EDITORIAL – ALMANAQUE Nº30

Patrícia Ribeiro

CAROLINA BOTURA. 2018

 

Com este número comemoramos, com muita alegria, a 30ª edição da Almanaque On-line, cujo formato digital se iniciou há pouco mais de 15 anos!

Desta vez, norteados pelo tema O encontro com um psicanalista hoje, seus artigos dão testemunho da importância da presença do discurso psicanalítico em nossos dias, face à presença hegemônica de um discurso que impele a um imperativo de gozo, consoante com a sociedade atual de consumo em seu pacto com a ciência.

Essa aliança promoveu profundas modificações nos laços sociais e em nosso modo de viver, conforme destaca  Margarida Assad, nossa colega e entrevistada desta edição. Como ela aponta, vivemos em uma época marcada, por um lado, pela prevalência de um empuxo ao mais de gozar e, por outro, pela preponderância de soluções universais às questões subjetivas, saberes prontos para usar de forma indiscriminada. Não por acaso, acrescenta Margarida, as instituições sociais, entre elas, a família, “são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguirem sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo”. Ela ainda nos esclarece sobre o que está em jogo na formação atual dos grupos, tomando como exemplos grupos estruturados a partir de significantes que traem a presença da pulsão de morte em seus fundamentos — algo que muito recentemente assistimos, perplexos, em nosso país. Todavia, conforme Margarida, outras formações de grupos de nossa época permitem, ainda que de modo peculiar, manter o laço social “impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem”.

Abrindo a rubrica Trilhamentos, Laura Rubião nos convida para pensar como o analista pode se fazer presente em nossa época, distante das “concepções tradicionais que evocavam o analista como figura neutra ou desinteressada”. Ao contrário, ela salienta a importância de que ele se faça presente como “aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo”. Gilles Chatenay aborda a presença do real na experiência analítica tomando como ponto de partida o seminário de Lacan sobre a transferência. Esteban Pikiewicz percorre os textos de Freud e de Lacan para elucidar o que estaria implicado no sintagma “presença do analista” e sua articulação ao desejo do analista em sua dimensão real.

Em Encontros, Margaret Couto discute a crença na existência de um corpo natural sustentada pelas terapias cognitivas comportamentais, corpo passível de ser quantificado, domesticado e adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, uma vinheta clínica por ela apresentada atesta os efeitos da presença do psicanalista na clínica com crianças, verificando, uma vez mais, que o corpo não se reduz aos dados biológicos. Clarisse Boechat nos oferece suas reflexões sobre sua experiência de trabalho como psicóloga do “Consultório na Rua”, no centro do Rio de Janeiro, orientada pela pergunta “quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?” e buscando, por fim, localizar “o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico”. Florencia Shanahan interroga sobre os modos de presença em uma análise apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona a possiblidade de um final de análise, caso assim permanecesse. Fechando essa rubrica, Guy de Villers nos brinda com o relato dos efeitos de seu primeiro encontro com Lacan, causa da interpelação de seu desejo de “tudo compreender”. A partir desse encontro, o autor discute o que a presença de Lacan introduziu na prática da psicanálise.

Os 15 anos da Almanaque On-line são também comemorados pela presença, a partir desta edição, de uma nova rubrica, que apresentará ao leitor os trabalhos apresentados nas Lições Introdutórias — atividade ligada à Seção de Ensino do IPSM-MG cujo objetivo é transmitir à nossa comunidade os textos seminais de Freud e Lacan. Nessa rubrica de estreia, vocês terão a oportunidade de conhecer artigos que tiveram como horizonte de pesquisa o tema Des-montar a defesa. Como nos explica Virgínia Carvalho, esse título ressoa a orientação lacaniana de que “des-montar a defesa é o ‘coração’, a matriz mesma da operação analítica”, e a inclusão do hífen no ‘des-montar’ visa ressaltar “a ideia de que há sempre uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa”. A autora revela que a questão que permeou sua leitura se condensa na frase “como alguém pode não se defender?”. Em sua rigorosa leitura dos textos freudianos e das contribuições de Lacan e Miller sobre o conceito de defesa, ela esclarece pontos fundamentais quanto à inexorável presença da defesa em todo falasser, frisando suas particularidades nos quadros clínicos das neuroses e psicoses. Cristina Drummond, por sua vez, aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Tal conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias. Mônica Campos destaca que, para Freud, a própria definição de sintoma pressupõe a conexão entre gozo e defesa, pois, “no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela”. E, lembra a autora, desse vínculo entre gozo e defesa decorre a observação de Lacan quanto ao “paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles”. A leitura de Cristiana Pittella do texto freudiano “Neurose e psicose” explora a ideia desse conflito defesa e gozo “que perpassa a obra de Freud”, isto é, “entre forças antagônicas, a defesa e as moções pulsionais”, e esclarece que é a partir da posição do eu nesse conflito que Freud vai delimitar a neurose e a psicose como modos de defesa. Já em seu texto, Luciana Silviano Brandão trata do debate desde cedo aberto por Freud, que culminou em seu artigo de 1937, “A análise finita e infinita”, indagando sobre as possibilidades de um final de análise. A questão de fundo, enfatiza a autora, seria a pergunta sobre a possibilidade de resolver de forma definitiva o conflito entre a pulsão e a defesa. Fechando essa nova rubrica, Lucia Mello se detém sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientando-se pelas leituras de Lacan e Miller e suas preciosas contribuições sobre esse tema para a atualidade do trabalho clínico.

Na sequência apresentamos, em Incursões, trabalhos dos núcleos da Seção Clínica do IPSM-MG. Sérgio de Campos e Fernanda Otoni discorrem sobre a particularidade da presença do analista em relação à psicose ordinária, casos que se manifestam na clínica sob formas de gozo que “exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça”, não restrita a respostas sobre sim ou não à presença do Nome-do-Pai. Campos acrescenta que, longe de se tratar de uma nova categoria diagnóstica, ela “expressa a ponta de um iceberg de uma psicose clássica que se encontra submersa e subjacente”. Já Otoni, comentando o texto de Campos, indaga se o sintagma “psicose ordinária” não seria um convite para explorarmos as consequências da afirmativa de Miller quanto à “igualdade clínica fundamental entre os falasseres” e, por conseguinte, fazermos um deslocamento da pergunta de “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Philippe Lacadée traz importantes elementos para pensarmos as primeiras relações da criança com o Outro sobre o prisma dos “pais traumáticos”, expressão que encontramos em Lacan para indicar que “todo pai ou mãe é traumático” por portar um gozo cuja significação escapa à criança, e, seguindo em sua leitura do Seminário 19, evoca a aproximação lacaniana entre essa posição traumática dos pais e a posição do psicanalista. Ondina Machado traz uma importante reflexão sobre as implicações da criminalização do aborto sob a perspectiva da psicanálise, tomando como premissa que o desejo de ter um filho “não é solução para todas as mulheres”. O neologismo adixões, cunhado por Ernesto Sinatra, é trazido à discussão em seu texto. Inspirado pelo X freudiano da expressão fixierung, o autor pretende ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Nathália Temponi e Cláudia Reis se valem de uma vinheta clínica para se perguntarem sobre a natureza da relação de um sujeito com a substância tóxica e sobre os efeitos de seu encontro com uma psicanalista. Sílvia Soares reflete sobre os efeitos da incidência massiva do mundo digital (jogos e celulares) na clínica com crianças e adolescentes interpelando sobre as possibilidades de estabelecimento de uma abertura ao saber inconsciente no caso de sujeitos que creem ter o objeto em suas mãos, e, em vista disso, sobre como convocá-los a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco. Alessandra Rocha trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças, tomando a questão do grito e do silêncio em Lacan para evidenciar a sua importância na psicanálise.

De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise e se inicia com a discussão trazida por Isadora Urbano sobre o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta norte-americana Sylvia Plath, buscando, em trechos de seus diários, cartas, poemas e no romance A redoma de vidro, as dimensões que a escrita assumiu na vida dessa autora. Wallace Faustino Rodrigues, por sua vez, examina, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, a paternidade na neurose obsessiva a partir de fragmentos da obra do escritor norueguês Karl Ove Knausgard. Fechando a rubrica, Marina del Papa nos transmite o relato de sua experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital, salientando que sua prática lhe trouxe a possibilidade de não apenas revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como fez ressoar a potência da presença do analista com seu corpo.

Esta edição do aniversário de 15 anos contou com as belas e instigantes imagens generosamente cedidas por Carolina Botura. Graduada pela Escola Guignard – UEMG em Pintura e Escultura, Carolina trabalha com cruzamento e prolongamento de linguagens, tendo a ação como disparadora de sua produção em desenho, pintura, escultura, instalação, performance, vídeo, música e cerâmica. Suas pesquisas estão relacionadas à transformação e ao movimento, ao caos e à origem, atravessados pelo viés do tempo para tratar de temas como animalidade, amor, morte, magia, perda, sexualidade, espiritualidade, energia, política e natureza. Paulista de Botucatu, vive e trabalha em Belo Horizonte e já participou de diversas mostras, individuais e coletivas, e residências artísticas no Brasil e no exterior. É também poeta e performer.

Antes de convidá-los para a leitura, gostaria de parabenizar os colegas que estiveram presentes durante todos esses anos na produção da Almanaque On-line, seus diretores de publicação, membros das equipes da revista e os autores que, desde 2007, contribuem para a sua importância como meio de divulgação do trabalho de pesquisa e ensino da psicanálise de orientação lacaniana realizado no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. E, mais uma vez, quero deixar o agradecimento aos colegas da equipe atual.

Obrigada pela parceria tão dedicada e entusiamada!

 

Carolina Botura:
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https://www.carolinabotura.com



A urgência do falasser e a presença sutil do analista: qual encontro possível?1

Laura Rubião
Psicanalista, membro da EBP/AMP
lauralustosarubiao@gmail.com

Resumo: O texto explora certas nuances do que se pode conceber como “presença do analista” em nossa época, diferenciando-a de algumas concepções tradicionais que evocam o analista como figura neutra, passiva ou desinteressada.  Ao contrário, o analista se faz presente como aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo. 

Palavras-chave: analista; urgência; gozo; sinthoma.

Abstract: The text explores certain nuances of what can be conceived as the “presence of the analyst” in our time, differentiating it from some traditional conceptions that evoke the analyst as a neutral, passive or disinterested figure. On the contrary, the analyst is present as the one who chooses to be beside the urgency of the parlêtre and the symptomatic solution of each one in the face of the real of jouissance. 

Keywords: analyst; urgency; jouissance; sinthome. 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

O XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano tem por título um dizer que, a partir do modo exclamativo – “Analista: Presente!” –, nos conclama a trabalhar o lugar por meio do qual o analista pode se fazer presente nos dias de hoje, tanto na análise quanto fora dela, nas questões de sociedade, como nos aponta Fernanda Otoni Brisset em seu texto de orientação, renovando a pertinência de recolocarmos a questão de como o analista pode estar à altura do horizonte de sua época.

Esse título teve como inspiração – certamente não a única, conforme nos observou Romildo Rêgo Barros – os embaraços provocados sobre a nossa prática a partir do acontecimento imprevisto da pandemia, quando, por força das circunstâncias, recorremos aos aparatos tecnológicos para recebermos nossos analisantes. A partir daí, teve início todo um debate em torno das implicações decorrentes dessa nova forma de presença virtual do analista na clínica.

Seja no modo virtual, seja no modo presencial, na esfera clínica ou política, no divã ou nas instituições, o lugar de onde o analista pode dizer “Presente!” implicará sempre o regime das sutilezas analíticas, tal como definido por Miller em seu curso de 2011.

Inspirado por Freud, ele vai buscar em Pascal uma orientação para o que se entende por “coisas de fineza”, ou “sutilezas” analíticas, em oposição às coisas de geometria, que são racionalidades, inferências e construções baseadas em premissas lógicas demonstráveis pela cadeia das razões. As tais “coisas de fineza” são aquelas que “se sentem” e devem ser apreendidas “subitamente em um só golpe de vista” (MILLER, 2011, p. 28). Essa apreensão súbita nos envia ao modo como Lacan identifica, em seu último ensino, o rastro do Ics real como une bévue (um tropeço), ou seja, o que irrompe inesperadamente no espaço de um lapso e se realiza como acontecimento de dizer, e não como um desdobramento de saber. É o que celebra o choque da linguagem sobre o corpo e dá lugar a um significante novo, uma invenção da língua. O que importa e se torna genuíno no último ensino de Lacan é que a linguagem produz um acontecimento disruptivo no corpo e é exatamente essa efração que faz brotar o elemento heterogêneo que não se deixa reabsorver pela estrutura, a qual tece incessantemente a trama do destino.

O analista faz par com essa urgência do falasser (LACAN, 1976/2003, p. 569) e isso nos autoriza a dizer que o analista marca sua presença, tomando partido do inconsciente real. Ele renuncia, desse modo, a encarnar a postura que lhe é atribuída tradicionalmente, a saber, a da “neutralidade benevolente”, sem, tampouco, adotar qualquer postura “ativa”, tal como preconizado por Ferenczi. 

Estar presente e não bancar o mestre

O lugar de onde se pode dizer “Presente!” inclui, portanto, uma sutileza dessa ordem: não operamos mais no campo da neutralidade, que serviria como um refúgio para o analista, mas também não adotamos, como nas psicoterapias, uma postura ativa que reforçaria o engodo de um lugar de mestria. Essa sutileza evoca, como apontou Freud, uma dificuldade no caminho da própria psicanálise, que não se furta em lidar com as irrupções do não todo, com aquilo que não cede à lógica da decifração e da ampliação do sentido.

Em seus chamados “Artigos sobre a técnica”, Freud nos dá um testemunho vigoroso desse cristal analítico, numa época em que ainda trazia ao mundo a novidade da psicanálise. A partir da densidade de seu projeto clínico, ele tratava de diferenciar a arte da psicanálise das chamadas psicoterapias pautadas na técnica da sugestão. Lembremos, por exemplo, retornando ao texto “Os caminhos da terapia analítica”, que Freud (1919/2017) se opôs radicalmente à chamada “postura ativa” do analista defendida por Ferenczi. Essa técnica tinha um propósito claramente ortopédico e foi estabelecida como uma suposta solução para momentos em que o trabalho analítico parecia se estagnar, sem surtir os efeitos esperados, a saber, os efeitos de ampliação do sentido e rememoração no âmbito do Ics transferencial.

Em seu comentário, Freud refere-se ao artigo de Ferenczi intitulado “Dificuldades técnicas de uma análise de histeria”, no qual relata-se o caso de uma jovem que se mantinha estagnada em relação aos avanços de sua análise. Ele pré-fixou, sem sucesso, o prazo final do tratamento, interrompendo-o prematuramente. A jovem acaba retornando à análise com sintomas agravados; foi quando o analista observa a posição das pernas crispadas sobre o divã em postura masturbatória. Entendendo que esse movimento absorvia a energia psíquica empobrecendo o material associativo, ele intervém proibindo essa postura, o que deu lugar às rememorações de cenas traumáticas da infância. Desses experimentos clínicos, Ferenczi pôde extrair uma regra geral para o tratamento, que consistia em coibir as tendências das atividades autoeróticas dos pacientes que acabavam consentindo com a renúncia a esse tipo de prazer infantil, substituindo-o pelo regime da satisfação genital normal.

Freud se mostra bem mais cauteloso quanto ao manejo dos percalços transferenciais na análise, inclusive reconhecendo situações em que o curso do desenlace de uma cura é obstruído pela formação de “novas satisfações sintomáticas substitutivas” (FREUD, 1919/2017, p. 198) que se interpõem no caminho da análise, bloqueando o rumo em direção à cura. Enquanto Ferenczi pretendia normatizar o corpo tomado pelo excesso de gozo pela via do sentido edípico, Freud soube ler esses excessos como uma verdadeira pedra que se impõe no caminho de uma análise, a larva do real que não se absorve pelo sentido, persistindo como resíduo sintomal. Esse resíduo pode assumir, na clínica, o formato da chamada reação terapêutica negativam que atua como obstáculo ao desenlace da análise. 

O real e o mistério do corpo falante

Ainda assim, e apesar dos esforços do próprio Freud em reconhecer que a ficção simbólica não drena todo o impacto do inconsciente real sobre o modo de gozo dos sujeitos, sabemos que a psicanálise ficou reconhecida como uma espécie de hermenêutica, que teria trazido ao mundo a chave do mistério do corpo histérico recortado pelo significante. O próprio Lacan, nos anos 1950, atribui a Freud a coragem de “interrogar a vida em seu sentido” por ter sabido desvendar, tal como um iniciado dos antigos mistérios, o falo enquanto significante ímpar na regulação dos impasses da falta a ser (LACAN, 1958/1998, p. 648-649). Com efeito, a interpretação analítica dificilmente se separa da suposição de um saber incrustado no real do corpo, um saber que conjuga o mistério e seu desenlace através da operação significante que nos permite reconhecer o desejo articulado à trama ficcional na qual se apoia Outro da verdade.

O último ensino de Lacan se empenha em desconstruir, até certo ponto, essa vertente sólida do analista intérprete que está sempre disposto a correr atrás da verdade a partir de uma escuta ancorada na suposição de saber. Miller (2012) localiza o modelo do corte como o paradigma da clínica no último ensino de Lacan, um corte que faça florescer o esp d’un laps e opere contra a debilidade mental do Ics ficcional.

Sustentar a dignidade ética desse ato que visa cernir o impossível a partir da contingência é a sutileza maior da presença do analista no mundo hoje, e isto acontece em uma dimensão que nada tem a ver com passividade ou com a atividade, mas com uma espécie de escolha forçada muito particular.

Em seu texto “Ponto de basta”, Miller opõe à chamada neutralidade benevolente – em alusão à postura clássica de reclusão e isenção atribuídas ao analista freudiano – a questão da escolha que envolve o gosto, o sabor, que estão enraizados no corpo, “no gozo do corpo, e no sinthoma” (MILLER, 2018, p. 27).

Essa posição standard do analista (da neutralidade benevolente) teria sido extraída, de acordo com Miller, a partir de uma leitura enviesada do cenário da técnica freudiana, sobretudo do que se pôde ler em um dos conselhos dirigidos aos médicos em 1912, no qual Freud retoma o caráter cirúrgico da operação analítica, “deixando de lado toda reação afetiva e até mesmo toda simpatia humana, para só ter um único objetivo: levar a bom termo sua operação” (MILLER, 2018, p. 29) Esse intervalo que Freud convoca como pressuposto da efetividade do ato analítico que não deve se render ao domínio imaginário da escolha pautada na identificação (via da simpatia humana) pôde ser interpretado por alguns como postura fria e desumana ou, em última análise, estranha ao campo dos afetos – lembremos da acusação dirigida a Lacan de ser indiferente ao afeto –, e, por outros, como consagração do êxito da tal neutralidade benevolente.

Sabemos que Lacan respondeu oportunamente à acusação de seu pendor formalista, mostrando nunca ter negligenciado o domínio dos afetos. É certo que ele nos mostra também que, para a psicanálise, esse domínio não se coaduna ao campo das emoções, do calor humano, das humanidades ou desumanidades. O afeto para a psicanálise diz respeito ao domínio do gozo que habita o corpo como lugar da incidência do significante que produz uma irrupção rumo a um significante novo, que será a invenção singular de cada analisante:

A história de que eu negligenciaria o afeto é farinha do mesmo saco. Que me respondam apenas uma coisa: afeto diz respeito ao corpo? Uma descarga de adrenalina é ou não é do corpo? Que perturba suas funções é verdade. Mas em que isso provém da alma? O que isso descarrega é pensamento. (LACAN, 1973/2003, p. 522)

O caráter cirúrgico do ato analítico dispensa o Outro da sustentação identificatória imaginária, acionando a dimensão do corte que, como nos aponta Laurent, não mais precisa fazer apelo à função de pontuação que mobiliza o sentido retroativo da cadeia significante em busca de um efeito de verdade. Para nos transmitir o modo incisivo como a interpretação pode operar como corte que não mais relança o sentido inconsciente, Laurent (2020, p. 174) retoma Miller:

Não se trata de saber se a sessão é longa ou curta, silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semântica, aquela em que S2 vem pontuar a elaboração – delírio a serviço do Nome do pai –, muitas sessões são assim, ou então a sessão analítica é uma unidade assemântica, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo (…).

Desse modo, resta-nos ler, a partir do último ensino de Lacan, a dimensão do mistério como pura cifra de gozo e que não faz apelo a qualquer revelação. Se cada palavra assume na “bateria significante de lalíngua” uma gama enorme e disparatada de sentidos heteróclitos, conforme nos é esclarecido em “Televisão” (LACAN, 1973/2003, p. 515) – tal como, de modo exemplar, nos demonstram os escritos joyceanos –, o que permanece insondável é o instante da mordida do significante no gozo, esse instante em que se fisga o afeto, sempre desalojado, numa escrita original que produz uma marca de gozo. Essa escrita se faz por um forçamento poético, nos diz Laurent, ou seja, por um acontecimento de dizer que, no entanto, não é prerrogativa de poetas. Os Analistas da Escola (AE), por nos darem testemunho “d’isso de que se goza” e que acontece no corpo, não se apresentam como um grupo de iniciados, ou seja, como aqueles que, nos antigos cultos de mistério, costumavam compartilhar um segredo em comum.

O encontro com um analista hoje, ou como se fazer presente na era do outro que não existe

A partir da queda dos semblantes e do declínio dos ideais, o corpo se impõe, cada vez mais, como uma caixa de ressonância para lalíngua, cujo correlato analítico é o que Miller (2015) chamou de clínica acontecimento, mais próxima dos efeitos de gozo do que dos efeitos de verdade. Nela, prepondera o estranhamento do gozo feminino dito não todo sobre o universal do gozo fálico; a emergência da equivocidade da letra que faz do ato analítico, ele próprio, um acontecimento interpretativo ou, ainda, o modo inaudito como o sexo chega aos seres falantes, produzindo arranjos sinthomáticos os mais diversos.

Em todas essas declinações, o analista pode comparecer, inclusive com seu corpo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo opaco do sintoma, que aponta para o “lugar de mais ninguém”, o lugar do exílio de lalangue que testemunha o ponto em que o gaio issaber vem “roçar” (piquer) o sentido para além de toda compreensão. (LACAN, 1973/2003, p. 525). Nesta direção, Laurent segue as indicações propostas no Seminário 23, de 1975-76, para evidenciar que o analista não seria mais visto como essa subjetividade segunda, que se instala no rigor de uma escuta dos efeitos de sentido que fazem brotar a verdade do sujeito em análise, mas como aquele que segue a via do sinthome, buscando ressoar (resón) no corpo o eco do dizer pulsional. Trazendo seu próprio corpo para a ordem do dia, o analista usa a interpretação pela via do equívoco que faz vibrar o “escrito na fala”, que é da ordem não do sentido, mas de lalangue.  Ele já não opera com a razão (raison),2 ou com o Logos do Inconsciente, mas com essa ressonância que “libera algo do sinthome” (LAURENT, 2016, p. 81). Haveria, no que concerne à prática da psicanálise, um novo uso da interpretação, que opera por um deslocamento da verdade ao gozo.

Para finalizar, gostaria de trazer um breve recorte do testemunho de Veronique Voruz que, no relato “Exorcizada pela psicanálise”, publicado em 2017, conta como cresceu assolada pelo gozo mortífero que lhe fora transmitido tanto pela avó, quanto pela mãe – ser um monstro a ser exorcizado via religião. Ela nos transmite como conseguiu escapar desse destino sórdido pela experiência da análise, que promoveu o verdadeiro exorcismo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo. Certa vez, quando falava de seu problema d’yeux (doença dos olhos), a analista lhe retorna: “Ah, sim, agora eu escuto Dieu (Deus)”. Essa nova escrita depura a angústia de ser um monstro aos olhos do Outro, encarando-o de outro modo, em vez de ser vista como tal. O final da análise encaminha-se para essa operação de ser arrancada dessa identificação. Sua mãe era alpinista e muito jovem sofreu um terrível acidente na montanha, que lhe arrancou uma das pernas. Em um sonho, ela se vê subindo uma montanha à l’arrache (por arrancos/atalhos), no mesmo cenário do acidente sofrido pela mãe:

Eu interpreto este sonho de subjetivação do acidente de meus pais, dizendo que finalmente meu S1 é à l’arrache. Subindo pelo caminho da montanha, à lárrache eu me arranco de meu destino de ser uma parte do corpo do Outro. Esse significante nomeia o que chamarei de “meu estilo pulsional”. Estou sempre um pouco à l’arrache, mas não me é mais necessário arrancar-me do corpo do Outro para me separar. (VORUZ, 2017)

Esse fragmento nos mostra como a psicanálise de orientação lacaniana pode se colocar ao lado da urgência do falasser, promovendo uma nova escrita para o gozo. No caso de Veronique, o lugar de dejeto com o qual o sujeito se identificará ao longo da vida torna-se um jeito de caminhar que, embora claudicante, é o que lhe permite avançar.  

 


Referências 
FREUD, S. (1919). Os caminhos da terapia analítica. In: Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
LACAN, J. (1958). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1973). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, E. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 50, jul./dez. 2020.
MILLER, J-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. Ponto de basta. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 79, jul. 2018.
VORUZ, V. Exorcizada pela psicanálise. Opção Lacaniana, n. 75/76, maio 2017.

1. Aula Inaugural proferida no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 08/08/2022.
2. Conferir nota do tradutor do livro O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo, em que se esclarece a assonância em francês entre os termos raison e rézon, inventado pelo poeta François Ponge e utilizado por Éric Laurent em sua leitura do Seminário 23. Aqui, a solução do tradutor foi pelo neologismo “ressonar”, para transmitir a ideia de que o significante pulsa (ressoa) no corpo.



A presença real na análise1

GILLES CHATENAY
Psicanalista, AME da ECF/AMP
gilles.chatenay@orange.fr

 

Resumo:   A partir dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência, de Jacques Lacan, o texto se propõe a delimitar o que realmente está presente em uma análise sobre a expressão “presença real”.

Palavras-chave: presença real; transferência; falo; castração, inconsciente.

THE REAL PRESENCE IN THE ANALYSIS 

Abstract: From chapters XVI, XVII and XVIII of the Seminar 8: The transference, by Jacques Lacan, the text proposes to delimit what is really present in an analysis of the expression “real presence”.

Keywords: real presence; transference; phallus; castration, unconscious.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Orientei minha leitura dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência pelos termos de “presença real” (LACAN, 1960-61, p. 246-58). Tentei delimitar o que realmente está presente numa análise. É uma questão crucial, pois se não houvesse a presença do real em uma análise, parece-me que ela seria apenas um jogo de ilusões.

Signo, símbolo, significante

O capítulo que Jacques-Alain Miller intitulou “A presença real” encerra uma série na qual Lacan trata do complexo de castração e do símbolo Phi. No Capítulo XVII, ele diz: “introduzi (…) o símbolo grande Phi. (…) este símbolo nos é indispensável para compreender a incidência do complexo de castração no que tange à transferência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 233). Deduzo disso que a presença real, para Lacan, nesse Seminário – isso mudará mais tarde em seu ensino – tem a ver com o complexo de castração, o símbolo grande Phi e o dispositivo da transferência. Lacan cita Freud em “Análise finita e infinita” (FREUD, 1937/1996, p. 225-231): “A mensagem freudiana terminou nesta articulação, ou seja, que há um termo último (…) o rochedo – o termo está no texto – do complexo de castração” (LACAN, 1960-61/1992, p. 226-227). O final de análise encontra um rochedo impossível de ser dissolvido pelo significante, ele tropeça em um real. É preciso notar que Lacan assinala que “Trata-se do complexo de castração no homem, bem como na mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 227) que “não se trata das relações entre homem e mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 225).

Isto é digno de nota, pois poderíamos ter acreditado, a partir dos desenvolvimentos freudianos sobre ter ou não o pênis, que o falo estaria no princípio da diferenciação sexual e que o complexo de castração seria aquilo pelo qual mulheres e homens se diferenciariam. Mas, antes de entrarmos verdadeiramente na leitura a propósito do complexo de castração e do falo, esses capítulos tratam de signos, símbolos e significantes. Para me orientar na leitura, fiz pequenos esquemas. O signo representa alguma coisa. Eu insisto nessa expressão alguma coisa. O signo aponta para alguma coisa, em direção ao objeto. Digamos que o signo apresenta o objeto. Esquematizo desta forma:

Signo

Objeto

O símbolo, ao contrário, vem na ausência de alguma coisa – basta pensar nos primeiros símbolos gravados sobre os túmulos, quer dizer, sobre os mortos. O símbolo presentifica a ausência. Escrevo esta ausência com o conjunto vazio, e coloco uma barra entre o símbolo e o vazio para marcar que o símbolo vem no lugar do vazio.

Símbolo
_________

O símbolo presentifica a ausência: “aquele buquê de flores (…). Sua presença serve para recobrir o que é para se recobrir, (…) era menos o falo ameaçado de Eros (…), que o ponto preciso de uma presença ausente, de uma ausência presentificada” (LACAN, 1960-61/1992, p. 235). Esse símbolo, Lacan o escreve como grande Φ. E ele diz que “este talvez seja, com efeito, o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).  Escrevo-o assim:

Φ
___

O significante, ele mesmo, vem sob um fundo de ausência. Mas como significante, ele chama a dimensão do significado – senão não seria um significante. Entretanto, o sentido só pode surgir como efeito de uma articulação de vários significantes, de uma cadeia de significantes – quando falo, espero que vocês aguardem até o final das minhas frases para decidirem (mais ou menos) sobre seu sentido, se é que elas têm um sentido. O significante não aponta para o objeto presente, ele não só representa sua ausência, mas também aponta para outros significantes.

S1 → S2

Dito isto, esses esquemas do signo, do símbolo e do significante não são tão discriminatórios quanto poderiam parecer. Por exemplo, na frase que citei, Lacan nos diz que o símbolo grande Phi é um significante. Ou ainda, que os signos podem funcionar como significantes: basta que eles estejam ordenados em um feixe de índices que pede interpretação.

A falta de um significante 

O símbolo grande Phi é um significante, mas um significante bastante singular, pois ele vem “no lugar onde se produz a falta do significante” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).

O que isso quer dizer? Lacan nos dá um exemplo clínico dessa produção com as questões da criança:

O que é correr? O que é bater com o pé? O que é um imbecil? (…) De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de captar o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por esse algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

O momento da pergunta é o momento em que a criança experimenta a ruptura radical entre as palavras e as coisas.

Lacan retornou a esse momento da pergunta no Seminário 11, no qual ele explica que nenhuma resposta pode satisfazer a criança: “ele está me dizendo isso, mas o que ele quer?” (LACAN, 1964/1998, p. 203)

Imagino esse diálogo:

— O que você quer quando me diz isso?

— Eu disse isso porque queria lhe dizer que…

— Mas agora, por que você está me dizendo isso?

— Eu digo isso porque…

— Mas agora, por quê?

Não há fechamento. No momento em que digo não posso dizer por que agora digo o que digo. A questão subjacente às perguntas da criança é: O que você quer? É uma questão sobre o desejo do Outro, e não há nenhum significante do desejo do Outro – apenas signos. O momento da pergunta é o momento em que se experimenta a falta de um significante no Outro que diria sobre seu desejo. Em seu lugar vem o símbolo grande Phi.

É assim que creio entender por que Alcebíades, que sabe que Sócrates o deseja, “demanda vê-lo, quer vê-lo, como signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232): ele rejeita o símbolo grande Phi do falo que apenas presentifica a falta de um significante, o vazio, e pede signos, que apontariam para o objeto, a coisa, o gozo.

E é também por isso que Sócrates recusa. Pois não há ali mais que um curto-circuito. Ver o desejo como signo não é, por este fato, aceder ao encaminhamento por onde o desejo é tomado em uma certa dependência, que é o que se trata de saber. (LACAN, 1960-61/1992, p. 232)

O questionamento socrático está inteiramente orientado para a descoberta desse caminho: em direção à produção de saber. Sócrates pode desejar Alcebíades carnalmente, mas ele dedica sua vida a outro desejo, que é, eu diria, o desejo de saber.

O desejo de saber e o desejo do analista 

Lacan, mais tarde em seu ensino, falará do desejo do analista como desejo de saber. E nesta mesma página, ele também fala do desejo do analista: “Vocês veem, aqui, iniciar-se o caminho que tento forçar em direção ao que deve ser o desejo do analista. Para que o analista possa ter aquilo que falta ao outro, é preciso que ele tenha a nesciência enquanto nesciência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

O dicionário nos diz que a nesciência2 é o estado daquele que não sabe. Lacan é lógico: só se pode desejar saber se ainda não se sabe. Mas para o analista, é preciso pelo menos saber um pouco: “É preciso que ele esteja sob o modo de tê-lo, que ele também não esteja sem tê-lo, que não esteja de forma alguma tão nesciente quanto seu sujeito” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que ele não deve ser sem tê-lo, esse quase nada de saber? Lacan nos diz: “Para que o analista possa ter isso que falta ao outro”. Trata-se da transferência, da suposição de saber que o analisante faz ao analista, da transferência sobre a qual o analista deve estar advertido. Mas esta suposição, é enganosa? Sim e não. Há engano na suposição de saber dirigida ao analista na medida em que se supõe que ele tenha um saber, ele será suposto ter um saber – sobre o analisante – que não deriva apenas de seus ditos: tudo que o analista sabe sobre o analisante, ele constrói a partir disso que ele lhe diz e de como lhe diz.

É justamente outro saber que é exigido ao analista: aquele que ele produziu em sua própria análise, ou seja, por um lado, uma percepção sobre sua fantasia fundamental que lhe permite não interpretar apenas no seu quadro, e, por outro lado, um saber fazer aí com seu sintoma. E há ainda outro saber que o analista produziu a partir de sua análise: que falta um significante no Outro, que o Outro é incompleto e inconsistente, que o Outro da garantia não existe – o que Lacan escreve S(Ⱥ).

O signo da falta de significante e a angústia 

“De fato, ele também não é sem ter um inconsciente. Sem dúvida, ele está sempre para além de tudo aquilo que o sujeito sabe, sem poder dizer isso a ele. Ele só pode lhe fazer um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232). Isso é lógica: ele não pode dizer com significantes a falta significante. Portanto, ele só pode fazer signo disso. “Pois ao signo que há para dar, falta significante (…) porque é aquele que provoca a mais indizível angústia” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que a angústia? O signo aponta para o objeto. Mas, aqui, trata-se do signo da falta significante: esse signo aponta em direção a um vazio. Sartre, por exemplo, falou da angústia do sujeito diante de sua liberdade, ou seja, diante de um vazio de determinismo – em termos lacanianos, diante de uma falta no Outro. Mas eu disse que o signo aponta para o objeto – qual é o objeto aqui em questão? Eu arriscaria, antecipando o ensino de Lacan, que se trata do objeto nada. Dois anos após o Seminário sobre A transferência, Lacan fará seu Seminário sobre A angústia (LACAN, 1962-1963/2005), no qual ele dirá que é a presença do objeto que causa a angústia, que o objeto é causa. Anteriormente, o objeto era o objeto desejado; no Seminário sobre A angústia, o objeto pequeno a torna-se a causa do desejo.

Mas ainda não estamos neste ponto no Seminário sobre a transferência. Nas páginas que comento hoje, com qual objeto o sujeito está lidando?

A análise descobriu (…) que aquilo com o que o sujeito tem a ver é o objeto da fantasia, na medida em que este se apresenta como o único capaz de fixar um ponto privilegiado naquilo a que é preciso chamar (…) uma economia regulada pelo nível do gozo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

O principal exemplo que temos de que a fantasia fundamental regula a economia de gozo está no artigo de Freud “Uma criança é espancada” (FREUD, 1919/1996): os sujeitos confessam dolorosamente a Freud que só atingem o gozo sexual apelando para sua fantasia fundamental.

Mas continuo minha leitura desta página:

A análise nos ensina também que, ao referir a questão ao nível do que quer ele?, do que é que isso quer lá dentro?, encontramos um mundo de signos alucinados, e ela (a fantasia) nos representa a prova da realidade como uma forma de experimentar o quê? – a realidade desses signos. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

A questão é a questão sobre o desejo do Outro, e trata-se aqui da realidade dos signos. Retomo a citação: “O que está em questão, pois, na prova da realidade, vamos observar bem, é certamente controlar uma presença real, mas uma presença de signos” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Lacan disse que o símbolo grande Phi presentificava uma ausência (LACAN, 1960-61/1992).

Φ
___

Mas a presença real é presença de signos. Como percebermos isso, senão que diante do vazio, diante da ausência de significante significado pelo grande Phi, o sujeito convoca a presença real de signos?

O objeto da fantasia e os objetos das fantasias

Signos de quê? Signos “de uma relação com outra coisa” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240). E o que é essa outra coisa? “É isto o que quer dizer a articulação freudiana, que a gravitação de nosso inconsciente diz respeito a um objeto perdido, que jamais é senão reencontrado, isto é, jamais realmente reencontrado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Signo

Objeto a

Qual é esse objeto perdido? “O objeto jamais é senão significado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240) – como entender significado aqui? Escolhi lê-lo assim: do objeto se faz signo.  Qual é a relação do sujeito ao significante? No nível da cadeia inconsciente lidamos apenas com signos. Trata-se de incitar esse outro a quem me dirijo “a visar da mesma maneira que eu, o objeto ao qual se relaciona determinado signo, fazer dele um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Como está perdido, já que existe como tal apenas como perdido, estamos sempre lidando apenas com os signos desse objeto. “O objeto verdadeiro, autêntico, de que se trata quando falamos de objeto (…) está no horizonte daquilo em torno do que gravitam nossas fantasias” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241). No horizonte ele não é alcançado. O verdadeiro objeto não é, estritamente falando, o objeto de nossas fantasias no plural, por exemplo, o chicote fálico em “Uma criança é espancada”. O verdadeiro objeto é um objeto em torno do qual giram nossas fantasias. Isto parece nos convidar a distinguir o objeto verdadeiro, autêntico, em torno do qual giram nossas fantasias – e que não pode ser compartilhado ou intercambiado – dos objetos colocados em jogo nessas fantasias.

E para distinguir da mesma forma a fantasia fundamental, no singular, que implica esse objeto verdadeiro – a voz, o olhar, as fezes, o objeto o oral, o fonema, o nada – dos cenários imaginários fantasmáticos que colocam em jogo os signos desse objeto e que podem ser compartilhados. Os cenários e as imagens fantasmáticas, ao contrário da fantasia fundamental, podem ser compartilhados e intercambiados e, aliás, existe um mercado de fantasias. E, nos diz Lacan (1960-61/1992, p. 240), existe “um mercado de objetos”, objetos aqui a serem tomados no sentido comum do termo, quer dizer, objetos que se pode intercambiar. O que compramos quando nos oferecem o iPhone mais recente? Compramos um signo, signo de que temos o gozo, mas, além disso, o signo que aponta para o objeto pulsional de nossa fantasia fundamental, mas que não é esse iPhone. O mercado de objetos é o mercado dos signos do objeto.

Grande Phi, signo do desejo 

Esses signos, nós podemos desejá-los, mas qual é o signo do desejo? Nesse Seminário, é o falo, o grande Phi.

De todos os signos possíveis, não é aquele que reúne em si mesmo o signo e o meio de ação e a própria presença do desejo como tal? Deixar emergir o falo em sua presença real (…). [Do desejo] Não há signo mais certo (…). (LACAN, 1960-61/1992, p. 241) 

Já sabíamos disso para o significante e para o símbolo, mas acentuo que os signos também têm um efeito em si mesmos, que há uma eficiência dos signos. No fundo, isso é evidente se pensarmos na indústria publicitária, cuja única produção é a produção de signos, e que se baseia no pressuposto de sua eficiência.

E o grande Phi é seu meio de ação. Trata-se de tornar estes signos desejáveis – como? Não há desejo sem falta. Portanto, é necessário introduzir a dimensão da falta, e como melhor fazê-lo senão convocando o símbolo que presentifica a falta, grande Phi:

Φ
___

Ao presentificar a falta, grande Phi presentifica o desejo. Retomo a frase de Lacan: “Que o falo venha à luz em sua presença real”: através do signo ou do símbolo grande Phi, o falo deve vir à luz; o sinal ou símbolo grande Phi deve estar realmente presente. “Do desejo não há signo mais certo”, e Lacan acrescenta, “sob a condição de que nada mais haja além do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Para que o signo do desejo, o grande Phi, que é um signo da falta no Outro, venha à luz em sua presença real, é preciso que se rasgue o véu dos outros signos, que apontam para o objeto, pretendendo preencher a falta. “Do desejo não há signo mais certo, sob a condição de que não haja além do desejo”. O grande Phi é “o puro significante do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 242). O grande Phi foi “o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234). Por isso é um significante, mas um significante da falta de um significante no Outro. Como tal ele é indizível, inominável. Daí seu funcionamento como signo: dele só se pode fazer signo, em silêncio, eu diria.

A falta no Outro, a relação com a linguagem e sua projeção no órgão

Lacan escreve o significante da falta no Outro como S(Ⱥ). O Outro, neste caso, é o lugar do significante – digamos, a linguagem. Como tal, S(Ⱥ) escreve a relação conflituosa do sujeito com a linguagem – pensemos no momento da pergunta da criança:

De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por este algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

A relação inominada, porque inominável, porque indizível, do sujeito com o significante puro do desejo se projetada sobre o órgão localizável, preciso, situável em alguma parte no conjunto do edifício corporal. Daí este conflito propriamente imaginário, que consiste em ver a si mesmo privado, ou não privado, desse apêndice. (LACAN, 1960-61/1992, p. 242)

Acontece com o significante da falta no Outro com um grande A, algo análogo a isso que aconteceu anteriormente com o objeto imutável e não compartilhável da fantasia fundamental. O objeto da fantasia fundamental foi projetado sobre o objeto localizável e intercambiável do mercado. O significante da falta no Outro com A maiúsculo, lugar dos significantes, digamos da linguagem, é projetado no órgão do outro com um pequeno a, quer este pequeno outro seja o parceiro do sujeito ou o próprio sujeito. Escrevo essas projeções com duas pequenas setas:

Objeto pulsional, objeto a → objeto do mercado

S(Ⱥ) → falo imaginário, ϕ

A → outro

Antecipemos um pouco: no Seminário sobre A angústia, o objeto que se deseja se tornará causa do desejo, e no Seminário De um Outro ao outro (LACAN, 1968-1969/2008), o objeto a como causa responderá pelo objeto mais-de-gozar, permutável, compartilhável, mercantilizável.

Objeto causa → objeto mais-de-gozar

O que faz os termos à esquerda passarem para aqueles à direita? O que é colocado em função nessas projeções de localização?

A função grande Φ 

Nós tínhamos o sinal, o símbolo e o significante, agora eu apresento a função. Lacan fala da “função Φ do significante falo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244), e quando fala do neurótico obsessivo, fala de “colocar em função” e fala do “sinal da função fálica” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A clínica do neurótico obsessivo me parece falar particularmente da “da ativação da função fálica”, digamos, da falicização.

A formulação do segundo termo da fantasia do obsessivo faz, precisamente, alusão ao fato de que os objetos são para ele, enquanto objetos de desejo, colocados em função de certas equivalências eróticas – aquilo que temos o hábito de assinalar, ao falar da erotização de seu mundo, em especial de seu mundo intelectual. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Lacan escreve a fantasia do obsessivo da seguinte forma:

(Ⱥ) ◊ Φ (a, a”, a”, a”’, …)

(LACAN, 1960-61/1992, p. 248)

Ele especifica que o poinçon pode ser lido como desejo de. Eu li desta maneira: recuando diante da falta no Outro, face ao A barrado, o sujeito obsessivo deseja os objetos de seu mundo na medida em que eles são falicizados.

Na medida em que são falicizados, porque sua falicidade é medida:

(…) o j é justamente aquilo que é subjacente à equivalência instaurada entre objetos no plano erótico. O j é, de alguma maneira, a unidade de medida, onde o sujeito acomoda a função a, ou seja, a função dos objetos de seu desejo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Medida, equivalência: esses objetos são objetos do mercado:

(…) tantos ratos, tantos florins, não passa de uma ilustração particular da equivalência permanente de todos os objetos naquilo que é uma espécie de mercado (…). Ela se inscreve (…) numa espécie de unidade comum de padrão-ouro. O rato simboliza, ocupa propriamente o lugar daquilo a que chamo j, na medida em que ele é uma certa forma de redução de Φ, e mesmo a degradação deste significante. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Às projeções que já escrevi, acrescento uma:

Φ → φ

E Lacan acrescenta – trata-se sempre do obsessivo –: “a função Φ do falo, enquanto oculta por trás de sua negociação no nível da função do j (LACAN, 1960-61/1992, p. 254). Mas Φ representa “a função do falo em sua generalidade, para todos os sujeitos que falam” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A presença real 

O símbolo grande Φ tem a ver com a presença real: “Sabemos qual é a dificuldade do manejo do símbolo Φ na sua forma desvelada. (…) o que ele tem de insuportável é que não é simplesmente um signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244).

Ele não é simplesmente signo e significante: não é simplesmente imaginário, nem simbólico: ele é real, presença real, real da presença do desejo. “Esta presença real, trata-se, no entanto, de situá-la em alguma parte, e num outro registro que não o do imaginário. (…) que podemos entrever que o desejo vem habitar o lugar da presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 256).

“Mas então por que o falo, neste lugar e neste papel?” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257) – pois há “outros signos do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257). “O falo se apresenta no nível humano, entre outros, como o signo do desejo. É também o seu instrumento, e também sua presença” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257).   

No nível humano, ou seja, não se refere apenas ao perverso de quem Lacan fala nessas páginas. “O que ele designa não é nada que seja significável diretamente. É aquilo que está além de toda significação possível e, especialmente, a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 258).

E, como se trata da presença real na análise, e como essa não pode ser concebida sem a transferência ao analista à qual responde o desejo do analista, eu me arriscaria que a presença real, na análise, está situada de forma privilegiada na emergência do desejo do analista, em suas interpretações, suas escansões, seus cortes… ou em seu silêncio.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Tereza Facury

Referências
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 231-270.
FREUD, S. (1919). Uma criança é espancada. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 193-218.
LACAN, J. (1960-61). O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1962-1963) O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, J. (1968-1969) O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

1. Texto originalmente publicado em Ironik, n.33, boletim da UFORCA.
2. Característica de néscio, de quem não sabe ou não possui conhecimento para compreender alguma coisa. Alguns estudiosos diferem nesciência de ignorância, sendo a última relacionada a falta de conhecimento para compreender algo que se deveria saber. Disponível em: https://www.dicio.com.br/nesciencia/. Acesso em: 19 out. 2022.



 Tem alguém aí?1

Esteban Pikiewicz
Psicanalista, membro da EOL/AMP
epikiewicz@yahoo.com.ar

 

Resumo: O autor percorre os textos de Freud e de Lacan buscando elucidar o que estaria implicado na expressão presença do analista”. Ele destaca a ideia inicialmente desenvolvida por Freud sobre o analista como objeto e retomada por Lacan quanto à função do “desejo do analista” e do analista enquanto semblante do objeto a causa de desejo, vinculando a sua presença ao próprio conceito de inconsciente. Porém, acrescenta o autor, trata-se de uma presença real e, nesse sentido, nos reenvia a Lacan para afirmar que há, nesse desejo, algo de impuro.

Palavras-chave: presença do analista; inconsciente; desejo do analista; objeto a; real.

IS ANYONE THERE?

Abstract: The author goes through Freud’s and Lacan’s texts seeking to elucidate what would be implied in the expression.: “presence of the analyst”. He highlights the idea initially developed by Freud about the analyst as object, which is revisited by Lacan regarding the function of the “analyst’s desire” and of the analyst making semblance as “objet a cause of desire”, linking its presence to the very concept of the unconscious. However, the author adds, it is a real presence and, in this sense, he sends us back to Lacan, to affirm that there is something impure in this desire.

Keywords: presence of the analyst; unconscious; analyst’s desire; objet petit a; real. 

 

CAROLINA BOTURA. ORAÇÃO

 

Do título e da presença do analista

O que vou propor é um desenvolvimento preliminar, uma aproximação ao que foi trabalhado neste seminário sobre a questão da presença e, em particular, da presença do analista. Vou me valer desse termo para tentar vinculá-lo ao título desta aula: Existe alguém aí? é o título do livro de um grande poeta argentino, Joaquín Giannuzzi (1999), publicado pouco antes de sua morte. O título assemelha-se a uma significação vazia, pois exprime o conjunto de poemas encontrados no livro e não há nenhum poema dentro dele que se intitule assim. O conjunto de poemas, pode-se dizer, circunscreve algo do objeto que é o livro, cujo nome é o nome próprio do autor. O estilo de Gianuzzi é o da ironia, ou humor ácido, o “falar” das coisas cotidianas, insignificantes; da morte, da incerteza, o que se costuma chamar de poesia objetivista.

Agora, a covid-19, como acontecimento, virou nosso cotidiano de cabeça para baixo e, portanto, nossa prática e nossa experiência. Isso acentua ainda mais a pergunta: tem alguém aí? A cada vez que se produz o contato entre nós por esses meios, ou também entre analista-analisando, há, de algum modo, uma preparação, algo prévio, que se reitera, uma espécie de constatação ligada a essa insistência introdutória nas perguntas “Você me escuta?”, “Eles me veem?”, como perguntas sobre esse alguém aí.

Presença: o dicionário diz que se trata da circunstância de estar ou de existir algo ou alguém em determinado lugar. Deriva do latim praesentia, que descreve esse termo como a qualidade de estar diante. Algo que me parece importante destacar é o que se refere à condição de algo físico, algo que tem uma corporeidade. No dicionário se esclarece que o termo está ligado aos traços de algo ou alguém. Não tanto ao que o senso comum menciona como a aparência, mas sim aos traços. Nessa pandemia, precisamente, em que predomina a coronalíngua, se produz, inversamente, a limitação da presença dos corpos.

Sigmund Freud, mediante o sonho da injeção de Irma (FREUD, 1900/1996) — momento fundador da psicanálise —, constrói todo o aparato psíquico de três, que, como diz Germán Garcia, é um aparato patafísico, cuja propriedade é a de não existir dentro do tempo e do espaço euclidiano.

Nesse momento fundador, ele mostra algo que tem o atributo de ser um atrativo, algo que funciona como um ímã e que ele chamou de umbigo do sonho. Trata-se de algo que aparece no limite da decifração, pela via da fórmula química da trimetilamina — ela própria carente de sentido — e do que se apresenta mais além como indecifrável.

Dez anos mais tarde, quando já havia feito uma prática de seu invento, encontra algo homólogo ao umbigo do sonho. Estamos falando dos escritos técnicos (FREUD, 1912/1996). Eu me refiro à dinâmica da transferência, onde ele encontra a detenção nas associações em seus pacientes. Aí se faz presente um obstáculo, no qual Freud constata que se trata da pessoa do médico, sua presença. E, por sua vez, ressalta que é nesse momento que há uma maior produção transferencial: o amor de transferência como obstáculo.

Assim, pode-se fazer uma série de metáforas do irredutível: umbigo do sonho; bate-se em uma criança; o Kern/osso de toda neurose; o grão de areia na pérola neurótica etc. Não são esses conceitos, esses termos ou noções, os que poderiam se articular, fazer uma ponte, uma conexão em sua expressão, com a presença do analista? Lacan, no Seminário 1: os escritos técnicos de Freud (1986), fala da presença do analista “a brusca percepção de algo que não é tão fácil definir, a presença” (LACAN, 1953-1954/1986, p. 54) que é seu acontecimento e “frequentemente tinto de angústia (LACAN, 1953-1954/1986, p. 66). Mas acrescenta que há algo na presença que permite ao paciente tomar consciência de um enigma, um mistério. Aqui, nesse seminário, falou-se do enigma do mal, como algo cuja presença, enquanto humana, é um mistério. Talvez possamos pensar em algo que remeta à marca, uma marca. Lacan acrescenta ainda que há algo do enigma que não se pode experimentar constantemente porque se tornaria insuportável. Diz também que o humano vive tentando apagar isso que é a presença, e não perceber isso que é presença.

Voltando, se Freud forjou o aparelho psíquico com seus outros três — refiro-me ao consciente, pré-consciente, inconsciente e, mais tarde, Eu-Isso-Supereu —, sabemos que Lacan nos orienta com seus três: imaginário-simbólico-real.

Com esses três pode-se ajustar um pouco essa questão, dizer que a presença do analista dá conta de algo que não passa pelo simbólico — ou seja, não há associações — nem pela significação imaginária. No entanto, se nos remetemos ao Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ali se acentua que a presença do analista é uma manifestação do inconsciente (LACAN, 2008, p. 121–123). Podemos pensar se existe uma equivalência entre manifestação e formação do inconsciente. A manifestação parece “direta”, sem mecanismos que intervenham. Uma formação responde a certas leis. Lacan disse que há que integrar essa presença ao conceito de inconsciente. Eu acrescentaria presença do analista enquanto uma presença real. Vimos, anteriormente, nas “Conferências introdutórias à psicanálise: a transferência”, de 1916–1917, que Freud situa o analista na qualidade de objeto, de objeto no centro da neurose de transferência. Quer dizer, um Freud muito lacaniano no qual a presença, então, que é inconsciente, na medida em que está incluída no próprio conceito de inconsciente, aparece onde imagens e palavras claudicam. Em suma, é o que já conhecemos como instituição do objeto a, o parceiro essencial do sujeito, a essa altura (Seminário 11), causa do desejo.

Por que razão, ou por que, é relevante que, reproduzida essa neurose de transferência, nos encontremos com esse obstáculo que evidencia, com a presença, que ali não há memória ou representações?

Então, me atrevo a enfatizar que, justamente pela via dessa presença real do analista, sugere que não se trata apenas de interpretação ali. Ou, pelo menos, também deixo como proponho: trata-se — diria — de uma operação que põe em jogo, justamente, as sucessivas definições que nos são apresentadas sobre o que é interpretar. Ou uma interpretação que tem a ver com presença, ou seja, ligar algo ali com as variações e voltas que podem ser dadas sobre o que será interpretar, ou, se preferir, a diferença entre ato e interpretação.

Se o seminário sobre os conceitos fundamentais da psicanálise é um seminário que tem o caráter de dobradiça, no qual o ensino de Lacan começa a dar uma guinada em torno da conceituação desse objeto — o objeto a, causa do desejo —, isso se estrutura em torno dessa função que chamamos a função de causa do desejo: o objeto a, analista. Precisamente, o capítulo 10 do Seminário 11 se intitula “A presença do analista” (LACAN, 2008).

Presença e amor real

Penso que é muito interessante sublinhar algumas coisas, como fiapos. Primeiro, Lacan diz que é um termo muito bonito, ele o expressa assim. Em segundo lugar, para retomar algo que indiquei antes — essa presença e a transferência —, Lacan ali começa a debater com os pós-freudianos sobre a transferência; se nomeiam a transferência como um sentimento, se se trata de ambivalência, separa-se a transferência da repetição, etc. Mas ele enfatiza novamente a questão da transferência e o problema de saber se ali se trata como significação — o amor como algo autêntico —, nesse ponto máximo suscitado pela presença do analista. Um amor que, poderíamos dizer, não é identificação, mas que está do lado do real. Ele também usa outra palavra, que é a palavra essência. Ele a usa apenas uma vez para se referir a algo desse amor e, também, à presença. O significado de essência é interessante. Segundo o dicionário, significa, entre outros significados, algo permanente, invariável, que não muda em relação a uma coisa. Trata-se, justamente, de que essa presença é a que dá testemunho, ou seja, “há alguém ali” presente. E de que coisa essa presença testemunha? Da perda que é originária, sem compensação, sem saldo a favor do sujeito que fala. Algo que, por sua vez, faz a posição do analista, um lugar (e o acentua) que é muito conflitante.

Vou tentar dizer de outra forma, com noções que são limites: falta de rememoração, algo opaco, misterioso na presença; uma falta de significação — mas uma significação quase absoluta que é o amor — e que não remete à verdade. É a transferência como resistência, o fechamento do inconsciente enquanto pulsátil. Ou, como Lacan o chama em uma antecipação topológica, um nó górdio.

Então, nesse limite, o analista, ali em sua operação, atua ou não atua? Opera ou não opera? Intervém, interpreta? Através do eco? Pela ressonância? Por algo que lhe vem de suas próprias marcas, de suas próprias cicatrizes como o analisante que é ou o analisante que foi?
Inevitavelmente, poderia surgir algo que aparece indiretamente ali, ou ligado ali, no lugar do analista: a pergunta se se trata de algo que implica a função do desejo do analista com um algo a mais.

Porque função, reconheçamos, é aquilo que, em Lacan, remete a sua ambição de ter feito da experiência e da prática da psicanálise uma disciplina absolutamente lógica, matematizável, reduzida a fórmulas, sem equívocos. Mas surge aí algo interessante, pois, para formular isso, no final do Seminário 11, Lacan vai dizer que o desejo do analista é impuro (2008, p. 260). Portanto, se o desejo do analista é impuro, parece-me que não há razão para não pensar a função do analista como tocada, salpicada de algo de uma impureza.

Lacan diz que, se se trata do desejo de obter a diferença absoluta, essa diferença absoluta o é na medida em que implica tocar, obter aí algo de uma marca: isso que é diferença, mas enquanto absoluta. Parece-me que o absoluto não se refere ao todo, mas a algo à parte. Eu diria, é isso que, na medida em que é absoluto, não é permutável, não é modificável. O significante, por outro lado, é permutável, intercambiável um pelo outro.

A pergunta que me fazia era: não seria essa impureza o que levaria Lacan, nos próximos dez anos, a deixar e abandonar tudo o que é lógica, a matematização, discursos, em relação à prática analítica? Não é justamente a partir do Seminário 11 que o psicanalista está posto no banco?

Se o semblante é aquilo que tem a ver com um vazio e uma significação ao mesmo tempo (é a definição um pouco mais rudimentar de semblante), ou dito a partir dos três registros, ele implica algo real bordejado, circunscrito, ajustado pelo imaginário/simbólico, a função do analista pela via do desejo acaba por permanecer pelo que ela tem a ver com a presença. Esse limite, essa aparição, talvez a marca — e aqui acrescento algo mais — seja a encarnação disso, encarnando-se ali como tal. A coisa impura tem a ver com a encarnação disso.

Do estilo como presença encarnada

Desvio-me um pouco. Eu lhes falei de Giannuzzi, do estilo. E quero me valer de algo da referência ao estilo que Jorge Faraoni havia utilizado; Ricardo Gandolfo também falou em um certo momento sobre o estilo, quando se trabalhou no seminário algumas dessas aulas sobre o tema.

Para dizer apenas algumas coisas, certamente, mais tarde, vocês poderão, melhor do que eu, adicionar algumas referências sobre isso, pois meu comentário sobre estilo não é exaustivo; do que se trata? A pergunta tácita que agora exponho é: está ou não em jogo o estilo do analista? A função “desejo do analista”, estando na veia lacaniana da lógica, da matematização, frente a isso, o estilo é isso que, me atreveria a dizer, se aproxima dessa outra questão, digamos, “não lógica”, a presença encarnada; onde a função, em sua pureza, devido à impureza, vacila um pouco, não se faz suficiente.

Voltemos então a nos colocar nesse lugar, no lugar do semblante do objeto a, não representável, não significante, mas que, por enquanto, vale como significante, como esclarece Jacques-Alain Miller. A aposta que o objeto a não é um significante, mas vale como significante, responde a esse afã lacaniano da matematização, da lógica, das fórmulas, mas, diria, marcado por algo que aparece, uma presença, um algo impuro em relação a ele. Pode-se dizer que é algo a mais, pois é encarnado.

Eu vou dizer de outra forma. A função do analista como um significante qualquer, mas ao nível do a como presença do analista, encarnação desse algo, se trata de alguém. E, a esse respeito, me apoio em uma frase de Germán García. Você poderá encontrá-la em um de seus livros (que são uma série de cursos que Germán deu no norte da Argentina), intitulado Derivas analiticas del siglo: ensayos y errores (2014). É um curso de 1988, uma compilação de todas as aulas em que Germán García, quando fala do semblante, diz:

“(…) quer dizer, como diz Lacan, poder ser um objeto qualquer para depois ter um nome. Se se diz que o analista é qualquer um, deve-se dizer também que o analista é sempre alguém, e que alguém tem um nome, o único traço que o analista põe em jogo é o de um nome, os demais são postos pelo analisante” (GARCÍA, 2014, p. 45. Tradução nossa).

Se tomarmos esse ponto pela via do estilo, sabe-se que, em linhas gerais, o estilo é algo que se trabalha e é muito trabalhado no campo da estética, da arte, da literatura, enfim, da criação. Mas aceita-se que não se trata tanto do autor em si, do nome próprio, mas da obra, que o estilo esteja em sintonia com o objeto de que se trata.

Por exemplo, Witold Gombrowicz propôs incomodar com estilo. Poder-se-ia dizer que é em sua literatura que existe o traço do desconforto, o estilo, mais além do próprio Gombrowicz. Na tradição literária, estilo refere-se a algo que é singular, algo que é um traço destacado dentro do que é um movimento cultural, dentro de um autor, de um momento cultural, uma época.

Isto também é interessante: há um traço do que poderia ser pensado como o humano, a condição disso que, por sua vez, é alcançada. Há uma estética acabada, não modificável no nível do que se alcança no objeto artístico e que, por sua vez, tem uma aura enigmática, de mistério. Novamente Germán García vem em meu auxílio; no mesmo livro, algumas páginas depois, ele diz algo que me parece relacionado comisso do estilo. Se o Real implica esse gozo relativo ao corpo, aproximamo-nos então da presença como o que ela encarna. Cito Germán García:

“No real a pergunta é de que goza [enquanto corpo e de que se goza]… A frase de Lacan ‘o desejo do analista não é um desejo puro’ é um desejo conectado a um corpo, a uma substância gozante. Quer dizer que o enigma da interpretação é um eco do enigma do próprio gozo do analista” (GARCÍA, 2014, p. 50. Tradução nossa).

Ou seja, haveria um estilo do analista enlaçado ao nome próprio, que faz o estilo enquanto uma presença. Um traço que tem algo estético, uma forma acabada, singular, e que é eco do próprio gozo do analista, é uma maneira que encontrei de dar uma volta na frase de Germán. Tensão com o Lacan anterior aos Seminários 10 e 11. Dado que, se Lacan estava extremando esse afã lógico, matematizável, de nos propor o inconsciente estruturado como discurso, chegando a preferir um discurso sem palavras, para depois dizer que não há mais do que semblante, vemos que, já no fim do Seminário 19, ou pior…, começa a dizer, a assinalar, a situar que há algo a respeito disso que se impõe, do que aparece. Nessa instância, o chama de um suporte para esse giro dos discursos e nos diz “(…) fazer desse de-ser o suporte com esse des-ser de ser o suporte…” (LACAN, 2012 p. 226).

Acrescenta: “(…) se existe algo que se chame discurso analítico, isso se deve a que o analista em corpo, com toda a ambiguidade motivada por esse termo, instala o objeto a no lugar do semblante. (LACAN, 2012 p. 222)”.

Quer dizer, temos o discurso, o objeto, o semblante e o corpo. Então, se estou tratando de transmitir, de expor nesses apontamentos, é porque me parece que, diante da reformulação lacaniana — a partir dos seminários 10 e 11 —, da prática e da experiência analítica, surge a pergunta se se trata de um corte. Podemos debater se é um corte ou uma continuidade topológica. São debates. Isso porque uma das razões (entre outras) é essa encarnação, esse no corpo (un corps, homófono de encore) que começa a ter toda uma presença diferente em nossa prática, na experiência, no ensino, na sua relação (se houver) com o lugar do analista. Também me atrevo a assinalar que, de modo geral, acostumamo-nos a falar do gozo como pulsional. É o mais clássico entre nós. Articulado, certamente, ao objeto. É por isso que o analista representa, ou está nesse lugar; ele é semblante de objeto. Por isso, temos a parte elaborável desse gozo.

Mas a ideia seria a seguinte: se não é, precisamente, pelo semblante de objeto a, a partir dos seminários 20 e 21, que aparece a presença por essa encarnação nesse lugar e nessa função impura do desejo do analista, que se revela ou se afirma a questão de um gozo que não é somente pulsional. Ou, dito de outro modo: se o objeto a (do qual o analista é semblante) é o elaborável do gozo, resta ao analista, em presença, ser aquele que encarna o não elaborável do gozo. Se podemos pensar que se possa tocar em algo desse aspecto do gozo, nomear, incidir sobre ele, para que isso aconteça, é imprescindível a presença. Mesmo que ela não garanta que isso aconteça.

O semblante se vincula, se ajusta, ele implica em si um vazio. Por isso, Miller assinala: “(…) se Lacan se lançou aos nós, foi para tentar lhe dar, fora da articulação linguística saussuriana, dar substância a esse vazio” (MILLER, 2008).

Visto de um outro ângulo, se diria que já não se trata de um só gozo. Sim, do campo do gozo, mas pluralizado. Por isso a questão do corpo e seu mistério falante faz sua aparição.

É a partir do texto “A Terceira” (sobre o qual lhes recomendo “Leituras da Terceira”, texto de Gabriela Rodríguez e outras colegas de La Plata) que encontramos os três registros lacanianos no esquema do nó aplanado. Na base de tal esquema, encontramos o objeto a. Deixando de lado o que, a partir desse esquema, será o desenvolvimento do ensino de Lacan em torno dos nós, me interessa fixar em uma recomendação lacaniana nesse texto. Para se referir ao analista, Lacan utiliza figuras e personagens como o palhaço, o bufão. E aconselha a não o imitar e fazer como ele: descontraídos, naturais, sem presunções, bufões, palhaços. Por que motivo Lacan incorpora essas figuras do palhaço, do bufão e as relaciona com o analista quando este está formulando um mais além da matematização, do Nome-do-Pai, do falo? A maneira que encontrei de abordar essa pergunta foi através disto, que trato de lhes colocar: a presença, o corpo, a encarnação ali do analista.

O gesto inesquecível

Para aproximarmos a responder algo sobre isso, pode-se mostrar com um exemplo muito conhecido e difundido entre nós. Um, ao menos assim me parece, que abona o que venho desenvolvendo. É o conhecido testemunho de Suzanne Hommel. Esse testemunho expõe, no meu entender, que ali se tratou de uma operação de Lacan, por sua presença em corpo com esse gesto leve na pele de Suzanne Hommel, quando ela fala repetida e insistentemente de seu sofrimento, de se despertar sempre às cinco da manhã com a recordação atormentadora da Gestapo, do Holocausto, da perseguição aos judeus. E, quando Lacan salta da cadeira do analista, de modo surpreendente, acaricia suave e levemente sua bochecha, é ela quem depois interpreta translinguisticamente Gestapo (do alemão) por geste à peau — em francês “gesto na pele”.

Gesto lacaniano que é bufonesco. Esclarecendo o seguinte: não caiamos rapidamente em pensar que o bufão (que também tem sua origem, sua inserção, tal como o menestrel, no popular, para o povo) era somente a diversão e o canto na corte. Também aliviava os sofredores. Ele ia ou se aproximava do leito dos enfermos, dos enterros, ou do que poderiam ser, nessa época, os enterros. Vá saber se havia enterros como existem agora. Mas havia algo do bufão (como também o menestrel) acompanhar ali, em presença, aquele que sofria, no limite da vida. A tal ponto que era a Igreja que se encontrava muito incomodada a respeito dessa função, pois não recorriam a ela. E com uma habilidade que, creio ser atribuída a Assis, o santo, que se pode, com alguma manobra, captar isso para o interior da religião. Porque o bufão cumpria uma função que a religião não cumpria, que tinha a ver com isso da vida que não é só o gracioso. Então, recordemos que temos que associar isso também ao bufonesco e aos menestréis. Como aqueles que tinham o nome próprio como algo singular, relativo a algo corporal, a um traço que os caracterizava. Algo como uma deformidade, ou defeito particular do corpo, e que, com isso, lhes permitia exercer essa função poética, teatral, comediante, de cantos, ou seja, uma espécie de um condensado da condição humana, não tanto por suas características de brilho, etc. E Suzanne Hommel diz: o gesto de Lacan é um gesto de humanidade. Porque introduziu um algo a mais vivo, que ela diz, até hoje, sentir na pele, ainda que o sofrimento, como rememoração, não cesse. Mas, para ela, algo ali está amortecido, algo está ali capturado, tocado nesse geste à peau que lhe trouxe um mais de vida e um menos de sofrimento iterativo. Creio que esse é um gozo que não podemos classificar de pulsional, que se introduz com esse gesto, esse ato de Lacan, mais além do sentido e da lógica fálica.

O outro exemplo, no qual vou me apoiar e vou resumir brevemente, talvez vocês o conheçam. É um dos testemunhos de Berta Mildner, publicado na revista Lacaniana. Mildner explica que, ao longo de sua experiência, sempre teve imbróglios com o corpo. Fazia dos livros um recurso permanente, ao saber exposto neles, e que se manifestava nela como alterações da respiração. Uma respiração constantemente agitada. E que, diante da insistência disso, há uma intervenção do analista que lhe disse: “esse saber não lhe serve para nada” (MILDNER, 2017, p. 59). Primeiro ela o localiza assim. Silêncio. Silêncio do analista.

Quer dizer, fazer sentir uma presença ali pelo silêncio. Ela assinala que o efeito disso é uma grande e intensa angústia. Apontamos, de passagem, que já falamos disso. Lacan afirma, em “A Terceira”, sobre a angústia como sintoma tipo articulado ao corpo. E Mildner diz: “separação máxima entre o corpo e as palavras” (2017 p. 59). E só uma recordação. A última das lembranças encobridoras é produto de um relato do Outro materno. Ela era muito pequena, com crise de bronquite e agitação. Corre às emergências médicas. Diante dessa recordação, ela chora e chora e não há mais que choro. Sem parar. Há uma intervenção nesse relato, de um pediatra — nessa recordação materna — que recomenda algo absolutamente natural: ar livre, que respire ar livre, ar fresco. Uma segunda intervenção do analista, ela diz: “A intervenção do analista foi nomear isso como o trauma” (MILDNER, 2017, p. 60). O que diz Mildner em seu trabalho? Há queda de todo sentido, esvaziamento do sentido, um vazio, mas com um nome. Surge-lhe uma imperiosa angústia, uma vontade de ir ver o analista e lhe falar, como retorno transferencial. É muito interessante porque ela diz que, no meio da sessão, levanta-se bruscamente do divã, senta-se diante do analista e lhe fala da lógica do seu fantasma, do analista como objeto a olhar, o “dizer silencioso” (MILDNER, 2017, p. 60). E que, tratando de recuperar o analista-olhar, mais e mais… surpresa. Aqui surge o interessante, que ela ressalta. Frente a frente ao analista, Mildner ressalta que lhe parecia a pura presença do corpo, de olhos fechados, analista angustiado. Poderíamos dizer aparição, pura presença do analista enquanto corpo, olhos fechados: “encontrei o analista fazendo semblante do acontecimento de corpo (MILDNER, 2017, p. 60)”. E, depois, outra surpresa. Cito: “Saí da sessão com uma vitalidade desconhecida, plus de vida, sem Outro, que transformaria o modo de viver o corpo” (MILDNER, 2017, p. 60).

Nenhum sentido, efeito de um outro enodamento, um vazio de significação. E dir-se-ia “tudo” (o tudo é irônico) pela presença.

Me vali da noção de presença do analista e de todas essas derivadas, que entendo ter uma característica inconclusa, insuficiente, porque abre muitas pontas: marca, objeto, semblante, interpretação, operação, encarnação, função do desejo do analista impuro, o corpo, etc. Porém, em todo caso, me surgia a pergunta se podemos fazer como Lacan diz: “natural”, sejam naturais, sejam soltos, palhaços, bufões. Ou como também diz no Seminário 21, “Les non dupes-errent”: recomeço.

Voltaria ao título: Tem alguém aí? Por que volto ao título? Porque, com essa noção da qual me vali, presença do analista, para aproximar-me desse limite, desse lugar limite, disso que não se pode elaborar, dessa opacidade, desse gozo mais além, mais além do Nome-do-Pai, podemos colocar os nomes que vocês quiserem… Minha pergunta, então, é: o que aí se pode obter da análise como marca disso? Germán García disse por aí que a marca e/ou as marcas de uma análise são as cicatrizes da experiência. Ou, senão, como diria Éric Laurent, enquanto o “inesquecível” dela. Como Suzanne Hommel o testemunha. É inesquecível. Algo ali é inesquecível. Ou, se a marca ou as marcas dizem respeito a esse gozo indecifrável, “fazer-se uma conduta com seu gozo” (OSCAR, 2012, p. 100).

Outra maneira de dizer o que poderia se esperar, entre outras coisas, da experiência de uma análise, eu encontrei na poesia de Joaquín Giannuzzi, de quem lhes falei no princípio e que me impulsionou a intitular a exposição “Tem alguém aí?”. Eu a transmito com um poema que lerei a vocês, porque entendo que expressa algo disso que apresentei. Chama-se “Uma palavra virgem”:

Só ela sobreviveu
de um texto que esqueci. Desde então
é presença musical em minha cabeça.
Era-me desconhecida e, no entanto,
mantive fechado o dicionário
onde segue esperando, em estado puro,
para entregar-me seu segredo. Deste modo
preferi livrá-la da servidão do significado
e criar-lhe um paraíso contra o conhecimento.
Resgatada
do contexto e da confusão conservo-a
como uma joia pessoal.
Agora, nas noites de insônia,
quando o nome das coisas cai na fadiga
apalpo-a e saboreio
como a uma mulher amada na escuridão.
Somente seu som, sem identidade, sem assunto,
percorre sussurrando minhas entranhas:
hipálage, hipálage, hipálage.
Algo deve haver ali dentro que resiste
como um desconhecido gozo triunfante.

 

Tradutores: Jônatas Casséte e Luciana Romagnolli
Revisora: Renata Mendonça

Referências
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII,. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIANUZZI, J. Obra completa. Buenos Aires: Ediciones del Dock, 1999.
GARCÍA, G. Diversiones psicoanalíticas. Buenos Aires: Otium Ediciones, 2014.
LACAN, J. O seminário. Livro 19:… ou pior. Zahar: Rio de Janeiro, 2012.
LACAN, J. O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud (1953-54), 3ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LACAN, J. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MILDNER, B. De la resolución matemática al régimen del encuentro. Lacaniana, 22, Buenos Aires: Grama, abril 2017.
MILLER, J.-A. Sutilezas Analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2008, lição de 8 de abril, p.246.
OSCAR, Z. Los decires del amor. Buenos Aires: Grama, 2012.
RODRIGUEZ, G. Lecturas de la Tercera. Buenos Aires: Tres Haches, 2019.

1. Publicado em:  Vaschetto, E.,Faraoni,J.(coord.)  ¿Podemos vivir en una civilización sin Dios? Segundas Marcas. Seminarios de Psicoanálisis. Barcelona:Xoroi Edicions, 2021 



Almanaque on-line entrevista Margarida Elia Assad

Margarida Assad
Psicanalista, membro da EBP/AMP e professora aposentada da UFPB.

 

CAROLINA BOTURA. CABEÇA

 

ALMANAQUE ON-LINE: Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. Não são poucos os testemunhos dessa forma de laço, como vemos, por exemplo, nos grupos terapêuticos ligados às adições. Seguindo ainda com Miller, ele também destaca uma outra forma de enlaçamento social presente nos chamados grupos extremistas, que, mais recentemente, surgem também no Brasil, nos quais o que estaria em jogo seria a articulação entre a identificação e a pulsão de morte. Que leitura é possível extrair dessa “psicologia de grupo” contemporânea?

MARGARIDA ASSAD: A psicologia de grupo freudiana certamente está sendo renovada pela queda do patriarcado presente na atualidade. Mesmo na falta dos significantes para os Nomes-do-Pai, que sustentavam os ideais dos grupos, os laços sociais se fazem demonstrando que sua causa não é o amor ao Pai, mas uma falha irredutível, causa do inconsciente. Essa falha irredutível se introduz pela via da estrutura de linguagem, pelo Outro, tornando o corpo, objeto dessa marca, um ser destinado ao social, destinado a fazer laços. Assim entendo o aforismo lacaniano “o inconsciente é a política”, uma vez que, por política, a psicanálise entende esse laço irredutível que o corpo falante mantém com o social. E, por ser um laço irredutível, uma unidade perdida, resta ao falasser fazer, desse furo marcado em seu corpo, uma identificação para si mesmo. Laurent esclarece que seria uma identificação a “dar sentido” a essa “experiência fora-de-sentido inerente a todo falasser” (2016, p. 65).

Temos assistido no mundo uma nova configuração social, desenhada por grupos com diferentes identidades. Nem todos apresentam identidades de gozo articuladas à pulsão de morte. Alguns desses grupos se reúnem em torno de um significante que possa permitir que o laço social seja mantido, impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem. Marcus André propõe a identidade como forma de pertencimento a um grupo, o que o insere na cidade, destacando que no Brasil, em especial, a identidade salva vidas (VIEIRA, 2022, p. 65). Nesse sentido, precisamos fazer distinções sobre a interpretação que o discurso analítico pode fazer sobre a “psicologia de grupo contemporânea”. Alguns grupos e coletivos certamente se constituem numa lógica das paixões de gozo, que se radicalizam de forma feroz sobre a sociedade. Alguns são nomeados terroristas, pois seu desejo se expressa pela via da destruição e morte, como assistimos na depredação feita aos símbolos da República Brasileira no dia 8 de janeiro passado. Claro que nesses grupos existem diferentes identidades, das fascistas até os que imaginam que servem a um gozo imaginário, com valor de nomeação, como vimos no chamado grupo de “patriotas”, enrolados em bandeiras. Patriotas dá a eles um nome, uma identificação, que sustenta o vazio do não-saber quem são e, menos ainda, de seu desejo. Há muito a refletir sobre a formação moderna dos grupos. Nesses últimos, o que une tais indivíduos não é da ordem de um semblante, mas do puro real marcado pela vontade de morte no Outro, e não do Outro. Podemos pensar que há aí uma identificação construída sobre o que há no Outro de desejo de morte e que capitanearia, numa ordem de ferro, seus seguidores, satisfazendo sua vontade de gozo mortífera. Mecanismo semelhante à histeria moderna, na qual o sintoma é sintoma de um outro corpo, um sintoma em segundo grau (LAURENT, 2016, p. 28).

Fazer distinções sobre tais grupos é fundamental. Há grupos nos quais as identidades salvam e inserem seus participantes na cidade de forma civilizatória. E há grupos nos quais a identificação não se cristaliza na identidade, como diz Lacan1, podendo levar a um aumento da angústia do grupo ou levar ao pior, que seria a passagem ao ato na forma de destruição e morte pela absoluta identificação ao desejo de morte no Outro.

 

AOL: Ainda nesse tema sobre o discurso do mestre em nossa época, lembramos que a psicanálise aplicada é uma tentativa de diálogo com esse discurso. Hoje, um de seus pontos fundamentais seriam as classificações universalizantes próprias a uma psicopatologia que se apresenta como científica, cuja perspectiva se baseia, em última instância, na homogeneização do sintoma, reduzindo-o a um transtorno especializado. Nesse sentido, o que parece estar em questão é uma tentativa de enquadrar o gozo em um diagnóstico prêt-à-porter, ignorando, portanto, o efeito único e irredutível do encontro de cada sujeito com a linguagem. Diante disso, que diálogo se faz possível?

M.A: O discurso psicanalítico tem hoje uma tarefa da maior importância para o mundo contemporâneo. O discurso científico, ao tentar homogeneizar os sintomas, de forma a classificá-los por sintomas comuns a cada classe, replica o que vem ocorrendo na proliferação de grupos, em que se buscam nomeações que possam preencher o vazio das identificações. Temos hoje uma excelente demonstração dessa liquefação das identificações em identidades sem nenhuma relação com a singularidade do sujeito. Carolina Castelliano, da Defensoria Pública da União e secretária de Atuação no Sistema Prisional, afirmou, durante o UOL News, que muitos dos golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília, na maioria mulheres, apresentam sintomas de desconexão com a realidade e que elas próprias não entendem como praticaram os atos de violência. Foi criada uma identidade de grupo, ela diz, que eliminava a subjetividade de cada um: ao que o grupo determina, o sujeito adere. A pessoa se tornou o grupo, diz Carolina, “elas sentem falta do grupo quando são mantidas isoladas”. Essas observações da defensora pública nos ajudam a interpretar o que vem acontecendo com o sujeito moderno.

O neoliberalismo associado ao discurso capitalista vem oferecendo soluções às questões subjetivas para todos, indiscriminadamente. As famílias e as instituições sociais são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguir sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo. Hoje, por exemplo, temos formas diferentes de parentalidade que não assombram mais seus filhos, para usar um termo que Laurent isolou em Lacan: épater (assombrar, chocar). Cabe ao discurso analítico ofertar um diálogo com essas novas coordenadas do simbólico escutando as irrupções, as manifestações de angústia, fazendo frente, fazendo um judô (LAURENT, 2016, p. 36) com esses novos discursos. Laurent propõe que se investigue, nas novas formas do masculino e do feminino, “o que serve de pai na configuração dos gozos de hoje” (BARROS, 2022, p. 123). Podemos ficar com essa indicação, que pode orientar a prática dos analistas nesses grupos e coletivos, escutando de que forma a sexuação se mantém na ordem do dia definindo os sintomas contemporâneos.

 

AOL: No tocante à clínica, ela tem nos mostrado, nas últimas décadas, casos que se manifestam, predominantemente, sob formas de gozo, que convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Na sessão clínica de Angers, Miller interroga se essas novas formas como as psicoses podem se apresentar na atualidade, designadas, por fim, como psicoses ordinárias, não exigiriam uma nova posição do analista, propondo pensá-la sob a forma de uma neotransferência. Você pode nos esclarecer o que a particularizaria? E poderia nos dar alguma referência de sua clínica?

M.A: O último ensino de Lacan nos traz novas leituras para a transferência. Se a fala do analisando produz efeitos, não é certo que isso se deva exclusivamente à transferência, ou seja, que seria pela suposição de saber em análise que tais efeitos tenham surgido. A extensão feita por Lacan do significante à letra nos permitiu ler de outra forma o inconsciente em análise. Lacan reenvia, cada vez mais em seu ensino, a fala à escrita. Um escrito feito pela letra de gozo presente no acontecimento de corpo. Essa nova modalidade de leitura para o inconsciente exige que a prática do analista o leve a escutar, pela sonoridade de lalíngua, a fixação de gozo no que se diz. Escutar deixando-se ir além do que se diz, escapando à rotina de aparolaNesse sentido, a fineza da escuta analítica é estar à altura da interpretação feita pelo inconsciente sobre o trauma da linguagem. Isso promove uma nova leitura do conceito de transferência, levando-a ao estatuto de lalíngua, fazendo do analista um parceiro do corpo-intérprete. Podemos lembrar da paciente de Helenice Saldanha, citado em um texto recente da Correio (CASTRO, 2002, p. 90), quando a queixa de ser indigente ganha uma nova leitura a partir de se descobrir negra. Não se trata de um deslizamento de um significante a outro, mas de uma ruptura entre o simbólico e o imaginário, eclodindo um efeito real, um novo dizer que tem aí o estatuto de acontecimento de corpo.

Entrevista realizada por Letícia Mello, Márcia Bandeira, Patrícia Ribeiro e Renata Mendonça.

 


Referências 
ASSAD, M. “O impossível e o laço, o analista e a época”. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Analista: Presente. 2022.
BARROS, M. R. C. R. “Como viver a infância hoje? O que Lacan nos ensina sobre a sexuação na atualidade”. Latusa, 26. Rio de Janeiro, 2022, p. 123.
CASTRO, H. S. “Notas Sobre a Dimensão Política do Corpo”. Correio 87. São Paulo: EBP, 2022. p. 90.
LACAN, J. (1945). “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 213.
LAURENT, É. “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Entrevista à La Cause du Désir. Correio 87. São Paulo: EBP, 2016. p. 28.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 65.
UOL. “Golpistas presos alegam que não sabiam objetivo do ato no DF, diz defensora”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/19/golpistas-presos-alegam-que-nao-sabiam-objetivo-do-ato-no-df-diz-defensora.html.
VIEIRA, M. A. “O que se cristaliza em uma identidade”Latusa, 26. Rio de Janeiro: 2022. Seção Rio-EBP.

1. LACAN, J. O seminário, livro 24. Lição 12-11-1976. Citado por VIEIRA, 2022.



As TCCs e sua tentativa de reduzir o ser falante ao organismo

Margaret Pires do Couto
Aderente da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise.
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação/UFMG e
pós-doutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
coutomargaret@gmail.com

 

Resumo: O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo.

Palavras-chave: Corpo; Psicanálise; Gozo.

The TCC’s and it’s attempt to reduce the speaking being to the organism 

Abstract: The article discusses how the belief in the existence of a natural body supports the attempt operated by Cognitive Behavioral Therapies (TCC) to reduce the speaking being to the organism. It is a body that supposedly should be quantified, domesticated and, therefore, adapted to the ideals of culture. On the contrary, psychoanalysis teaches us that a habitable body is not a biological datum. It is the fruit of the clash with language, the place of jouissance.

Keywords: Body; Psychoanalysis; Jouissance.

CAROLINA BOTURA. LONGEEUMLUGARQUENAOEXISTE

 

Um dos modos de rechaço à psicanálise que temos enfrentado no cotidiano de nossa clínica tem ocorrido por meio do encaminhamento em massa, especialmente de crianças e adolescentes, para as psicoterapias de orientação cognitiva comportamental. Os pais ou responsáveis relatam que esse direcionamento é realizado pelo médico pediatra, por diferentes profissionais da saúde, como também pelos profissionais da educação. Com a promessa de eficácia, objetividade e rapidez nos resultados, a terapia cognitiva comportamental (TCC) opera uma nova forma de governo da infância e da subjetividade.

Constatamos também a invasão dos ideais adaptativos dessa abordagem terapêutica na formação tanto dos profissionais da saúde como dos profissionais da educação.

A suposição de um corpo naturalizado, que existiria de forma independente da linguagem, ancora a tentativa de reduzir o ser falante ao organismo. O fascínio provocado no meio médico e educacional por essa proposta terapêutica se verifica em função da crença que é possível se ter o acesso a esse corpo de forma direta e, assim, quantificá-lo, padronizá-lo e adaptá-lo aos ideais vigentes. A promessa da eficácia promove uma verdadeira simplificação que exclui o sujeito, o gozo e o real na difícil tarefa de habitar um corpo.
Desconstruindo a TCC

Encontramos, de acordo com Aflalo (2012), uma aliança neo-higienista da psiquiatria biopsicossocial e o ideário da TCC. Nessa aliança, a clínica psiquiátrica é esvaziada de seu conteúdo e a investigação diagnóstica é substituída pela prática de questionários. Seus métodos contribuem para a propagação de uma ideologia duvidosa que sustenta um novo racismo científico. A psiquiatria psicobiossocial se faz passar por um humanismo científico, embora seja especialmente uma espécie de biorreligião a serviço das TCCs.

A discussão de cinco pontos nos permitirá estabelecer as bases da TCC e seus limites teóricos:

1. O pretenso cognitivismo das TCCs

Para Laurent (2007), a cognição a que se refere o termo terapia cognitivo comportamental não é a cognição definida pelas chamadas ciências cognitivas. Ela não permite estabelecer nenhum laço demonstrativo entre a prática das TCCs e os modelos teóricos propostos pelas ciências cognitivas. O pretenso cognitivismo das TCCs é, antes, uma bricolagem teórica. As terapias do mesmo nome são, na verdade, uma aplicação direta e técnica de duas teorias, inclusive opostas em seus princípios: a teoria comportamental e a teoria cognitivista. A concepção da natureza humana não é a mesma para os partidários do comportamentalismo e do cognitivismo. Para os primeiros, homem e animal são idênticos, pois não há diferença entre a adaptabilidade do comportamento humano e a do rato em laboratório. O humano seria apenas a soma de comportamentos, haveria apenas o organismo. Para os cognitivistas, o ser humano estaria identificado com um de seus órgãos, o cérebro, reduzido ao funcionamento de um computador. O pensamento não passaria de uma soma de programas informáticos e haveria apenas linguagem, porém, reduzida a um código.

Os dois projetos se opõem fundamentalmente. Entretanto, o que uniu essas duas formas de pensar o ser humano, apesar de suas diferenças de origem, foi a rejeição do humano como um ser de fala. Sua abordagem reducionista lhes permite afirmar que o psiquismo obedece apenas ao determinismo do organismo. Sejam quais forem os ideais em jogo, a etologia do comportamentalismo ou a máquina artificial do pretenso cognitivista, nega-se a dignidade do ser falante e a verdade de sua queixa.

2. A falsa ideia da saúde mental

A crença na existência de uma “saúde mental” é uma viga central do edifício da TCC. Entretanto, sabemos que é impossível definir cientificamente o que seria essa “saúde mental”; ela é, contrariamente, definida por uma norma moral. Os especialistas da TCC mascaram esse impossível, fazendo da saúde mental um conceito estatístico. Substituem a realidade dos fatos pela realidade estatística como se os cálculos bastassem para fazer existir a realidade do que é calculado.

Após definirem que existe uma norma mental e uma normalidade psíquica, todos os que dela se afastam, que não se tornaram a média estatística, são os desviantes, portadores de patologias mentais a serem reeducadas.

Assim, os teóricos da TCC desconhecem que a condição de ser sexuado e mortal do ser falante está na origem de vários sofrimentos “psi” e que o real do psiquismo, do mental, é o gozo.

3. Protocolos e questionários: a propagação de um cientificismo

O método dos questionários busca garantir que os comportamentos possam ser observados, codificados e quantificados. Desse modo, os comportamentos são reduzidos às listas de questões simples, às quais são atribuídos valores numéricos. A metodologia se resume à fabricação do questionário com o objetivo de formular questões objetivas e elaborar um protocolo, entendido como um conjunto de perguntas.

A prática dos questionários se afasta muito da experiência clínica. A cotação das respostas da avaliação substitui a qualidade pela quantidade, a descrição dos fenômenos por números que são organizados em estatísticas feitas para velar a falha estrutural do saber. Essa máquina enlouquecida da avaliação pretende uniformizar tudo em uma espécie de código universal.

4. O supermercado dos diagnósticos e a demissão da clínica

A psiquiatria é a única disciplina médica em que os diagnósticos são estabelecidos com base não na causa real da doença, e sim no efeito que os medicamentos têm sobre ela. As classificações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) são fabricadas com o mesmo procedimento de avaliação: são objeto de cálculos estatísticos. O DSM não originou nenhuma verificação independente que levasse em consideração o princípio da falseabilidade ou refutabilidade de suas descobertas, princípio fundamental de certificação de um conhecimento científico de acordo com Karl Popper.

Nessas classificações, nunca se trata do sujeito nem da clínica do caso. Está em jogo apenas o consenso dos psiquiatras. Trata-se de uma espécie de “ditadura do consenso” (AFLALO, 2012), ou seja, o que se leva em conta não são fatos em si, mas sim o consenso dos especialistas, que devem satisfazer também as companhias seguradoras para as quais trabalham. Na impossibilidade de verificar os sintomas “psi”, os especialistas os negociam, mantendo apenas o que pode fazê-los concordar entre si.

5. Sintoma: um erro cognitivo

As TCCs tentam impor a ideia segundo a qual o sintoma “psi” é um distúrbio, cuja origem seria tripla: falta de aprendizagem, componentes biológicos e sociais, motivo pelo qual se tornou “biopsicossocial”. Há uma operação de redução do sintoma “psi” por meio de três operações:

1) Transforma o normal em normativo: esconde o fato que a norma “psi”, inacessível à ciência, sempre se fundamenta num julgamento de valor, ou seja, decorre da moral.

2)Transforma o mental em orgânico: utiliza-se das estatísticas para assentar o mental com as ferramentas conceituais aplicáveis ao organismo. Na falta de poder ver o órgão mental, cujas disfunções valeriam para todos, a norma do mental é fabricada com estatísticas que se fazem passar por uma verdade universal.

3) Utiliza-se do artifício do cálculo estatístico forçando a passagem do patológico para o normal, da doença mental para a saúde mental. A média estatística se torna a norma estatística e, por fim, a normalidade mental.

Para se tornar avaliável, o sintoma é transformado numa grande quantidade de itens simplórios. É reduzido a pequenas unidades de comportamentos ou de cognições, a fim de encontrar uma significação constante, facilmente calculável. O sintoma é reduzido a uma quantidade excessiva a ser corrigida. Desse modo, estabelecem listas de sintomas, ou seja, “faltas observáveis de comportamento e de pensamentos” que sempre esbarram nas questões do ser vivo e sexuado. A ineficácia dessa fabricação de sintomas impele sempre a inventar outros, principalmente ditos de personalidade. Assim, as TCCs tropeçam sempre no problema da persistência dos sintomas e das personalidades desviantes, refratárias às recompensas dadas para normatizá-las ou fazê-las desaparecer.

O sintoma é concebido como um erro que não tem a ver com a verdade, mas como um erro de consciência, do cognitivo. Nessa perspectiva, as terapias da TCCs são aprendizagens padronizadas, metódicas e breves.

Por fim, encontramos, nesse empuxo à quantificação e nesse modo de abordagem terapêutica, a tentativa de desembaraçar-se do sujeito, do gozo e do real. Por outro lado, o sujeito da experiência analítica demonstra ser intraduzível às neurociências e ao código das TCCs e demonstra como a consistência do corpo do falasser depende de uma amarração singular.
O corpo sinthomatizado e a presença do analista

No último ensino de Lacan, o corpo é abordado em sua vertente de gozo, em sua vertente real para além do campo da imagem. Para se manter unido, necessita estar amarrado aos registros imaginário e simbólico indicando que sua consistência não se dá naturalmente, ao contrário, precisa sempre de algum artifício para se sustentar. Um corpo relativamente habitável, unificado e estável não é um dado biológico. A maneira como esse corpo se mantém e a forma pela qual se dá a união entre o corpo, a substância gozante e a fala torna-se para Lacan um verdadeiro mistério (LACAN [1972-73]1985).

Como uma caixa de ressonância, o corpo é o lugar onde se experimentam os afetos e as paixões, muitas vezes desconhecidos pelo ser falante. Denominar o corpo de “falante” significa dizer que ele é traumatizado por essa língua primeira, que deixa marcas de gozo. Nele se deposita o gozo, que não é subjetivado e nem transformado em enunciação, e, por isso, não pode ser apropriado pelo sujeito. Trata-se, portanto, de um corpo parasitado pela linguagem, marcado por signos que evocam a presença muda de um gozo que ultrapassa o registro fálico (MILLER, 1999).

Desse modo, o corpo traumatizado por alíngua se difere radicalmente do corpo, supostamente natural e já dado por antecipação da TCC. Para as TCCs, o corpo é uma máquina, regulado por leis naturais, separado do campo da linguagem, do Outro e especialmente do gozo.

Nessa perspectiva, Laurent, em “O avesso da biopolítica” (2016), discute como o discurso da ciência busca identificar o ser falante ao seu organismo, eliminando o gozo. O discurso da evidência orgânica recorre à imagem do corpo para fazer desaparecer o real do gozo. O corpo-máquina faz par com o corpo-imagem, por um lado, dividindo esse corpo em unidades sempre mais numerosas e mais complexas, e, por outro, fazendo uma falsa imagem unificada, que se reproduz em variadas telas. A forma do corpo, bem como a multiplicação de suas imagens, fascinam e se oferecem como remédio contra a angústia contemporânea.

“A força da imagem em todos os níveis é encarnar, num objeto separado, o que da lógica subjetiva escapa à representação. Não se vê o sujeito, mas se veem as imagens do corpo, de sua forma e de seu funcionamento. Querer reduzir o sujeito ao seu corpo faz parte da tentativa de identificar o ser falante (être parlant) ao seu organismo” (LAURENT, 2016, p. 16).

Lacan, ao contrário desse discurso da tecnociência, enfatizou a divisão entre o sujeito e sua imagem. A ideia de si mesmo como um corpo implica uma crença, a crença de tê-lo diante do fato que ele, o corpo, escapa o tempo todo. O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN [1975-1976], 2007 p. 64).

É o que nos ensina Samantha, uma garota de 12 anos que, após ter passado por uma TCC e serem constatados problemas relativos ao corpo, nomeados desordem do movimento postural-ocular e déficit de integração, chega à análise. Tratado como um caso de um organismo defeituoso, como um transtorno, nada do corpo, como caixa de ressonância do gozo de lalíngua, é vislumbrado nesse tratamento. Como consequência, seu modo singular de vivificação e amarração desse corpo vacilante, que ameaçava escapar o tempo todo, foi desconsiderado. É durante o tratamento analítico que Samantha inventa uma solução validada pela analista: ela passa a se utilizar do cosplay1, um recurso imaginário que lhe permitiu dar consistência ao seu corpo e protegê-lo de um gozo devastador.

 


Referências
AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007
LAURENT, É. As TCCs não fazem parte do programa cognitivo. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
LAURENT, É. El cognitivismo o el cuerpo sinthomatizado. In: Blog-Note del sintoma. Buenos Aires: Tres Haches, 2006.
LAURENT, É. El atravesamiento del sistema de la ciência. In: El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches, 2010.
LAURENT, É. O falasser político. In: O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
MILLER, J.-A.  Elementos de biologia lacaniana. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – MG, 1999.

1. Cosplay é um termo em inglês, formado pela junção das palavras costume (fantasia) e roleplay (brincadeira ou interpretação). É considerado um hobby no qual os participantes se fantasiam de personagens fictícios da cultura pop japonesa. 



Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat
Psicanalista, doutora pelo Programa
de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ
clarisse.boechat@gmail.com

 

Resumo: Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época.

Palavras-chave: Psicanálise; presença; ruas; errância.

ABOUT A CERTAIN PRESENCE OF PSYCHOANALYSIS IN THE STREETS

Abstract: In this text, I return to questions that emerged from the experience of working on the streets of the city of Rio de Janeiro, between 2012 and 2019, and the lessons I was able to extract from that. Highlighting especially the wandering that the streets showed me as one of the names of the real of our time. From that, it was possible to locate and point out what, for each one, worked as guidance, as well as sustain our bet on the “errant methods” of those I have met. The work turned out to be a learning experience, coinciding with what I also find in my, more traditional, clinical practice. Whether in the office or on the streets, wandering seems to present itself as a privileged mode of operation in times when the Name-of-theFather no longer serves as the main highway. As we live in a wandering world, the patients who come to us in our offices are also taken by their own wanderings and atypical solutions, as a symptom of our time.

Keywords: Psychoanalysis; presence; streetswandering.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Retomo, neste texto, questões que começaram a surgir a partir do trabalho iniciado em 2012, como psicóloga do Consultório na Rua do Centro do Rio de Janeiro. A primeira delas tornou-se mais consistente no título de minha tese de doutorado1: “Quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?”. Para respondê-la procurei localizar o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico. Em outros termos, considerando as grandes diferenças entre os encontros que aconteciam nas ruas e uma experiência de análise, qual é a pertinência do interesse da psicanálise em relação a um campo, à primeira vista, tão distinto daquele das análises tradicionais? As experiências de errância das ruas nos ensinariam sobre a abordagem psicanalítica dos sintomas ou é muito mais a experiência com essa abordagem que pode orientar nossas intervenções nas ruas?

Tais questões se endereçaram ao Núcleo de Pesquisa “Práticas da Letra”, ligado ao Instituto de Clínica Psicanalítica da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio. A pesquisa do núcleo, coordenado à época por Ana Lucia Lutterbach-Holck, interrogava os “usos possíveis da psicanálise na cidade”, convocando-a a se fazer presente “nas ruas, de portas abertas a quem possa interessar testemunhar sua experiência” (LUTTERBACH-HOLCK, 2014, p. 43). Dessa aproximação surgiu, num segundo tempo, o ateliê “Escreve-se história”, que funcionou semanalmente em frente à Central do Brasil, entre 2014 e 2019, permitindo-nos estar em contato com o que me parece possível considerar como a presença do real na cidade.

Nesse ateliê, uma dupla de psicanalistas se colocava em uma calçada próxima a essa Central, sob o anúncio “Escreve-se história”, com um banquinho reservado a quem se aproximasse. A este, dizíamos algo como “caso queira nos contar uma história, podemos escrevê-la e entregá-la, ao final, para você”. Enquanto o primeiro integrante da dupla se oferecia como destinatário, ouvindo a história, o segundo operava como uma espécie de “escrevente” e, em silêncio, registrava os pontos que se destacavam quando um pedestre tomava a posição de narrador de sua experiência. Ao fim, oferecíamos o original, ficávamos com uma cópia do material e, caso houvesse interesse, dávamos um cartão com data e horário do próximo encontro.

Ofertávamos a escuta e a escrita daquilo que, na abertura ao imprevisto, em uma fala, se precipita, ressoa, causados pelo desejo de ler a cidade de nosso tempo, inventando formas de ocupá-la. Contudo, essa ocupação das ruas, embora tivesse como bússola a psicanálise, não deu margem a experiências que pudessem ser chamadas de análise. Do ponto de vista mais formal, que tampouco demarca o que é uma análise, havia uma radicalidade no despojamento do setting. Os atendimentos eram feitos em meio a carros e transeuntes; não havia pagamento nem como recolhermos os efeitos do só-depois — pois muitas vezes o depois não existia, devido ao trânsito mesmo daqueles com os quais pontualmente nos encontrávamos.

A oferta de escuta e registro das histórias que alguns teriam a nos contar foi o ponto de partida para que pudessem, cada qual a seu modo, e de formas muito distintas, servir-se daquela espécie de trabalho de “edição” que fazíamos sobre o que nos ressoava como orientação. Tanto o “ouvinte” das histórias quanto seu “escrevente” tinham a função de “editar” o “texto” que nos era endereçado. Por vezes, tal “edição” consistia em apontar o que se esboçava como uma localização subjetiva; em outras, havia a tentativa de instauração de um espaçamento mínimo, localizando frestas que furassem a consistência de um Outro invasivo, permitindo-nos apostas nas possibilidades de uma extração de algo perturbador; e ainda, em certas ocasiões, visávamos aos significantes que indicavam uma modalidade de gozo, seja pela possibilidade de ela se constituir como ancoragem, seja pela aposta de promover algum descolamento. Buscávamos extrair, da errância, uma leitura, na medida em que pudéssemos seguir o fio daquelas andanças, nos constituindo como lugar de endereçamento e, a partir daí, víamos se era possível apostar na localização de um fio, por vezes roto e puído, daquelas histórias.

Certa vez, perguntei a uma mulher o seu nome, ao que, de uma só vez, respondeu: “Maria da Silva. Vim do Maranhão depois que me tiraram à força pra fazer sexo. Minha irmã não conseguiu fazer nada (chora). Meu irmão mais velho morreu cortado pra me defender”. Interrogo: “Como você se virou?”. Ela diz: “Tomando distância. Porque eu meto a faca, se eu voltar é pra matar ou morrer”. Em casos assim, tentávamos recolher algo que funcionasse como uma espécie de orientação vital. Digo a ela: “sua vinda foi uma aposta na vida”, apontando, mesmo diante do horror, para a dimensão vivificante dessa escolha que se impôs.

Era recorrente que aquelas histórias fizessem referência a um antes e um depois de acontecimentos que desfizeram arranjos com os quais seus narradores se sustentavam, deixando-os sem uma rede de proteção e expostos à queda de identificações que os ligavam ao Outro, que os inseriam no laço social, levando-os, com certa frequência, a desmoronar feito um castelo de cartas diante do sopro de uma infeliz contingência. Acontecimentos dessa natureza parecem apontar para o furo de um real traumático, frente ao qual a rua responde como espaço para a errância.

Tocar em amarrações tão vitais requer um manejo delicado para, por exemplo, não destacar uma identificação mortífera, abrir buracos em estradas acidentadas demais, sob o risco de interditá-las. Diante de tamanhas devastações, estávamos atentos ao que despontava como recurso, orientação, extraindo os “pontos cardeais” que o “escrevente” tomava como norteadores naquelas histórias. O que chamamos de “pontos cardeais” são os arranjos e soluções que apostávamos fazer a função de ancoragem diante daquilo que, para cada um, apresentava-se como deriva: pequenas bússolas que operassem como orientação.

Em “O exílio e a identificação”, Cristiane Alberti aborda questões relativas ao exílio estrutural do falasser em relação à linguagem, mas também quanto à perspectiva mais radical do exílio, que nos chamou a atenção pela proximidade com o que as ruas apresentam: “Destaquemos aqui que alguns sujeitos estão sempre fora de, jamais em casa, um exílio existencial, nenhum lugar, parte alguma” (ALBERTI, C., 2020, n.p.). Entendemos que “nenhum lugar”, “parte alguma” apontam para uma metonímia incessante, marca do que não se localiza, excesso de extravio. O que chamamos de errância relaciona-se a essa deriva pulsional, em que o circuito da fantasia, a formalização de um sintoma, ou mesmo a consistência de um delírio, não se apresentam de forma tão localizável.

A errância no ensino de Lacan não possui o estatuto de um conceito nem é um tema recorrente em seus seminários. Mas podemos nos ater aqui à menção que lhe é feita no título de seu Seminário 21: les non-dupes errent, que joga com a homofonia que remete tanto aos “não-tolos erram” quanto à pluralização de “Os Nomes-do-Pai”, apontando para as soluções atípicas que um sujeito pode lançar mão para se virar na vida. A temática da errância, tal como Lacan a esboça ali (1973-74, inédito), pode constituir-se como fio condutor de uma clínica que precisa se haver com impasses e soluções surgidas quando o Nome-do-Pai não se faz estrada principal que orienta os caminhos. Ao contrário, na errância há a iteração insistente do Um do gozo desarticulado de um itinerário ou mesmo do que pode se apresentar como montagem da pulsão.

Tal errância se traduz como certo “desenraizamento” e nos evidencia o que se passa quando um sujeito perde o que poderia ter-lhe sido referenciais, vendo-se ultrapassado pela iteração do Um do gozo, sem sentido. Os não-tolos, segundo Lacan, são aqueles que se apresentam como errantes, porque se fixariam à pretensão de seguir sempre a direção inequívoca que a iteração comporta, ou mesmo nos mandamentos provenientes do supereu e nas rotas determinadas pelo Nome-do-Pai.

Fernanda Otoni-Brisset, em “O povo e a peste”, testemunha, de sua prática na rede pública “junto a pessoas sem renda, sem documentos, sem trabalho, sem família, sem teto, sem lei, sem razão, sem muita coisa” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.), e situa que eles têm muito a dizer quando encontram um analista: “Diria que portam sem saber, um saber que não é suposto. Um saber a forçar suas escolhas, de forma irrecusável” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.). Otoni parece também se encontrar com o que nomeamos como a dimensão da iteração presente na errância, que, em seu texto, tender-se-ia a localizar como “esse saber a forçar suas escolhas” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.).

Eis o desafio: como nos incluirmos como destinatários do endereçamento de um saber que se sabe sozinho, que não é suposto? Diante da dimensão implacável da iteração do gozo descolada da suposição de saber no Outro, cabe, ao analista, a aposta de fazer incluir nesses circuitos, a fim de se constituir como parceiro, por exemplo, na relação com o gozo opaco do Um, que itera, instaurando uma modesta margem de manobra a partir do saber que se recolhe.

Quando Claudionor pergunta meu nome e lhe respondo “Clarisse”, ele observa: “Olha! 2 C: Claudionor e Clarisse”. Em seguida, diz que gostaria de escrever um livro com dedicatória para 3 K. Destaco: “Você gosta de letras!”. Ele diz que sim, me mostra uma tatuagem com o 3K, explicando se tratar da inicial dos nomes das três filhas. A letra K surgiu quando aguardava o nascimento de sua primeira filha na maternidade, ao ler uma revista em quadrinhos em que tinha uma mulher chamada Kelly: “Fiquei com o K e escolhi o nome de Késia pra ela”. Ou seja, esse K ele extrai no momento do nascimento de sua primeira filha, parindo um significante que lhe permitiu ser pai. Desse K, retirado da revista, partirão os nomes das demais filhas: Késia, Keyla, Kamile — 3K. O que recolhemos dos encontros, que duraram cerca de um ano, nos ensina sobre o uso sinthomático do 3K, invenção marcada pela tolice de se deixar guiar por essa espécie de Um sozinho, que lhe orienta a deriva, a lógica de sua errância, funcionando à semelhança de um itinerário.

Seguíamos aqueles sujeitos em seu ir-e-vir, às vezes sem rumo, buscando fazer ressoarem as formas pelas quais eles poderiam se valer de seus próprios arranjos, inventando ou aprimorando modos de lidar com o gozo que itera sempre em suas derivas.

Jacques-Allain Miller, em O parceiro sintoma (2008), considera o sinthoma, no último Lacan, como uma construção que envolve uma parte de gozo solta e uma parte de gozo apreendido no âmbito do discurso. Nessa dimensão sinthomática, os itinerários, as montagens, podem ser variados — são formas de dar lugar à errância inerente ao gozo, que é sempre singular.

Ao nos fazermos presentes nas ruas, com a psicanálise, nos acostamentos e “quebradas”, no burburinho caótico da cidade, às margens da rodovia do Nome-do-Pai, aprendemos a garimpar os “pontos cardeais” que podem fazer as vezes de caminhos, conforme Sérgio Laia nos indica mostrando que as errâncias possuem seus próprios métodos sinthomáticos. Fora da estrada principal, mas também não deixando os falasseres imersos na solidão do Um-sozinho, podemos encontrar invenções marcadas por esse norteamento de se fazer tolo de um real, para que se possa dar outro lugar a um gozo que é errante e próprio de cada um. Nos casos que acompanhamos, buscamos situar nossa aposta quanto a um norteamento, ainda que esse trabalho não tenha passado, necessariamente, pela construção da fantasia ou de uma estabilização via construção delirante. Esse norteamento pôde, em alguns casos, fazer as vezes de um itinerário, acolhendo a errância do gozo em vez de pretender, em vão, contê-la. Essa era a parceria a que nos oferecíamos: seguir os indícios — que, com o Lacan do Seminário, livro 23, podemos situar como sinthomáticos — daqueles sujeitos que se endereçavam a nós para que lhes escrevêssemos suas histórias errantes.

Seja nas ruas, seja no consultório, a psicanálise se vale dos desarranjos da rotina; é nessa lacuna que relampeja o que mostra a efetividade do discurso analítico em sua via de extrair, onde quer que ele se aplique, enunciações com efeitos de verdade, ancoragens, deslocamentos, leituras, enfim. Também no consultório testemunhamos do mal-estar próprio ao nosso tempo, da iteração do gozo mais além de qualquer enquadre ou norma, quando a estrada principal do Nome-do-Pai já não faz mais tanto as vezes da grande rodovia.

Então, abordamos a errância como um dos nomes do real que as ruas, ao mesmo tempo, acolhem e dispersam, mas, na medida em que vivemos em um mundo errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são também tomados por suas próprias errâncias, como um sintoma de nossa época. A errância diz respeito ao que, do gozo, não se normatiza nem se normaliza, não sendo propriamente específica da neurose ou da psicose, embora possa ser mais disruptiva nos contextos em que o Nome-do-Pai não faz as vezes de norteador.

Em A sociedade do sintoma, Éric Laurent propõe que, “quando o laço se rompe, a cidade se torna o império do vazio, escavado pela escritura, gozo fora do sentido que circula na cidade” (2007, p. 110). As ruas são labirintos por onde o extravio do gozo circula, mas onde ele também se enlaça em arranjos muito singulares, como pude verificar em minha experiência de alcançar as ruas com a psicanálise. Essa presença permitiu-nos testemunhar as formas pelas quais o mais singular de um gozo, que, muitas vezes, dá lugar à segregação, pôde se relançar e até encontrar algum lugar no coletivo em uma renovada, embora muitas vezes lábil, forma de laço social dessegregativo (LAIA, 2020). Um laço que, intermitentemente, pode se enganchar e se desconectar do Outro, compondo diferentes soluções provisórias. Nas ruas ou no consultório, nossa tarefa consiste em instalar pequenas brechas porosas à passagem das operações singulares de cada sujeito, que portam a vitalidade de uma ação psicanalítica extensiva ao campo social. Situado na conjunção entre a clínica e a política, o analista tem como incumbência apostar na emergência da diferença, na abordagem dessegregativa do gozo errante, na diversi-cidade dos laços, tornando-se “aquele que segue” as soluções atípicas (LAURENT, 2018).

 


Referências:
ALBERTI, C. O exílio e a identificação. Disponível em: https://ebp.org.br/rj/2020/10/19/o-exilio-e-a-identificacao/. Último acesso em 09/04/2021.
LACAN, J. (1973-74). O seminário, livro 21: les non dupes-errent. Inédito.
LACAN, J. (1975-76). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAIA, S. O ventríloquo e a biruta analítica: das versões do corpo falante… no momento de conclui. In: Curinga. Nº 49, 2020.
LAURENT, É. A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. In: Opção Lacaniana. Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, n. 79. São Paulo, 2018.
LUTTERBACH-HOCLK, A. L. Sobre o método e o objeto. In: LUTTERBACH-HOLCK, A. L.; GROVA, T. [orgs.] Ao pé da letra: leituras e escrituras na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Subversos, 2014.
MILLER, J-A. Le partenaire-síntoma. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
OTONI-BRISSET, F. O. O povo e a peste. Disponível em: http://lalibertaddepluma.org/fernanda-otoni- brisset-o-povo-e-a-peste/. Último acesso em: 09/04/2021.

1. Tese defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2020, que teve como orientadores Heloisa Caldas e Sérgio Laia.



Modos de presença1

Florencia F. C. Shanahan
Psicanalista, A.P. da NLS/AMP
florenciashanahan@gmail.com

 

Resumo: A autora levanta algumas questões, a partir de sua própria experiência, sobre os modos de presença em uma análise, apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona se haveria um final de análise caso assim permanecesse.

Palavras-chave: presença; analista; fim de análise; virtual.

MODES OF PRESENCE 

Abstract: In this essay the author questions, through her own experience, the modes of presence in an analysis, while recognizing that the online sessions were very important for her. However, she questions if there would’ve been an end of analysis had it continued to be virtual.

Keywords: presence; analyst; end of analysis; virtual.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Penso que a análise não é um quebra-cabeça, mas um mosaico, feito não de peças preexistentes para as quais haveria um lugar predeterminado e cuja disposição daria uma forma toda bem-feita, mas de peças, tesselas que vão cortando, encontrando, descartando ou tirando do outro na transferência, compondo um quadro que não se completa, mesmo que esteja acabado.

Vou tentar dizer algumas coisas. Podem às vezes ser contraditórias. Não respondem a nenhuma pergunta geral. Tampouco, creio eu, se prestam a qualquer dedução. São pequenos fragmentos que emergem no tempo de elaboração em que me encontro. Eles encontrarão um lugar no mosaico que continua a ser criado após o passe.

Meu primeiro analista nunca teve meus dados: nem endereço postal, nem número de telefone. Muitas vezes fantasiei que desaparecia e que ele não poderia me contatar, não saberia onde me procurar, se perguntaria se eu havia morrido. Por quase oito anos assisti religiosamente às sessões de tempo fixo. A três quarteirões de onde morava. Quarenta e cinco minutos. Um enquadramento ritualizado que alimentava meu já excessivo supereu e que mortificava meu corpo. O silêncio e a quietude do analista muitas vezes me deixavam à mercê do mutismo pulsional do qual me tornei parceira. Aprendi ali que o sentido não se engorda apenas com palavras.

O analista que me permitiu sair disso — e encontrar um fim lógico para a experiência do inconsciente do qual sou sujeito — se mexia muito. Ele também falava muito pouco, mas movia seu corpo constantemente. Cortava pedaços de papel freneticamente ou digitava forte no teclado. Ele atendia ligações durante as sessões, às vezes resmungava coisas. Ali aprendi que o silêncio não era do Outro.

Eu poderia ter continuado a seguir a vida se ele não tivesse me atendido por telefone todos os dias quando minha mãe e meu irmão morreram inesperadamente? Não sei.

Poderia ter ido ao encontro do bom furo se ele não tivesse me atendido por Skype, sustentando o olhar na tela, diariamente, por mais de um mês, durante a travessia pela angústia mais radical no tempo da destituição subjetiva que deu passagem ao final? Não acredito.

No entanto, acredito que minha análise não poderia ter concluído se tivesse sido “virtual”. Especialmente porque o impulso de sair surgiu, como relatei em meu primeiro testemunho, a partir do momento em que deixei meu isqueiro no divã. Sem dúvida, isso não poderia ter acontecido em uma sessão telefônica ou por chamada de vídeo. Aquele pequeno objeto que fica para trás imprime a urgência que me faz pegar um avião para voltar; e abre a porta da última sessão. A voz como objeto, como entrou em jogo em minha análise — em sua extração e incorporação — não é de forma alguma a voz da comunicação. Sobre isso tentarei avançar em meu próximo escrito.

Sem dúvida, a prática on-line ou por telefone existe. É um fato. Que estatuto tem? As questões que derivam disso dizem respeito à psicanálise como tal, e não apenas a que circunstâncias atuais elas nos confrontam.

Acho que se trata, sobretudo, de encontrar posições na enunciação que vão na direção do que Lacan chamou de bem-dizer e contra as posições que a neurose está sempre pronta a alimentar: buscar explicações para o que se faz ou deixa de fazer; tentar obter do Outro a validação do que se faz ou não; forçar os pinos a entrar nos buraquinhos para acomodar o real à realidade…

Trata-se de não se preparar muito rápido para dizer o que é psicanálise e o que não é, ignorando a implicação de um desejo singular na base de cada ato que, como tal, não tem garantia. Trata-se de não se sustentar, na tradição, os significantes congelados na boca da autoridade ou o saber morto do que já foi dito, com a ilusão de proteger a psicanálise de sua degradação fantasiada.

Obviamente, quando se trata de justificar a prática em si como meio de subsistência2, ou sua permanência no mercado como mais um dos objetos oferecidos para consumo, aí o problema é outro. E diz respeito à formação do analista.
Tradução: Rodrigo Almeida

Revisão: Cecília Batista

 


1. Texto originalmente publicado em: https://zadigespana.com/2020/04/11/coronavirus-modos-de-la-presencia/.

2. Pergunta feita por Lacan em seu último texto escrito, “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567.

 

 




Defender-se de uma incompatibilidade na vida representativa

Virgínia Carvalho
Psicanalista, membro da EBP/AMP, doutora
e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.
virginiacarvalhopsicanalise@gmail.com

 

Resumo: A autora trabalha a noção lacaniana de “des-montar” (déranger) a defesa a partir de uma releitura dos textos de Freud “As neuropsicoses de defesa” (1894) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896), nos quais localiza a “incompatibilidade na vida representativa” como o ponto chave do qual o sujeito se defende, indicando algumas perspectivas clínicas dessa concepção.

Palavras-chave: Defesa; clínica psicanalítica; pulsão.

TO DEFEND FROM AN INCOMPATIBILITY IN A REPRESENTATIVE LIFE
Abstract: The author works with the Lacanian notion of “dis-assembling” (déranger) the defense, based on a reading of the Freud’s texts The neuropsychoses of defense (1894), and Additional observations on the neuropsychoses of defense (1896), in which she localizes the “incompatibility in representative life” as the key point from which the subject defends himself. She also indicates some clinical perspectives of this notion.

Keywords: Defense; psychoanalytic clinic; drive.

 

CAROLINA BOTURA. SHEILA NAJIG

 

Na 58ª edição das Lições Introdutórias à Psicanálise, propusemos o desafio de ler Freud a partir da orientação lacaniana de que des-montar a defesa é o “coração”, a matriz mesma da operação analítica (MILLER, 2020, p. 36). O termo utilizado por Lacan é dérange, que optamos por traduzir como desmontar, desordenar. Também incluímos um hífen no des-montar para realçar a ideia de que há uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa. Essa “des-montagem” parece se aproximar do que vemos no trabalho Disassembled/Things come apart, do fotógrafo Todd McLellan (2013). O artista desmonta alguns objetos e faz desses objetos desmontados uma bela e interessante nova montagem. As fotos encontram-se disponíveis em seu site.

Ler Freud com Lacan, Lacan com Freud e Miller fazendo a costura: eis nossa metodologia de trabalho. Mas é preciso fazer isso sem apagar a complexidade do texto freudiano. Em seu seminário sobre as psicoses, o Seminário 3 (1955-1956), Lacan nos orienta nesse desafio que é ler Freud:

“só mesmo ele [Freud] é que, em vida, tenha preparado os conceitos originais necessários a atacar e ordenar o campo novo em que descobria. Esses conceitos, ele os prepara cada um com um mundo de questões. O que há de interessante em Freud é que ele não as dissimula, essas questões. Cada um de seus textos é um texto problemático, de tal modo que ler Freud é reabrir as questões” (LACAN, 1955-1956/1995, p. 128).

Com-texto

Centrar-nos-emos sobre dois textos cuja temporalidade remonta a um tempo anterior ao que Freud localiza como o da “psicanálise propriamente dita” (1925/1996): “As neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1896/1996). Ambos são anteriores ao abandono por Freud da teoria da sedução, ou seja, ele ainda acreditava que a experiência traumática da qual seus pacientes lhe falavam referia-se a reminiscências de episódios de abuso ocorridos na infância, algum tipo de sedução por um adulto. É somente três anos após esses textos que Freud escreve a Fliess sua “Carta 69” (1892-1899/1996), dizendo que não acreditava mais em sua neurótica.

Em 1897, duas questões o atordoavam: por que ainda não havia sido possível levar uma análise à sua conclusão real e exitosa?, será que todos os pais são perversos e abusam de suas filhas? Como resposta, Freud se deparou com o papel “extraordinariamente grande desempenhado na vida mental dos neuróticos pelas atividades da fantasia” (FREUD, 1924/2016). Isso o fez constatar o “erro” que cometia ao privilegiar a sedução como um fato e, ao mesmo tempo, permitiu-lhe sustentar ainda mais a ideia de que, no psiquismo humano, existe uma instância em que a verdade e a ficção coexistem lado a lado (FREUD, 1892-1899/1996), o inconsciente.

Em 1925, ao revisitar a cena do abandono da teoria da sedução, conclui que tal abandono implicava em reconhecer que “os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade efetiva” (FREUD, 1925/1996, p. 29). Isso nos leva à ideia que vem sendo trabalhada por Miller a respeito de que, em Freud, tudo é sonho e que todo mundo é louco — mas não nos apressemos com isso.

Também convém lembrar que, quando escreveu “Neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996), ele ainda não dispunha de uma teoria consistente do recalque — o que se consolidou melhor em sua metapsicologia, em 1915, quando o relaciona ao “pilar sobre o qual repousa o edifício da psicanálise” (FREUD, 1915/2010), mas que ele localiza ainda mais no texto sobre “Inibição, sintoma e angústia” (FREUD, 1926/1996), que será posteriormente trabalhado aqui. Também não havia formulado suas constatações acerca da pulsão de morte, o que vai acontecer em 1920, não sem antes questionar de diversas formas sua maneira de formalizar o conceito de pulsão.

Inicialmente, Freud (1910/1996) considerava que havia dois grupos distintos de pulsão. Um que estava a serviço da autoconservação, que nomeou de pulsões do Eu, e outro que serviria às demandas sexuais. Esse primeiro dualismo pulsional ancorava suas bases no poeta Schiller, que acreditava que “fome e amor” moviam as engrenagens do mundo. Em “A perturbação psicogênica da visão” (1910/1996), Freud nos dá algumas imagens para compreendermos como uma mesma fonte poderia obedecer às duas correntes pulsionais. Diz Freud:

“A boca serve tanto para beijar como para comer e para falar; os olhos percebem não só alterações no mundo externo, que são importantes para a preservação da vida, como também as características dos objetos que os fazem ser escolhidos como objetos de amor — seus encantos” (FREUD, 1910/1996, p. 201).

Segundo Freud nos indica em sua conferência sobre “Angústia e vida pulsional” (1932/1996), quando começa a estudar o Eu e se aprofunda no conceito de narcisismo, “a distinção entre pulsão do Eu e sexual perde o sentido”, já que o Eu é sempre o principal reservatório da libido. Nesse momento, abrem-se algumas perguntas para ele sobre um tipo de pulsão bastante destrutiva, que revela uma propensão a restaurar uma situação anterior, um retorno ao inorgânico: uma “estranha pulsão que se volta para a destruição de sua própria morada orgânica essencial” (FREUD, 1932/1996). Desse modo, a hipótese de Freud passa a ser a de que existiriam duas classes de pulsão: “as pulsões sexuais, compreendidas no sentido mais amplo — Eros, se preferem esse nome —, e as pulsões agressivas, cuja finalidade é a destruição” (1932/1996, p. 129). A ideia freudiana de que vida e morte se mesclam no processo de viver e que as pulsões de morte estariam amalgamadas às de vida permitiu a Lacan (1964/1998) considerar que a pulsão é pulsão de morte e que a pulsão de vida já seria um tratamento dado à pulsão.

A pulsão é considerada por Lacan (1964/1998) um dos mais importantes conceitos fundamentais da psicanálise. Segundo a metapsicologia de Freud (1915/2016), elas podem ser consideradas “uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico, em decorrência de sua relação com o corporal” (p. 25). Por isso é um “conceito fronteiriço entre o anímico e o somático” (FREUD, 1915/2016, p. 25). Ela é uma pressão (drang) constante, da qual não se pode fugir, e que tem como meta a satisfação. Como esta implicaria numa suspensão do estímulo corporal, e isso não é possível, a pulsão insiste como demanda. Sua fonte é corporal, mas seu objeto é o que há de mais variável, pois não está nunca atrelado a ela. É sempre um objeto faltoso, pois será sempre um substituto, o que está escrito por Freud, nos “Três ensaios sobre a sexualidade”, do seguinte modo: “o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (1905/1996, p. 210). Lacan (1964/1998) a configura como uma montagem surrealista, tal como um sujeito acéfalo, sem pé nem cabeça.

A pulsão não pode ser satisfeita nem eliminada, no entanto, pode sofrer alguns destinos. Freud (1915/2016) enumerou quatro: 1) reversão em seu oposto, que seria a mudança da finalidade da pulsão, como a mudança de atividade para passividade; 2) retorno em direção à própria pessoa; 3) sublimação, que consiste na modificação da finalidade sexual da pulsão para uma finalidade não sexual e também em uma inibição do alvo, sem restrição da intensidade; e o 4) recalque, que consiste na separação entre a ideia e o afeto que a acompanha, mantendo a ideia afastada da consciência.

O recalque ganhou um texto próprio, e, nesse, Freud (1915/2010) o articula à formação dos sintomas, sendo estes últimos seus derivados. Indica que é o recalque originário (Urverdrangung) o responsável pela divisão entre os sistemas pré-consciente/consciente e inconsciente e que esse primeiro recalque consiste em negar o acesso do representante pulsional à consciência, através de um “contrainvestimento” (1915/2016). O recalque propriamente dito é o que vai cuidar de sua continuidade e funciona mantendo uma ideia afastada da consciência.

Mas o recalque é a defesa? Freud  os separa e os mistura, chegando a localizar, no texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1996), que o recalque não é a mesma coisa que a defesa, classificando o recalque como “um caso especial de defesa”, pois a defesa seria algo “que pode abranger todos os processos que tenham a mesma finalidade — a saber, a proteção do eu contra as exigências” pulsionais (p. 159). Miller (2020) nos ajuda a entender a ideia de que a defesa não se equivale ao recalque. Enquanto o recalque incide sobre o significante, separando a ideia do afeto, a defesa não recairia sobre um significante. Ela qualifica, já em Freud, “uma relação com a pulsão” (MILLER, 2020, p. 52). A defesa é defesa ao real. Falarei sobre isso depois.

Feito esse com-texto freudiano, podemos agora retornar aos textos de 1894 e 1896 para entendermos melhor o que Freud chama de “incompatibilidade na vida representativa” e nos permitirmos, ainda hoje, cento e vinte seis anos após, a aprender com Freud sem nos apressarmos tanto para chegar ao ultimíssimo Miller.

A incompatibilidade representativa

Adentremos, então, em “As neuropsicoses de defesa”, cujo subtítulo é “tentativa de formulação de uma teoria da histeria adquirida, de muitas fobias e obsessões e de certas psicoses alucinatórias” (FREUD, 1894/1996). Isso nos dá uma orientação sobre o rumo que Freud imprime a esse texto: há algo comum entre a neurose histérica, a neurose obsessiva, a fobia e a psicose. Embora circunscreva esse ponto em comum, em nenhum momento Freud iguala essas categorias, borrando suas diferenças. Não faz uma despatologização, como a que tem ocorrido em nossa cultura e que Miller (2022) vem apontando como uma “igualdade” que acaba por apagar a clínica, dando lugar a uma substituição dos princípios clínicos por princípios jurídicos, já que tudo passa a se relacionar a estilos de vida. Não sei se vocês estariam de acordo, mas me pareceu que, nesse texto de Freud (1894/1996), fica evidente seu esforço, com os recursos que tem naquele momento, para dar lugar à loucura de cada um.

Leio a questão central desses textos da seguinte maneira: “como alguém pode não se defender?”. Isso me faz lembrar a pergunta feita por Lacan em seu Seminário 23 (1975-1976/2007), a propósito do paciente que relatava sofrer de “falas impostas”, dizendo-se afetado pela telepatia, de modo que todo mundo era avisado de suas reflexões. O “telepata emissor” havia tentado se matar, tamanho sofrimento na experiência desses fenômenos elementares. Joyce também vivenciava essa sensação de “palavras impostas”, uma vez que sua relação própria com as palavras evidencia o modo como as “experimenta como algo estranho, heterogêneo, ‘imposto’, que não vai por si” (MANDIL, 2003, p. 249). Joyce produz um anteparo ao caráter excessivamente vivo da linguagem, desarticulando-a. Mas, para fazer tal desarticulação, ele preserva a letra, mantendo sua escrita em inglês (MANDIL, 2003). Lacan (1975-1976/2007) destaca que a escrita deu um tratamento à dimensão parasita que está presente para todo falasser: “a questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (p. 92).

Em Freud (1894/1996), ao buscar em sua experiência clínica alguma resposta, indica:

“Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento em que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa — isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento” (p. 55).

Luiz Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud (1996), se dedica ao termo unverträglich (p. 277). Quer dizer inassimilável, indigesto (faz mal à saúde), inconciliável, intratável e aponta para uma impossibilidade de coexistência. Hanns (1996) concorda com a tradução de “incompatível” presente na Imago, mas aponta que, com ela, “perde-se a ideia de uma incompatibilidade visceral, bem como a noção de que se trata de uma impossibilidade de coexistência” (p. 281). Interessante nos perguntarmos sobre o que seria essa “representação incompatível” de que Freud tanto fala. Estaríamos aí no terreno que Lacan nos ensinou a ler como o registro do real?

Freud (1894/1996) lembra que seus pacientes histéricos “conseguem recordar com toda precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de ‘expulsar aquilo para longe’, de não pensar no assunto, de suprimi-lo” (p. 55). Como faz Elizabeth Von R., que se culpava por pensar em um rapaz que lhe causara uma “leve impressão erótica” justamente no momento de cuidar de seu pai enfermo, ou Miss Lucy, ao experimentar um sentimento de paixão por seu patrão. Indico a vocês retomar os casos trabalhados por Freud em seus “Estudos sobre a histeria” (1893-1895/2016), texto que se encontra no segundo volume das Obras Completas.

Em “As neuropsicoses de defesa” (1894/1996), Freud ressalta que o fato de nos defendermos não é patológico. Os sintomas que levam os sujeitos a procurar uma análise surgem, ao contrário, quando a defesa não funciona: quando “esse tipo de esquecimento não funcionou” (FREUD, 1894/1996, p. 55). Quando a defesa não é eficaz, há uma série de reações patológicas.

O eu se impõe uma tarefa, em sua atitude defensiva, de tratar a representação incompatível como “non-arrivé”, como se ela não tivesse chegado. Mas o que ocorre é que “tanto o traço mnêmico quanto o afeto ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não podem ser erradicados” (FREUD, 1894/1996, p. 56). O eu promove, então, uma transformação dessa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto. Separa-se, portanto, o afeto e a ideia, o que Freud mais adiante vai formalizar como sendo o mecanismo do recalque.

O afeto que resta livre precisa ser utilizado de alguma forma, e, nesse texto de 1894, Freud localiza que histeria, fobia e neurose obsessiva se encontram nesse modo de funcionar, mas não de forma semelhante. Embora todos eles tentem se defender da “representação incompatível”, a maneira como fazem com esse afeto livre é distinta. Vejamos essa distinção tão clínica que Freud nos apresenta.

Na histeria, esse afeto se converte em algo somático. Como ocorre com Miss Lucy, que procura Freud com uma “rinite supurativa cronicamente recorrente”, aparentemente derivada de uma cárie no osso etmoide, mas que persistia sem que seu colega clínico pudesse continuar atribuindo o problema “a uma afecção local” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134). Ela havia perdido todo o sentido do olfato e “era quase continuamente perseguida por uma ou duas sensações olfativas subjetivas, que lhe eram muito aflitivas. Além disso, estava desanimada e fatigada e se queixava de peso na cabeça, pouco apetite e perda de eficiência” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134).

Ela constantemente sentia um cheiro perturbador de pudim queimado, sintoma que foi “o ponto de partida da análise”. Nessa, Miss Lucy trouxe à luz a primeira lembrança desse cheiro, e os desdobramentos do caso mostram que Freud tentava localizar nesse momento algo que pudesse levá-lo à representação incompatível. Nos “Estudos sobre a histeria”, vemos o movimento de Freud (1893-1895/2016) de tentar levantar a barreira imposta pelo recalque. Miss Lucy havia chegado à ideia de que sua paixão pelo patrão era sua fonte de sofrimento, e isso tornou desnecessário o sintoma de sentir cheiro de pudim queimado, porém, abriu caminho para um deslocamento, passando a experimentar um outro odor: o de fumaça de charuto. Freud (1893-1895/2016) relata não ter ficado “muito satisfeito com os resultados do tratamento”. Em suas palavras: “eu apenas eliminara um sintoma só para que seu lugar fosse ocupado por outro” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 145). Ele segue ainda o caminho do segundo odor, tentando liberar mais lembranças traumáticas, e chega a uma cena que supõe ter desencadeado os sintomas. Trata-se de um momento em que o patrão havia gritado com ela sem que ela fosse responsável pela situação em questão, o que, em sua concepção, evidenciava sua ausência de sentimentos ternos para com ela. Ao chegarem a essa cena, uma lembrança aflitiva, ela se libera dos sofrimentos que ensejaram o início da análise, que durou nove semanas.

Voltando ao texto que estamos trabalhando, Freud (1894/1996) acreditava que, se na histeria esse afeto livre se transpõe para “enormes somas de excitação para a inervação somática”, na neurose obsessiva haveria uma carência na “aptidão para a conversão” (p. 59). Não obstante, os sujeitos parecem também “rechaçar uma representação incompatível”. Quando tal representação é separada de seu afeto, ele fica obrigado a permanecer na esfera psíquica. Como está livre, “liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa ‘falsa ligação’ tais representações se transformam em representações obsessivas” (FREUD, 1894/1996, p. 59).

No caso do Homem dos Ratos, de 1909, isso fica muito evidente. Vale muito a pena a retomada desse caso, que se encontra no volume X, no texto intitulado “Nota sobre um caso de neurose obsessiva”. Trata-se de um jovem senhor de formação universitária que se apresenta a Freud (1909/1996) com obsessões que o acompanham desde a infância e que se intensificaram nos últimos quatro anos. O caso tem como cenário os ratos (Ratten), que tomam relevo a partir do relato de um castigo feito pelo capitão “cruel” quando prestava o serviço militar. Tal castigo consistia em amarrar o criminoso e introduzir ratos dentro de suas nádegas. Esse relato se transforma em ideia obsessiva, produzindo sintomas que se referem ao termo: Ratten (ratos), Spielratten (ratos de jogo), Raten (prestações, pagamentos), Heiraten (casamentos, acasalamentos). Para Freud (1909/1996), no final das contas, o que se coloca é uma questão sobre sua própria existência como rato, por ver no animal uma “imagem viva de si mesmo” (p. 188).

No início de seu tratamento, o paciente relata a Freud sobre o episódio da morte de seu pai, que ocorreu exatamente no momento em que ele havia se deitado para descansar, enquanto o acompanhava por ocasião da doença no pulmão. Soube, pela enfermeira, que o pai o havia chamado, o que aumentou ainda mais sua recriminação: “passara a tratar a si próprio como criminoso” (FREUD, 1909/1996, p. 156). No caso do Homem dos Ratos, o rato foi o objeto erotizado. É o que faz com que esse sujeito inclua os ratos em sua economia, o que pode ser visto na associação que faz entre “tantos ratos, tantos florins” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 250).

Para Freud (1894/1996), “a obsessão é, em primeiro lugar, a fonte do afeto agora colocado numa falsa ligação” (p. 59). O paciente chega se queixando de suas obsessões, mas o afeto ligado a uma determinada ideia parece estar desalojado e transposto.

No caso de uma substituição da qualidade do afeto, estamos no terreno da fobia: a angústia liberada cuja origem sexual não deva ser lembrada pelo paciente irá apoderar-se das fobias primárias comuns da espécie humana, relacionadas com animais, tempestades, escuridão, e assim por diante, ou de coisas inequivocamente associadas, de um modo ou de outro, com o que é sexual — tais como a micção, a defecação ou, de um modo geral, a sujeira e o contágio. Podemos aqui fazer referência a Hans e sua fobia de cavalos, caso que se encontra no volume XVII sob o título “História de uma neurose infantil” (FREUD, 1909/1996).

Em “Neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/1996) lembra que, embora sejam distintas as maneiras de lidar com o afeto liberado da representação incompatível recalcada, “em todas as situações, é a vida sexual o que desperta o afeto aflitivo”.

Mas, e a psicose? Considero que esses dois textos com os quais estamos trabalhando nos trazem luzes importantes para o trabalho com a psicose, mesmo que sejam ainda muito incipientes e que Freud ainda não tenha localizado a diferenciação entre a defesa e o recalque. Vejamos o que ele escreve:

“a defesa contra a representação incompatível [na neurose] foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas, a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como ‘confusão alucinatória’” (FREUD, 1894/1996, p. 64).

Vemos como Freud, já em 1894, aponta para a rejeição da representação incompatível na psicose, o que Lacan irá trabalhar a partir de sua concepção de foraclusão, que pode ser lida no Seminário 3 (LACAN, 1955-1956/1995).

Interessante o fragmento clínico, trazido por Freud (1894/1996), da moça que experimentava sua paixão por um homem e que acreditava, de modo erotômano, que ele também a amava, e que, diante da recusa deste, vive a chegada do seu amor como um sonho. Freud (1894/1996) lembra que ali “o eu rechaçou a representação incompatível através de uma fuga para a psicose” (p. 65). Ele

“rompe com a representação incompatível; esta porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu obtém esse resultado, também ele se desliga total e parcialmente da realidade. […] Assim, quando a defesa consegue ser levada a termo, ele se encontra num estado de confusão alucinatória” (FREUD, 1894/1996, p. 65).

Freud (1894/1996) conclui o texto com a ideia de que há “três métodos de defesa” (p. 66) e podemos convidar Lacan e Miller para essa conversa, mas não sem antes percorrermos suas “Observações adicionais às neuropsicoses de defesa”, texto de 1896 que nos traz ainda mais elementos. Neste, ele afirma que a defesa é “o ponto nuclear no mecanismo psíquico” tanto da histeria como da neurose obsessiva e da psicose alucinatória (FREUD, 1896/1996).

Ele vai tentando explicar a neurose e a psicose a partir do traço mnêmico deixado por perturbações sexuais vividas antes do advento da maturidade. Na neurose histérica, o afeto vinculado à experiência seria colocado no corpo, enquanto, na neurose obsessiva, se deslocaria para outra ideia. Para ele,

“a natureza da neurose obsessiva pode ser expressa numa fórmula simples. As ideias obsessivas são, invariavelmente, auto-acusações transformadas que reemergiram do recalcamento e que sempre se relacionam com algum ato sexual praticado com prazer na infância” (FREUD, 1896/1996, p. 169).

O sujeito recalca e substitui a lembrança dessas ações prazerosas por “um sintoma primário de defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). A conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança são sintomas dessa espécie, que dão início a um período de aparente saúde mas que, na realidade, apontam para uma defesa bem-sucedida.

“O período seguinte, o da doença, é caracterizado pelo retorno das lembranças recalcadas — isto é, pelo fracasso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). Esse fracasso leva a formações de compromisso entre as representações recalcadas e as recalcadoras; os sintomas. Ele usa um termo interessante, apontando que se trata de um “colapso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 171).

Nesse texto bastante clínico, Freud (1896/1996) mostra algumas estratégias da neurose obsessiva. Considero que nos auxilia grandemente na clínica porque nos ajuda a entender que os sintomas dos quais o obsessivo se queixa no início do tratamento não são a causa de seu sofrimento, mas sim sua maneira de se defender dele. Ou seja, a dúvida, a compulsão, a autoacusação, a ruminação, as medidas penitenciais, a vergonha, a hipocondria, as medidas de proteção e de colecionar objetos, assim como a busca incessante por assegurar “o entorpecimento da mente” são manifestações de uma defesa secundária, diante do colapso da defesa primária.

Diferentemente da neurose, na paranoia a defesa é muito bem sucedida, daí Freud (1896/1996) a considera uma psicose de defesa. Ao mesmo tempo, ele indica que no desencadeamento psicótico haveria um total fracasso da defesa:

“Em vista do que se sabe da paranoia além disso, inclino-me a supor que há um gradual comprometimento das resistências que enfraquecem as auto-acusações, de modo que, por fim, a defesa fracassa por completo e a auto-acusação original, o termo real do insulto de que o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua forma inalterada” (FREUD, 1984/1996, p. 181).

Mais tarde, ele indica que o que foi abolido do simbólico retorna no real.

“Parte dos sintomas provém da defesa primária — a saber, todas as representações delirantes caracterizadas pela desconfiança e pela suspeita e relacionadas à representação de perseguição por outrem” (FREUD, 1896/1996, p. 182).

Outra passagem interessante é quando ele diz que “nenhuma defesa pode valer contra os sintomas de retorno aos quais, como sabemos, liga-se uma crença” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Parece-me que podemos extrair algumas consequências dessa frase quando estivermos nos dedicando a desenvolver algo sobre o delírio.

Na paranoia, a autoacusação é defendida pela projeção, ou seja, a desconfiança passa a ser de outras pessoas: “o sujeito deixa de reconhecer a autoacusação; e como que para compensar isso, fica privado de proteção contra as autoacusações que retornam em suas representações delirantes” (FREUD, 1896/1996, p. 182). Essas autoacusações retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta. As representações delirantes que chegam à consciência através de uma formação de compromisso (os sintomas de retorno) “fazem exigências à atividade de pensamento do eu, até que possam ser aceitos sem contradição” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Assim, o que corresponde aos sintomas de defesa secundária na neurose obsessiva, na psicose se faz como uma formação delirante combinatória: “delírios interpretativos que terminam por uma alteração no eu” (FREUD, 1896/1996, p. 183).

Esse desenvolvimento é realizado por Freud a partir do caso da Sra. P. e evidencia uma certa confusão entre a paranoia e a esquizofrenia, ponto que também no texto anterior se verifica. Digo isso pela nota que ele apresenta em 1924, reforçando que se trata de um caso de dementia paranoides.

A Sra. P., caracterizada por Freud (1894/1996) como “uma mulher inteligente”, levava “uma vida saudável” em seus últimos anos até que o nascimento de seu filho “mostrou os primeiros sinais de sua atual enfermidade” (p. 175). Ela tornou-se pouco comunicativa e desconfiada, acreditando que as pessoas a estavam menosprezando, o que, pouco tempo depois, se transformou numa queixa de que as pessoas liam seus pensamentos e sabiam tudo o que ocorria em sua casa. Isso era transposto a seu corpo e a sensação que ela experimentava em seu baixo abdome era atribuída à certeza de que sua criada, com quem estava a sós, havia tido uma “ideia imprópria” (FREUD, 1894/1996, p. 175). Sentia seus órgãos genitais “como se sente uma mão pesada” e começou a ver coisas que a horrorizavam, como alucinações de mulheres nuas e genitálias femininas e masculinas. Essas imagens a aterrorizavam porque ela também sentia seu corpo exposto. Começou a ser importunada por vozes que a censuravam e passou a não mais querer sair de casa e não se alimentar.

Com Freud, a Sra. P. pôde percorrer algumas cenas infantis, entre elas, uma em que se despia sem nenhuma vergonha na frente de outras crianças, o que leva Freud a considerar que haveria algo por aí. Mas “a depressão da paciente começou na época de uma discussão entre seu marido e seu irmão, em consequência da qual este passou a não mais frequentar sua casa” (FREUD, 1894/1996, p. 178). Ele não dá muitos elementos sobre esse ponto, mas traz uma nova cena em que sua cunhada a visitara e lhe dissera que “em toda família acontecem coisas sobre as quais eu gostaria de pôr uma pedra. Mas quando uma coisa desse tipo acontece comigo, eu a trato com descaso” (FREUD, 1894/1996, p. 178). O significante “descaso” havia impregnado o delírio de P. Seria interessante sabermos mais sobre onde entra o bebê de P. nessa história, mas Freud não nos deu elementos a esse respeito, mesmo tendo localizado que o desencadeamento ocorreu após o nascimento da criança.

No texto que estamos trabalhando, de 1894, Freud afirma que pode reproduzir com sua paciente “várias cenas de seu relacionamento sexual com o irmão” e, nessas revivescências, seu corpo “participou da conversa”, o que nos aponta algo sobre a importância do atendimento presencial. Para ele, “depois de percorrermos essa série de cenas, as sensações e imagens alucinatórias desapareceram e (ao menos até o presente) não retornaram” (FREUD, 1894/1996, p. 179). Não deixem de ler as notas de rodapé escritas por Freud. Elas nos mostram, tal como a arte de Todd McLellan (2013), que há algo que se monta e se des-monta, formando novas montagens. Arranjos e desarranjos.

Des-montar a defesa

O desenvolvimento de Freud nos leva à ideia de que a defesa é algo basal que está presente tanto na neurose como na psicose e que é defesa ao sexual, ou à pulsão, como ele irá trabalhar mais adiante. Em um texto intitulado “Clínica irônica”, de 1988, que vocês encontram publicado no livro Matemas I (1996), Miller indica que nos defendemos do real e que “todos os nossos discursos não passam de defesas contra o real” (p. 190). Lembra que, para Lacan, a clínica psicanalítica é “o real como o impossível de suportar”. Nesse sentido, as formas clínicas não passam de modos de defesa, até mesmo “no caso limite dito esquizofrênico, onde o sujeito aparece sem defesa diante do impossível de suportar” (MILLER, 1996, p. 198).

Miller (1996) considera que “o delírio é universal porque os homens falam e porque há linguagem para eles. Eis, então, o a-b-c ao qual se volta: a linguagem [o Outro] tem como tal, efeito de aniquilamento” (p. 192). Anteriormente, trabalhamos com a ideia de que não há Outro do Outro, ou seja, não há um Outro que diga o verdadeiro sobre o verdadeiro. Para falar com Guimarães Rosa (1956/2019), “mente pouco quem a verdade toda diz”. Nesse sentido, Miller (1996) propõe que nossa clínica seja irônica, ou seja, fundada sobre a inexistência do Outro como defesa contra o real (a neurose tenta fazer existir o Outro, ao preço de um apagamento subjetivo; na psicose, o Outro não está separado do gozo).

Dez anos após, em seu curso sobre A experiência do real na cura psicanalítica, Miller (2014) afirma que “na psicanálise se trata do real e da defesa contra este”. Mas, o que é o real? Milner (2006) nos ajuda na definição dos três registros, real, simbólico e imaginário, do qual depende a estruturação da realidade:

“existem três suposições. A primeira, ou melhor, uma delas, pois já é demais por ordem nisso, por mais arbitrária que seja, é que há: proposição tética que só tem por conteúdo sua própria posição — um gesto de corte, sem o qual não há nada que exista. Chamaremos isso de real ou R. Outra suposição, dita simbólica ou S, é que há alíngua, suposição sem a qual nada, e singularmente nenhuma suposição, poderia ser dita. Uma outra suposição, enfim, é que há semelhante, na qual se institui tudo o que constitui laço: é o imaginário ou I” (p. 7).

Para Lacan (1975-1976/2007), o real é o impossível porque “é sem lei” e “não tem ordem”1 (p. 133). Exatamente por isso, para que o homem possa, talvez, “reencontrar alguma coisa que seja da ordem do real” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 120), é necessário se colocar no lugar de lixo, o que significa dispensar o sentido. Quanto mais tenta apreender o real pelo sentido, mais longe está dele.

Miller (2012) ressalta que o real psicanalítico é desprovido de sentido e não corresponde a nenhum querer-dizer. Ele não é “um cosmo, não é um mundo, nem uma ordem; é um pedaço, um fragmento assistemático porque separado do saber ficcional” (MILLER, 2012, n.p.). O real é o que se produz no choque pulsional do encontro do significante com o corpo. O real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real ao acaso, contingente, na medida em que falta a lei natural da relação entre os sexos. O sentido escapa a esse real e, quando há doação de sentido, ela ocorre através da elucubração da fantasia. Favret, ao se perguntar sobre O que ilumina o passe no Ultimíssimo ensino de Lacan? (2014), propõe que, no final de uma análise, trata-se de como cada um tenta se aproximar de um ponto, de um pedaço de real, apesar de sua opacidade.

Frente ao real, nos defendemos. A defesa, segundo Miller (2014), qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. “A abordagem do real se inscreve em primeiro lugar em termos de defesa, e não de apetite, harmonia ou cálculo” (MILLER, 2014, p. 51). Miller (2012) indica que, “para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se concentrar em desmontar a defesa, desordenar a defesa contra o real”. Em uma análise, o inconsciente transferencial é uma “defesa contra o real”, ou seja, uma tentativa de fazer o Outro existir. Isso ocorre porque, “no inconsciente transferencial, continua vigente uma intenção, um querer dizer, um querer que me seja dito algo” (MILLER, 2012). Isso não ocorre no inconsciente real, que não é intencional, apenas “é”. Isso abriria para mais outra pesquisa que encontraria sua ancoragem no “Prefácio para Edição Inglesa do Seminário 11” (LACAN, 1976/2003).

Essa indicação de que nossa clínica precisa “des-montar a defesa” provém da afirmação lacaniana, em seu Seminário, livro 24: l’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre (LACAN, 1976-1977), de que o falasser fala sozinho e sempre a mesma coisa, a não ser que se abra para falar com um psicanalista e receba deste algo que desordena, desarranja (dérange) sua defesa (LACAN, 1976-1977). Gueguen (2014) propõe a utilização do termo “desmontagem da defesa” em detrimento da expressão “perturbar a defesa”, pois, para ele, “a desmontagem da defesa supõe que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado” (p.103). Nos testemunhos de passe vemos essa des-montagem, assim como buscamos fazer nas construções de casos clínicos. É também essa nossa aposta de leitura ao texto freudiano: des-montá-lo e nos permitir sermos tocados por ele.

 


Referências
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1. Vemos aqui que houve uma modificação no pensamento de Lacan a esse respeito, levando em conta que, no Seminário 11 (1964/1998), ele acreditava que o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar (MILLER, 2012). Jésus Santiago (2022), em A escrita real no passe não é autoficção, indica que “É somente no Seminário ‘De um discurso que não fosse semblante’ que surgem os sinais mais evidentes de uma formulação mais acabada e genuína do real, na medida em que sua concepção se faz sem os instrumentos da linguística. Em outras palavras, o real deixa de estar submetido ao algoritmo do significante/significado e passa a ser distinto tanto do sentido (imaginário) quanto do saber (simbólico)”.



Uma defesa primária

Cristina Drummond
AME da EBP/AMP
paixao.bhe@terra.com.br

 

Resumo: O texto aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Freud situa a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses e delineia a própria concepção do funcionamento da vida psíquica, marcando sua oposição em relação aos seus contemporâneos. Desde o texto “Projeto para uma psicologia científica”, a defesa primária é percorrida tanto através da busca por sua origem quanto pela diferenciação entre defesa normal e patológica. Avançando pelo ensino de Lacan, argumenta-se que a defesa diz respeito à dor, ao corpo, e como cada um pode se virar com esse encontro. A partir dessa premissa, esse conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias, seja quando a desmontagem da defesa faz emergir a pulsão encoberta. A construção pela defesa primária permite buscar, por trás das manifestações sintomáticas, o sujeito do gozo.

Palavras-chave: defesa; direção do tratamento; formação de sintomas.

A PRIMARY DEFENSE

Abstract: The text addresses the importance of the concept of primary defense as the guide of the Freudian-Lacanian clinic. Freud puts the notion of defense at the foreground in psychoneuroses, and outlines the very conception of the functioning of psychic life, marking his opposition to his contemporaries. Since the text Project for a scientific psychology, the primary defense is covered both through the search for its origin and the differentiation between normal and pathological defense. Advancing through Lacan’s teaching, it is argued that defense concerns pain, the body, and how each one can deal with this encounter. From this premise, this concept is presented as a guide in the direction of treatment, whether it is in cases in which the formation of the symptom is structured by the repression and is subject to decryption, allowing the disassembly of meaning in body phenomena, such as drug addictions and anorexias, or when the disassembly of the defense brings out the covert drive. The construction by primary defense allows for finding the subject of jouissance behind the symptomatic manifestations.

Keywords: defense; direction of treatment; symptom formation.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Freud e a defesa primária

Ao colocar a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses, Freud delineou a própria concepção do funcionamento da vida psíquica em oposição aos pontos de vista de seus contemporâneos. Para investigar os primeiros usos do termo, vamos voltar à histeria e às hipóteses sobre a etiologia das psiconeuroses e ao “Projeto para uma psicologia científica”, escrito por Freud em 1895 em apenas três semanas. Ele faz parte dos rascunhos trocados em sua correspondência com Fliess, a qual durou de 1887 a 1902. O projeto ficou inacabado e foi engavetado por Freud, que só voltou a ter contato com o texto em 1937, por intermédio da princesa Maria Bonaparte, que o obteve com a compra das cartas Freud–Fliess. O texto só foi publicado em 1950, 11 anos após a morte de Freud, e ele tornou-se uma referência para o estudo da metapsicologia, pois contém a origem de muitos conceitos.

Apesar de ser um documento neurológico, o projeto mostra o esforço inicial de Freud para compreender a etiologia das neuroses, assim como traz o gérmen do que ele vai desenvolver mais tarde. No “Projeto”, Freud se propõe a formalizar uma doutrina que tem na mecânica newtoniana seus parâmetros científicos, buscando uma base orgânica para as descobertas clínicas oriundas dos atendimentos a pacientes com sintomas neuróticos graves.

Em seu “Projeto para uma psicologia científica”, Freud aborda o problema da defesa de duas maneiras. Em primeiro lugar, ele procura a origem daquilo que chamou de “defesa primária” numa vivência de dor. Em segundo lugar, ele procura diferenciar uma defesa normal de uma defesa patológica. A primeira opera no caso da revivescência de uma experiência penosa, e o ego já começa a diminuir a intensidade do desprazer quando a situação se repete.

Na carta do dia 20 de outubro de 1895, Freud, que ainda se encontrava esperançoso em relação ao “Projeto”, relata a Fliess de que modo sua psicologia tornara-se clara para ele:

[…] as barreiras ergueram-se subitamente, os véus caíram e tudo se tornou transparente — desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar-se, as engrenagens se entrosaram e tive a impressão de que a coisa passara realmente a ser uma máquina que logo funcionaria sozinha. Os três sistemas de neurônios; os estados livres e ligados de Qn; os processos primário e secundário; a tendência principal e a tendência de compromisso do sistema nervoso; as duas regras biológicas de atenção e da defesa; as características de qualidade, realidade e pensamento; o estado do grupo psicossexual; a determinação sexual do recalcamento; e, por fim, os fatores que determinam a consciência como função da percepção — tudo ficou e continua correto até hoje! Naturalmente, mal consigo conter minha alegria (FREUD, 1887–1904/1986, p. 147).

Nessa carta temos um resumo do projeto e ela mostra que Freud queria encaixar o organicismo à sua teoria do Inconsciente em formação. Na carta que inicia em 8 e continua em 10 de novembro daquele ano, ele diz de sua tristeza pela desistência do projeto: “A partir de agora minhas cartas perderão muito de seu conteúdo. Empacotei os manuscritos psicológicos e os atirei numa gaveta, onde dormirão até 1896. […] Desde que pus a ΦΨω de lado, sinto-me abatido e desencantado; creio não estar de modo algum à altura de suas congratulações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 151). E a sua própria avaliação não deixa dúvidas de que ele abre mão de uma relação de superposição entre a neurologia e o mecanismo de recalque:

“Não entendo mais o estado mental em que maquinei a psicologia; não consigo perceber como posso tê-lo infligido a você. Creio que você está sendo polido demais; para mim, parece ter sido uma espécie de loucura. A solução clínica das duas neuroses provavelmente se manterá, depois de algumas modificações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 153).

A primeira utilização do termo “defesa” ocorreu no texto “Neuropsicoses de defesa” (1894). Entretanto, antes disso, Freud já buscava compreender esse processo, mesmo que não o tivesse nomeado assim. O estudo das origens das concepções sobre defesa nos remete às suas investigações acerca do trauma. Freud afirma que as quantidades de energia com as quais um sujeito tem de lidar colocam o psiquismo em funcionamento, pois, das excitações que provêm de fora, o sujeito pode fugir, tal como no modelo do arco-reflexo; mas não pode fugir das excitações internas, o que acarreta a necessidade de estruturas capazes de dar conta da tramitação interna e da descarga adequada das quantidades de energia.

Para Freud (1893/1976, p. 42), a lembrança traumática possui ação contínua e intensa, que não se desgasta com o tempo, pois não houve perda do afeto que está investido nela. O momento que marca o surgimento da doença é aquele em que o indivíduo “se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo” (p. 55). É essa incompatibilidade entre o eu e uma representação que torna necessária a “divisão de consciência”, ou seja, a criação de um segundo grupo psíquico cujo núcleo é recalcado. Nesse momento inicial da concepção da defesa, esse processo é tratado como um ato voluntário de afastar algo tomado como desprazer do psiquismo, e ele não pode ser considerado patológico, já que esse ato de esquecimento intencional é bem sucedido para muitas pessoas. Por isso, Freud (1895/1977) inclui a defesa entre as tendências normais do indivíduo.

Para formular o modelo do funcionamento psíquico, Freud (1895/1977) propõe uma concepção quantitativa dos processos psíquicos com duas noções fundamentais: a de neurônio e a de quantidade (Q). A quantidade é a energia que circula pelos neurônios, podendo ser deslocada e descarregada. A energia transita através dos neurônios, que são capazes de armazená-la. Assim, um neurônio pode estar ocupado, com uma quantidade de excitação, ou desocupado. O sistema nervoso recebe estímulos do mundo externo. A tendência é descarregar-se das quantidades de energia que ingressam pela fuga, seguindo o modelo do arco-reflexo. Mas o sistema nervoso recebe também estímulos endógenos, que precisam ser descarregados, e dos quais o organismo não pode se esquivar. Esses estímulos criam as grandes necessidades, tais como a fome, a respiração, a sexualidade. Diante desses estímulos, o aparelho não pode descarregar toda a quantidade de excitação presente no neurônio, pois é necessário que este sustente um acúmulo de Q, em função das ações necessárias para pôr fim a eles. A partir disso, Freud (1895/1977) diz que a estrutura e o desenvolvimento, assim como as funções dos neurônios, devem ser compreendidos com base no princípio de inércia, que é a tendência a evacuar as quantidades de energia que recebem do mundo externo, com o objetivo de diminuir a excitação presente no neurônio. Com o fracasso dessa evacuação, a tendência do psiquismo passa a ser manter a energia no nível mais baixo possível, o que constitui o princípio de constância.

No início da vida, devido a seu estado de desamparo, o ser humano não consegue provocar uma ação capaz de diminuir a tensão vinda de excitações endógenas. O alívio da tensão só pode ser alcançado se for eliminado o estímulo na fonte endógena. Nesse momento, o sujeito precisa ser auxiliado por outro, que realize uma ação para acabar com o estado de tensão. Quando isso ocorre, essa ação diminui a tensão interna, produzido uma sensação de prazer na consciência. Essa ação é independente da Q endógena, e Freud a chama de ação específica, aquela que possibilitará o que Freud denomina vivência de satisfação. A vivência de satisfação deixa uma marca e fará com que o sujeito, diante de novo estado de tensão, queira que essa se repita. É pela vivência de satisfação que serão construídos os traços mnêmicos. Por meio da vivência de satisfação, devido a um movimento mecânico, a notícia da eliminação da tensão chegará a outros neurônios formando uma trilha preferencial entre neurônios que contêm a imagem mnêmica do objeto da satisfação. Quando outra situação de tensão ocorrer, a imagem do objeto é reinvestida e ocorre algo análogo à percepção, ou seja, uma alucinação. O psiquismo não contém mecanismos internos suficientes para discriminar entre a presença real do objeto da satisfação e a alucinação deste. Assim, torna-se necessário que se adquira um critério para verificar a presença real do objeto da satisfação, a fim de que seja efetuada uma descarga de Q na presença do objeto de desejo, o que efetivamente levaria à satisfação. Do contrário, diante da alucinação, a descarga de Q levaria ao desprazer.

Freud (1895/1977) afirma que as ações humanas se constituem em duas vivências fundamentais: buscar o prazer e evitar a dor. A busca do prazer é indicada como vivência de satisfação. Tanto na vivência de satisfação quanto na vivência de dor, há uma memória que, em determinadas circunstâncias, é acionada. Na busca do prazer, a imagem do objeto de satisfação é reinvestida. No entanto, para que haja de fato uma satisfação da tensão, o objeto tem de estar presente. No caso de um objeto causar dor ao psiquismo, há uma sensação de desprazer, e esse aumento quantitativo induz a eliminação da Q para consequente alívio da tensão. Ocorre ainda um trilhamento entre a tendência à descarga e uma imagem-lembrança do objeto que provoca a dor. Se a imagem do objeto hostil é reinvestida, surge um estado de desprazer com uma tendência à descarga. Esse estado não é propriamente a dor, mas algo que se assemelha a ela e que Freud chama de afeto. Na recordação da dor, há desprazer. O desprazer tem uma origem dupla: no ambiente externo, pelo objeto hostil; internamente, pela recordação. Portanto, evitar a dor terá relação com o não-investimento da imagem mnêmica do objeto hostil.

Isso é o que Freud caracteriza como defesa primária: a desocupação da imagem recordativa hostil. A defesa primária, que é acionada no caso da dor, cumpre a função de gerar uma aversão a manter investida a imagem mnêmica hostil. Portanto, a consequência da defesa primária é gerar prazer, evitando o desprazer. Freud afirma que, além da defesa primária, o psiquismo necessita de mecanismos internos para dar conta da insatisfação que seria gerada a partir da recordação da dor e da catexização da imagem mnêmica do objeto da satisfação sem sua presença real. Daí decorre a importância, para a estruturação psíquica, da vivência da dor e do estado de desejo. Se não existem estruturas internas capazes de inibir o processo alucinatório no caso da dor, há a geração de desprazer. Embora o objeto hostil não esteja presente, o desprazer sentido pela representação é como se fosse real e externo. Da mesma maneira, a catexização do objeto de desejo nos estados de desejo leva ao desprazer, pois há uma eliminação da tensão pelos caminhos facilitados, mas não ocorre a satisfação, pois o objeto de desejo não está lá para propiciá-la. Se a inibição, que é tarefa do ego, não se realiza, há naturalmente uma decepção. Dessa maneira, o ego é um conjunto de neurônios que tem por finalidade inibir a descarga da quantidade quando da ausência do objeto da satisfação. No caso da dor, precisa-se de um signo para a desocupação da imagem recordativa hostil. Essa tarefa do ego se dá pela inibição da descarga de quantidades, pelo processo que Freud denominou de ocupação das vias colaterais, que consiste em inibir a descarga da Q pelos caminhos facilitados, desviando-a para os neurônios colaterais. Se se conseguir realizar a inibição a tempo, não haverá liberação de desprazer. No caso contrário, haverá enorme desprazer e defesa primária excessiva. Esse é o papel do ego. A partir da postulação da inibição da descarga feita pelo ego, Freud distingue os processos psíquicos primários e os secundários. No processo primário, o estado de ligação do ego deixa de ser levado em conta e prevalecem as ligações associativas criadas pela vivência originária, havendo uma indiferenciação entre percepção e alucinação do objeto. Os processos psíquicos secundários se dão a partir da inibição produzida pelo ego. Nesse caso, verifica-se que a defesa primária é menos utilizada nos processos secundários devido à inibição.

A defesa primária é considerada, ao lado da atenção, regra biológica e definida como um repúdio a manter investida a imagem mnêmica hostil da dor, isto é, evitar o desprazer. Contudo, não se podem ignorar as reações de adoecimento encontradas em diversos pacientes, que se devem ao esquecimento ocasionado pela “divisão de consciência” (1894, p. 57). O que determina uma defesa como tendo um caráter patológico é o deslocamento. A ideia que causa desprazer é esquecida, mas outra representação irrompe repetidamente na consciência sem motivo evidente e desencadeia o afeto aflitivo (FREUD, 1895/1977, p. 405-406). Na tentativa de defender-se, o eu se obriga a fazer algo de que não é capaz: erradicar o traço mnêmico e o afeto ligado à representação, “mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto do qual está carregada” (FREUD, 1894/1976, p. 56). Para que a representação incompatível se torne verdadeiramente inócua, é preciso que a soma de excitação que dela foi desvinculada seja utilizada de alguma forma, seja pela conversão, seja pelas falsas ligações das ideias obsessivas, seja pela liberação de angústia.

Há ainda outro tipo de defesa, que, segundo Freud, é mais poderosa e mais bem sucedida do que naqueles casos em que a representação incompatível é separada de seu afeto. Nessa defesa, “o eu rejeita a representação incompatível juntamente com o seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido” (FREUD, 1894/1976, p. 64). Quando isso acontece, o sujeito fica em um estado de confusão alucinatória que pode ser classificado como psicose. Nesse processo de “fuga para a psicose”, o eu rompe com a representação incompatível, que está ligada a uma parte da realidade e, dessa forma, ele acaba por romper com a realidade.

Freud (1895/1977, p. 374) constatou que o recalcamento incide sobretudo sobre as ideias provenientes da vida sexual do sujeito e que despertam no eu um afeto de desprazer. Essas ideias não são realmente extintas. Torna-se necessário que a força recalcadora que atuou no passado continue sua ação através da resistência que é dirigida contra qualquer pensamento que tenha relação com o recalcado. Esse processo é regulado pelo eu. Dessa forma, a defesa passa a adquirir um caráter contínuo, que tem como efeito a resistência evidenciada na clínica. Ao retomar o tema da determinação do processo defensivo patológico, Freud (1896) abandona a questão da hereditariedade como causa mais importante das neuroses e defende o papel da sexualidade na causação tanto das neuroses atuais quanto das psiconeuroses de defesa, ressaltando que, nestas, o psiquismo assume papel essencial através da defesa contra as lembranças traumáticas de experiências sexuais reais ocorridas precocemente.

Tal como Virgínia Carvalho nos indicou na lição anterior, Freud separa e mistura os conceitos de defesa e recalque e, apenas no texto “Inibição, Sintoma e Angústia”, ele pode deixar claro que o recalque não é a mesma coisa que a defesa e toma o recalque como “um caso especial de defesa”, já que ele visa a proteção do eu contra as “exigências pulsionais” (1925–1926/1976, p. 159).

Carvalho retomou os efeitos do recalque separando afeto de representação e seus efeitos de conversão na histeria do seu processo em dois tempos, com deslocamento da representação na neurose obsessiva. O efeito do recalque é o sintoma, mas, nos processos de defesa primária, nem sempre a resposta é a constituição de um sintoma, já que o sintoma decifrável é um recurso do simbólico e ele depende do recalque de um significante.

Nesse sentido, o conceito de defesa não se restringiria ao simbólico, tampouco ao imaginário, já que podemos também tomar todo o recurso ao imaginário como uma defesa diante da precariedade e do desamparo do infans. Se a defesa é defesa ao real, ao encontro com o real, o imaginário e o simbólico se apresentam como maneiras distintas de recobri-lo.

Por isso o conceito de defesa primária, aquela que antecederia o recalque, nos é muito caro, pois ele nos indica que, quando o sujeito não conta com o recurso do sintoma, temos que nos dirigir ao que ele pode construir como defesa diante do primeiro encontro com o real da língua, a como a palavra tocou seu corpo. A defesa primária diz respeito à dor, ao corpo e a como cada um pode se virar com esse encontro.

Da importância de retomar o conceito de defesa

1) A defesa primária é a defesa do real da pulsão

Em primeiro lugar, perguntei-me a respeito da importância de tomarmos o conceito de defesa a partir de um texto que poderíamos dizer ser pré-psicanalítico, já que ele data de cinco anos antes de “A interpretação dos sonhos”. Nessas lições introdutórias, visamos tratar o conceito de defesa até chegar à proposta de Lacan de que a direção de um tratamento se orienta pela perturbação e desmontagem da defesa, o que demanda passar pelos diversos tempos da construção desse conceito. Como Virgínia Carvalho nos trouxe em sua aula anterior, desmontar a defesa é uma operação que incide sobre o gozo autístico, sobre o gozo do Um. É uma formulação de Lacan de 1976, que extrai do caminho de Freud uma indicação precisa sobre a direção do tratamento, e vamos ter que fazer um grande percurso teórico para dar a ela todo o seu valor de orientação.

Para vocês terem uma ideia do que vamos buscar construir nesse percurso, sugiro a escuta do vídeo de Esthela Solano no Boletim Punctum 31. Ali ela fala do que Lacan nos indicava como a direção de uma análise: recuperar um traço de gozo que ex-siste no nível do dizer. Ir além do simbólico e do imaginário para buscar o que uma análise deve visar e que ela chama de um acontecimento de sentido real, aquele que toca o corpo. Se a pulsão é definida como o eco no corpo do fato de que há um dizer, é esse nível real do pulsional que Lacan buscava tocar para além das palavras que o sujeito enuncia, e, para isso, é preciso perturbar a defesa. Perturbar a defesa implica em atrapalhar a homeostase do princípio do prazer ao fazer um sujeito falar sobre aquilo para o que ele se mostra menos disposto, isto é, de suas particularidades sintomáticas.

Acho que o exemplo relatado por Silvia Ons (2022), de um caso que ela acompanhou em supervisão, nos ajuda a entender melhor a maneira como tomamos a defesa na perspectiva de sua perturbação. Trata-se de uma mulher que, quando era criança, ganhou um frasco em forma de fada (hada) com granulados dentro. Ela o pede dizendo: “me dá o geladinha (heladita)?”. Nesse momento ela é corrigida. Dizem-lhe: “não é a heladita, é hada”. Ela leva a lembrança desse equívoco para sua análise perguntando-se sobre seu sentido. O analista lhe diz: “você já sabe o que tem que fazer com isso”, tomando esse equívoco como uma jaculatória sem sentido, puro gozo. Mas, numa segunda análise, ao puxar o fio simbólico, surge uma cena sexual infantil durante a qual ela fantasiava com uma geladeira e assim, geladinha, heladita, tem um caráter de defesa: esfriar o prazer desse encontro sexual mas, ao mesmo tempo, perpetuá-lo. Geladinha não é apenas uma representação, já que é também sintoma como acontecimento de corpo com suas duas caras: defesa diante do gozo e memória inapagável de seu encontro. Como castigo por seu erotismo infantil, ela imaginava que iriam trancá-la em uma geladeira, padecendo de uma rinite crônica e estando sempre resfriada. Seu ceticismo diante da existência, seu constante pessimismo, sua recusa em admitir que os acontecimentos pudessem ser distintos daquilo que ela imaginava, indicam como o heladita é também esse saber gélido que a acompanhava e mortificava. Isso indica que, para se perturbar a defesa, é preciso esgotar o sentido que ela encerra.

2) Quando o sujeito não conta com um sintoma

Em segundo lugar, tomar o conceito de defesa tem uma grande importância na orientação do tratamento psicanalítico nos casos em que as defesas não estão estruturadas a partir do recalque e dos sintomas passíveis de serem decifrados pelo simbólico. É um fato constatável que a psicanálise muda e que nos defrontamos em nossa atualidade com uma ordem simbólica e com um real distintos daqueles do final do século 19. Se a língua que habitamos muda, os sintomas e os fenômenos de gozo também mudam. Cabe ao analista lidar com a subjetividade de sua época, mas isso não nos leva a querer ser atuais e conformes a nossa época.

Ainda que a maneira de interpretar tenha mudado, buscamos fazer valer os princípios lógicos que orientam nossa prática da psicanálise, que é sensível ao mestre de nossa época, mas eles devem ser entendidos a partir da maneira pela qual Lacan nos ensinou a ler Freud. Tal como diz Max Jacob, o verdadeiro é sempre novo, e essa me parece ser a boa maneira de retornar a Freud naquilo que ele nos indica como insuperável. Lacan (1977) nos assinala o espírito com o qual devemos retornar a esses primeiros textos em sua “Abertura da sessão clínica”, em que ele nos diz que o analista tem que apresentar suas razões, até mesmo no mais ocasional de sua prática, e também tem que justificar a razão de Freud ter existido.

Freud não manteve as mesmas ideias em relação ao conceito de defesa e, durante sua obra, introduziu mudanças em sua teoria de acordo com as questões que foram suscitadas pela experiência do real de sua clínica. A teorização do conceito de defesa tem grande importância clínica, na medida em que foram as resistências, entendidas em um primeiro momento como reflexos clínicos da defesa, que mobilizaram as mudanças na técnica e as reformulações teóricas em torno da concepção do tratamento das neuroses. O conceito de defesa foi apropriado de forma equivocada por diversos psicanalistas, o que gerou um tipo de prática baseada na análise das resistências do eu, tendo como alvo o fortalecimento das defesas. É o viés da psicanálise tomada como a análise dos mecanismos de defesa que foi muito trabalhado por Anna Freud, segundo a qual tudo o que concorre para dificultar o processo analítico seria da ordem de uma resistência.

Essa ênfase dos pós-freudianos nos mecanismos de defesa e na análise das resistências é um ponto importante na distinção de nossa orientação lacaniana e da maneira pela qual tomamos os tratamentos. Isso torna o entendimento do conceito de defesa ainda mais essencial para fundamentarmos os princípios lógicos de nossa prática.

Retomar os caminhos desse conceito também nos leva a promover as maneiras iniciais de Freud e tomá-lo como uma defesa primária, que seria distinta do recalque. Esse retomar das primeiras observações clínicas de Freud se articula ao interesse pelas várias manifestações clínicas da contemporaneidade que se apresentam na clínica do narcisismo, assim como naquela da compulsividade desregulada e da descarga por meio das diversas atuações. Essas respostas não são construídas de modo sintomático, não são construídas a partir do recalque, e pensar sua organização a partir da defesa primária pode nos ajudar na abordagem desses fenômenos. Penso aqui na distinção entre fenômenos de corpo e acontecimento de corpo como respostas distintas que exigem modos distintos de tratamento e que talvez possamos articular com o conceito de defesa primária tal como Freud o pensou no início de seu percurso. Se as neuroses típicas se fundam pelo recalque, outros sintomas, tais como a anorexia, as toxicomanias, obesidades e outros fenômenos de corpo, podem ser iluminados em sua articulação com as defesas primárias.

3) Quando a defesa se desmonta e surge a pulsão que a encobria

Penso que também seria importante pensar no que nos ensinam alguns casos em que as defesas são desmontadas a partir de um encontro com o real. Elas nos elucidam a respeito da função da defesa e de como as pulsões se apresentam a partir da desmontagem desse recurso. Vou tomar um exemplo que se aproxima daqueles relatados por Lacan sob o título de perversão transitória, perversão reativa diante de um impasse no simbólico, no qual a desmontagem da fantasia faz aparecer uma resposta da pulsão separada da defesa.

Trata-se de um caso relatado pela analista italiana Laura Storti em uma conferência proferida na sessão clínica de NUCEP em janeiro de 2022, um caso de psicanálise aplicada atendido no laboratório de homens que cometeram violência contra mulheres e menores, em um serviço localizado em Roma. Storti se refere a um homem de 58 anos que foi atendido durante um ano no âmbito desse laboratório. O serviço social o encaminhou buscando um especialista em pedofilia e ninguém tinha se colocado à disposição para tal tratamento. Ele havia ficado um ano na prisão e, depois, alguns dias em prisão domiciliar enquanto esperava uma sentença definitiva. Foi condenado por tentativa de violência contra duas menores e por possuir material pornográfico infantil. No primeiro encontro, ele coloca sobre a mesa da analista os vários documentos judiciais e conta que o incidente ocorreu em um sótão de um edifício residencial onde ele fazia serviços de inspeção. Diz que não fez nenhum tipo de violência contra as meninas, que só se masturbou na frente delas. Dois policiais o prendem um mês depois e um deles lhe pergunta se ele tinha material de pornografia infantil. Ele diz que sim e entrega espontaneamente o material. Essa admissão foi a causa de sua prisão. Ele não entende como chegou a essa situação e diz que é um homem justo, um homem casado, pai de duas filhas e avô de duas netas e que às vezes duvidava se tinha sido ele mesmo que havia feito isso. Passa por uma situação de ameaça na prisão e diz que os tratavam assim. Ao ser perguntado a quem ele se referia, ele sussurra: pedófilos. Tem insônia, fica confuso e muito angustiado. Na prisão, o guarda com um olhar perturbador lhe disse que ele deveria morrer. A perda de trabalho como eletricista e vagabundeio na internet o fizeram colecionar as imagens. Primeiro buscou trabalho na internet e, depois, imagens de mulheres, e, à medida que seguia sua busca, o computador lhe perguntava se queria mulheres mais jovens. Começaram a chegar imagens de meninas. De início, se masturbava, mas depois, não mais. Ele não conseguia entender o que acontecera, pois sempre gostara de mulheres. Quando a analista lhe pergunta se não se interessava nem em sua fantasia, ele se mostra confuso. Ele catalogou as imagens. Fala que a mãe era muito religiosa e rígida. Ele era o mais novo dos filhos e a mãe separava os meninos das meninas. O pai sempre estava fora de casa, trabalhando. Traz uma lembrança infantil: aos seis anos está em uma festa na sua casa e beija uma menina. A mãe entra pela porta e diz à menina que não volte à sua casa e bate muito no filho. Ele se pergunta se essa lembrança teria algo a ver com o que aconteceu com ele, já que ela tinha a mesma idade das meninas diante das quais ele se masturbou. Ele diz que, ao ver as meninas no marco da porta, algo fez click nele. Ele se pergunta pelo prazer em olhar as mulheres e as meninas, mas também pelo prazer em ser visto pelas meninas. Disse que talvez tenha feito isso para poder parar. Havia ali o olhar da mãe e o do guarda da prisão. Foi uma apresentação da cena fantasmática que o levou à atuação.

Creio que o conceito de defesa primária é aquele que nos permite nos orientar na leitura desse tipo de manifestação, fazendo-nos buscar, por trás delas, o sujeito do gozo, aquele que a defesa encobriu.

 


Referências
FREUD, S (1895). Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. I, 1977.
FREUD, S (1887-1904). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
FREUD, S (1894). As neuropsicoses de defesa. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III, 1976.
FREUD, S (1893). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferência. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III, 1976.
FREUD, S (1925–1926). Inibição, Sintoma e ansiedade. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XX. 1976.
LACAN, J. Ouverture de la Section Clinique. Ornicar? n. 9, 1977, p. 7-14.
ONS, S. Sobre el sentido. El psicoanálisis líquido y sólido. Buenos Aires: Grama ed., 2022.

1. Disponível no YouTube: https://youtu.be/V7wMlwYXXg0 Acesso em 13 nov.2022