancelamento da qual Eliacheff e Masson falaram na entrevista acima mencionada e do que as autoras chamam de “escândalo sanitário”. Em 29 de abril, ambas foram convidadas para dar uma conferência em Genebra sobre o livro, mas os militantes do CRAQ[6] (Collectif Radical d’Action Queer [Coletivo Radical de Ação Queer, em tradução nossa]) invadiram o local e impediram a palestra de acontecer.

Nesse ano e meio que transcorreu entre a estreia de Pequena garota e o episódio sofrido por Eliacheff e Masson, testemunhamos um aumento do empuxo à solução trans e, por outro lado, o crescimento daqueles que decidem destransicionar. O primeiro produz um apoio e uma militância sustentada, o segundo, por enquanto, impõe uma mordaça àqueles que o fazem e àqueles que o divulgam.

Durante esse ano e meio, Miller também nos advertiu sobre a questão ainda pendente e inquietante da questão trans e de seu aliado, o movimento woke e seus efeitos sobre a linguagem, e, portanto, sobre o discurso analítico, sobre a ameaça que ele representa para esse discurso e para a existência do inconsciente. Sou o que digo é a alocução que Miller propõe como expoente linguageiro da época.

 

O filme

Sasha, uma pequena menina, percorre o documentário com uma atitude aérea. Grande parte do peso desse filme recai sobre a mãe. Protagonista, ativa, angustiada, combativa, ela não cede do seu desejo. Ela diz: “Sei que esta será a luta da minha vida”. A garotinha a acompanha e, por trás de uma aparente decisão, segue pela via que sua mãe vai abrindo, disposta a fazer qualquer coisa para responder à demanda de seu filho.

Muito cedo, Sasha, aos 3 anos de idade, pergunta à mãe se ela vai ser uma menina quando crescer. Isso toca intimamente essa mulher, que se encontra ali com seu próprio desejo e seu próprio rechaço: o desejo de que essa criança fosse uma menina e sua decepção ao saber o gênero de seu filho. Ela formulará esse desejo em vários momentos, por exemplo, na entrevista com a psiquiatra, mas está presente em sua iniciativa, determinada em não deixar ninguém atrapalhar o que Sasha profere, “querer ser uma menina”. O desejo e a culpa materna estão presentes de maneira cristalina no documentário.

Os irmãos acompanham Sasha sem qualquer oposição ou questionamento sobre sua situação; seu pai concorda e acompanha.

A ignorância e a covardia das instituições desempenham um papel significativo: a escola que se nega a aceitar Sasha em sua singularidade, a professora de dança que expulsa Sasha empurrando, gentilmente, a porta em seu rosto, a psiquiatra que tem respostas e não faz nenhuma pergunta. O diagnóstico, como cataplasma, permite um alívio na mãe e uma desresponsabilização da medicina. Desse modo, a psiquiatra infantil não hesita um minuto em levar adiante a possibilidade da tão almejada transformação e, sem qualquer reserva, faz o atestado para a escola — o que me faz lembrar Freud e sua reserva em dar o atestado que o Homem dos Ratos lhe pedia para aliviar sua culpa.

O que impacta Sasha e produz sua angústia é a relação com o laço social representada por sua situação escolar, seus colegas, seus amigos. Seu choro angustiado ao falar da escola, lugar eminente do laço social, completamente perturbado, e que poderia perder, seria o ponto de ruptura de seu sou o que digo, mas isso não produz nenhum efeito, nenhuma pergunta. Rapidamente se entende que é porque ela quer ser uma pequena garota. No entanto, Sasha faz uma pergunta que é transmitida por sua mãe à psiquiatra, depois de ser expulsa do grupo de dança: “Ela me perguntou se lutar serve para alguma coisa”. A mãe responde: “Todos nós temos uma missão a cumprir e Sasha pode mudar as mentalidades”.

O excelente texto de Hélène Bonnaud (2020), publicado na revista Lacan Quotidienne, dá conta da rejeição à psicanálise implicada no encontro com a psiquiatra infantil “que detém um saber sobre essa questão e será a interlocutora de Sasha e da mãe no processo de transição” (BONNAUD, 2020, n/p, tradução nossa). Nesse texto, ela se pergunta, embora o caminho esteja aberto para que ela tome o lugar de uma menina: “Como seria para ser uma mulher?”.

A escola, em sua recusa dogmática, também coloca em jogo o não quero saber nada disso, sobre aquilo que irrompe no real de um sujeito ainda criança, para finalmente ceder, com uma aceitação administrativa, a um certificado médico que permitirá a Sasha ir à escola como uma menina.

 

A lei

Em Todo el mundo es loco, Miller (2015) nos diz que, nos dias de hoje, os direitos estão à frente dos deveres. A lei de identidade de gênero da Argentina é pioneira no mundo. Atualmente, na Espanha está sendo discutida uma lei que envolve as questões que em 2012 foram sancionadas em nosso país. Os colegas na Espanha, através da Fundação para a Clínica Psicanalítica de Orientação Lacaniana (FCPOL), estão preparando documentos para serem incluídos na redação dessa lei, para que ela não faça desaparecer a possibilidade de interpretar, quer dizer, de fazer existir o inconsciente. Eles colocam ênfase especial em seu texto sobre as crianças e a prudência necessária na administração de hormônios e intervenções cirúrgicas em menores[7]. A École de la Cause Freudienne (ECF), recentemente, em dezembro de 2021, conseguiu introduzir modificações em um projeto de lei que impede a realização de terapias de conversão, tornando possível a inclusão da escuta psi.

A lei argentina tem uma característica marcante: ela elimina, uma a uma, qualquer instância que permita interrogar, abrir um tempo para compreender a livre escolha do gênero; é uma lei que desliza suavemente, flui, e qualquer um pode ser tentado a entrar nesse trem. Quando eu digo qualquer um, é claro que é no sentido figurativo. Penso de fato na desorientação subjetiva e no que Lacan nos diz em “Televisão”: “No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele” (LACAN, 1973/2003, p. 533). E aqui o Outro não está separado[8].

O que significa dizer que o Outro é separado? Lemos em Mais, ainda: “(…) é sempre isto — ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa” (LACAN, 1972/1973, 1985, p. 52). Isso quer dizer que há uma hiância, um espaço, até mesmo um abismo, entre o que se diz e o que isso quer dizer. Suportar esse espaço é dever do analista, suportar no sentido de ser suporte, comprometer com sua presença: “Estou lhe dizendo que você está dizendo algo diferente do que você quer dizer”. Isso é o que Miller quer dizer quando nos adverte sobre a escuta sem interpretação. Anaëlle Lebovits-Quenehen (2021) diz que Miller, com a “questão trans”, assinala um impasse no discurso comum, não sem efeitos potenciais no discurso analítico.

 

Todo erro é sexual

“Tudo o que tem a ver com sexo sempre está errado. Todo erro é sexual” (MILLER, 2013, p. 64, tradução nossa).

O capítulo I da Lei n. 26.743 dispõe sobre o direito à identidade de gênero e suas consequências jurídicas: reconhecimento civil, livre desenvolvimento e o de ser tratado de acordo com a escolha de gênero. Ela apela para a não discriminação contra aqueles que não se reconhecem em uma norma. Nós, analistas, sempre trabalhamos nesse sentido, não advogamos por nenhuma norma. A psicanálise tem apenas uma prescrição: associação livre e uma exigência (que a pandemia perturbou): a presença dos corpos no mesmo espaço físico; o paciente deve trazer seu corpo para o consultório.

Pois bem, a esse direito humano, que está estabelecido no artigo 1º da lei e que nós celebramos, seguem-se uma série de artigos que, na minha opinião, são extremamente perigosos, porque não se trata apenas de um direito, mas, no extravio contemporâneo do modo de gozo, pode ser um empuxo, uma incitação, uma “revelação”. E o corpo já está comprometido com o assunto, o corpo como um objeto de “modificações”. Segue uma lista de quais, eventualmente, poderiam ser essas modificações: da aparência ou funções corporais através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, sempre que seja “livremente” escolhida. Atrevo-me a chamar essa enumeração de “provocadora”, uma vez que está escrita com a força de uma lei. A liberdade contida na palavra “livremente” é uma petição de princípios, pois ninguém age sobre esse julgamento, nem sobre quem o faz, nem de onde ele é feito; pelo menos a lei não o prescreve.

Miller, em La fuga del sentido, cita “Cortejo”, um poema de Prévert, e faz referência à enumeração feita pelo poeta como a presença da pulsão de morte, assinalando para “o domínio do significante sobre as significações humanas” (MILLER, 2012, p. 88, tradução nossa).

  1. Bonnaud continua em seu texto:

“O tempo para crescer e escolher é essencial. Esse tempo do qual Sasha foi privada ao ser informada de que ela é uma menina e que tudo o que ela não tem para ser uma menina lhe será retirado… mas fica uma resposta que afirma o gênero como determinado pela imagem do corpo” (BONNAUD, 2020 n/p.).

“Uma criança se autopercebe”: poderia ser esse o nome que hoje toma o “Bate-se numa criança” freudiano? Em outras palavras, a presença do Outro é apagada e o discurso da criança é transformado em uma palavra monolítica, uma holófrase, como disse Jacques Lacan. O valor metafórico da palavra perde seu lugar, a palavra se aproxima cada vez mais do real. As equipes médica e psicológica que recebem as crianças que desejam fazer a transição têm uma mordaça autoimposta? Ou, antes, o outro social representado pelas associações trans, a mídia, laboratórios, etc., etc., impõe uma sanção à equipe se eles não autorizarem a palavra monolítica. Perguntar, quer dizer, “(…) interpretar, não equivale nem a ‘julgar’, nem a ‘rechaçar’, nem a ‘negar’ (…)” (LEBOVITS-QUENEHEN, 2021, n/p.).

Em “Dócil ao trans” (2021), Miller nos lembra que Lacan elogia Freud por ter sido dócil à histérica e se pergunta se ele poderia felicitar o praticante de hoje por ser dócil ao trans. Como podemos ler isso?

Assim como na era vitoriana a histeria era a “epidemia” que explicava o impasse sexual da época, a causa trans é o que está em jogo hoje no impasse sexual de 2021. Por que ano trans e não século ou década? Porque dá a indicação de um lugar efêmero, que não assume a consistência que pode ser nomeada em termos de época, era, século, etc.

Dócil ao trans é a forma de dizer do compromisso do psicanalista com o tempo e o lugar em que vivemos e praticamos a psicanálise.

 

Alteridade real

O nome do pai, a função simbólica, a ordem simbólica, figuras, lugares de alteridade têm perdido a autoridade. Lacan, em seu Seminário 19: …ou pior, diz que o pai é quem surpreende, quem bate na mesa, quem impacta. Ele vincula a função do pai ao trauma. E também a função do analista ao trauma[9]. A alteridade da época é o trauma.

O trauma como disrupção de lalíngua sobre o corpo faz desse corpo um corpo falante. A experiência de um corpo que erra, que não se adequa; a experiência de uma palavra que também erra e falha ao dizer. Freud, em “Estudos sobre histeria”, escreve:

“Devemos antes presumir que o trauma psíquico — ou mais precisamente, a lembrança do trauma — atua como um corpo estranho que muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz um importante interesse prático para nossas descobertas” (FREUD, [1893/ 1996], p. 42).

O gozo é profundamente hétero para cada um, incompreensível, insuportável, impossível. A questão trans na infância apaga a diferença sexual, porque nunca se trata de sexo, mas de gênero. Poderíamos até dizer gênero humano, não vamos descartar o desejo de transição para o não humano. Esses são desvios a serem corrigidos. Se o erro for eliminado, o sexual desaparece.

O inconsciente é incorrigível, lapsos, sonhos, chistes são as faíscas que iluminam o caminho para a opacidade do sintoma, sintoma que implica em saber ler de outro modo.

A lei e o direito normatizam, se movem no campo do para todos. Eles protegem o cidadão, mas não resolvem o singular da relação com a sexualidade. E isso não pode ser corrigido, só pode se esclarecer a fim de tornar a vida vivível.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Patrícia Ribeiro

Referências
BONNAUD, H. “Sasha, une petite filie comme les autres?”. InLacan Quotidien, n. 903, 17 dez. 2020. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2020/12/LQ-903.pdf. Acesso em: 26 jun. 2022.
DUPONT, L. “Chronique du malaise: Cancel culture, la vérité et le un”. InL’Hebdo-Blog, 15 maio 2022. Disponível em: https://www.hebdo-blog.fr/category/lhebdo-blog-270/. Acesso em: 26 jun. 2022.
FREUD, S. “Estudos sobre a histeria”. In: FREUD, S. Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. v. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda… Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. “Televisão”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LEBOVITS-QUENEHEN, A. “Psicoanálisis y política: cuatro modalidades de una relación”. Zadig España, set. 2021. Disponível em: https://zadigespana.com/2021/09/29/psicoanalisis-y-politica-cuatro-modalidades-de-una-relacion/. Acesso em: 26 jun. 2022.
MILLER, J-A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J.-A. Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
MILLER, J-A. A escuta com e sem interpretação: bate-papo, Rússia, 15 mai. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F56PprU6Jmk. Acesso em: 26 jun. 2022.
MILLER, J-A. “Dócil ao trans”. Disponível em: https://uqbarwapol.com/wp-content/uploads/2021/04/JAM-DOCILE-AU-TRANS-PT.pdf
RICHARD, B. “Petite fille, le film émouvant de Sébastien Lifshitz sur une enfant transgenre”. Benzine, 24 mar. 2021. Disponível em: https://www.benzinemag.net/?s=petite+fille

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito, da Seção Clínica – IPSM-MG, em 20/05/2022.
[2] Disponível em: https://psicoanalisislacaniano.com/2021/05/15/jam-presentacion-revista-rusia-20210515/
[3] Disponível em: https://www.lemonde.fr/culture/article/2020/11/24/petite-fille-histoire-de-l-eclosion-lumineuse-d-un-enfant-transgenre_6060888_3246.html
[4] Disponível em: https://www.benzinemag.net/?v=D7Ju43F55ZM
[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D7Ju43F55ZM
[6] Disponível em:https://360.ch/suisse/68062-une-conference-interrompue-par-des-militant%C2%B7e%C2%B7x%C2%B7s-trans-a-luniversite-de-geneve/
[7] Disponível em: https://fcpol.org/wp-content/uploads/2021/09/Alegaciones-y-propuestas-al-anteproyecto-de-la-Ley-Trans-LGTBI.pdf
[8] BAUDINI, S. Una ley revelada. In:Lacan Quotidien, no. 924, 23/03/2021. Disponível em:https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/03/LQ-924.pdf
[9] “É na medida em que converge para um significante que emerge dela que a neurose vem a se ordenar segundo o discurso cujos efeitos produziram o sujeito. Todo pai ou mãe traumático está, em suma, na mesma posição que o psicanalista. A diferença é que o psicanalista, da sua posição, reproduz a neurose, enquanto o pai ou mãe traumáticos a produzem inocentemente.” LACAN, J. O Seminário, livro 19:  …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.146, 2012.