Sérgio de Campos
Psicanalista, A.M.E. da EBP/AMP
e-mail: sergiodecampos@uol.com.br
Resumo: Desde as últimas décadas, nos deparamos com casos clínicos que se manifestam sob formas de gozo, cujas manifestações convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Tendo essas novas formações como casuística principal e sob a perspectiva de uma construção diagnóstica pautada na ética, em argumentos lógicos e baseada em um ponto de vista clínico, este artigo apresenta argumentações sobre a presença do analista na psicose ordinária orientadas pelo esforço de elaboração oriundos do Conciliábulo de Angers, da Conversação de Arcachon e da Convenção de Antibes, que resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito das psicoses. As noções de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências são apresentadas de maneira a orientar a presença do analista diante das tendências contemporâneas da psicose ordinária, demarcando as diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma.
Palavras-chave: psicose ordinária; presença do analista; sinthome.
THE PRESENCE OF THE ANALYST IN ORDINARY PSYCHOSIS
Abstract: In the last decades, we have been faced with clinical cases that manifest themselves in forms of jouissance, whose manifestations call for a non-structuralist diagnostic construction. Having these new formations as the main casuistry and from the perspective of a diagnostic construction based on ethics, on logical arguments and based on a clinical point of view, this article presents arguments about the presence of the analyst in ordinary psychosis guided by the effort of elaboration arising from the Council of Angers, the Arcachon Conversation and the Antibes Convention, which resulted in an update of the concepts of triggering, conversion and transference in the context of psychoses. The notions of neotriggering, neoconversion and neotransferences are presented in order to guide the analyst’s presence in the face of contemporary trends in ordinary psychosis, demarcating the differences between stabilization, substitution and sinthome.
Keywords: ordinary psychosis; presence of the analyst; sinthome.
CAROLINA BOTURA. CÁPSULAS DO FUTURO
Nas últimas décadas, foram constatados diversos casos clínicos que se manifestam sob várias formas de gozo, incompletas do ponto de vista de suas narrativas, indefinidas sob a perspectiva de seus sintomas e de inconsistências que dificultam o seu enquadramento, resultando na impossibilidade de serem diagnosticados seguramente sob a perspectiva estruturalista. Vale dizer que efetuar um diagnóstico é um ato que implica uma ética, exige argumentos lógicos e é baseado em pontos de vista clínicos.
Miller (2009) aborda, entre 1987 e 1988, o caso “O homem dos lobos”, sem, contudo, firmar um diagnóstico. Em 1996, Miller promove um Conciliábulo de Angers sobre “Enigma e Surpresas nas Psicoses”. Nos estudos iniciais sobre as psicoses promovidos por Miller, acreditava-se estar diante de novas formas raras de psicose, mas depois se verificou que elas eram bastante comuns. Em seguida, em 1997, ele e a École de la Cause Freudienne (ECF) deram impulso ao debate sobre casos raros e inclassificáveis da clínica psicanalítica na Conversação de Arcachon. Por fim, no terceiro encontro de uma série que ocorrera em três cidades com as iniciais de letra A, na Convenção de Antibes, que acontece em 1998, no seio da Seção Clínica da Universidade de Paris VIII, Miller elabora o conceito de psicose ordinária, na acepção de psicoses comuns e em oposição às psicoses extraordinárias no sentido de Schreber.
A psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa para que o derradeiro diagnóstico possa ser detectado. O diagnóstico de psicose ordinária pode ser tomado como uma metodologia de trabalho na medida em que ele expressa a ponta de um iceberg de uma psicose clássica que se encontra submersa e subjacente.
Assim, todo o esforço de elaboração concentrado no Conciliábulo de Angers, a Conversação de Arcachon e a Convenção de Antibes resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito da psicose, designados como neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências, que sem dúvida vieram orientar a presença do analista diante do campo das psicoses.
Neodesencadeamento
A questão que se impõe é como os registros do real, simbólico e imaginário permanecem juntos e o que faz com que eles se soltem e se separarem, desligando o sujeito em sua relação com o Outro. Se o desencadeamento é o resultado de um efeito de abrir e de desencadear, a psicose não desencadeada prescinde do desencadeamento e dos fenômenos produtivos, como a alucinação e o delírio. Em particular, a clínica borromeana acolhe e coloca em evidência uma série de psicoses não desencadeadas, onde novas organizações do gozo se constituem como modalidades subjetivas compensadas, fechando e estabilizando o real da psicose.
Cabe advertir que as psicoses ordinárias não se equivalem às psicoses não desencadeadas, pois elas podem desencadear-se, mas seus desencadeamentos são completamente diferentes das psicoses clássicas. Na Conversação de Arcachon, sob o título de Casos Raros, foram discutidos casos de sujeitos que apresentavam desencadeamentos muito discretos, nos quais os fenômenos elementares, alucinações, delírios e neologismos estavam ausentes.
Assim, os fenômenos das psicoses ordinárias costumam surgir mais dispersos e sutis, emergem como descarrilamentos ínfimos, desconexões entre o eu, o corpo e a pulsão, instalam-se de um jeito fragmentado e discreto, e, por fim, expressam-se de maneira mais pluralizada e múltipla, em razão de serem menos referidos à ausência da ação central do Nome-do-pai (MILLER, 2009, p. 56). Portanto, o diagnóstico de psicose ordinária é mais refinado de ser realizado.
Em síntese, o desligamento é o apanágio da expressão maior do neodesencadeamento e se opõe ao desencadeamento clássico. Pode-se dizer que o desencadeamento se manifesta de dois modos no que se refere ao tempo. O primeiro, em que as variações respeitam um paradigma que concerne à temporalidade do tipo sincronia, apanágio das psicoses clássicas, nas quais os fenômenos psicóticos emergem de forma múltipla, intensa e simultânea, como se fossem uma tempestade, tudo ao mesmo tempo, agora. O segundo modelo concerne à temporalidade do tipo diacronia, atributo das psicoses ordinárias e da estrutura do neodesencadeamento, nas quais os fenômenos psicóticos surgem discretos, esparsos e singulares, numa diacronia de um depois do outro.
Na psicose ordinária, há um progressivo desenganchamento do Outro, devido a um empobrecimento dos laços afetivos e sociais que denotam uma marginalização oculta por tempos, em virtude de rupturas repetidas e progressivas que se instalam de modo diacrônico, pouco a pouco, numa crescente intensidade social. Ante à irrupção do gozo, o tecido simbólico parece esgarçar-se gradativamente. Há uma impossibilidade crescente de o sujeito simbolizar e subjetivar o gozo de modo que ele experimenta um buraco do real que se manifesta através de um desaparecimento do aparelho significante. Ademais, há uma perda paulatina da fantasia que possibilita uma mediação com o gozo. Nesses casos, no final, toda a significação fálica parece estar extinta.
Assim, o neodesencadeamento se expressa como um processo evolutivo que tem indícios, premissas, sinais discretos que são precursores de perturbações futuras e que podem manifestar-se de modo contínuo ou descontínuo na clínica. O sujeito pode experimentar desligamentos gradativos, sucessivos ou descontínuos do Outro social.
Mas, o que impede uma psicose ordinária de se desencadear? Existem pelo menos dois motivos: primeiro, temos o não desencadeamento em virtude da ação de uma identificação imaginária; e, segundo, em razão de uma suplência. Quanto à distinção entre a identificação imaginária e a suplência, podemos dizer que, na distinção, o modelo da identificação se apoia no tipo narcísico, como no caso “O homem dos lobos”, em que uma prótese é construída para o eu; na suplência, como no caso de James Joyce, é posta à prova uma autêntica operação de significante sobre o gozo através do sinthoma. Assim, a suplência é uma forma subjetiva de estabilização, na qual um elemento se torna capaz de enodar os registros RSI, estabilizando o sujeito, de tal forma que ela se torna mais eficaz e articulada do que a compensação imaginária.
Mas, uma vez desligado, como religar? Atualmente, orientamo-nos na clínica pela atenção aos pequenos detalhes, ou em como conseguir localizar na história do sujeito o momento em que ele se desengancha em relação ao Outro. Em grande parte, esse desligamento se faz sutil e gradativamente. Assim, um raciocínio baseado no relato clínico do sujeito pode ser capaz de localizar, apenas a posteriori, o elemento que produzira o desligamento, de tal sorte que se possa permitir uma estratégia com fins a um religamento. A identificação das formas de desligamentos se torna, portanto, essencial para que se possa estabelecer as formas de desencadeamento e os novos contornos clínicos (MILLER, 2012a, p. 22). Ademais, cabe situar outras maneiras de se ajudar o sujeito a religar-se. Uma delas seria auxiliá-lo a constituir ou descobrir um sinthoma que possa enodar os três registros RSI; e, em seguida, de um modo menos ambicioso, conduzir o sujeito para que ele possa alcançar uma identificação imaginária.
Neoconversão
Miller, em seu curso Ce qui fait insigne, denota que na conversão existem dois caminhos a partir do S1 de determinados significantes mestres. O primeiro caminho se constitui pela via do registro simbólico, do S2, do saber e do inconsciente; e o segundo, pela via do gozo que está fora do discurso, expresso pelo real que não é decifrável, e, portanto, não interpretável (MILLER, 2012a, p. 103). A conversão clássica abriga um sentido, como uma espécie de conversão na qual o psíquico é uma metáfora do somático. Na segunda clínica, Lacan enfatiza uma conversão, mas como uma continuidade entre o psíquico e o somático, como se um se tornasse o prolongamento do outro, mesmo que seja na condição de avesso.
Enfim, o primeiro paradigma da conversão está fundamentado na metáfora, e o segundo, na metonímia. Na conversão clássica, temos um Outro incompleto que é sustentado por um objeto a equivalente à castração. Em contrapartida, na neoconversão, temos um Outro absoluto que se apoia sobre o objeto a correlato à castração. O resultado da ausência de barra nesse Outro implica uma perda de subjetividade. Logo, a neoconversão, no fundo, é uma inscrição corporal da falta, visto que ela acontece como dimensão sintomática quando há um impossível de reunir o objeto a e a castração simbólica (MILLER, 2012a, p. 158).
O acontecimento de corpo, apanágio da neoconversão, guarda certo enigma, visto que a operação analítica proporciona intervenções sobre o corpo que ocasionam acontecimentos que não fazem ruídos, que são discretos e que, portanto, permanecem desconhecidos. Assim, como os acontecimentos de corpo são em grande parte tênues, eles são experimentados como um sentimento sutil de um deixar cair algo de si do corpo (MILLER, 2012a, p. 394).
A neoconversão mostra o papel prevalente da significação fálica que, mesmo ausente, tem a função de fixar o modo e a possibilidade de leitura do sintoma. Portanto, não se trata mais de uma decifração, mas de uma leitura, de um ler de outro modo (MILLER, 2012a, p. 100). Encontramos casos nos quais o sujeito se mostra incapaz de refletir e de estabelecer uma alteridade, que o tratamento não se apoia mais na direção de uma via simbólica, no discurso, na narrativa, na palavra metafórica e de um saber inconsciente. A alternativa, de acordo com a orientação de Miller, é se amparar pela via do real, pela letra, no que está fora do discurso e que não há um saber inconsciente que revele qualquer significação (MILLER, 2012a, p. 103). Cabe ao analista ajudar o sujeito a inventar algo que possa oferecer-lhe um arrimo, como aquele que diz que escreve no seu diário para apoiar os seus pensamentos.
Não raro, a saída do sujeito é a de construir um corpo, fazer um corpo mediante os piercings, as tatuagens, a vigorexia, as próteses, os implantes, os maneirismos, as estereotipias, as hipocondrias, os dismorfismos corporais, como anorexias ou obesidades, que podem funcionar como uma prótese corporal.
A nomeação também pode funcionar na construção de um corpo, ou mesmo constituir-se mediante um nome, uma vez que a característica do nome está sempre associada à ligação com uma escrita. Nomear não é interpretar, tampouco decifrar. Nomear é uma outra forma de compartilhar o sentido. O que caracteriza o sentido é que se nomeia, mas que ao mesmo tempo não se esclarece, tampouco se compreende (MILLER, 2004-05, p. 149). Assim, a escrita oferece suporte ao pensamento, e com a letra coloca-se um ponto de basta na dispersão do corpo. Enfim, a neoconversão é o paradigma da clínica contemporânea, decorrente do enfraquecimento dos ideais, na era em que ocorre um desaparecimento do Outro simbólico, da promoção do gozo e dos fenômenos do corpo (MILLER, 2012a, p. 158).
Neotransferências
No seu texto sobre o caso Schreber, Freud já se manifestava sobre as dificuldades encontradas na transferência, nos casos de tratamentos de psicóticos. Ele explicava esse problema em virtude do narcisismo desses sujeitos, que têm como objeto de amor apenas a si próprios. Ademais, Freud nos deixa um legado ao dizer que a psicose de Schreber se desencadeia quando se instaura a relação de objeto na transferência com Flechsig (MILLER, 2011a, p. 145).
Para Miller, o retorno do gozo não transformado em libido de objeto constitui a dificuldade nuclear das psicoses. Então, o gozo não transformado em libido de objeto se acumula, fazendo com que a libido do eu se torne excessiva. Esse gozo que se retém contribui paradoxalmente para a caída da envoltura narcísica do eu, de maneira que resta para o sujeito apenas o ser do objeto, exposto à invasão do gozo do Outro. Com efeito, a queda do envoltório narcísico do eu ideal diante do gozo do Outro promove os delírios de observação (MILLER, 2011a, p. 146).
A Seção Clínica de Angers interroga se as novas psicoses exigem uma nova posição do analista diante da neotransferência. No âmbito da neurose, o sujeito suposto saber é o pivô da operação analítica. Miller assinala que na segunda clínica de Lacan existe um abandono gradativo da transferência como sujeito suposto. O sujeito suposto saber não é um saber posto, também não é um saber exposto, tampouco é um saber desenvolvido, nem sequer um saber explícito, mas é uma simples significação de saber. O sujeito suposto saber é uma constatação apenas de que o Outro sabe; o saber é seu atributo, sem que disso ele tenha que dar provas, de maneira que não há demonstração ou mostração por parte do analista (MILLER, 2011a, p. 146). Na psicose, por sua vez, não há sujeito suposto saber, visto que o saber está do lado do psicótico. O grupo de trabalho de Angers propôs uma nova transferência nas psicoses como uma alíngua da transferência (MILLER, 2012a, p. 345-346). Ocorre que Miller tem extraído do modelo da psicose elementos para repensar o destino da transferência na segunda clínica de Lacan.
Lacan vai propor, no seu segundo ensino, uma transferência que não se apoie mais no sujeito suposto saber. Trata-se de uma passagem da ontologia à existência e do ser ao Um, na medida em que essa transferência joga com a fuga do sentido. Se a transferência é sustentada pelo sujeito suposto saber, Lacan vai ao âmago do inconsciente estruturado como linguagem que sustenta o inconsciente transferencial para isolar a alíngua como núcleo furado da linguagem. Então, a alíngua da transferência vem ocupar o lugar do sujeito suposto saber, de sorte que ela não é uma alíngua suposta, mas exposta, e que o analista e o analisante devem aprender a lê-la (MILLER, 2012a, p. 348), como uma transferência articulada ao modo de gozo singular do sinthoma, no binário repetição e pulsão, cuja díade funciona como gozo e repetição (MILLER, 2011b, p. 77). Essa díade não constitui uma harmonia, como a antiga parceria do inconsciente transferencial, mas compõe uma parceria dissimétrica, disjunta e correlata ao postulado “não há relação sexual” no que se refere ao sinthoma como um funcionamento positivo de gozo (MILLER, 2011b, p. 78).
A transferência apoiada na alíngua implica um esforço de aprendizagem do analista ou, ainda, na docilidade de aprender a língua particular do sujeito. Miller adverte sobre ser dócil e paciente em relação às invenções do sujeito. Portanto, quando o analista intervém, é do lugar de onde não se sabe; ou da posição que visa a sustentar o falasser nas invenções que ele estabelece para defender-se do Outro gozador; e, por fim, se houver oportunidade, o analista, com a finalidade de esvaziar o Outro, deve trazê-lo para as brincadeiras infantis (MILLER, 2012a, p. 348).
A transferência como alíngua concerne à posição do analista como aquele que permite limitar o gozo, descompletando o Outro, como esvaziar as crises passionais de erotomania ou de odiomania, mostrando-se barrado. Ademais, a posição do analista acolhe o gozo errante, o gozo à deriva, ao se imiscuir na alíngua do sujeito. Ao adotar essa atitude, o analista garante ao sujeito a condição de fiador de sua alíngua; por fim, o analista pode oferecer-se ao sujeito como um lugar não-todo, no qual ele se serve do analista para dizer, na qualidade do Um que dialoga sozinho (MILLER, 2012a, p. 350-51).
A transferência da alíngua jamais se transforma em um lugar do jogo dos semblantes. Mas, ao se consentir adotar um vínculo frouxo que oferece uma justa medida à técnica do holding de Ferenczi, o analista se permite elaborar um saber fazer com a alíngua (MILLER, 2012a, p. 187). A transferência da alíngua possibilita a elaboração de um “saber ler de outro modo”, de maneira que permite ao sujeito grampear o simbólico e o real sobre a dobra do imaginário (MILLER, 2012a, p. 181). Assim, a condição da transferência de a alíngua favorece não apenas ao analista, mas também ao sujeito “aprender a se ler de outro modo”. Enfim, é necessário que o processo analítico crie condições para que o analisante se habilite na função de se “ler de outro modo”. Pode-se dizer que “saber ler de outro modo” possibilita um grampeamento dos três registros – real, simbólico e imaginário – para que permaneçam intactos e com valores equivalentes. Assim, “ler de uma outra maneira” não é ler o sentido, mas a função daquilo que se manifesta em ato, no âmbito da repetição e do gozo.
Enfim, o que importa é que o analista vise, com o trabalho de neotransferência, a obter uma amarração dos três registros – real, simbólico e imaginário – pela via dos nomes do pai, no lugar onde o sujeito se desamarrou ou apresenta a dificuldade de refazer o nó de Borromeo. Caso ocorram contingências favoráveis, o analista pode inclusive proporcionar novas condições que possibilitem ao sujeito amarrar os três registros de outra maneira.
Uma das estratégias da neotransferência na operação analítica faz com que o analista opere como se ele fosse o sinthoma, com uma ajuda-contra aquilo que impele o sujeito na direção de A mulher ou em seu encontro com Um-pai; uma ajuda-contra a consistência do Outro sem barra; uma ajuda-contra a onisciência absoluta do Outro na medida em que implica certa vacilação analítica como furo no saber; uma ajuda-contra a devastação do supereu feminino; uma ajuda-contra a desamarração dos registros; uma ajuda-contra o sintoma, a inibição e a angústia, uma ajuda-contra o gozo feminino e uma ajuda-contra o desvario e a deriva, fruto do Significante do Outro barrado, do Outro que não existe, expresso como S(A/) (MILLER, 2012a, p. 207).
Enfim, fundamentado na interpretação do tipo ajuda-contra, o analista visa à operação de prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de servir-se dele. A operação analítica tem assim a finalidade de instaurar o furo no Outro, o furo no inconsciente para que o contingente possa emergir.
Com isso, o analista coloca em jogo uma nova modalidade de transferência, capaz de incluir o sujeito no discurso, particularmente aqueles que estão fora dele; enodar os registros real, simbólico e imaginário, facilitando a construção de narrativas de sujeitos que estão desamarrados; estabelecer um vínculo transferencial frouxo com o sujeito; e, por fim, descompletar e furar o Outro consistente e onisciente (ALVARENGA, 2018).
Tendências contemporâneas da psicose ordinária
A primeira que se constata na contemporaneidade é a tendência ao múltiplo, que se manifesta nos casos clínicos por conta dos efeitos da pluralização dos nomes do pai. Atualmente, verifica-se na clínica uma pluralidade de significantes mestres que não se organizam em torno de um, mas que se comportam como uma espécie de enxame, como se diz em francês, essaim, homofônico ao S1. Assim, esses casos se produzem como múltiplos, mas não se organizam em um conjunto ordenado, no qual se obedece a uma lógica classificatória.
A segunda tendência que se averigua é a passagem do universal ao singular, do artigo definido O para o artigo indefinido Um. Não estamos mais sob a égide da forclusão do Nome-do-pai, mas sob o prisma de uma forclusão generalizada, denotando uma diversificação das múltiplas formas de gozo num novo contexto clínico, teórico e político, no qual todo mundo delira. Pode-se nomear o caso “O homem dos lobos” como o primeiro paradigma dessa espécie, já que não temos uma forclusão do Nome-do-pai, mas uma forclusão da castração, ou uma forclusão da significação fálica (BROUSSE, 2009).
A terceira tendência que se apura no contemporâneo é uma modificação do estatuto do Nome-do-Pai como função, isto é, há uma migração da função do universal do Nome-do-Pai para uma função no particular, com a designação da nominação (nommer-à) de “nomear para…” (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974). O pai tem uma função nomeante, visto que o pai também é o pai do nome. Mas, a expressão “nomear para…” não detém uma função operativa equivalente ao Nome-do-pai. Com efeito, “nomear para…” é um indicador para se ocupar uma função. Na verdade, trata-se de uma pequena indicação de função, como aquela em que um sujeito é indicado pelo padre para ser o zelador da paróquia com a função de guardar as chaves da igreja.
A indicação do padre de “ser nomeado para…” confere ao sujeito uma “grande responsabilidade” e lhe oferece um lugar na pequena sociedade local que ele não conseguira conquistar sozinho. “A grande responsabilidade” como a função de zelador da paróquia pode ocasionar um recurso à identidade, ou a uma “superidentidade” sem fissuras, que poderá ser capaz de exercer a função de suplência imaginária diante da falência da função fálica. Logo, a “sobreidentificação pode conferir ao sujeito um novo valor ao papel social” (MILLER, 2003, p. 40).
A posição do psicótico ordinário não tem nada de excepcional, de extraordinário; ela é bastante comum, banal e ordinária, como a de ser nomeado para ser um zelador da paróquia, cuja função é a de limpar, cuidar e guardar as chaves da igreja. Portanto, resta ao sujeito encontrar invenções miúdas ou consentir com pequenas nomeações capazes de enodar os registros simbólico, imaginário e real. Essas nomeações funcionam como referência ao pai, mas não são um significante Nome-do-pai propriamente dito. Lacan ressalta que essas pequenas nomeações e invenções mínimas podem ser capazes de estabilizar esses sujeitos em razão de um efeito semelhante ao Nome-do-pai, ressignificando sua função.
Diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma
Embora pareçam ser sinônimos, existem diferenças sutis e discretas entre os conceitos de estabilização, de suplência e de sinthoma, que podem a princípio passar despercebidas. Em síntese, vale demarcar que as estabilizações são pequenas invenções e soluções encontradas – seja pelo próprio ser falante, seja com a ajuda do analista, em um processo terapêutico – para lidar com suas instabilidades psicóticas no intuito de estabilizá-las.
As suplências podem ser consideradas como o modo do ser falante efetuar suas amarrações dos registros do simbólico, do real e do imaginário. E o sinthoma são os restos sintomáticos, o que restou de um processo analítico ou o que é derivado do próprio ser falante sob o paradigma de Joyce, no que concerne ao estilo e ao osso de uma análise e que produz um reganho de gozo positivo capaz de promover efeitos de satisfação.
Dentre os três, de uma direção de dentro para fora, o sinthoma é aquele que se encontra em sua posição mais íntima de núcleo. Em seguida, o sinthoma é circundado pela suplência e, de maneira mais periférica, na adventícia, encontramos a estabilização. Pode-se propor uma equivalência do sinthoma como a finalidade última ou a política do tratamento; a suplência como a estratégia ou os meios pelos quais o falasser encontrou seus pontos de amarração; e, por fim, a estabilização que pode se equivaler às táticas. Enfim, um sinthoma pode proporcionar a suplência e ocasionar as estabilizações. Mas uma suplência pode oferecer estabilização sem ser um sinthoma, e uma estabilização em si só é uma solução que não gera uma suplência, tampouco um sinthoma.
Estabilização
No primeiro ensino, Lacan ressalta que a estabilização pode ser conseguida mediante identificações e bengalas imaginárias que servem de escora para apoiar o ser do sujeito. Existem estabilizações mediante determinados objetos nos autistas ou como resultado de bricolagens bizarras as quais o esquizofrênico utiliza para instituir um novo órgão e reconstituir um corpo (LAURENT, 1998).
O conceito de estabilização surge em virtude da construção delirante de Schreber, ao desenvolver o esquema I, no que concerne ao assentimento com o empuxo à mulher. Portanto, temos a estabilização mediante a metáfora delirante. Mas pequenas invenções psicóticas também são capazes de promover estabilizações, de forma que as estabilizações são múltiplas, em razão da inventividade de cada sujeito. Enfim, a estabilização na psicose pode instaurar-se mediante a função da letra, a invenção subjetiva, a bricolagem, a identificação imaginária, a nomeação, dentre outras.
Em suma, temos, em primeiro lugar, a estabilização pela via do real da passagem ao ato (LACAN, 1932/1987), referida ao caso Aimée, depois do atentado cometido contra a atriz Hugette ex-Duflos e de sua prisão, em que ela alcança sua estabilização; em segundo, temos a estabilização pela via imaginária, mediante a metáfora delirante como A mulher de Deus alcançada por Schreber; e, por fim, a estabilização pela via do simbólico, estabelecida pelo sinthoma da escrita de James Joyce.
Vale dizer que a super-identificação também pode proporcionar a estabilização. O surgimento dessa identificação orienta de maneira sólida o psicótico ordinário. Essa super-identificação é capaz de fazer a função do traço unário, provocando identificações sociais positivas. O ser falante investe a libido em nomes que lhe conferem pequenos valores de autoridades nas tradições familiares e sociais (MALEVAL, 2019, p. 117).
O papel dessa identidade proporciona um misto de ser e parecer que se ajusta a uma mescla entre a seriedade e a autenticidade de aparências dentro das normas sociais. Então, a adesão ao misto de parecer e de ser faz com que o ser falante constitua uma personalidade rígida baseada no “como se”. A aspiração pela ordem desses sujeitos se coloca como defesa com a finalidade de minimizar os efeitos intoleráveis da ambiguidade (MALEVAL, 2019, p. 117). Em virtude de se tornarem escrupulosos para com as normas, esses sujeitos se tornam verdadeiros normopatas.
Enfim, a super-identificação tem a função de suplência e de estabilização na psicose, em razão de que o nome tem um papel de “como se” fosse um patronímico (MALEVAL, 2019, p. 129). A pluralização dos nomes do pai é possível inclusive para as neuroses nas quais cada sujeito encontra sua maneira de fazer valer a função paterna. A suplência se ancora na função de limitação, que opera sobre o gozo como a castração, onde houve uma falha na significação fálica (MALEVAL, 2019, p. 45).
A escrita pode prestar-se a uma estabilização na psicose. Contudo, pensar que um psicótico se cura escrevendo é insuficiente. Os hospitais psiquiátricos estão cheios de oficinas de escritas. A escrita não pode constituir-se como uma demanda de quem assiste o psicótico. Assim, se o falasser escreve ou toma a iniciativa espontânea de escrever, não se deve interpretar o escrito do psicótico. Mas, deve-se permitir que ele possa manter a ordem das palavras, apoiando-se na dita escritura a qual tem sempre o estatuto de um S1, que se repete na esfera da letra (LAURENT, 1989, p. 30).
Um dos elementos que contribuem para a estabilização na psicose é, sem sombra de dúvida, o manejo da transferência em que o analista assume a função de testemunha e de secretário do alienado. Quando o analista se coloca na posição de testemunha, ele pode favorecer uma articulação entre a linguagem e a alíngua, garantindo uma nova ordem fora do discurso (LAURENT, 1989, p. 33). Como secretário do alienado, o analista deve tomar o relato do psicótico ao pé da letra (LACAN, 1955-56/1985, p. 236).
No caso de Pankejeff, a estabilização não passava por decodificar enigmas em significações, mas de fortalecer o narcisismo que funcionara como uma armadura, como uma espécie de falso ego, cujo papel era o de delimitar as bordas do corpo. A estabilização se dera por duas estratégias: primeiro, mediante o narcisismo, como “o paciente mais celebre de Freud” que funcionara como uma prótese para o ego; e, segundo, por meio da nomeação de “O homem dos lobos”, cunhada pelo movimento psicanalítico, que lhe garantiu a sobrevivência e lhe assegurou um lugar especial e de exceção no laço social (LACAN, 1975-76/2007, p. 146).
Suplência
Lacan recorre aos escritos de James Joyce, particularmente o livro O retrato do artista quando jovem, para descrever um acontecimento de corpo no qual Joyce relata uma experiência na infância de ter sido batido pelos seus colegas de sala quando foi encurralado contra um arame farpado. Após libertar-se, rapidamente ele sente sua raiva evanescer “tão facilmente quanto uma fruta que é despida de sua pele macia e madura”. Nessa quase ausência de afeto, que naturalmente seria uma reação à violência física, o menino toma distância de seu corpo, deixando-o como uma casca (LACAN, 1975-76/2007, p. 37).
Como Joyce havia conseguido, através de sua arte, suprir sua carência paterna, Lacan assinala que ele fez uma suplência. Essa suplência pode ser definida em três planos. Como Joyce não pode contar com o significante Nome-do-pai, o que veio ocupar esse lugar foi, do ponto de vista da dimensão simbólica, a vontade de fazer um nome para si, que não fora reduzido à demanda de reconhecimento.
Assim, foi produzindo o seu nome que Joyce se manteve no sentido fálico. Do ponto de vista do imaginário, Joyce, segundo Lacan, criou um imaginário de suporte, um imaginário de segurança. Trata-se de um imaginário duplicado como um êxtase do ego, por onde Joyce enoda o simbólico e o real. Portanto, a suplência em Joyce destaca como a escrita, como um quarto nó, amarrou os três registros – real, simbólico e imaginário. O imaginário ganha profundidade quando esse imaginário é em latim e totalmente alheio à estrutura de Joyce. Lacan comenta que há um imaginário duplicado em Joyce que se encadeia com o real. Trata-se de um imaginário encadeado no real de seu gozo.
Pode-se dizer que Pankejeff conseguiu uma estabilização e, de certa forma, até alguma função de suplência com a nomeação de “O homem dos lobos” ou de ser nomeado como “o paciente mais célebre de Freud”. Contudo, ele jamais alcançou o estatuto de sinthoma. A suplência de Pankejeff pode ser verificada mediante o fato de que ele conseguira, através do narcisismo, amarrar o real referente à corrente mais arcaica e profunda, dita feminina; a corrente masculina, inscrita no registro simbólico e, por fim, a corrente fóbica, na qual ele era objeto de decoração no plano imaginário. Enfim, para o analista, é necessário localizar os pontos de suplências, os enodamentos nos pontos de falhas na cadeia borromeana, com a finalidade de protegê-los, de cuidar para que eles não se soltem.
Sinthoma
No último ensino, Lacan se inspira na prática da escrita de James Joyce para elaborar o conceito de sinthoma. Miller assinala que foi Joyce que despertara Lacan de seu sono dogmático (MILLER, 2009, p. 134). Então, foi a experiência de Joyce com a escrita que despertou Lacan de seu sonho dogmático com o simbólico para alcançar novas elaborações. Lacan descobre com Joyce que o nome próprio oferece consistência ao Um-corpo. Vale dizer que Joyce é a encarnação do sinthoma na medida em que ele é desabonado do inconsciente e não é apadrinhado pelo Outro. Logo, o sinthoma é a encarnação do que há de mais singular em cada falasser (MILLER, 2009, p. 141).
Lacan, na medida em que propõe ler de uma outra maneira, recomenda uma nova ortografia, uma ortografia arcaica, com fins de escrever o sintoma, de modo que ele possa ser lido com sinthoma. Ler de outra maneira, no último ensino de Lacan, implica em um novo léxico, repleto de neologismos (MILLER, 2009, p. 136). Assim, no final de seu ensino, Lacan está mais interessado em escutar o sinthoma do Um do que o discurso do Outro (MILLER, 2009, p. 141).
No último ensino, o amor de transferência se apaga em razão do desaparecimento do sujeito suposto saber, de maneira que o falasser que dialoga sozinho recebe sua própria mensagem sob a forma invertida. Afinal é o falasser que sabe sobre si e não o sujeito suposto saber (LACAN, 1976-77). Na análise do Um que dialoga sozinho, o analista faz a função de furo, como uma espécie de tonel das Danaides, que esvazia o sentido, constituindo o insucesso do inconsciente, que resulta em um gozo cujo atributo positivo implica numa satisfação do sinthoma (MILLER, 2012b, p. 55).
Logo, uma satisfação sinthomática ligada ao Um e ao corpo se apresenta como uma nova solução para o falasser. Trata-se de uma repetição articulada ao furo, ao troumaisme, resultado da passagem do real impossível para o real contingente. Assim, na medida em que o sinthoma é indecifrável, a experiência analítica, por fim, coloca em evidência a marca de satisfação com a letra de gozo. Com efeito, trata-se de identificar-se com o sinthoma e, tomando certa distância, assentir com sua identidade sintomal. A tomada de certa distância do sinthoma, com o qual se está identificado, tem a finalidade de se poder fazer alguma coisa com ele, saber manipulá-lo, saber se virar com ele, com esse resto que é do registro da existência (MILLER, 2009, p. 143).
Referências
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