O sintoma substituto

Mônica Campos Silva
Psicanalista, mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG, membro da EBP/AMP,

Resumo: o presente artigo visa a tratar o lugar do sintoma como defesa. A partir da diferenciação realizada por Freud entre inibição, sintoma e angústia, é possível observar o funcionamento psíquico em seu aspecto dinâmico, bem como a função do Eu diante das demandas de satisfação. Assim, o sintoma como substituto evidencia tanto sua vertente de verdade como de real, estabelecendo consequências para a clínica e seu manejo.

Palavras-chaves: sintoma; verdade; angústia; defesa.

THE SUBSTITUTE SYMPTOM
Abstract: this article aims to approach the idea of the symptom as a defense. From the differentiation made by Freud between inhibition, symptom and anguish, it is possible to observe the psychic functioning in its dynamic aspect, as well as the function of the Self facing the demands of satisfaction. Thus, the symptom as a substitute reveal both its truth and real aspects, establishing consequences for the clinic and its management.

Keywords: symptom; truth; anguish; defense.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre o sintoma 

Miller (2015) interroga: por que colocamos o sintoma entre as formações do inconsciente? É um fato que o sintoma, por sua permanência, se distingue de todas as outras formações do inconsciente. Para que haja sintoma, no sentido freudiano, é preciso que haja sentido em jogo e que esse possa ser interpretado. Para que haja sintoma, é necessário também que o fenômeno dure. Igualmente, diz Miller, o sintoma é o que a psicanálise nos dá de mais real; o sintoma como o que não cessa de não se escrever, enquanto sua permanência se impõe à experiência. É desse “a mais” que atravessa e marca o corpo que é preciso dar-se conta na formação dos sintomas. Por sua vez, em Freud (1925–1926/1996), o uso do sintoma é sempre o mesmo: pela satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida, a satisfação pulsional.

De tal modo, o sintoma revela duas vertentes: uma de verdade e uma de real. O que Freud descobriu é que um sintoma se interpreta como um sonho, quer dizer, se interpreta em função de um desejo, e que é um efeito de verdade. Mas há um segundo tempo desse descobrimento: a persistência, a permanência do sintoma depois da interpretação.

Freud (1925–1926/1996) aponta que o conceito de recalque não implica uma relação com a sexualidade, separando o recalque, que se refere a um mecanismo semântico — algo que não pode ser dito porque houve um recalcamento —, e o registro da sexualidade. Procura, então, atrelar as duas vertentes, isto é, a da descoberta do inconsciente, dos fenômenos interpretáveis, e a da descoberta da sexualidade infantil e do caráter perverso da sexualidade. Para Lacan, no entanto, o recalque tem a ver com a libido, ou seja, o que se opõe ao dizer tudo é o mesmo que se opõe à realização plena do sexual. Para Lacan, o que está recalcado é o significante, o que Freud nomeia de representante da pulsão (MILLER, 2015).

Freud, em Inibições, sintomas e angústia (1925–1926/1996), caracteriza o sintoma a partir da satisfação pulsional “como o signo e o substituto” de uma satisfação pulsional que não aconteceu, ou seja, a pulsão busca satisfação e, após o recalque incidir sobre ela, há a formação do sintoma como satisfação substitutiva. Mais adiante, o autor trata o trauma e o inconsciente tomando como princípio que, sob cada sintoma neurótico, há sempre um trauma. Toda neurose contém, diz ele, uma fixação dessa natureza. Acrescenta o princípio de que o sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente, afirmando ser “necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir” (FREUD, 1925–1926/1996, p. 287), ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. Freud completa: “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (p. 287). O sintoma como substituto vem no lugar do objeto que convêm à pulsão, mas nem por isso alcança a satisfação, tratando sempre de renovar sua busca.

É importante destacar que, em Freud, a definição de sintoma leva em conta seu caráter de formação de compromisso, de conexão entre gozo e defesa. A observação de Freud é que, no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela. Dessa conexão entre gozo e defesa, Lacan extrairá que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a se defender do gozo que busca, ou seja, o paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles (MILLER, 2020). Porém, é importante notar que o sintoma oferece à pulsão outra satisfação, mas como desprazer. A defesa do Eu contra a satisfação pulsional, através do recalque, produz a conversão da satisfação em desprazer. O desvio e a substituição são realizados pelo Eu, conduzido pelo princípio do prazer em oposição à exigência pulsional. Logo, o que aparece como desprazer no sintoma, como sofrimento, é uma satisfação.

Segundo Miller (2020), a pulsão não conhece o “semblante de gozar”; a satisfação pulsional é um real. Segundo ele, Lacan enfatiza o invólucro formal das formações do inconsciente, mas não lhe escapa que a chave da formação dos sintomas é pulsional, o que permanece. Aponta ainda que o sintoma pode aparecer como um enunciado repetitivo sobre o real. O sujeito não pode responder ao real a não ser sintomatizando.

Logo, há algo do sintoma que se localiza entre a angústia e a mentira, quer dizer, entre algo que mente e algo que não pode enganar. Algo circula entre o que engana sempre e o que não engana jamais. O sintoma mente, a angústia, não. A angústia sinaliza a ameaça, o sintoma defende (MILLER, 2015).

 

O texto de Freud

Ao entrarmos em Inibições, sintomas e angústia (1925-1926/1996), encontramos Freud debruçado sobre as manifestações que considera patológicas. Para ele, a inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente um sentido de verdade ou uma implicação patológica. Mas adverte que, quando a inibição é tomada a partir do sentido, ou seja, limitações e restrições da função do Eu, ela se torna um sintoma.

Freud localiza outro encontro entre os elementos em questão, a inibição e a angústia. Segundo ele, algumas inibições representam o abandono de uma função porque sua prática produziria angústia, ou seja, a inibição como defesa. Nesse ponto de elaboração, reforça que o sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado imóvel, sendo uma consequência do processo de recalque. O recalque, por sua vez, se processa a partir do Eu quando este se recusa a se associar a um investimento pulsional despertado no Isso. Assim, quando o Eu se opõe a um processo pulsional no Isso, ele tem de dar um “sinal de desprazer” com a ajuda do princípio do prazer, a fim de alcançar seu objetivo, o recalque, sendo ainda provável que as primeiras irrupções de angústia de natureza muito intensa ocorram antes de o supereu se tornar diferenciado, devendo o recalque ser descrito como tendo falhado, em maior ou menor grau.

O Eu é uma instância central no dinamismo psíquico. Suas características adaptáveis permitem se organizar e se diferenciar do Isso, realizar intercâmbios e influência, mantendo, nesse sentido, duas posições em relação ao sintoma: a que quer incorporar o sintoma e a que vai tentar manter o recalque.

Freud utiliza o caso do pequeno Hans — apresentado pela primeira vez em 1909 —, uma fobia infantil, para discutir o que está em jogo no sintoma, perguntando que sintoma substitutivo foi encontrado e onde está o motivo de recalque. Hans recusava-se a sair à rua porque tinha medo de cavalos — isso era a matéria prima do caso. O que constituía seu sintoma? O medo? A escolha de um objeto para seu temor? Ter abandonado sua liberdade de movimento? Por que e qual foi a satisfação a que ele renunciou? Hans não sofria de um medo vago de cavalos, mas de que um cavalo fosse mordê-lo. Para Freud, a fobia de Hans foi uma tentativa de solucionar o conflito devido à ambivalência: um amor e um ódio dirigidos para a mesma pessoa, seu pai. Porém, Freud adverte que o medo que faz parte dessa fobia não é um sintoma. Se Hans, apaixonado pela mãe, mostra medo do pai, isso não significa que ele tenha uma neurose ou fobia. Nesse caso, o que transformou a fobia em uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado sintoma. As ideias contidas na sua angústia era a substituição, por distorção, da ideia de ser castrado pelo pai. É sempre a atitude de angústia do Eu que é a coisa primária e que põe o recalque em movimento. A angústia jamais surge da libido recalcada, sendo o recalque apenas um dos mecanismos de que a defesa faz uso.

A angústia

Para Freud (1925-1926/1996), a angústia, em primeiro lugar, é algo que se sente, e, como um sentimento, tem um caráter muito acentuado de desprazer, sendo um sinal para a evitação de uma situação de perigo. A análise dos estados de angústia revela a existência de um caráter específico de desprazer, atos de descarga e percepções desses atos.

Por outro lado, Freud esclarece que a pulsão em si não é um perigo. O que então lhe dá essa qualidade? O alerta de desprazer que o Eu emite, frente à demanda de satisfação da pulsão, colocando em marcha o princípio do prazer para obter esse desvio, é o modo como Freud contextualizou a angústia — sinal que coloca o recalque em marcha. A pulsão, enquanto tal, constitui uma infração ao princípio do prazer, na medida em que sua exigência precisamente não é uma satisfação de prazer, e sim uma exigência de mais de gozar (MILLER, 2015).

Outra questão importante levantada por Freud em Inibições, sintomas e angústia é a relação entre a formação de sintomas e a geração de angústia. Haveria duas hipóteses: a angústia é um sintoma de neurose e os sintomas só se formam a fim de evitar a angústia. A angústia surgiria como reação original ao desamparo no trauma (real), sendo este o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose. Se um paciente agorafóbico que tenha sido acompanhado até a rua for ali deixado sozinho, ele produzirá um ataque de angústia; ou se um neurótico obsessivo for impedido de lavar as mãos após haver tocado algo, ele se tornará preso de uma angústia quase insuportável.

Avançamos, então, ao ponto de dizer que inibição e angústia podem, também, se apresentar como sintoma. No que se refere à inibição, fica claro seu caráter de sintoma quando vemos que a inibição é corporal — sexual, marcha, alimentação e da fala. Isso que toca o corpo — encontro do significante e o corpo.

Perturbar e Des-Montar a defesa

Como fazer com a condição defensiva no sintoma?

Freud nos indica que, quando o analista tenta ajudar o Eu em sua luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios entre o Eu e o sintoma atuam do lado das resistências, não sendo simples de afrouxar, muito menos de separar o Eu e o sintoma. Ele assinala que o Eu é fonte de três resistências: a resistência do recalque; a resistência da transferência, que reanima um recalque para além da lembrança; e a resistência em renunciar a qualquer satisfação ou alívio que tenha sido obtido com a doença. Menciona também a resistência que decorre do Isso, necessitando de ‘elaboração’, e a resistência proveniente do supereu, que se opõe à recuperação do próprio paciente pela análise (FREUD, 1925-1926/1996).

Nessa perspectiva, o sintoma, em análise, deve ser reduzido a seu núcleo. Miller  elucida que “reconduzimos os seres de linguagem a nada, os reduzimos a coisa nenhuma” (2015, p. 18). O paradoxo, segundo ele, é o do resto, havendo um x que resta mais além da interpretação freudiana. Assistimos, então, à confrontação do sujeito com o que Freud chama de restos sintomáticos. Para Freud, como ele partia do sentido, isso se apresentava como um resto, mas, de fato, esse resto é o que está nas origens do sujeito; é, de algum modo, o acontecimento originário e, ao mesmo tempo, permanente, que reitera sem cessar, o núcleo do sintoma. Em um tratamento, passamos, certamente, pelo momento de decifração da verdade do sintoma, mas chegamos aos restos sintomáticos, ao fora de sentido.

Poderíamos falar que perturbar a defesa, em Freud, seria

“quando, na análise, damos ao Eu assistência capaz de situá-lo em posição de levantar seus recalques, ele recupera seu poder sobre o Isso recalcado e pode permitir aos impulsos pulsionais que sigam seu curso como se as antigas situações de perigo não existissem mais” (FREUD, 1925-1926/1996, p. 97)

Entretanto, verificamos que, mesmo após o Eu haver resolvido abandonar suas resistências, ele ainda tem dificuldades em desfazer os recalques, sendo o fator dinâmico o que torna uma elaboração desse tipo necessária e abrangente. Se o perigo neurótico é um perigo pulsional, ao levar esse perigo que não é conhecido do Eu até a consciência, o analista faz com que a angústia neurótica não seja diferente da angústia realística, de modo que, com ela, se pode lidar da mesma maneira.

Para Miller (2015), ler um sintoma consiste em privar o sintoma de sentido. Por isso, diz ele, Lacan substitui o aparato de interpretar de Freud por um ternário que não produz sentido: o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Passa-se assim da escuta do sentido à leitura do fora de sentido. A leitura, o saber ler, consiste em manter a distância entre a palavra e o sentido que ela veicula, a partir da escritura como fora de sentido, como letra, a partir de sua materialidade.

Sabemos que, para perturbar e des-montar a defesa, é preciso um percurso de análise. Esta visa reduzir o sintoma a sua fórmula inicial, quer dizer, ao encontro material de um significante e do corpo, ao choque puro da linguagem sobre o corpo. Logo, para tratar o sintoma, é preciso passar pela lógica do desejo, mas também ir adiante da verdade que essa decifração produz e apontar mais além, a fixação do gozo, a opacidade do real.

Guéguen (2014) afirma que, para além de perturbar a defesa, é preciso ir além e desmontar a defesa, pois é importante supor que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado.

Miller (2020) lembra a pergunta de Lacan: como se vive a pulsão? O próprio Miller elucida que, no percurso de seu ensino, Lacan nos evidencia que não se trata, como em Freud, de resolver o conflito, mas de obter um novo arranjo, um funcionamento menos custoso para o sujeito. Não há pulsão sem sintoma. A fantasia é o curso normal da satisfação e equivale à inércia imaginária (posição do neurótico em relação ao desejo), impedindo de saber fazer com o sintoma. Contudo, sabemos ser possível, em uma análise, definir, localizar a fantasia. Porém, no registro do sintoma, como modo de gozo, o que se pode é saber fazer aí com o sintoma, com esse resto, ou seja, fazer-se amigo do sintoma, montar um novo modo de satisfação, uma nova maneira de satisfação pulsional, uma nova construção que Lacan denomina de sinthoma, pois o sintoma não é algo novo, mas um retorno. Há sempre algo de velho no sintoma, pois este é feito de repetição.

 


Referências:
FREUD, S. (1925-1926). Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
GUÉGUEN, P-G. “Defesa (desmontar a)”. Scilicet: Um real para o século XXI. Scriptum Editora. 2014
MILLER, J. -A. “Os caminhos na formação de sintomas”. Opção Lacaniana. nº 60. São Paulo: Eolia, set. 2011.
MILLER, J. -A. “Ler um sintoma”. Opção Lacaniana. nº 70. São Paulo: Eolia, jun. 2015.
MILLER, J. -A. “Síntoma y pulsíon”. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2020.



Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior

Cristiana Pittella
AP, membro da EBP/AMP

 

Resumo: A autora faz uma leitura do texto freudiano “Neurose e psicose” (1924), servindo-se da orientação lacaniana.

Palavras-chave: Neurose; psicose; sonho; delírio; simbólico; real.

A FISSURE IN THE SELF’S RELATIONSHIP WITH THE EXTERIOR WORLD

Abstract: The author reads the Freudian text “Neurosis and psychosis” (1924), using the Lacanian orientation

Keywords: Neurosis; psychosis; dream; delirium; symbolic; real

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

 

Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi
que era um homem. Agora não sei se sou um homem
que sonhou ser borboleta, ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem.

Chuang Tzu, mestre taoísta

A questão da realidade, do ser e da existência é fundamentalmente humana. Em “Clínica irônica”, Jacques-Alain Miller (1996a) afirma que, para Freud, nada deixa de ser sonho, e, para Lacan, a propósito de Freud, se tudo é sonho, então todo mundo é louco, isto é, delirante. Assim, “diante do louco, diante do delirante, não se esqueça que você é, ou foi, analisante, e que também fala ou falava, sobre o que não existe” (p. 199).

Nesta 58ª Lições Introdutórias à Psicanálise, “Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior”, vamos trabalhar o texto freudiano “Neurose e psicose”, de 1924. Nele Freud investiga a gênese das duas entidades clínicas, neurose e psicose, e é a primeira vez que ele utiliza o termo psicose. O contexto é o da segunda tópica, em que Freud, no texto “O eu e o isso” (1923), expande o inconsciente para além do recalque ao apresentar o aparelho psíquico pelas instâncias eu, isso e supereu.

O eu encontra-se submetido às exigências do isso e do supereu, “com o anseio em servir a todos os seus senhores a um só tempo” (FREUD, 1924/2016, p. 271). Freud vai delimitar a neurose e a psicose a partir da posição do eu. A neurose resultaria do conflito entre o eu e o isso, e, a psicose, do conflito entre o eu e o mundo exterior. Ele mesmo considerará isso uma solução simplista, pois a etiologia é comum para o início tanto da neurose quanto da psicose. Trata-se de um elemento incompatível que se impõe ao eu, e este decide rechaçá-lo: “trata-se de um impedimento (Versagung), uma não realização de algum daqueles eternamente indomáveis desejos de infância” (FREUD, 1924/2016, p. 274).

A ideia de conflito entre a defesa e as moções pulsionais, de forças antagônicas, perpassa a obra de Freud. Também em 1923, em seu texto “A perda da realidade na neurose e psicose”, Freud considera mais claramente que há na neurose uma perturbação da realidade, algo que não cessa de não se escrever, e ela própria é uma fuga da realidade. O real insiste, as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer. Neurose e psicose são modalidades de defesa. Para ambas, tratar-se-á de uma perda da realidade e da criação de uma nova realidade (FREUD, 1923/2016, p. 284).

Para explicitar a origem desses conflitos e as soluções encontradas, Freud, no texto que estamos lendo, destaca, a partir de sua experiência, dois campos: o das neuroses de transferência e o das neuroses narcísicas.

Nas neuroses de transferência, o eu, a serviço das exigências do supereu (ideal), se defende das moções pulsionais através do mecanismo de defesa, o recalcamento. Ele se separa de uma parte do isso. O recalcado, entretanto, retorna pela via do compromisso — o deslocamento do afeto de uma representação para outra —, encontrando por essa transferência uma satisfação substitutiva: o sintoma.

Freud delimita três neuroses de transferência: a histeria, a obsessão e a fobia. Na fobia de Hans, o desejo pelo pai se desloca para o medo do cavalo, que o impede de circular livremente. No homem dos ratos, o desejo de matar a mulher que se ama é deslocado para a aflição de que ela tropece numa pedra, ora colocando, ora retirando essa pedra. Na histeria, o afeto converge para o corpo: em Elisabeth von R., suas dores nas pernas e dificuldade de andar surgem do desejo sexual pelo marido de sua irmã.

Para especificar o conflito nas psicoses, Freud se valerá no texto do exemplo da amência de Meynert como um paradigma das neuroses narcísicas. Trata-se de uma aguda confusão alucinatória em que a ruptura com o mundo exterior — pelo grave e intolerável impedimento de desejo por parte da realidade (Wunschversagung) — leva a uma recusa das novas percepções (verweigert). Há uma retirada da libido do mundo exterior (das significações compartilhadas, do laço social), assim como do mundo interior (perda de si e da identidade). O eu cria para si um novo mundo, fechado em si mesmo, construído de acordo com as moções pulsionais.

Freud também se refere às esquizofrenias, em que há um embotamento afetivo e uma perda de toda participação no mundo, do laço com o Outro. Há, na esquizofrenia, um retorno do gozo sobre o corpo. O esquizofrênico não se defende do real com o simbólico porque, para ele, o simbólico é real (MILLER, 1996a). Sua ironia é uma defesa.

Se há um delírio que é do real, é o do esquizofrênico. Temos por orientação nunca nutrir o delírio (MILLER, 2015), pois ele pode levar ao pior. Em uma supervisão em serviço de saúde mental, o CAPS, Rômulo da Silva (1999) relata que um paciente, invadido por uma voz que o questionava se ele seria um anjo, acaba chegando à conclusão — a partir do que trabalhava nas atividades da instituição — de que era o anjo Gabriel. Não obstante, ele se desenlaça das atividades de sua vida. Para que ele participasse das atividades, um técnico vai lhe delegar a função de “anunciar” as atividades do serviço. O paciente ganha um mais de vida; passa a correr com os braços abertos e a anunciar o que lhe era solicitado. Entretanto, para esse sujeito, o simbólico, o significante, é real, não representa o sujeito para outro significante. Seu delírio não alcança um valor de metáfora delirante. Por consequência, ele passa ao ato: “bate as asas” pulando da janela de onde morava, vindo a falecer.

Desde sua leitura de Schreber (1911) e também em “Neurose e psicose”, Freud ressalta que as formações delirantes são um remendo onde originalmente surge uma fissura na relação do eu com o mundo exterior. Elas são tentativas de cura e reconstrução da realidade psíquica, pelo retorno do gozo no significante, fazendo o Outro existir. Freud dá uma dignidade ao delírio concebendo-o não como um distúrbio do juízo, mas como algo singular, do enlaçamento do eu à realidade, ao Outro.

Schreber, um doutor em direito na Alemanha, é chamado a ocupar o lugar de juiz. Trata-se de uma função simbólica que exige do sujeito um uso da significação fálica advinda da metáfora do Nome-do-Pai. Entretanto, Schreber é confrontado com a foraclusão do significante do Nome-do-Pai em sua estrutura, não encontrando um significante que possa representá-lo junto a outro significante, o que acarreta uma ruptura de sua realidade psíquica. Essa ruptura produz uma desestabilização, a saber, um desencadeamento do significante, um desastre crescente do imaginário, e deslocaliza o gozo que retorna no corpo e no Outro do significante.

Ele escreve com rigor, em suas memórias, as imposições e abusos que sofre; como seu corpo é invadido, comandado e modificado por raios divinos, desfazendo seu mundo em cascata. Pela sua escrita podemos ler como ele vai reconstruí-lo com o delírio e encontrar um lugar, uma nomeação, no ponto onde originalmente surgiu a fissura.

A ideia de ser transformado em Mulher é o germe de seu sistema delirante. Ela lhe ocorre a partir de um pensamento de que, afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula. Esse empuxo à mulher se impõe ao sujeito e, se num primeiro momento, o horroriza, em seguida, ele o aceita como um compromisso razoável, para tornar-se um compromisso irreversível (LACAN, 1955-1956).

Com seu delírio, designando-se “A mulher de Deus”, ele pôde, durante um período, viver a sua rotina e exigências do trabalho. Sua existência, seu mundo e lugar junto ao Outro são reconstruídos com esse remendo.

A clínica universal do delírio

Formular uma clínica universal do delírio implica situarmos as diferenças entre as modalidades de delírios dos neuróticos — articulados ao fantasma, aos ideais e às exigências superegoicas — e os delírios na psicose.

Se o neurótico e o paranoico distintamente fazem o Outro existir defendendo-se do real com o simbólico, o esquizofrênico nos ensina acerca da inexistência do Outro, de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem e um uso da ironia.

J.-A. Miller nos convida, em “Clínica irônica” (1996a), a apreendermos a posição do psicanalista como irônica. Mas como tocar o real com as palavras? Como tocá-lo de boa maneira? (MILLER, 2015). Como um psicanalista, na posição irônica, permite interrogar os modos de defesa de cada sujeito?

Advertido de que não há Outro do Outro, a ironia é um modo de fazer e questionar os significantes mestres, em que as palavras podem dizer outra coisa do que dizem e, assim, confrontar o sujeito com a sua própria dimensão delirante.

Exige uma investida, uma presença do analista, que ele aporte o tom, a voz, o acento, um gesto e o olhar, para que seu ato mobilize o corpo do falasser. Nas psicoses, pretendemos apagar ou acomodar o delírio (MILLER, 2015), assim, temos que considerar quando a ironia é uma defesa mínima do sujeito e quando ela pode servir para perturbá-la.

Uma análise pode reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido para fazer um uso do sinthoma. A clínica universal do delírio também aponta para isso que, como psicanalista, trata de escutar o que se enuncia da boca do paciente, o que se vocifera do lugar de mais-ninguém (MILLER, 2015), lugar do sujeito designado desde antes que o significante desenrole suas tessituras capciosas, que fazem esquecer que aí onde se sofre, se goza.

A leitura de “Neurose e psicose” por Lacan 

A definição de defesa no texto “Neurose e psicose” recebe nomes diversos, como recusa, recalcamento e rejeição, sem uma delimitação estrutural clara, e sim mais continuísta. Contudo, Freud termina o texto perguntando-se qual seria o mecanismo análogo ao recalcamento na neurose para a psicose, através do qual o eu se desliga do mundo exterior.

Será Lacan, em seu Seminário 3: as psicoses (1955-1956), ao se referir ao texto freudiano, quem vai delimitar estruturalmente a neurose e a psicose, distinguindo-as quanto às perturbações que elas produzem nas relações do sujeito com a realidade. Ele sublinha que Freud admite um fenômeno de exclusão para o qual o termo Verwerfung parece válido, e que esse modo de defesa se distingue da negação (Verneinung), que é reconhecida por Freud como a matriz simbólica do inconsciente.

Verneinung, negação, é um momento constitutivo que delimita o mundo da realidade psíquica, um momento que está na origem da simbolização. É importante ressaltar que essa origem não está em um ponto do desenvolvimento, mas que responde a uma exigência, a uma escolha forçada. É ela que permite a emergência do mundo simbólico enquanto um sistema de articulação, de oposição entre elementos diferentes: S1– S2 , presença e ausência, dentro-fora, bom-mal…

Neurose e psicose são modalidades de negação, de defesa face ao real. Elas são ordenadas em relação a uma afirmação primária do significante (S1), a Bejahung, e, ao mesmo tempo, em que há uma afirmação, há uma expulsão definitiva (Austossung).

Esse significante (S1) — lalíngua —, que não é feito para se comunicar, marca o corpo do que Lacan nomeou em seu último ensino, falasser. Esse choque de lalíngua no corpo, que chamamos de trauma, itera fora-de-sentido num enxame de significantes S1 (essaim) que não se articulam. A realidade psíquica do falasser se constitui ao redor desse furo traumático (troumatisme), desse choque que ressoa o gozo do Um, um excesso traumático (tropmatisme).

Na neurose, o modo de negação, de defesa em relação às pulsões ao que vem do Outro, é a Verdrangung, o recalque.  Nesse modo de defesa, o ser falante consente com a afirmação primordial de um significante (Bejahung) S1. Entretanto, nega-se a identidade do sujeito com o significante: S1 # $. O sujeito não é o significante, ele só vai figurar no discurso unicamente através de um representante. O significante irrealiza o mundo — a palavra mata a coisa —, a referência está vazia.

Um significante promove o sujeito no discurso, mas isso só se dará em relação a outro significante, o que equivale a dizer que o sujeito é barrado, cindido. O sujeito então se constitui nesse movimento de queda de um significante, que é recalcado, consentindo com a falta-a-ser. Falta a ser o falo. Tem-se a castração do sujeito e do Outro.

O significante recalcado (S1), como nos diz Freud, vai atrair para sua direção outros significantes, segundo as leis da metáfora e da metonímia (condensação e deslocamento), constituindo a cadeia significante, a realidade do sujeito.

Na neurose, o que se elide, nos diz Lacan (1955-1956), é uma parte de sua realidade psíquica (isso), parte esquecida que continua a se fazer ouvir. Como?, pergunta Lacan, e ele mesmo responde: de uma forma simbólica. A estrutura de linguagem do saber inconsciente se define então por essa conexão dos significantes, e o saber recalcado reaparece nas formações do inconsciente, como os sonhos, atos falhos, chistes e sintomas.

A dimensão da castração, a divisão do sujeito, o leva a uma busca recorrente de significação. O enigma do gozo se presentifica na indagação “o que isso quer dizer?”, provocando surpresa e propondo uma questão ao desejo: o que quer o Outro? O neurótico, ao tentar apreender o objeto no Outro, só encontra a vacuidade de um gozo.

A parada dessa busca infinita na cadeia se dá com a construção de sua posição de gozo enquanto objeto (a) para o Outro, $<>a, a construção da fantasia fundamental. Defesa que implica um ponto ininterpretável e que, uma vez atravessada em uma experiência analítica, o falasser possa vir a se virar com o gozo fora-de-sentido, o sinthoma.

Pode acontecer, todavia, de o sujeito recusar o acesso ao seu mundo simbólico, de alguma coisa que ele experimentou e que não é outra coisa senão ameaça à castração. Esse modo de negação, de defesa, cai sob o golpe da Verwerfung e tem uma sorte diferente.

Na foraclusão, o ser falante “escolhe” a psicose, insondável decisão do ser. A negação recai sobre o significante mesmo, que fica nulo quanto a sua função de representabilidade do sujeito. Nesse sentido, a Bejahung não se produz — trata-se da rejeição de um significante primordial. Não há o consentimento, um sim ao significante. Essa rejeição coloca em dúvida todo o conjunto significante  toda a cadeia significante , o Outro  fazendo com que alguma coisa não seja manifestada no registro simbólico retornando no real.

Há, portanto, uma anulação do significante: o significante não representa o sujeito para outro significante, o que faz com que Lacan, no Seminário 11 (1964), nomeie como holófrase S1 S2, ou seja, há uma falta de articulação. Não há espaço entre os significantes, e, mais tarde, em seu ensino, Lacan escreverá apenas como a iteração do S1…S1…S1, escrituras que demonstram a falta de dialetização, a certeza psicótica e a não extração do gozo (a). A função do S1 de representar o sujeito junto ao S2 parte à deriva …S1…S1…S1.

É isso o que caracteriza a foraclusão do Nome-do-Pai, da metáfora primordial da castração. O significante, por não representar o sujeito para outro significante, vai funcionar redobrando o real. O sujeito se depara com um vazio de significação, um buraco, que é a perplexidade, para, em seguida, retornar no real uma resposta, uma significação da significação, que traz uma marca única, que é a certeza (MILLER, 1996b). O Nome-do-Pai ordena o universo do sentido, estabelece vínculos entre significante e significado e une o desejo à lei ao interditar o gozo primordial.

A foraclusão na psicose incide, portanto, diretamente sobre esse significante do Nome-do-Pai, provocando “um furo correspondente no lugar da significação fálica” (LACAN, 1957-1958/ 1998, p. 564), impossibilitando a simbolização da castração. Por consequência, temos a foraclusão do falo. O gozo não é extraído do corpo _ o psicótico tem o objeto (a) no bolso _  provocando uma “desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958 p. 559).

Embora, no Seminário 3, as psicoses, Lacan afirme que “não fica louco quem quer” (1955-1956/ 1985 p. 177) ao considerarmos que a referência está sempre vazia, Miller, ao propor uma clínica universal do delírio, nos indica que todo discurso é uma defesa contra o real. As ficções edípicas, a fantasia — a crença louca no pai — são tão delirantes quanto um delírio na psicose. Ambas são produção de sentido ao gozo.

O delírio é universal, porque os homens falam e porque há linguagem para eles. A linguagem serve à tecitura das ficções com as quais ignoramos o que temos de mais real: a não relação sexual e a nossa própria mortalidade. Há nesse ponto uma interseção entre neurose e psicose no sentido que ambos se deparam com S(A/), ou seja, a forclusão generalizada.

O significante do Nome-do-Pai é, portanto, uma solução entre outras para tratar o gozo. Com o seu declínio, efeito da foraclusão generalizada e, também, mais além da foraclusão localizada na psicose (a Verwerfung), cada um tem que encontrar sua resposta sinthomática frente ao furo, ao real que lhe cabe.
A vida é sonho 

Freud, em “Neurose e psicose”aproxima o sonho da psicose. Essa aproximação se dá, pois há uma realização alucinatória do desejo no sonho, e a ideia de que se alucina quando se dorme atualiza a tendência do aparelho psíquico de se fechar. O sujeito acorda para continuar a dormir na rotina de sua fantasia e evitar o despertar para o real (MILLER, 2020).

Podemos também considerar a intrusão da vida no sonho; o sonho não só na via do inconsciente transferencial — das formações inconscientes —, mas na perspectiva do UM do inconsciente real: um despertar para o real de uma posição de gozo.

Alguns fragmentos do passe de Rômulo da Silva1, membro EBP/AMP, parece-nos contribuir para essa 58ª Lições Introdutórias à psicanálise. Sua análise lhe permitiu reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido e fazer um uso do sinthoma.

Ao redor dele, o prazer e a alegria estavam do lado das mulheres. Desde novo queria saber sobre o gozo do Outro, o que a mulher quer, para assim alcançar o objeto de sua satisfação, o que redundou para ele querer ser esse objeto. De família italiana, na tristeza e na alegria, ouvia “mangia che te fa bene!“. Fazer falar e fazer rir eram maneiras de fazer o outro gozar. Posição que satisfazia uma parte da fantasia.

Até os seis anos foi considerado anoréxico. Havia preocupação com sua magreza e falta de apetite. Sua voz era áfona. Passa a comer com vigor, como elas, e passa a falar como elas.

Quando lhe perguntavam o que queria comer, respondia sempre: tanto faz. Quando solicitado a falar, a voz não saía e experimentava uma retração do corpo. E, sob pressão, o que lhe acometia era um choro que não se externava; saía um gemido, uma expiração impedida, um grito contido.

Tomar a palavra, falar em nome próprio, é assumir uma separação simbólica. Deixar sair a voz é ceder o gozo, separar-se, cair um objeto ao qual se mantém apegado. A função evocante da voz fazia com que ele entrasse em mutismo.

A voz é um objeto intrusivo dado pelo Outro e não se pode recusar. Os autistas e alguns psicóticos nos ensinam o quanto esse objeto é intrusivo. O ouvido não é um órgão que se fecha, diferentemente do objeto oral, que pode ser retirado pelo Outro, deixado pelo sujeito e também recusado por ele na anorexia.

Para se constituir como sujeito, é necessário que o objeto seja extraído do corpo, que o sujeito consinta com o significante. Falar em outra língua foi importante na análise de Rômulo. O analista o acolhe, mas adverte: é preciso falar melhor o francês.

As interrupções das sessões tinham repercussões para além da fala. O silêncio do analista o fez percorrer todo o mito familiar, as situações traumáticas e as soluções para se defender do real.

Sua história, que tanto gostava de contar, foi se tornando vazia e ridícula. Convocado a falar o que não tinha ainda falado e possibilitado de tomar a palavra sem que ela fosse articulada ao sentido, o angustiava, presentificava o objeto.

Ele sonha. Está submerso num tanque cheio de água. Não tem como respirar. Há uma torneira em forma de santo. Se a abrisse, encheria mais ainda. Em seu desespero, abre-a e surpreende-se: o tanque se esvazia.

Não encontra palavras e repete “je me sens… je me sens… je me sens…” (“eu me sinto…”), o que faz assonância com gemeção, ao tentar expelir o ar, o choro da infância, a voz. O analista intervém: J’aime saint, fazendo reverberar o gozo pelo equívoco. Fim da sessão. Ser analisante é aceitar receber de um psicanalista o que perturba a sua defesa (MILLER, 2014).

Faria sentido: a torneira era um santo, o santo que o salvou, o santo que ele é… E Rômulo repete j’aime saint… mas, em francês, não se diz, como em português, “Amo santo”, e sim, j’aime le saint (amo o santo). Ao que ele escuta: J’aime sang… (eu amo sangue). Ou seja, não ama nem é santo… tanto que virou o santo de cabeça para baixo para se salvar.

Rômulo, como o mestre taoísta Chuang Tzu, que não evita o despertar quando seu discípulo lhe diz, “é apenas um sonho!”, desperta para o real de sua posição de gozo. De uma voz tímida e feminina, do compromisso identificado à mãe e às mulheres que seduzia sendo um homem adorável, sua voz tornou-se mais ativa, de acordo com suas cordas vocais, e falava menos na vida. A função evocante da voz estava vinculada ao se fazer ver que o objeto (a), o olhar, impunha.

Um outro sonho revela isso. Um neologismo em francês feito por letras de fumaça: goulant. O som parecia Gourmand, ele via as sílabas go, gol, goul, na, um, aun, ant se desfazendo e não podia formar uma palavra colocando em jogo o sem-de-sentido, um enxame de S1 (essaim). Foi nos últimos suspiros da análise que a queda do objeto olhar se apresentou e permitiu o fim.

Para além da travessia da fantasia, ele nos conta dois episódios.

No primeiro, sempre carregava uma mochila com seus apetrechos. Em uma sessão, o analista, aos berros, exige que ele a deixe fora da sala. Ele a joga num canto. Rômulo não fala desse episódio na sessão, mas havia uma reação violenta em seu corpo, pronta para explodir, e, ao mesmo tempo, tentava entender o desejo do analista. Sai da sessão se perguntando se o analista pensava que ele seria violento e se carregaria uma bomba. O recebimento dessa mensagem invertida revela a sua posição.

No segundo, na sala de espera do analista, fala e gesticula sem parar com alguém que também aguardava e acaba derrubando um vaso no chão. Sem graça, tenta limpar, não consegue. Sai para pedir ajuda e encontra a esposa do analista no hall. Ao não encontrar a palavra em francês, sai disfarçando.

Vai para a sessão, nada fala do ocorrido. A cena o visita em sua forma edípica: “fiz uma besteira, tentei explicar para ela, ela não entendeu. O senhor pode dar um jeito?”. O analista carinhosamente quis saber os detalhes. Rômulo se sente ridículo contando e o analista faz um gesto de “deixa para lá”. Em seguida, volta-se para ele: “mas você quebrou o vaso?”. Ele responde que não e que limpou o que pôde. Em outro gesto tranquilizador e furioso, agarra o braço dele e diz: “mas, se tivesse quebrado, você teria que pagar!”. Ele sai apavorado, pensando nos milhares de euros, como se fosse um vaso da dinastia Ming.

A acolhida e, em seguida, a não cumplicidade do analista confrontaram-no com a solidão de seu gozo. Enquanto falava desenfreadamente na sala de espera, não levava em conta os outros. Não era só narcisismo, mas um autoerotismo; sua satisfação não levava em conta o Outro, simplesmente gozava.

Ao perturbar a defesa, o analista, com sua investida e presença, coloca em jogo a pulsão escópica e a invocante. O efeito de seu ato é mobilizar o corpo do falasser, pois as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer.

Como em um paralelo com o fenômeno elementar e a função do delírio na psicose, trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, sobre os quais o sujeito, em sua neurose, delirou (MILLER, 1996c). O Um sobre o qual o neurótico construiu suas defesas, suas elucubrações ficcionais, histórias de família tecidas de identificações ideais e verdades mentirosas.

 


Referências
FREUD, S. (1923). “A perda da realidade na neurose e psicose”. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte. 2021.
FREUD, S. (1923). “O ego e o id”. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1969.
FREUD, S. (1924). “Neurose e Psicose”. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.
LACAN, J. (1955-1956). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.
LACAN, J. (1964). O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988.
MILLER, J.-A. “Clínica irônica”. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996a.
MILLER, J.-A. “Conciliábulo de Angers”. Conversação clínica realizada na França em 1996b.
MILLER, J.-A. “L’interpretation à l’envers”. La Cause freudienne, n. 32. Paris: Navarin Seuil, 1996c. pp. 9-13.
MILLER, J.-A. La experiência de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós. 2014.
MILLER, J.-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
MILLER, J.-A. “Despertar”. Scilicet: o sonho sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano, AMP, EBP, 2020. pp. 15-19.
SILVA, R. F. “O psicótico em relação à palavra e ao corpo”. Opção Lacaniana, n. 24. jun. 1999. pp. 36-37.

1. “O objeto voz na experiência de uma análise”, em Opção Lacaniana on-line, nº 11, e “Trauma e violência”, em Opção Lacaniana, nº 70.



Perigos e defesas: a análise finita e a infinita

Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, membro da EPB/AMP

Resumo: O texto acompanha o percurso de Freud sobre o tema do final de análise tendo como referência o artigo “A análise finita e a infinita”, que trouxe desdobramentos importantes na psicanálise. No entanto, Lacan, ao postular a inexistência da relação sexual, desafia a concepção de Freud e abre a possibilidade de um passe de ordem lógica.

Palavras-chave: Psicanálise; finita; infinita; passe.

DANGERS AND DEFENSES: FINITE AND INFINITE ANALYSIS

Abstract: The text follows the path of Freud on the theme of the end of analysis with reference to the article “The finite and infinite analysis” that brought important developments in psychoanalysis. However, Lacan, by postulating the inexistence of the sexual relationship, challenges Freud’s conception and opens up the possibility of a pass of logical order.

Keywords: Psychoanalysis; finite; infinite; pass.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Freud publicou “A análise finita e a infinita” em 1937, mas esse tema já o preocupava desde 1900. Em carta para Fliess, de 16/04/1900, relatava sua inquietação com o caráter “aparentemente sem fim de um tratamento analítico” (FREUD, 1937/2017, p. 362). No entanto, foi apenas em 1937 que dedicou um trabalho inteiro a esse tema. São dignos de nota dois eventos importantes que ocorreram antes da data dessa publicação: as desavenças com Otto Rank (que havia proposto um modelo de terapia breve baseado na teoria de caráter traumático do nascimento) e as polêmicas com Ferenczi, que se queixava da pouca atenção recebida por Freud (“aos sentimentos e fantasia negativos em parte transferidos”) (FREUD, 1937/2017, p. 362), que impedia o fim de sua análise.

Na verdade, esse último ponto foi o que tornou ainda mais relevante a questão que concerne à análise dos próprios psicanalistas e que fez com que Ferenczi formulasse a “segunda regra fundamental” da psicanálise: a análise (finalizada) do analista (FREUD, 1937/2017, p. 362). Essa discussão foi retomada por Lacan nos anos 1960, quando propôs a articulação lógica entre o final de análise e o advento de um psicanalista.

O título desse artigo foi traduzido pela editora Autêntica como “A análise finita e a infinita”, diferentemente de “Análise terminável e interminável”, da Standard. O tradutor explica a escolha ao mencionar a existência dos sufixos usados na língua alemã e que o “infinita” tem a conotação de “sem fim”.

Freud começa seu texto dizendo que a análise é um processo a longo prazo, e, por essa razão, justifica sua preocupação em relação à redução de seu tempo. Cita a análise de um jovem russo1, na qual tentou acelerar o tratamento dando ao paciente um “prazo fixo”. Cito-o: “esclareci ao paciente que aquele ano seria o último do tratamento, independentemente dos progressos que ele viesse a registar no tempo ainda restante” (FREUD, 1937/2017, p. 317). A consequência foi o enfraquecimento da resistência, recordação das lembranças e encontro das relações para compreender e solucionar sua neurose. No entanto, anos mais tarde o paciente retornou a Viena em estado lastimável, obrigando o psicanalista a voltar a atendê-lo com o intuito de ajudá-lo a dominar uma parte da transferência não resolvida. Depois disso e durante uma década, o paciente voltou a ser acometido por episódios da doença, sendo tratado pela Dra. Brunswick.

Freud continuou tentando introduzir o método do “prazo fixo” com outros pacientes concluindo ser possível certa eficácia, mas não a garantia da consecução completa da tarefa. Uma parte do material se tornava acessível, e outra permanecia reclusa, perdendo o esforço terapêutico.

As considerações sobre a técnica da psicanálise e a possibilidade de acelerar o processo o levaram a refletir “se (haveria) um término natural de análise, ou se (seria) possível levar uma análise a até tal término” (FREUD, 1937/2017, p. 319). Essas considerações abriram o leque para uma discussão maior, como:

O que é o fim de análise? 1. É quando o paciente não sofre mais com seus sintomas? 2. Quando o analista julga que não há mais possibilidade de temer a repetição de processos patológicos? 3. Ou quando a influência sobre o paciente foi levada a tal ponto que uma continuidade de análise não promoveria nenhuma outra mudança?

As respostas para essas perguntas dependiam de comprovação clínica, e, ao se debruçar sobre a etiologia dos distúrbios, Freud afirmou que essa é mesclada: “trata-se ou de pulsões muito fortes, ou seja, que se rebelam contra a domação pelo Eu, ou do efeito de traumas precoces, isto é, que ocorreram antes do tempo, dos quais um Eu imaturo não conseguiu se apoderar” (FREUD, 1937/2017, p. 320). Constata-se, então, que a etiologia é efeito conjunto dos dois momentos: um constitucional e outro acidental. Quanto mais forte o primeiro, maior a possibilidade de um trauma levar à fixação, deixando um distúrbio evolutivo como resquício, e, quanto mais forte é o trauma, maior será a certeza de que ele expressará a sua lesão.

O psicanalista sublinha a importância da identificação dos obstáculos que impedem a cura analítica e ilustra esse ponto com os casos de dois pacientes. O primeiro é o de um analisante que, em dado momento da análise, apresenta uma transferência negativa em relação ao analista, e o segundo, o caso de uma jovem acometida por dores de natureza histérica. Esta última ficou livre de seus sintomas após 9 meses de tratamento, mas, 14 anos depois, ao ser operada do útero, desenvolveu um quadro confusional e, segundo Freud, tornou-se inacessível a uma nova tentativa analítica.

Os casos descritos acima foram escolhidos por ele para discutir o tema do fim de análise. Os céticos dirão que não é possível um fim de análise duradora e os otimistas dirão que sim, pois a técnica psicanalítica evoluiu desde a conclusão dos dois casos. As expectativas dos otimistas suscitam questões: 1. É possível eliminar um conflito pulsional definitivamente? 2. é possível “vacinar” uma pessoa contra todas as outras possibilidades de conflito?

 

Parte III

A partir deste momento, considero mais didático seguir a forma com a qual Freud dividiu seu texto. Escolhi começar aqui a dividi-lo a partir da parte III.

O ponto principal aqui é a discussão sobre o enigmático fator quantitativo e “ao que Freud chama de (sua) potência irresistível (…)” (MILLER, 2018, p. 43). Nas palavras de Miller:

“uma elucidação significante não é suficiente para operar; resta alguma resistência, não a do paciente, mas a da própria coisa, uma resistência do isso, da libido, de sua viscosidade, da fixação. O encantamento provocado pela leitura dos casos de Freud está ligado ao mito de uma libido fluida, que estaria inteiramente na decifração, como se pudéssemos escrever no quadro a operação e seu resultado, e em seguida mostrá-la ao paciente, que, nesse momento, se levantaria, como Lázaro, e iria embora, liberto do sintoma. Quando Freud diz: ‘Esqueci o fator econômico’, ele extrai essa conclusão de suas dificuldades com seus pacientes. Ele revela isso com base no modo pessimista de que ‘Análise finita e infinita’ é testemunha” (MILLER, 2018, p. 43).

Retornando ao texto de Freud, vemos que este apresenta três fatores determinantes para a oportunidade da terapia analítica: 1. influência de traumas; 2. força pulsional constitucional; 3. alteração do Eu. Dessas, a que mais interessa é a força pulsional (FREUD, 1937/2017, p. 325). Diante desse ponto, o psicanalista pergunta sobre os efeitos a longo prazo da análise, ou seja: é possível resolver de forma duradoura e definitiva um conflito entre a pulsão e o Eu? Ou a uma exigência pulsional patogênica em relação ao Eu? (FREUD, 1937/2017, p. 326).

Mas o que significa resolução duradoura? Freud propõe o termo “domação” da pulsão, que “quer dizer que a pulsão foi acolhida completamente na harmonia do Eu e é acessível através das outras aspirações no Eu, não trilhando mais os seus próprios caminhos em busca de satisfação” (FREUD, 1937/2017, p. 326). No entanto, pode-se constatar a volta dos sintomas em algumas situações em que o sujeito é acometido pela força de um novo trauma, causando o tombamento do Eu:

“No caso de uma força pulsional excessivamente grande, o Eu amadurecido e apoiado pela análise não consegue realizar a tarefa, de modo semelhante ao que acontecia anteriormente com o Eu desamparado; o domínio da pulsão melhora, mas permanece imperfeito, porque a transformação do mecanismo de defesa é apenas incompleta. Não há nisso nada de espantoso, pois a análise não trabalha com recursos de poder ilimitados, mas com recursos limitados, e o resultado final depende sempre das relações de forças relativas das instâncias em combate mútuo” (FREUD, 1937/2017, p. 332-333).

 

Parte IV

Vemos a seguir que Freud levanta duas questões importantes, uma concernente à proteção do sujeito contra futuros conflitos pulsionais, e, outra, à profilaxia. Cito-o: será que “durante o tratamento de um conflito pulsional podemos proteger o paciente contra futuros conflitos pulsionais e […] é exequível e adequado despertar um conflito pulsional não manifesto naquele momento com a finalidade de profilaxia [?]” (FREUD, 1937/2017, p. 333). No fundo, essas questões levantam a problemática sobre os limites da capacidade produtiva de uma terapia analítica. A resposta é que, quando um conflito pulsional não é atual, não há possibilidade de ele ser influenciado pela análise, ou seja, a psicanálise não é profilática.

 

Parte V

Nesse ponto, abre-se a discussão sobre a importância da alteração do Eu no processo de uma análise:

“Nesse intuito, reconhecemos como fundamentais para o sucesso de nosso esforço terapêutico as influências da etiologia traumática, a força relativa das pulsões a serem dominadas e algo que chamamos de alteração do Eu. Foi apenas no segundo desses fatores que permanecemos mais tempo e entramos em mais detalhes; nessa ocasião, tivemos motivos para reconhecer a importância suprema do fator quantitativo, assim como para enfatizar o direito da perspectiva metapsicológica em cada tentativa de explicação” (FREUD, 1937/2017, p. 338).

Portanto, é necessário levar em consideração, de forma mais cuidadosa, a influência da alteração do Eu.

Segundo Freud, não é possível estabelecer uma situação analítica com os psicóticos, pois, como se sabe, em uma análise, é necessário “nos associarmos ao Eu da pessoa-objeto para submetermos porções não dominadas de seu Isso, ou seja, incluí-las na síntese do Eu” (FREUD, 1937/2017, p. 338), e, para tal operação, é necessário um Eu normal. Mesmo que um Eu normal seja apenas ficcional, como toda normalidade.

Os diversos tipos e graus de alteração do Eu dependem de dois fatores: se são originários ou adquiridos. No caso dos adquiridos, a situação é mais fácil, pois isso aconteceu ao longo do desenvolvimento desde os primeiros anos de vida. Ou seja, o Eu faz sua tarefa de mediar o Isso e o mundo exterior a serviço do princípio do prazer, mas:

“Se ao longo desse esforço ele aprender a também adotar uma postura defensiva em relação ao próprio Isso e a tratar as reivindicações pulsionais desse Isso como perigos externos, isso pelo menos em parte se dá porque ele entende que a satisfação pulsional levaria a conflitos com o mundo exterior. Então, sob a influência da educação, o Eu se acostuma a transferir o campo da batalha de fora para dentro, a dominar o perigo interior, antes que ele se transforme em exterior; na maioria das vezes, provavelmente é a melhor coisa a ser feita. Durante essa batalha em duas frentes — mais tarde, virá ainda a terceira frente — o Eu se serve de diferentes procedimentos para fazer jus à sua tarefa, ou, dito de maneira geral, para evitar perigo, angústia e desprazer. Chamamos esses procedimentos de ‘mecanismos de defesa’” (FREUD, 1937/2017, p. 339).

Logo em seguida, no texto, Freud fala do recalque, mecanismo que foi o ponto de partida para o estudo dos processos neuróticos. Ele usa como ilustração o exemplo do livro que tem partes adulteradas, censuradas e substituídas. Essa comparação mostra como o Eu está submetido ao princípio do prazer, à compulsão do princípio do prazer, pois o aparelho psíquico não suporta o desprazer, precisa se proteger o tempo todo, e, se a percepção da realidade trouxer o desprazer, a verdade precisa ser sacrificada. Conclui que conseguimos nos proteger desse perigo temporariamente, já que não é possível fugir de nós mesmos e, contra o perigo interno, não há fuga possível.

Os mecanismos de defesa servem para afastar os perigos e muitas vezes conseguem seu intuito. Contudo, é questionável se o Eu, ao longo de seu desenvolvimento, consegue prescindir desses mecanismos ou se eles se tornam um perigo por terem se fixado ali, causando sobrecarga para a economia psíquica. É claro que uma pessoa não usa todos os mecanismos de defesa possíveis, mas alguns selecionados, que irão se fixar no Eu, transformando-se em formas de reação regulares do caráter e repetidas ao longo da vida. O Eu fortalecido do adulto continua a se defender dos perigos, que, na realidade, não existem mais.

O ponto importante aqui é a indagação de como a alteração do Eu (submetida ao efeito da defesa) influencia o nosso esforço psíquico. Vê-se que o analisando repete, no percurso da análise, os mesmos mecanismos de defesa aos quais está acostumado, mas isso não torna a sua análise impossível. A tarefa da análise funciona como um pêndulo entre um pedacinho da análise do Isso e outro do Eu, ou seja, tornar consciente um pedaço do Isso e corrigir algo do Eu. Cito Freud: “O fato decisivo é que os mecanismos de defesa contra perigos antigos reaparecem no tratamento como resistências contra a cura. Decorre daí que a cura é tratada como um novo perigo, até pelo Eu” (FREUD, 1937/2017, p. 343-344). Diante desse perigo, o Eu se retira do contrato anteriormente acordado do tratamento analítico e não concorda em revelar o Isso, não permitindo que mais nenhum derivado do recalque aflore. Essa é a hora em que a transferência negativa pode aflorar, suspendendo a situação analítica.

Chama-se o efeito das defesas do Eu de “alteração do Eu”. Cito Freud: “Creio que possamos chamar o efeito das defesas no Eu de ‘alteração do Eu’, se entendermos por esse termo a distância de um Eu-normal fictício, que garante ao trabalho analítico uma fidelidade pactual inabalável” (FREUD, 1937/2017, p. 345). Diante disso, podemos afirmar que a situação analítica depende de quão enraizadas estão essas resistências da alteração do Eu.

Será que toda alteração do Eu é adquirida durante as batalhas de defesa dos primeiros tempos? É importante ter em mente que, além de o fator da defesa ter seu lado inato, há a escolha do sujeito, entre possíveis mecanismos de defesa a serem usados.

 

Parte VI

Uma fonte importante de resistência ao trabalho analítico são as diversidades do Eu, “que num outro grupo de casos seriam apontadas como fontes de resistência contra o tratamento analítico e impedimentos do sucesso terapêutico” (FREUD, 1937/2017, p. 348).

Outra fonte de resistência poderosa ao trabalho analítico é o comportamento das duas pulsões primevas: Eros e pulsão de morte. A oposição entre as duas mostra que o aparelho psíquico não trabalha apenas na vertente do prazer; há uma força destrutiva vigorosa: “Esses fenômenos são sinais evidentes da presença de um poder na vida psíquica que chamamos de pulsão de agressão ou pulsão de destruição, dependendo de seus objetivos, e que deduzimos a partir da pulsão de morte original da matéria animada” (FREUD, 1937/2017, p. 349). Importante salientar que o que está em jogo é a junção de forças e o embate das duas pulsões, pois é isso que vai explicar o colorido das ocorrências da vida.

De forma surpreendente, ao estudarmos os fenômenos que comprovam a atividade da pulsão de destruição, não nos deparamos somente com a observação de material patológico: “Inúmeros fatos da vida psíquica normal clamam por uma tal explicação, e quanto mais o nosso olhar se aguça, mais intensamente eles chamarão a nossa atenção” (FREUD, 1937/2017, p. 350).

Curiosamente e apesar de o tema ser importante, Freud decide destacar apenas algumas amostras e começa falando dos bissexuais:

“No entanto, aprendemos que, nesse sentido, todas as pessoas são bissexuais, e que distribuem a sua libido ou de forma manifesta ou de forma latente entre objetos de ambos os gêneros. Mas há algo que chama a nossa atenção: enquanto no primeiro caso as duas direções se entenderam sem embates, no segundo e mais frequente elas se encontram no estado de um conflito irreconciliável. A heterossexualidade de um homem não tolera a homossexualidade, e vice-versa. Se a primeira for a mais forte, ela conseguirá manter a última latente e afastá-la da satisfação real; por outro lado, não há um perigo maior para a função heterossexual de um homem do que o distúrbio causado pela homossexualidade latente” (FREUD, 1937/2017, p. 350).

Para explicar essa questão, Freud aposta na teoria dualista que advoga uma pulsão de morte como parceira em nível de igualdade com o Eros manifesto da libido (FREUD, 1937/2017, p. 351) e, para explicá-la, lança mão da tese de Empédocles de Ácragas, grego pesquisador, médico, político, filantropo, mago, profeta.

 

Parte VII

Nessa parte, Freud faz menção a Ferenczi em seu artigo “O problema da finalização das análises”, no qual o último garantia que a análise não é um processo interminável, mas depende da técnica e da paciência do analista. Portanto, a meta não seria o encurtamento do processo, mas o seu aprofundamento. Um dos pontos fundamentais seria a peculiaridade do analista, suas resistências e a “normalidade”. Aqui Freud fala da formação de uma forma quase pedagógica ao afirmar que

“[…] há uma razão em se exigir do analista um grau mais elevado de normalidade psíquica e correção, como parte da comprovação de sua habilidade profissional; acrescente-se a isso que ele ainda necessita de uma certa superioridade para funcionar como modelo para o paciente em determinadas situações analíticas e em outras como professor” (FREUD, 1937/2017, p. 355)

e acrescenta a importância da crença do amor à verdade, no reconhecimento da realidade.

No entanto, depois de fazer essas afirmações, fala do caráter quase impossível da profissão do analista, pergunta-se como, ou onde, adquirir a habilitação necessária nessa profissão. A resposta: em sua própria análise. Mas e a resistência do analista em sua própria análise? Como lidar com essa situação?

“[…] espera-se que a partir das motivações recebidas na própria análise que elas não se esgotem com o seu término, mas que os processos de reformulação do Eu [Ichumarbeitung] continuem espontaneamente no analisando e que todas as demais experiências sejam utilizadas nesse novo sentido adquirido. Isso acontece de fato e, conforme vai acontecendo, habilita o analisando para se tornar analista” (FREUD, 1937/2017, p. 356).

Um segundo ponto interessante é quando Freud fala do caráter singular do analista e que alguns usam mecanismos de defesa que lhes permitem desviar da própria pessoa conclusões e exigências da análise. Essa crítica pode dar razão ao poeta quando diz que, ao dar poder a alguém, será difícil que não se faça mal uso desse poder.

“Não causaria espanto se através do trabalho com todo o recalcado, que luta por satisfação na alma humana, também despertássemos no analista aquelas demandas pulsionais que ele do contrário poderia manter reprimidas. Esses também são os ‘perigos da análise’, que não ameaçam o parceiro passivo, mas sim o ativo na situação analítica, e não deveríamos deixar de enfrentá-los” (FREUD, 1937/2017, p. 357).

A resposta, segundo ele, estaria na necessidade de o analista se analisar a cada cinco anos, tornando, assim, sua própria análise, infinita.

Apesar da citação acima, Freud diz que é necessário esclarecer um possível mal-entendido, pois não considera que a análise seja sem fim, mas alerta que, nos casos de análise de caráter, é necessário não esperar um término natural.

 

Parte VIII

Continuando a discussão, o psicanalista salienta que tanto nas análises terapêuticas como nas de caráter, percebemos dois temas que se destacam com frequência: “ambos os temas estão atrelados às diferenças de gênero; um deles é tão característico do homem quanto o outro o é da mulher” (FREUD, 1937/2017, p. 358). Acrescenta ainda: “os dois temas que se correspondem são, para a mulher, a inveja do pênis — a aspiração positiva por possuir um genital masculino — e, para o homem, a aversão contra a sua postura passiva ou feminina em relação a outro homem” (FREUD, 1937/2017, p. 358). Ou seja,

“No caso do homem, a aspiração de masculinidade desde o início é totalmente sintônica com o Eu [Ichgerecht]; a postura passiva é recalcada de forma enérgica, uma vez que pressupõe a aceitação da castração, e muitas vezes são apenas supercompensações excessivas que apontam para a sua presença. Também no caso da mulher, a aspiração de masculinidade durante determinado momento é sintônica com o Eu, mais especificamente na fase fálica, antes do desenvolvimento da feminilidade. Depois, no entanto, ela é submetida àquele significativo processo de recalque, de cujo resultado, como apresentado tantas vezes, dependem os destinos da feminilidade. Muito dependerá de sabermos se uma porção suficiente do complexo de masculinidade se esquivou do recalque, influenciando constantemente o caráter; grandes porções do complexo normalmente são transformadas, para contribuir na construção da feminilidade; a partir do desejo não saciado pelo pênis deverá se criar o desejo por uma criança e pelo homem que tem o pênis. No entanto, é estranho percebermos o quão frequentemente o desejo de masculinidade é preservado no inconsciente, lá desenvolvendo sua influência perturbadora a partir do recalque” (FREUD, 1937/2017, p. 359).

Ou seja, em ambos os casos, é a oposição ao outro sexo o que sucumbe ao recalque.

Freud conclui seu texto de forma insatisfatória para si próprio, diante da impossibilidade de ultrapassar o desejo do pênis e o protesto masculino ao considerar a força do biológico em seu papel de pano de fundo.

 

Freud, Lacan e Miller

Em “Aposta no passe” (MILLER, 1980/2018, p. 13), Miller, em uma conferência de 1980, em Caracas, resume alguns pontos essenciais sobre o fim de análise. Ele afirma: “Passe, o termo usado por Lacan, assume o sentido de impasse, que, segundo Freud, corresponde ao desfecho normal da experiência analítica para todo sujeito” (MILLER, 1980/2018, p. 14).

Segundo Miller, o tropeço evocado no toda análise não diz respeito à particularidade clínica do paciente ou à falta de habilidade do analista praticante, pois Freud é muito claro ao afirmar que há um impasse de estrutura, que vale para qualquer sujeito. Ou seja, quanto mais um sujeito avança em sua análise, mais o impasse deve se manifestar. É o complexo de castração, e, especificamente na mulher, a Penisneid, essa inveja cravada no corpo. A análise necessariamente deve chegar a esse rochedo que nos leva a um paradoxo, pois o fim de análise implica um fracasso.

A diferença das perspectivas freudiana e lacaniana quanto ao fim de análise é que Lacan fala de passe em vez de impasse, mas sem, com isso, deixar de concordar com o que Freud postula. Para os dois há fim de análise, mas Lacan aposta que em seu final haja a transformação de analisante para analista, a passagem de uma posição a outra (MILLER, 1980/2018, p. 15).

Freud esperava que o fim de análise seria possibilitar ao homem ser um homem para uma mulher e à mulher ser uma mulher para um homem. É aí que há o tropeço essencial, a falha e a conclusão final de que o complexo de castração é irredutível à experiência.

Por sua vez, Lacan “indica que a questão do fim de análise não se situa no âmbito da relação sexual, que não existe” (MILLER, 1980/2018, p. 16), e para que haja fim, deve-se abdicar dessa ideia e sustentar a não relação. Ao postular a inexistência da relação sexual, ele desafia a concepção de Freud e abre a possibilidade de um passe de ordem lógica.

 


Referências 
FREUD, S. (1937). “A análise finita e a infinita”. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
MILLER, J-A et al. “Sobre o desencadeamento da saída da análise (conjunturas freudianas)”. Aposta no passe. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018.
MILLER, J-A. “Preliminar”. Cómo terminan los análisis. Olivos: Grama Ediciones, 2022.
MILLER, J-. A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.



Cisão do eu no processo de defesa — Ichspaltung

Lucia Mello
Psicóloga, psicanalista, membro da EBP/ AMP
Mestre em psicologia e professora do IEC PUC-MINAS

Resumo: Comentário sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientado pelas leituras de Lacan e Miller sobre o tema, que resultaram em contribuições fundamentais para a atualidade do trabalho clínico. Há, na cura psicanalítica, uma experiência da Spaltung, que atravessa dois grandes momentos do ensino de Lacan, do simbólico ao real, e preserva, nesse percurso, seu elemento de surpresa.

Palavras-chave: Cisão; Ichspaltung; defesa; inconsciente; corpo; real; pulsão; perturbar a defesa.

SPLIT OF MYSELF IN THE DEFENSE PROCESS — ICHSPALTUNG

Abstract: A commentary about Freud’s unfinished article “Split of Myself — Ichspaltung” guided by readings of Lacan and Miller, which resulted in fundamental contributions for the current clinical work. There is a Spaltung experience in the psychoanalytic cure that crosses two key moments in Lacan’s teachings, from symbolic to real, and preserves in this course its element of surprise.

Keywords: Split; Ichspaltung; defense; unconscious; body; real; drive; disturb the defense.

 

CAROLINA BOTURA. AU

 

“Uma cisão do Eu — Ichspaltung” reúne o paradoxo de artigo inacabado, publicado postumamente em 1938, escrito em 1924. Tal como ocorre em algumas obras sinfônicas, nas quais o compositor é assediado por uma frase, uma questão, um tema impossível de responder, a obra de Freud indaga, duvida e insiste no decorrer do trabalho incessante, da inquietação não respondida na travessia da construção de um método, verificado e transformado ao longo da experiência psicanalítica.

No início desse artigo, Freud diz que não sabe o que comunicar, dividido que está entre algo há muito conhecido e “algo totalmente novo e estranho”. O que seria? Há muito conhecido estão os conceitos de trauma, recalque, defesa, Eu, repetição, pulsão, satisfação, proibição, realidade, castração, sexualidade, fantasia, sintoma, inconsciente, entre outros.

Desde o início de sua pesquisa, desde os “Rascunhos”, o “Projeto”, os “Sonhos”, os “Estudos clínicos”, o conflito psíquico decorrente de um perigo real e intolerável, surge a dupla exigência variável, entre satisfação pulsional e proibição pela realidade, recalque e desejo. A defasagem, o desacordo entre exigências opostas, o dueto entre duas classes de pulsões além da incompatibilidade representativa são indagações persistentes em Freud.

No artigo inacabado, uma criança responde com essa duplicidade ao conflito diante da ameaça de castração, ameaça que deslizava entre registros diversos e parece nunca localizada no órgão. A solução eficaz sustentada pela Spaltung, cisão do Eu, evidencia o incurável de uma fenda originária que nunca cicatriza e aumenta à medida que o tempo passa. Nesse caso, o menino manobra a ameaça de castração temida, preserva a masturbação e opera deslocamentos através do fetiche, do sintoma e da fantasia. A função sintética do Eu é perturbada, deixando como resto uma sensibilidade angustiante nos artelhos, interpretada por Freud como expressão mais clara da castração, associada ao temor e à fantasia da devoração pelo pai-cronos.

Freud, no “Compêndio de psicanálise”, outro artigo inacabado, retoma a hipótese da cisão do Eu para além da neurose e psicose, visto supor questão mais ampla das “alterações” no processo de defesa, e constata que a função sintética do Eu, sustentada em vários artigos anteriores, se vê abalada pelos efeitos dessa fenda originária. Nos capítulos seguintes relê a cisão do Eu sob vários ângulos, examinada entre as instâncias psíquicas, entre pulsão e realidade, entre realidades diversas, entre o que nomeia mundo interno e mundo externo, diante do reconhecimento da diferença sexual, entre sonho e realidade. O sintoma, a fantasia, o fetiche, a angústia, pela via do temor, as várias formas de negação podem ocorrer como tentativas de conciliação, evitação, negação, recusa, recalque, mas não modificam as duas atitudes contrárias e independentes que se realizam, onde a negação é suplementada pelo reconhecimento.

Se, anteriormente, Freud “apresentava um corpo, campo de batalha pulsional entre e Eu e as pulsões parciais” (MILLER, 2003, p. 366), em Lacan, a dupla impossibilidade acarretada pela demanda, aquém e além do desejo, consuma a fenda — spaltung — sofrida pelo sujeito. O desejo, diz Lacan, não é nem o apetite de satisfação nem a demanda de amor, mas a diferença entre os dois. Desejo sempre agarrado à proibição, visto que o sujeito é ele mesmo marcado pela spaltung significante, subordinação escrita por vezes na tela da fantasia.

A fenda surge também como o preço a pagar na constituição do inconsciente. Preço terrível evidenciado no comentário de Lacan sobre a “Juventude de Gide”, além de frequente nas consequências clínicas de um desejo cindido em duas vias — o menino Gide, situado entre morte e erotismo masturbatório, confinado ao desejo clandestino, prisioneiro das vicissitudes de ter sido amado, mas não desejado. Máscara terrível, outra leitura lacaniana concernente ao ideal.

No livro 11 de seu Seminário, Lacan situa no jogo do Fort-Da não apenas a repetição imaginária da saída da mãe como causa da Spaltung, mas aponta também que “o que o sujeito visa é aquilo que não está lá enquanto representado” (1964/1985, p. 63).

Trata-se aqui de um breve percurso através de artigos situados nas décadas de 50 e 60 que ilustram uma clínica na qual o inconsciente demonstra os impasses entre desejo e a lei, da tela surpreendente da fantasia portadora das nuances fugidias entre sujeito e o objeto, da fixidez do gozo mortífero, perspectivas marcadas pela falta irremediável de um significante no campo do Outro. Impasses em uma construção cuidadosa.

O artigo “Cisão do Eu” prenuncia outra indagação sobre a defesa; parece deter-se diante não apenas do fracasso de síntese do Eu, mas também de algo sem nome, “algo totalmente novo e estranho”. É preciso lembrar que Spaltung pode ser traduzido por separação, desdobramento, divergência, racha, fissura, cisão, elisão, divisão originária, lugar do trauma.

A falta de palavras, a incompatibilidade verificada desde a cena inaugural da hipnose, no nascimento da psicanálise — trauma da sedução, da sexualidade, das palavras que faltam na angústia, assim como nos chamados traumas de guerras, inicialmente enfrentados com a técnica da pressão, seguida das perguntas sobre a causa do sofrimento —, encontrava resposta incompatível. Defasagem entre a demanda do analista e as outras palavras da paciente, a Outra cena entre a pulsão e consciência do eu permanecia, como contradição, discrepância, desacordo.

O traumatismo persiste — indicativo, segundo hipótese freudiana, de aglomerados formando um núcleo separado do Eu que retornam, desconhecidos pelo paciente, como se fossem inéditos, insuspeitos. A repetição em cada clínica demonstra progressivamente o quanto esse núcleo separado do Eu escapa à apreensão.

Anos mais tarde, no depoimento de Suzane Hommel, de sua análise com Lacan, a cena infantil traz o trauma, o conflito entre pulsão e realidade, cena repetida no pesadelo diante da palavra Gestapo, que evocava a cena da morte iminente das famílias judias — o horror da repetição. Mais uma vez, a primeira vez. No lugar das palavras carregadas de sentido, visando o restabelecimento da memória histórica, indagada por Freud no caso da criança ameaçada pela castração, o gesto sobre a pele de Hommel provoca o deslizamento metonímico entre os dois idiomas. “Geste à peau“, traduz a analisante, dando nome a essa alguma coisa, esse algo que incide sobre o real da cena, e, com isso, o sofrimento se torna menos invasivo. Menos. Lacan não demanda palavras, nesse outro tempo, para construção da cena traumática. Suzane formula sua pergunta: “o trauma de qualquer sujeito não é essa fissura que tentamos revestir com elementos de nossa história?” (HOMMEL, 2022, p. 33).

Essa análise indica ato psicanalítico diverso da interpretação anterior, muda de lugar, vai no sentido oposto através de outro caminho, outra configuração. Avesso e direito não excludentes da experiência psicanalítica, mas que privilegia ainda a singularidade do discurso e o desconhecimento do gozo.

O comentário muito esclarecedor de Jean Hyppolite, na década de 50, sobre a tradução da Verneinung, de Freud, e a resposta a esse comentário provocaram em Lacan um remanejamento das questões fundamentais psicanalíticas, resultando em “perturbar um equilíbrio psíquico que descansa na Spaltung“. Esse trabalho de pesquisa e formalização de cada conceito, devidamente orientado pela clínica, vindo de Lacan promove a passagem progressiva do tratamento sobre a resistência inaugural situada nas interpretações do analista para a incidência sobre o real que convoca a responsabilidade subjetiva não apenas na neurose ou psicose, mas na diversidade da clínica.

A leitura do caso “O homem dos lobos”, fragmento citado por Freud no artigo, mereceu, depois da tradução de Hyppolite, diferenciações mais precisas entre recalque, recusa e forclusão. Mais que um caso clínico, a construção conduzida por Lacan destaca elementos preciosos para a experiência da psicanálise e repercute como acontecimento sobre a teoria. Lacan pode demonstrar, a partir da cena infantil do dedo cortado, que o sentimento de realidade e irrealidade demarcam duas bordas experimentadas pela criança, que demonstram muito precisamente os limites entre alucinação e delírio, que a falta quando não advinda no simbólico reaparece no real.

A cena, minuciosamente examinada por Lacan, diferencia a rememoração, que conserva sua articulação simbólica, enquanto a reminiscência impede o sujeito de elaborar sua história, situando-as em temporalidades diferentes, sobretudo rearranjando resistência e defesa em dimensões opostas: a primeira ao lado do sintoma, a segunda decorrente da pulsão. A diferenciação entre resistência e defesa ultrapassa, a partir desse caso, a questão estrutural entre neurose e psicose, visto que a defesa por qualificar a relação com a pulsão fora do significante implica extrema variedade: silêncio, fixidez e desconhecimento do gozo de cada um. “A defesa qualifica uma relação com a pulsão a respeito da qual a interpretação não é a operação prescrita pela psicanálise” (MILLER, 2003, p. 52). Qual seria a operação mais indicada para lidar com a defesa?

Finalmente essa construção franqueia nova leitura do inconsciente, que, por sua vez, amplia os horizontes da clínica contemporânea. É preciso considerar que esse real não é algo suprimido dos traços primordiais, visto se encontrar presente aguardando, digamos assim, um tradutor a sua altura, desde que proposto como hipótese por Freud, no “Projeto para uma psicologia científica”, na Bejahung, o assentimento primordial, oposto à Ausstossung, a expulsão de algo mau — juízos de atribuição e existência, essenciais no processo de responsabilidade do sujeito. Esse assentimento primordial acarreta, curiosamente, para alguns, a cisão irremediável entre afeto e representação. Denuncia a presença de uma exclusão do sentido, exclusão interna e externa, tempos depois trabalhados por Lacan através do conceito de extimidade.

A Outra abordagem do conceito de defesa resultou no percurso lacaniano através da vastidão desse “algo novo e estranho”. Algo situado por Freud como o inconsciente não recalcado, mas, em Lacan, um texto escrito em outro lugar que não a palavra — marca, traço, signo, sobretudo letra —, não apenas no corpo simbólico ou imaginário, mas na dimensão real do corpo. Se o inconsciente inclui um corpo real, a melhor expressão proposta por Lacan é falasser (parlêtre). Essa inclusão convoca outro trabalho, outro “giro”, como diz Miller, da interpretação como perturbação, que convoca a materialidade da palavra, privilegia a surpresa. O sujeito e seu gozo, a falta e a substância. O corpo afetado pela letra ou, em algumas situações, a letra inventando um corpo.

Se a defesa permanece a mesma, situá-la do lado da pulsão, da reminiscência, do real convoca o sujeito a responder de outro modo. Como demonstra a diversidade da clínica contemporânea, abre novos campos de pesquisa. A psicanálise, com isso, tem chance de acompanhar as intensas transformações da civilização, sempre atuais, o que provoca talvez considerá-la em três grandes grupos: mais um recurso operado em três registros, simbólico, imaginário e real, e suas possíveis amarrações onde o sinthoma, em alguns casos, é prevalente.

O último ensino de Lacan ilumina uma noção para além do sentido e do saber, experiência também convocada pelo falasser, por veredas diversas do mal-estar na civilização, situada a partir do feminino e da clínicas do real apresentadas pela criança na psicose e no autismo. A experiência do real resulta em desafio surpresa para a clínica psicanalítica.

O novo mal-estar na civilização

Através das batalhas políticas e sociais no campo sempre minado dos interesses econômicos; dos corpos mutantes, telas a céu aberto nas quais o amor e o ódio se inscrevem como tatuagem; das sexualidades cada vez mais fluidas; das adicções diversas; dos laços sintomáticos que revisitam e atualizam formas de submissão a senhores tirânicos, em formas de servidão voluntária; das crenças marcadas por alucinações e delírios coletivos, a clínica voltada para outras formas de mal-estar convoca a presença fundamental da psicanálise, visto que a instabilidade atual pode provocar o ato analítico instrumentado por novas construções.  

Clínica do feminino

Formalizada por Lacan a partir do Seminário 20, essa clínica encontra-se presente desde suas lições iniciais, visto que as mulheres estão na origem da psicanálise. Lendo Freud, enfrentando o silêncio e os enigmas das histéricas, Lacan extrai do vazio a questão da inexistência, com e sem corpo. Através da sexuação, ele demonstrará o diálogo impossível com os três registros de falta e o papel suplementar das identificações, sempre mentirosas.

Uma das grandes contribuições lacanianas consiste em demonstrar o não-todo para além da sexuação como o que não se pode dizer nem escrever. Diante da falta irremediável de um significante no campo do Outro, a defesa no real traz elementos como aquilo com o que a mulher não tem relação, e é nisso que ela se duplica:

“a clínica da defesa diante do vazio é comum a todo ser falante. Mas a dificuldade feminina se joga na descontinuidade do enlace significante. A outra para si mesma demonstra esse ponto de impossível — de representar e de eludir: onde ela goza se pensa outra” (MASIDE, 2022, p. 269).

Como perturbar essa defesa?

Campo aberto à pesquisa da qual há muito o que extrair nos tratamentos psicanalíticos atuais, principalmente do contraponto essencial do não-todo na política.

Clínica da psicose

As investigações lacanianas sobre a psicose encontram sua expressão no plural bem destacadas na pesquisa empreendida por Sergio de Campos (2022). Lacan refaz suas hipóteses até extrair de seu último ensino a transmissão mais contundente sobre a clínica da psicose. Se, na “Direção do tratamento” (1966/1998), ele diz que o desejo aponta a impossibilidade da fala reduplicada na fenda spaltung pelo simples fato de falar, os casos clínicos e a releitura da Bejahung freudiana produziram mudanças consideráveis. Devido à natureza de sua alienação, a prevalência do real e as vicissitudes com seus objetos, o sujeito do inconsciente psicótico não será agente de uma enunciação, mas permanece identificado ao lugar vazio onde o Um é sem destinatário.

Em um trabalho incessante de construção de uma realidade, o tratamento é possível através de diversos recursos — linguagem, corpo, redução de um excesso de gozo —, suplências diversas que promovem a estabilização e reconfiguram a psicose na sua vertente ordinária. Ao lado desse trabalho ocorre a potencialização das defesas diante da sombra da morte, e o falasser lança para a clínica psicanalítica indagações sobre como perturbar essas defesas através de novas configurações.

Clínica do autismo

A pesquisa psicanalítica sobre o autismo, iniciada com Rosine e Robert Lefort nos anos 80 e desenvolvida posteriormente por Laurent, Maleval e Miller, entre outros, encontra nessa clínica uma defesa radical e precoce contra a linguagem e o gozo da palavra, na qual nenhuma troca vem mediatizar sua relação a um Outro que não existe. Estrutura diferenciada da psicose, decorre da foraclusão do furo da linguagem. Na clínica do real, na qual as inúmeras autobiografias e biografias dos autistas informam, o tratamento contínuo é realizado pelo sujeito contra esse sistema defensivo — a angústia, a construção de recursos específicos — para criar um Outro sob medida, um corpo, uma voz, enfim, para se fazer existir. A batalha dos autistas para se fazerem reconhecer e respeitar é surpreendente porque aponta a importância de um silêncio eloquente.

A defesa autista se caracteriza pela construção de uma borda que se desloca do isolamento para uma borda dinâmica que pode, inclusive, ser apagada. A localização do gozo sobre uma borda constitui finalmente uma defesa característica do autismo. Uma das maiores contribuições ao autismo implementada por Lacan foi destacar o autismo como categoria clínica fundamental, o status nativo que designa, a um só tempo, o sujeito e o corpo, ou seja, o falasser. Como categoria clínica fundamental, reduz o inconsciente ao fato de falar sozinho. É a conversa do real com o real que ocupa um lugar essencial na clínica das crianças muito pequenas, que ainda não passaram pela fala mentirosa e falam com Um-corpo. Lalíngua. Nessa clínica, perturbar a defesa seria, pelo contrário, a construção de um recomeço, de uma existência?

Para concluir, é preciso citar um trecho do emocionante elogio de Lacan a Freud em “A direção do tratamento”, a respeito do artigo “A cisão do Eu — Ichspaltung“:

“Aqui se inscreve a Ichspaltung derradeira na qual o sujeito se articula com o Logos, e sobre a qual Freud começando a escrever nos ia dando, na última aurora de uma obra com as dimensões do ser, a solução da análise “infinita”, quando sua morte ali veio apor a palavra Nada” (LACAN, 1998, p. 643).

 


Referências
CAMPOS, S. Investigações lacanianas sobre as psicoses: as psicoses extraordinárias. vol. 1. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
CAMPOS, S. Investigações lacanianas sobre as psicoses: as psicoses ordinárias. vol. 2. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
FREUD, S. (1924) Cisão do Eu (Ichspaltung). Compêndio de psicanálise e outros trabalhos inacabados. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
GUÉGUEN, P. G. Defesa (desmontar a). Scilicet: um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
HOMMEL, S. Uma História de família no tempo do nazismo. Correio 87. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise. Abril, 2022.
LACAN, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1954) Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1958) Juventude de Gide ou a letra o desejo. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MALEVAL, J-.C. La différence autistique. Saint Denis: PUV, Université Paris 8, 2021.
MASIDE, M. Clínica da sexualidade feminina. Scilicet: a mulher não existe. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2022.
MILLER, J-.A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J-. A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.



A presença do analista na psicose ordinária1

Sérgio de Campos
Psicanalista, A.M.E. da EBP/AMP
e-mail: sergiodecampos@uol.com.br

 

Resumo: Desde as últimas décadas, nos deparamos com casos clínicos que se manifestam sob formas de gozo, cujas manifestações convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Tendo essas novas formações como casuística principal e sob a perspectiva de uma construção diagnóstica pautada na ética, em argumentos lógicos e baseada em um ponto de vista clínico, este artigo apresenta argumentações sobre a presença do analista na psicose ordinária orientadas pelo esforço de elaboração oriundos do Conciliábulo de Angers, da Conversação de Arcachon e da Convenção de Antibes, que resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito das psicoses. As noções de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências são apresentadas de maneira a orientar a presença do analista diante das tendências contemporâneas da psicose ordinária, demarcando as diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma. 

Palavras-chave: psicose ordinária; presença do analista; sinthome. 

THE PRESENCE OF THE ANALYST IN ORDINARY PSYCHOSIS 

Abstract: In the last decades, we have been faced with clinical cases that manifest themselves in forms of jouissance, whose manifestations call for a non-structuralist diagnostic construction. Having these new formations as the main casuistry and from the perspective of a diagnostic construction based on ethics, on logical arguments and based on a clinical point of view, this article presents arguments about the presence of the analyst in ordinary psychosis guided by the effort of elaboration arising from the Council of Angers, the Arcachon Conversation and the Antibes Convention, which resulted in an update of the concepts of triggering, conversion and transference in the context of psychoses. The notions of neotriggering, neoconversion and neotransferences are presented in order to guide the analyst’s presence in the face of contemporary trends in ordinary psychosis, demarcating the differences between stabilization, substitution and sinthome.

Keywords: ordinary psychosis; presence of the analyst; sinthome.

 

CAROLINA BOTURA. CÁPSULAS DO FUTURO

 

Nas últimas décadas, foram constatados diversos casos clínicos que se manifestam sob várias formas de gozo, incompletas do ponto de vista de suas narrativas, indefinidas sob a perspectiva de seus sintomas e de inconsistências que dificultam o seu enquadramento, resultando na impossibilidade de serem diagnosticados seguramente sob a perspectiva estruturalista. Vale dizer que efetuar um diagnóstico é um ato que implica uma ética, exige argumentos lógicos e é baseado em pontos de vista clínicos.

Miller (2009) aborda, entre 1987 e 1988, o caso “O homem dos lobos”, sem, contudo, firmar um diagnóstico. Em 1996, Miller promove um Conciliábulo de Angers sobre “Enigma e Surpresas nas Psicoses”. Nos estudos iniciais sobre as psicoses promovidos por Miller, acreditava-se estar diante de novas formas raras de psicose, mas depois se verificou que elas eram bastante comuns. Em seguida, em 1997, ele e a École de la Cause Freudienne (ECF) deram impulso ao debate sobre casos raros e inclassificáveis da clínica psicanalítica na Conversação de Arcachon. Por fim, no terceiro encontro de uma série que ocorrera em três cidades com as iniciais de letra A, na Convenção de Antibes, que acontece em 1998, no seio da Seção Clínica da Universidade de Paris VIII, Miller elabora o conceito de psicose ordinária, na acepção de psicoses comuns e em oposição às psicoses extraordinárias no sentido de Schreber.

A psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa para que o derradeiro diagnóstico possa ser detectado. O diagnóstico de psicose ordinária pode ser tomado como uma metodologia de trabalho na medida em que ele expressa a ponta de um iceberg de uma psicose clássica que se encontra submersa e subjacente.

Assim, todo o esforço de elaboração concentrado no Conciliábulo de Angers, a Conversação de Arcachon e a Convenção de Antibes resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito da psicose, designados como neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências, que sem dúvida vieram orientar a presença do analista diante do campo das psicoses.


Neodesencadeamento

A questão que se impõe é como os registros do real, simbólico e imaginário permanecem juntos e o que faz com que eles se soltem e se separarem, desligando o sujeito em sua relação com o Outro. Se o desencadeamento é o resultado de um efeito de abrir e de desencadear, a psicose não desencadeada prescinde do desencadeamento e dos fenômenos produtivos, como a alucinação e o delírio. Em particular, a clínica borromeana acolhe e coloca em evidência uma série de psicoses não desencadeadas, onde novas organizações do gozo se constituem como modalidades subjetivas compensadas, fechando e estabilizando o real da psicose.

Cabe advertir que as psicoses ordinárias não se equivalem às psicoses não desencadeadas, pois elas podem desencadear-se, mas seus desencadeamentos são completamente diferentes das psicoses clássicas. Na Conversação de Arcachon, sob o título de Casos Raros, foram discutidos casos de sujeitos que apresentavam desencadeamentos muito discretos, nos quais os fenômenos elementares, alucinações, delírios e neologismos estavam ausentes.

Assim, os fenômenos das psicoses ordinárias costumam surgir mais dispersos e sutis, emergem como descarrilamentos ínfimos, desconexões entre o eu, o corpo e a pulsão, instalam-se de um jeito fragmentado e discreto, e, por fim, expressam-se de maneira mais pluralizada e múltipla, em razão de serem menos referidos à ausência da ação central do Nome-do-pai (MILLER, 2009, p. 56). Portanto, o diagnóstico de psicose ordinária é mais refinado de ser realizado.

Em síntese, o desligamento é o apanágio da expressão maior do neodesencadeamento e se opõe ao desencadeamento clássico. Pode-se dizer que o desencadeamento se manifesta de dois modos no que se refere ao tempo. O primeiro, em que as variações respeitam um paradigma que concerne à temporalidade do tipo sincronia, apanágio das psicoses clássicas, nas quais os fenômenos psicóticos emergem de forma múltipla, intensa e simultânea, como se fossem uma tempestade, tudo ao mesmo tempo, agora. O segundo modelo concerne à temporalidade do tipo diacronia, atributo das psicoses ordinárias e da estrutura do neodesencadeamento, nas quais os fenômenos psicóticos surgem discretos, esparsos e singulares, numa diacronia de um depois do outro.

Na psicose ordinária, há um progressivo desenganchamento do Outro, devido a um empobrecimento dos laços afetivos e sociais que denotam uma marginalização oculta por tempos, em virtude de rupturas repetidas e progressivas que se instalam de modo diacrônico, pouco a pouco, numa crescente intensidade social. Ante à irrupção do gozo, o tecido simbólico parece esgarçar-se gradativamente. Há uma impossibilidade crescente de o sujeito simbolizar e subjetivar o gozo de modo que ele experimenta um buraco do real que se manifesta através de um desaparecimento do aparelho significante. Ademais, há uma perda paulatina da fantasia que possibilita uma mediação com o gozo. Nesses casos, no final, toda a significação fálica parece estar extinta.

Assim, o neodesencadeamento se expressa como um processo evolutivo que tem indícios, premissas, sinais discretos que são precursores de perturbações futuras e que podem manifestar-se de modo contínuo ou descontínuo na clínica. O sujeito pode experimentar desligamentos gradativos, sucessivos ou descontínuos do Outro social.

Mas, o que impede uma psicose ordinária de se desencadear? Existem pelo menos dois motivos: primeiro, temos o não desencadeamento em virtude da ação de uma identificação imaginária; e, segundo, em razão de uma suplência. Quanto à distinção entre a identificação imaginária e a suplência, podemos dizer que, na distinção, o modelo da identificação se apoia no tipo narcísico, como no caso “O homem dos lobos”, em que uma prótese é construída para o eu; na suplência, como no caso de James Joyce, é posta à prova uma autêntica operação de significante sobre o gozo através do sinthoma. Assim, a suplência é uma forma subjetiva de estabilização, na qual um elemento se torna capaz de enodar os registros RSI, estabilizando o sujeito, de tal forma que ela se torna mais eficaz e articulada do que a compensação imaginária.

Mas, uma vez desligado, como religar? Atualmente, orientamo-nos na clínica pela atenção aos pequenos detalhes, ou em como conseguir localizar na história do sujeito o momento em que ele se desengancha em relação ao Outro. Em grande parte, esse desligamento se faz sutil e gradativamente. Assim, um raciocínio baseado no relato clínico do sujeito pode ser capaz de localizar, apenas a posteriori, o elemento que produzira o desligamento, de tal sorte que se possa permitir uma estratégia com fins a um religamento. A identificação das formas de desligamentos se torna, portanto, essencial para que se possa estabelecer as formas de desencadeamento e os novos contornos clínicos (MILLER, 2012a, p. 22).  Ademais, cabe situar outras maneiras de se ajudar o sujeito a religar-se. Uma delas seria auxiliá-lo a constituir ou descobrir um sinthoma que possa enodar os três registros RSI; e, em seguida, de um modo menos ambicioso, conduzir o sujeito para que ele possa alcançar uma identificação imaginária.
Neoconversão 

Miller, em seu curso Ce qui fait insigne, denota que na conversão existem dois caminhos a partir do S1 de determinados significantes mestres. O primeiro caminho se constitui pela via do registro simbólico, do S2, do saber e do inconsciente; e o segundo, pela via do gozo que está fora do discurso, expresso pelo real que não é decifrável, e, portanto, não interpretável (MILLER, 2012a, p. 103). A conversão clássica abriga um sentido, como uma espécie de conversão na qual o psíquico é uma metáfora do somático. Na segunda clínica, Lacan enfatiza uma conversão, mas como uma continuidade entre o psíquico e o somático, como se um se tornasse o prolongamento do outro, mesmo que seja na condição de avesso.

Enfim, o primeiro paradigma da conversão está fundamentado na metáfora, e o segundo, na metonímia. Na conversão clássica, temos um Outro incompleto que é sustentado por um objeto a equivalente à castração. Em contrapartida, na neoconversão, temos um Outro absoluto que se apoia sobre o objeto a correlato à castração. O resultado da ausência de barra nesse Outro implica uma perda de subjetividade. Logo, a neoconversão, no fundo, é uma inscrição corporal da falta, visto que ela acontece como dimensão sintomática quando há um impossível de reunir o objeto a e a castração simbólica (MILLER, 2012a, p. 158).

O acontecimento de corpo, apanágio da neoconversão, guarda certo enigma, visto que a operação analítica proporciona intervenções sobre o corpo que ocasionam acontecimentos que não fazem ruídos, que são discretos e que, portanto, permanecem desconhecidos. Assim, como os acontecimentos de corpo são em grande parte tênues, eles são experimentados como um sentimento sutil de um deixar cair algo de si do corpo (MILLER, 2012a, p. 394).

A neoconversão mostra o papel prevalente da significação fálica que, mesmo ausente, tem a função de fixar o modo e a possibilidade de leitura do sintoma. Portanto, não se trata mais de uma decifração, mas de uma leitura, de um ler de outro modo (MILLER, 2012a, p. 100). Encontramos casos nos quais o sujeito se mostra incapaz de refletir e de estabelecer uma alteridade, que o tratamento não se apoia mais na direção de uma via simbólica, no discurso, na narrativa, na palavra metafórica e de um saber inconsciente. A alternativa, de acordo com a orientação de Miller, é se amparar pela via do real, pela letra, no que está fora do discurso e que não há um saber inconsciente que revele qualquer significação (MILLER, 2012a, p. 103). Cabe ao analista ajudar o sujeito a inventar algo que possa oferecer-lhe um arrimo, como aquele que diz que escreve no seu diário para apoiar os seus pensamentos.

Não raro, a saída do sujeito é a de construir um corpo, fazer um corpo mediante os piercings, as tatuagens, a vigorexia, as próteses, os implantes, os maneirismos, as estereotipias, as hipocondrias, os dismorfismos corporais, como anorexias ou obesidades, que podem funcionar como uma prótese corporal.

A nomeação também pode funcionar na construção de um corpo, ou mesmo constituir-se mediante um nome, uma vez que a característica do nome está sempre associada à ligação com uma escrita. Nomear não é interpretar, tampouco decifrar. Nomear é uma outra forma de compartilhar o sentido. O que caracteriza o sentido é que se nomeia, mas que ao mesmo tempo não se esclarece, tampouco se compreende (MILLER, 2004-05, p. 149). Assim, a escrita oferece suporte ao pensamento, e com a letra coloca-se um ponto de basta na dispersão do corpo. Enfim, a neoconversão é o paradigma da clínica contemporânea, decorrente do enfraquecimento dos ideais, na era em que ocorre um desaparecimento do Outro simbólico, da promoção do gozo e dos fenômenos do corpo (MILLER, 2012a, p. 158).
 

Neotransferências

No seu texto sobre o caso Schreber, Freud já se manifestava sobre as dificuldades encontradas na transferência, nos casos de tratamentos de psicóticos. Ele explicava esse problema em virtude do narcisismo desses sujeitos, que têm como objeto de amor apenas a si próprios. Ademais, Freud nos deixa um legado ao dizer que a psicose de Schreber se desencadeia quando se instaura a relação de objeto na transferência com Flechsig (MILLER, 2011a, p. 145).

Para Miller, o retorno do gozo não transformado em libido de objeto constitui a dificuldade nuclear das psicoses. Então, o gozo não transformado em libido de objeto se acumula, fazendo com que a libido do eu se torne excessiva. Esse gozo que se retém contribui paradoxalmente para a caída da envoltura narcísica do eu, de maneira que resta para o sujeito apenas o ser do objeto, exposto à invasão do gozo do Outro. Com efeito, a queda do envoltório narcísico do eu ideal diante do gozo do Outro promove os delírios de observação (MILLER, 2011a, p. 146).

A Seção Clínica de Angers interroga se as novas psicoses exigem uma nova posição do analista diante da neotransferência. No âmbito da neurose, o sujeito suposto saber é o pivô da operação analítica. Miller assinala que na segunda clínica de Lacan existe um abandono gradativo da transferência como sujeito suposto. O sujeito suposto saber não é um saber posto, também não é um saber exposto, tampouco é um saber desenvolvido, nem sequer um saber explícito, mas é uma simples significação de saber. O sujeito suposto saber é uma constatação apenas de que o Outro sabe; o saber é seu atributo, sem que disso ele tenha que dar provas, de maneira que não há demonstração ou mostração por parte do analista (MILLER, 2011a, p. 146). Na psicose, por sua vez, não há sujeito suposto saber, visto que o saber está do lado do psicótico. O grupo de trabalho de Angers propôs uma nova transferência nas psicoses como uma alíngua da transferência (MILLER, 2012a, p. 345-346). Ocorre que Miller tem extraído do modelo da psicose elementos para repensar o destino da transferência na segunda clínica de Lacan.

Lacan vai propor, no seu segundo ensino, uma transferência que não se apoie mais no sujeito suposto saber. Trata-se de uma passagem da ontologia à existência e do ser ao Um, na medida em que essa transferência joga com a fuga do sentido. Se a transferência é sustentada pelo sujeito suposto saber, Lacan vai ao âmago do inconsciente estruturado como linguagem que sustenta o inconsciente transferencial para isolar a alíngua como núcleo furado da linguagem. Então, a alíngua da transferência vem ocupar o lugar do sujeito suposto saber, de sorte que ela não é uma alíngua suposta, mas exposta, e que o analista e o analisante devem aprender a lê-la (MILLER, 2012a, p. 348), como uma transferência articulada ao modo de gozo singular do sinthoma, no binário repetição e pulsão, cuja díade funciona como gozo e repetição (MILLER, 2011b, p. 77). Essa díade não constitui uma harmonia, como a antiga parceria do inconsciente transferencial, mas compõe uma parceria dissimétrica, disjunta e correlata ao postulado “não há relação sexual” no que se refere ao sinthoma como um funcionamento positivo de gozo (MILLER, 2011b, p. 78).

A transferência apoiada na alíngua implica um esforço de aprendizagem do analista ou, ainda, na docilidade de aprender a língua particular do sujeito. Miller adverte sobre ser dócil e paciente em relação às invenções do sujeito. Portanto, quando o analista intervém, é do lugar de onde não se sabe; ou da posição que visa a sustentar o falasser nas invenções que ele estabelece para defender-se do Outro gozador; e, por fim, se houver oportunidade, o analista, com a finalidade de esvaziar o Outro, deve trazê-lo para as brincadeiras infantis (MILLER, 2012a, p. 348).

A transferência como alíngua concerne à posição do analista como aquele que permite limitar o gozo, descompletando o Outro, como esvaziar as crises passionais de erotomania ou de odiomania, mostrando-se barrado. Ademais, a posição do analista acolhe o gozo errante, o gozo à deriva, ao se imiscuir na alíngua do sujeito. Ao adotar essa atitude, o analista garante ao sujeito a condição de fiador de sua alíngua; por fim, o analista pode oferecer-se ao sujeito como um lugar não-todo, no qual ele se serve do analista para dizer, na qualidade do Um que dialoga sozinho (MILLER, 2012a, p. 350-51).

A transferência da alíngua jamais se transforma em um lugar do jogo dos semblantes. Mas, ao se consentir adotar um vínculo frouxo que oferece uma justa medida à técnica do holding de Ferenczi, o analista se permite elaborar um saber fazer com a alíngua (MILLER, 2012a, p. 187). A transferência da alíngua possibilita a elaboração de um “saber ler de outro modo”, de maneira que permite ao sujeito grampear o simbólico e o real sobre a dobra do imaginário (MILLER, 2012a, p. 181). Assim, a condição da transferência de a alíngua favorece não apenas ao analista, mas também ao sujeito “aprender a se ler de outro modo”. Enfim, é necessário que o processo analítico crie condições para que o analisante se habilite na função de se “ler de outro modo”. Pode-se dizer que “saber ler de outro modo” possibilita um grampeamento dos três registros – real, simbólico e imaginário – para que permaneçam intactos e com valores equivalentes. Assim, “ler de uma outra maneira” não é ler o sentido, mas a função daquilo que se manifesta em ato, no âmbito da repetição e do gozo.

Enfim, o que importa é que o analista vise, com o trabalho de neotransferência, a obter uma amarração dos três registros – real, simbólico e imaginário – pela via dos nomes do pai, no lugar onde o sujeito se desamarrou ou apresenta a dificuldade de refazer o nó de Borromeo. Caso ocorram contingências favoráveis, o analista pode inclusive proporcionar novas condições que possibilitem ao sujeito amarrar os três registros de outra maneira.

Uma das estratégias da neotransferência na operação analítica faz com que o analista opere como se ele fosse o sinthoma, com uma ajuda-contra aquilo que impele o sujeito na direção de A mulher ou em seu encontro com Um-pai; uma ajuda-contra a consistência do Outro sem barra; uma ajuda-contra a onisciência absoluta do Outro na medida em que implica certa vacilação analítica como furo no saber; uma ajuda-contra a devastação do supereu feminino; uma ajuda-contra a desamarração dos registros; uma ajuda-contra o sintoma, a inibição e a angústia, uma ajuda-contra o gozo feminino e uma ajuda-contra o desvario e a deriva, fruto do Significante do Outro barrado, do Outro que não existe, expresso como S(A/) (MILLER, 2012a, p. 207).

Enfim, fundamentado na interpretação do tipo ajuda-contra, o analista visa à operação de prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de servir-se dele. A operação analítica tem assim a finalidade de instaurar o furo no Outro, o furo no inconsciente para que o contingente possa emergir.

Com isso, o analista coloca em jogo uma nova modalidade de transferência, capaz de incluir o sujeito no discurso, particularmente aqueles que estão fora dele; enodar os registros real, simbólico e imaginário, facilitando a construção de narrativas de sujeitos que estão desamarrados; estabelecer um vínculo transferencial frouxo com o sujeito; e, por fim, descompletar e furar o Outro consistente e onisciente (ALVARENGA, 2018).
Tendências contemporâneas da psicose ordinária

A primeira que se constata na contemporaneidade é a tendência ao múltiplo, que se manifesta nos casos clínicos por conta dos efeitos da pluralização dos nomes do pai. Atualmente, verifica-se na clínica uma pluralidade de significantes mestres que não se organizam em torno de um, mas que se comportam como uma espécie de enxame, como se diz em francês, essaim, homofônico ao S1. Assim, esses casos se produzem como múltiplos, mas não se organizam em um conjunto ordenado, no qual se obedece a uma lógica classificatória.

A segunda tendência que se averigua é a passagem do universal ao singular, do artigo definido O para o artigo indefinido Um. Não estamos mais sob a égide da forclusão do Nome-do-pai, mas sob o prisma de uma forclusão generalizada, denotando uma diversificação das múltiplas formas de gozo num novo contexto clínico, teórico e político, no qual todo mundo delira. Pode-se nomear o caso “O homem dos lobos” como o primeiro paradigma dessa espécie, já que não temos uma forclusão do Nome-do-pai, mas uma forclusão da castração, ou uma forclusão da significação fálica (BROUSSE, 2009).

A terceira tendência que se apura no contemporâneo é uma modificação do estatuto do Nome-do-Pai como função, isto é, há uma migração da função do universal do Nome-do-Pai para uma função no particular, com a designação da nominação (nommer-à) de “nomear para…” (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974). O pai tem uma função nomeante, visto que o pai também é o pai do nome. Mas, a expressão “nomear para…” não detém uma função operativa equivalente ao Nome-do-pai. Com efeito, “nomear para…” é um indicador para se ocupar uma função. Na verdade, trata-se de uma pequena indicação de função, como aquela em que um sujeito é indicado pelo padre para ser o zelador da paróquia com a função de guardar as chaves da igreja.

A indicação do padre de “ser nomeado para…” confere ao sujeito uma “grande responsabilidade” e lhe oferece um lugar na pequena sociedade local que ele não conseguira conquistar sozinho. “A grande responsabilidade” como a função de zelador da paróquia pode ocasionar um recurso à identidade, ou a uma “superidentidade” sem fissuras, que poderá ser capaz de exercer a função de suplência imaginária diante da falência da função fálica. Logo, a “sobreidentificação pode conferir ao sujeito um novo valor ao papel social” (MILLER, 2003, p. 40).

A posição do psicótico ordinário não tem nada de excepcional, de extraordinário; ela é bastante comum, banal e ordinária, como a de ser nomeado para ser um zelador da paróquia, cuja função é a de limpar, cuidar e guardar as chaves da igreja. Portanto, resta ao sujeito encontrar invenções miúdas ou consentir com pequenas nomeações capazes de enodar os registros simbólico, imaginário e real. Essas nomeações funcionam como referência ao pai, mas não são um significante Nome-do-pai propriamente dito. Lacan ressalta que essas pequenas nomeações e invenções mínimas podem ser capazes de estabilizar esses sujeitos em razão de um efeito semelhante ao Nome-do-pai, ressignificando sua função.
Diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma

Embora pareçam ser sinônimos, existem diferenças sutis e discretas entre os conceitos de estabilização, de suplência e de sinthoma, que podem a princípio passar despercebidas. Em síntese, vale demarcar que as estabilizações são pequenas invenções e soluções encontradas – seja pelo próprio ser falante, seja com a ajuda do analista, em um processo terapêutico – para lidar com suas instabilidades psicóticas no intuito de estabilizá-las.

As suplências podem ser consideradas como o modo do ser falante efetuar suas amarrações dos registros do simbólico, do real e do imaginário. E o sinthoma são os restos sintomáticos, o que restou de um processo analítico ou o que é derivado do próprio ser falante sob o paradigma de Joyce, no que concerne ao estilo e ao osso de uma análise e que produz um reganho de gozo positivo capaz de promover efeitos de satisfação.

Dentre os três, de uma direção de dentro para fora, o sinthoma é aquele que se encontra em sua posição mais íntima de núcleo. Em seguida, o sinthoma é circundado pela suplência e, de maneira mais periférica, na adventícia, encontramos a estabilização. Pode-se propor uma equivalência do sinthoma como a finalidade última ou a política do tratamento; a suplência como a estratégia ou os meios pelos quais o falasser encontrou seus pontos de amarração; e, por fim, a estabilização que pode se equivaler às táticas. Enfim, um sinthoma pode proporcionar a suplência e ocasionar as estabilizações. Mas uma suplência pode oferecer estabilização sem ser um sinthoma, e uma estabilização em si só é uma solução que não gera uma suplência, tampouco um sinthoma.
 

Estabilização            

No primeiro ensino, Lacan ressalta que a estabilização pode ser conseguida mediante identificações e bengalas imaginárias que servem de escora para apoiar o ser do sujeito. Existem estabilizações mediante determinados objetos nos autistas ou como resultado de bricolagens bizarras as quais o esquizofrênico utiliza para instituir um novo órgão e reconstituir um corpo (LAURENT, 1998).

O conceito de estabilização surge em virtude da construção delirante de Schreber, ao desenvolver o esquema I, no que concerne ao assentimento com o empuxo à mulher. Portanto, temos a estabilização mediante a metáfora delirante. Mas pequenas invenções psicóticas também são capazes de promover estabilizações, de forma que as estabilizações são múltiplas, em razão da inventividade de cada sujeito. Enfim, a estabilização na psicose pode instaurar-se mediante a função da letra, a invenção subjetiva, a bricolagem, a identificação imaginária, a nomeação, dentre outras.

Em suma, temos, em primeiro lugar, a estabilização pela via do real da passagem ao ato (LACAN, 1932/1987), referida ao caso Aimée, depois do atentado cometido contra a atriz Hugette ex-Duflos e de sua prisão, em que ela alcança sua estabilização; em segundo, temos a estabilização pela via imaginária, mediante a metáfora delirante como A mulher de Deus alcançada por Schreber; e, por fim, a estabilização pela via do simbólico, estabelecida pelo sinthoma da escrita de James Joyce.

Vale dizer que a super-identificação também pode proporcionar a estabilização. O surgimento dessa identificação orienta de maneira sólida o psicótico ordinário. Essa super-identificação é capaz de fazer a função do traço unário, provocando identificações sociais positivas. O ser falante investe a libido em nomes que lhe conferem pequenos valores de autoridades nas tradições familiares e sociais (MALEVAL, 2019, p. 117).

O papel dessa identidade proporciona um misto de ser e parecer que se ajusta a uma mescla entre a seriedade e a autenticidade de aparências dentro das normas sociais. Então, a adesão ao misto de parecer e de ser faz com que o ser falante constitua uma personalidade rígida baseada no “como se”. A aspiração pela ordem desses sujeitos se coloca como defesa com a finalidade de minimizar os efeitos intoleráveis da ambiguidade (MALEVAL, 2019, p. 117). Em virtude de se tornarem escrupulosos para com as normas, esses sujeitos se tornam verdadeiros normopatas.

Enfim, a super-identificação tem a função de suplência e de estabilização na psicose, em razão de que o nome tem um papel de “como se” fosse um patronímico (MALEVAL, 2019, p. 129).  A pluralização dos nomes do pai é possível inclusive para as neuroses nas quais cada sujeito encontra sua maneira de fazer valer a função paterna. A suplência se ancora na função de limitação, que opera sobre o gozo como a castração, onde houve uma falha na significação fálica (MALEVAL, 2019, p. 45).

A escrita pode prestar-se a uma estabilização na psicose. Contudo, pensar que um psicótico se cura escrevendo é insuficiente. Os hospitais psiquiátricos estão cheios de oficinas de escritas. A escrita não pode constituir-se como uma demanda de quem assiste o psicótico. Assim, se o falasser escreve ou toma a iniciativa espontânea de escrever, não se deve interpretar o escrito do psicótico. Mas, deve-se permitir que ele possa manter a ordem das palavras, apoiando-se na dita escritura a qual tem sempre o estatuto de um S1, que se repete na esfera da letra (LAURENT, 1989, p. 30).

Um dos elementos que contribuem para a estabilização na psicose é, sem sombra de dúvida, o manejo da transferência em que o analista assume a função de testemunha e de secretário do alienado. Quando o analista se coloca na posição de testemunha, ele pode favorecer uma articulação entre a linguagem e a alíngua, garantindo uma nova ordem fora do discurso (LAURENT, 1989, p. 33). Como secretário do alienado, o analista deve tomar o relato do psicótico ao pé da letra (LACAN, 1955-56/1985, p. 236).

No caso de Pankejeff, a estabilização não passava por decodificar enigmas em significações, mas de fortalecer o narcisismo que funcionara como uma armadura, como uma espécie de falso ego, cujo papel era o de delimitar as bordas do corpo. A estabilização se dera por duas estratégias: primeiro, mediante o narcisismo, como “o paciente mais celebre de Freud” que funcionara como uma prótese para o ego; e, segundo, por meio da nomeação de “O homem dos lobos”, cunhada pelo movimento psicanalítico, que lhe garantiu a sobrevivência e lhe assegurou um lugar especial e de exceção no laço social (LACAN, 1975-76/2007, p. 146).
Suplência

Lacan recorre aos escritos de James Joyce, particularmente o livro O retrato do artista quando jovem, para descrever um acontecimento de corpo no qual Joyce relata uma experiência na infância de ter sido batido pelos seus colegas de sala quando foi encurralado contra um arame farpado. Após libertar-se, rapidamente ele sente sua raiva evanescer “tão facilmente quanto uma fruta que é despida de sua pele macia e madura”. Nessa quase ausência de afeto, que naturalmente seria uma reação à violência física, o menino toma distância de seu corpo, deixando-o como uma casca (LACAN, 1975-76/2007, p. 37).

Como Joyce havia conseguido, através de sua arte, suprir sua carência paterna, Lacan assinala que ele fez uma suplência. Essa suplência pode ser definida em três planos. Como Joyce não pode contar com o significante Nome-do-pai, o que veio ocupar esse lugar foi, do ponto de vista da dimensão simbólica, a vontade de fazer um nome para si, que não fora reduzido à demanda de reconhecimento.

Assim, foi produzindo o seu nome que Joyce se manteve no sentido fálico. Do ponto de vista do imaginário, Joyce, segundo Lacan, criou um imaginário de suporte, um imaginário de segurança. Trata-se de um imaginário duplicado como um êxtase do ego, por onde Joyce enoda o simbólico e o real. Portanto, a suplência em Joyce destaca como a escrita, como um quarto nó, amarrou os três registros – real, simbólico e imaginário. O imaginário ganha profundidade quando esse imaginário é em latim e totalmente alheio à estrutura de Joyce.  Lacan comenta que há um imaginário duplicado em Joyce que se encadeia com o real. Trata-se de um imaginário encadeado no real de seu gozo.

Pode-se dizer que Pankejeff conseguiu uma estabilização e, de certa forma, até alguma função de suplência com a nomeação de “O homem dos lobos” ou de ser nomeado como “o paciente mais célebre de Freud”. Contudo, ele jamais alcançou o estatuto de sinthoma. A suplência de Pankejeff pode ser verificada mediante o fato de que ele conseguira, através do narcisismo, amarrar o real referente à corrente mais arcaica e profunda, dita feminina; a corrente masculina, inscrita no registro simbólico e, por fim, a corrente fóbica, na qual ele era objeto de decoração no plano imaginário. Enfim, para o analista, é necessário localizar os pontos de suplências, os enodamentos nos pontos de falhas na cadeia borromeana, com a finalidade de protegê-los, de cuidar para que eles não se soltem.

 

Sinthoma

No último ensino, Lacan se inspira na prática da escrita de James Joyce para elaborar o conceito de sinthoma. Miller assinala que foi Joyce que despertara Lacan de seu sono dogmático (MILLER, 2009, p. 134). Então, foi a experiência de Joyce com a escrita que despertou Lacan de seu sonho dogmático com o simbólico para alcançar novas elaborações. Lacan descobre com Joyce que o nome próprio oferece consistência ao Um-corpo. Vale dizer que Joyce é a encarnação do sinthoma na medida em que ele é desabonado do inconsciente e não é apadrinhado pelo Outro. Logo, o sinthoma é a encarnação do que há de mais singular em cada falasser (MILLER, 2009, p. 141).

Lacan, na medida em que propõe ler de uma outra maneira, recomenda uma nova ortografia, uma ortografia arcaica, com fins de escrever o sintoma, de modo que ele possa ser lido com sinthoma. Ler de outra maneira, no último ensino de Lacan, implica em um novo léxico, repleto de neologismos (MILLER, 2009, p. 136).  Assim, no final de seu ensino, Lacan está mais interessado em escutar o sinthoma do Um do que o discurso do Outro (MILLER, 2009, p. 141).

No último ensino, o amor de transferência se apaga em razão do desaparecimento do sujeito suposto saber, de maneira que o falasser que dialoga sozinho recebe sua própria mensagem sob a forma invertida. Afinal é o falasser que sabe sobre si e não o sujeito suposto saber (LACAN, 1976-77). Na análise do Um que dialoga sozinho, o analista faz a função de furo, como uma espécie de tonel das Danaides, que esvazia o sentido, constituindo o insucesso do inconsciente, que resulta em um gozo cujo atributo positivo implica numa satisfação do sinthoma (MILLER, 2012b, p. 55).

Logo, uma satisfação sinthomática ligada ao Um e ao corpo se apresenta como uma nova solução para o falasser. Trata-se de uma repetição articulada ao furo, ao troumaisme, resultado da passagem do real impossível para o real contingente. Assim, na medida em que o sinthoma é indecifrável, a experiência analítica, por fim, coloca em evidência a marca de satisfação com a letra de gozo. Com efeito, trata-se de identificar-se com o sinthoma e, tomando certa distância, assentir com sua identidade sintomal. A tomada de certa distância do sinthoma, com o qual se está identificado, tem a finalidade de se poder fazer alguma coisa com ele, saber manipulá-lo, saber se virar com ele, com esse resto que é do registro da existência (MILLER, 2009, p. 143).

 


Referências 
ALVARENGA, E. A transferência e seu manejo nas psicoses. Revista Arteira, n. 10, out. 2018. Disponível em: <http://revistaarteira.com.br/index.php/manejo>. Acesso em: 26 abr. 2020.
BROUSSE, M-H. A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso. Latusa digital, ano 6, n. 38, set. 2009. Disponível em: <http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_38_a1.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2020.
LACAN, J. (1932). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
LACAN, J. (1955-56). O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Inédito).
LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
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1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 07/10/2022.



Clínica do funcionamento: a psicose ordinária e a presença do analista1

Fernanda Otoni-Brisset
Psicanalista, membro da EBP/AMP
fernanda.otonibb@gmail.com

 

Resumo: Na atualidade da experiência analítica nos deparamos com uma plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça, evitando, assim, reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai. Cabe sublinhar que a formulação milleriana designada como “psicose ordinária” não é mais uma categoria clínica, mas, conforme, escreveu Sérgio de Campos: “é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto, com a clínica em movimento. Se, para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó, no vasto mundo das psicoses outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Não seria aqui que a presença do analista aconteceria na clínica da psicose ordinária? 

Palavras-chave: clínica do funcionamento; psicose ordinária; nós; presença do analista.

OPERATING CLINIC:

THE ORDINARY PSYCHOSIS AND THE PRESENCE OF THE ANALYST

Abstract: In the actuality of the analytic experience, we are faced with a plasticity of cases that, under transference, requires a longer time for a diagnostic precision to be clarified, thus avoiding reducing the answer to a simple yes or no, presence or absence of the Name-of-the- Father. It should be noted that the millerian formulation designated as “ordinary psychosis” is no longer a clinical category, but as Sérgio Campos wrote: “it is a diagnosis in suspension, a diagnosis of parenthesis, a pause” that installs an investigation plan that goes hand in hand, with the clinic in motion. If, for neurotics, the Name-of-the-Father makes the knot, in the vast world of psychoses, other modes of knots and staples present themselves as if they were a Name-of-the-Father. The flashlight moves from the quarrel of diagnosis to illuminate the real within the treatment; the question shifts from “what is it”, to “how does it work”. Is it not here that the presence of the analyst takes place in the clinic of ordinary psychosis? 

Keywords: operating clinic; ordinary psychosis; knot; presence of the analyst.

 

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Uma alegria estar conversando mais uma vez com os colegas do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Agradeço à Maria de Fatima Ferreira e ao Fernando Casula pelo convite e, mais ainda, ao Sérgio de Campos pela esclarecedora exposição que pode nos oferecer sobre psicose ordinária e a presença do analista, com referências preciosas para pensarmos a clínica contemporânea, o que é o ordinário, o mais comum em nossa experiência, no consultório e fora dele, nas instituições. 

Todos nós sabemos da precariedade da clínica binária diante da atualidade da experiência analítica. Verificamos a plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem seguir adiante antes que uma precisão diagnóstica se esclareça. “O que será que ele é? Neurose, psicose…?”. O pêndulo do sino de Gauss segue balançando conforme a intensidade dos pequenos indícios, dos divinos detalhes.

Impossível reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai, face ao real que a clínica contemporânea nos entrega. Contudo, não se trata de acrescentar “a psicose ordinária” ao rol das categorias clínicas. Miller (2012, p. 412-413) dirá que “o perigo do conceito da psicose ordinária – é o que se chama um asilo para a ignorância”. Sérgio de Campos escreve: “A psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto com a clínica em movimento. Supostas neuroses e psicoses se colocam a investigar… Lembro de Miller (2007, p. 23) dizendo: “A neurose, não é mais sempre, a neurose… tem-se aí o diagnostico diferencial, mas tem também um continuum: ‘todas as mulheres são loucas’; ‘o mundo é louco’. Lancem um olhar sobre a neurose, os delírios de que ela é capaz, aqueles de que ela é feita; a neurose é um patchwork.” Ou seja: todo mundo delira (MILLER, 2005, p. 257). Se seguirmos assim, neuroses e psicoses, guardadas as distinções e segundo a lógica da forclusão generalizada, encontram-se igualmente reunidas no interior do conjunto dos seres que Lacan definiu como, “simplesmente, parlêtre” (OTONI-BRISSET, 2018).

Me pergunto se o termo “psicose ordinária” não é um convite para explorarmos as consequências da “declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres” (MILLER, 2016, p. 31):  um estreito continuum a perseguir e, diria com Lacan que, ao abrir uma pausa, o conceito da “psicose ordinária” desinstala o analista da encruzilhada da querela do diagnóstico e instala o analista como um Outro que segue, uma vez que o saber está do lado do falasser.
Fundamentos de igualdade

Algumas das proposições de Lacan nos permitem declarar que cada um fala a sua lalíngua e que para todos “falar é em si uma perturbação da linguagem” (MILLER, 2012, p. 250). Onde houver um ser falante, no encontro da língua com o corpo verifica-se a desordem na junção mais íntima do sentimento de vida, e é a tensão provocada por essa desordem que força a “conexão bem mais estreita do gozo e do significante” (MILLER, 2012, p. 264). Quando isso acontece, temos uma conexão. Se não acontece, estamos diante de um desligamento… ou um neodesencadeamento, ou desencadeamento clássico. Essa relação do gozo com o significante – ou melhor, a não relação – é um fundamento comum a todos, ainda que sejam distintos os modos como tal conexão acontece, ao enodar esse Um da língua ao Outro. Para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó; e, no vasto mundo das psicoses, outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai.

A passagem da clínica diferencial à borromeana de forma alguma nos permite apagar o modo neurótico ou psicótico de ser, mas exige-nos seguir a finesse dos pequenos sinais, indícios de pinças, amarras ou nós, numa investigação permanente, atentos ao singular do sinthoma, a encarnação do que há de mais singular em cada falasser. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é”, para “como é que ele funciona”. Uma clínica do funcionamento, das conexões, dos ínfimos detalhes em que o toque de singularidade é a bússola.

Com Miller, podemos dizer que as psicoses ordinárias e as outras, neuroses e psicoses, são, a um só tempo, “saídas diferentes para a mesma dificuldade do ser” (MILLER, 2012, p. 242), para o que não cessa de não se escrever e que pulsa na “junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565).  Mas o que é que há e acontece nessa junção mais íntima?
“É a pfuit! do sentido e a busca dos pontos de basta” (LAURENT, 2012, p. 273)

É quando a inexistência da relação eclode e o clips se abre para o nada, exalando a pfuit! cujo eco ressoa. Ao propor o sintagma “psicose ordinária”, Miller (2012, p. 401) desejou provocar um “eco no clínico”. Que eco seria esse, senão o que ressoa de um oco real, incrustrado na junção mais íntima do ser? Só há eco se há presença de um corpo material que acuse efeito de retorno. Não seria aqui que a presença do analista acontece na clínica da psicose ordinária – ao se colocar como testemunha desse pfuit! do sentido e fazer par com a urgência do gozo na busca de um ponto de basta?

Nessa clínica, o analista é aquele que segue sondando os indícios da desordem ordinária e verificando os vestígios da experiência para com a desordem, o furo, quando o nó se afrouxa, ora bambeia, ou até se solta, desatando a junção. A presença do analista aí testemunha a desordem do real: o hors-sens do gozo! E, ao mesmo tempo, ao estar ali ao lado, corpo presente, ressoa o que se apresenta como possível sutura, tal como Sérgio de Campos destacou: uma letra, uma invenção subjetiva, uma bricolagem, uma identificação imaginária, uma nomeação, dentre outras.  Afinal, Lacan ensina que “todos inventamos um troço para tapar o furo no real. Aí onde não há relação sexual, inventa-se o que se pode” (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974). Afinal, as estruturas são como defesas, defesas contra o real (MILLER, 2012, p. 422).

Na minha experiência clínica, a presença do analista nesses casos é uma presença que vibra quando a desordem encontra um jeito de se ordenar, quando a desordem do gozo se ajunta a qualquer coisa… uma letra, um pedaço do corpo, uma imagem, uma rotina… Em muitos casos, percebo que essa junção é um acontecimento contingente, que engendra o pfuit! do gozo a um ponto de basta capaz de agarrá-lo de novo a um arranjo para com o real, que é singular para cada um e constitui seu sinthoma. O sinthoma é a expressão da junção mais íntima que acontece do encontro inédito e impossível de lalíngua e o laço social.

Entretanto, esse acontecimento contingente em muitos dos casos não é suficiente. O falasser aguarda por um efeito de retorno, uma presença discreta que consinta, testemunhe, ecoe, ressoe e confirme sua solução. O que me faz pensar e propor para discussão que o sinthoma, ou o que quer que seja que sirva de uma amarração, acontece e se autoriza por si mesmo e de mais alguns outros. E é aí que a presença do analista acontece, como uma placa sensível que ressoa, testemunha do nó como efeito do real. Não há sentido nisso, só causa e consentimento. O analista aí presente acontece como um fiador que, como disse Sérgio de Campos, se apresenta “dócil para com sua língua particular” ao “se imiscuir na lalíngua do falasser (…) na condição de fiador de sua alíngua”. Acho essa ideia de testemunha e fiador interessante para pensar a presença do analista no circuito da autorização sinthomática, se operamos com o princípio “de que o analista opera como se ele fosse o sinthoma”.

Encontrei ressonância dessa ideia também no exemplo citado por Sérgio de Campos de um sujeito que é indicado pelo padre para ser zelador com a função de guardar as chaves da igreja: “ser nomeado para” confere ao sujeito uma “grande responsabilidade”. Uma sobreidentificaçao que faz laço social.  Contudo, um analista não demanda, é um “Outro que segue”, mas, ao seguir, diz “sim” a uma nomeação que aparece no tecido da linguagem no curso de uma análise e que ressoa como função de grampo. Marca, assim, a função da nomeação para o gozo que corre solto, aposta num funcionamento e lhe confirma um lugar na ordem simbólica. Liga o S1 a um S2. “Não há relação sexual”… mas há o laço social. Uma aposta!

Sérgio de Campos escreve: “na psicose ordinária, há um progressivo desenganchamento do Outro, devido a um empobrecimento dos laços afetivos e sociais que denotam uma marginalização oculta por tempos, em virtude de rupturas repetidas e progressivas que se instalam de modo diacrônico, pouco a pouco, numa crescente intensidade social. Ante à irrupção do gozo, o tecido simbólico parece esgarçar-se gradativamente. Há impossibilidade crescente de o sujeito simbolizar e subjetivar o gozo, de modo que ele experimenta um buraco do real que se manifesta através de um desaparecimento do aparelho significante. Ademais, há uma perda paulatina da fantasia que possibilita uma mediação com o gozo. Nesses casos, no final, toda a significação fálica parece estar extinta”.

De fato, acompanhamos, há muito tempo, casos que chegam aparentemente amarrados, um ponto ou outro estranho, pequenos índices… Há um romance, esboço de fantasia, que parece algo como significação fálica… Mas isso vai se desfazendo aos poucos, a rede de sentido vai ficando mais pobre e o buraco do real e a desordem do gozo mais evidentes, menos ordenadas na cadeia significante e mais exuberantes como desordem no corpo, no social e na língua. A psicose vai se tornando evidente e o sujeito entrega sua desordem sob transferência, talvez numa aposta de encontrar, junto a mais alguns outros, um saber fazer em condições de costurar o incabível de sua desordem num laço social que tenha cabimento.

Uma clínica desse porte, que se orienta do real ao laço social, vive da inquietude permanente. A igualdade clínica fundamental entre os falasseres, ainda mais esclarecida a partir do efeito de retorno à psicose ordinária, ao desfazer as insígnias do déficit, permite-nos explorar o detalhe das nuances/nuages do laço e do desenlace, nos inúmeros tons que vibram conforme a loucura de cada um.

 


Referências

LACAN, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: EscritosRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Inédito).

LAURENT, E. A pfuit! do sentido. In: A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.

MILLER, J-A. La Conversation D’Arcachon. Paris: Le Seuil, 2005.

MILLER, J-A. On n’est pas sérieux quando on a dix-sept ans. La Cause Freudienne, n. 67, out. 2007.

MILLER, J-A. A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012.

MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: o corpo falante. Rio de Janeiro: EBP, 2016.

OTONI-BRISSET, F. Simplesmente, parletrePapers 7.7.7, n. 1, Barcelona, 2018. Disponível em: <https://www.amp-nls.org/nls-messager/towards-barcelona-2018-papers-7-7-7-n1/>. Acesso em: 28 nov. 2022.

 


 

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 07/10/2022 em comentário ao texto de Sérgio de Campos, “A presença do analista na psicose ordinária”, também apresentado na mesma ocasião.




Os pais traumáticos, a data do trauma e a criança troumatisé1, 2

Philippe Lacadée
Psicanalista, A.M.E. da ECF/AMP
phlacadee@wanadoo.fr

 

Resumo: A criança é, desde suas primeiras relações com o Outro, traumatizada. Lacan forjou o neologismo troumatisme para indicar que o trauma está ligado a uma experiência relacionada ao sem-sentido, ao encontro com um real, enfim, a um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro.

Palavras-chave: criança; troumatisme; trauma.

THE TRAUMATIC PARENTS, THE DATE OF THE TRAUMA AND THE TROUMATISÉ CHILD

Abstract: 
The child is, from its first relations with the Other, traumatized. Lacan forged the neologism troumatisme to indicate that the trauma is linked to an experience related to meaninglessness, to the encounter with a real, or simply to a hole in the understanding of things or words that it receives from the Other.

Keywords: child; troumatisme; trauma.

CAROLINA BOTURA. O SEGREDO

 

Comecemos por uma observação de Jacques Lacan. Trata-se de um encontro que ele teve com uma criança pequena, certamente de sua família, e que ele relata em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, logo após ter mencionado sobre o sobrinho-neto de Freud. Lacan (1964/2008, p. 67) nos diz:

Eu vi, também eu, vi com meus olhos arregalados pela adivinhação maternal, a criança, traumatizada com a minha partida a despeito de seu apelo precocemente esboçado na voz e daí em diante mais renovado por meses e meses – eu a vi, bastante tempo ainda depois disso, quando eu a tomava, essa criança, em meus braços – eu a vi abandonar a cabeça sobre meu ombro para cair no sono, o sono unicamente capaz de lhe dar acesso ao significante vivo que eu era depois da data do trauma.

O encontro traumático do significante vivo

A criança, da qual Lacan nos fala aqui, é uma criança traumatizada que encontra no Outro a paz simbólica e que ali adormece. Observemos primeiro como Lacan nos falou dessa criança traumatizada pelo fato de que o Outro, isto é, ele mesmo, a deixou, apesar de seu apelo; essa criança que, a partir de então, diante da falta de resposta do Outro, não endereça mais um apelo, caindo numa espécie de mutismo, ou de autismo, e que encontra através do sono nos braços de Lacan “acesso ao significante vivo que eu era depois da data do trauma”. O Outro, para a criança, é sobretudo um significante vivo que ilustra como o encontro com o Outro é traumático, e como também pode ser apaziguador. Lacan nos indicou que o significante não é somente simbólico ou apaziguador, mas é vivo, isto é, pode gozar de sua vida de significante sozinho e, como tal, portar um gozo sem-sentido; esse gozo é traumático para a criança porque ele lhe escapa, enquanto outro significante não vem para lhe dar significação. A criança não compreende nada, isso a traumatiza, fica sem recurso – o Outro ao sair a abandona, não responde ao seu apelo, o Outro, portador do significante, vive e goza em outro lugar, para além dela.

O apelo ao Outro e o encontro com os objetos

Observamos que Lacan ressalta os danos da palavra para uma criança quando seu apelo não é atendido. Ele diz que entre o Outro e a criança existe “seu apelo precocemente esboçado na voz”. Remarcamos, finalmente, como ele introduz a importância para a criança, no apelo ao Outro, de um objeto que lhe vem do desejo do Outro: a voz, esse objeto voz, é tomado por todo sujeito em sua relação com o Outro. Esse objeto voz e a pulsão invocante a ele vinculada, assim como o objeto olhar e a pulsão escópica, são dois objetos fundamentais na clínica que Lacan destacou para a criança. Assim, o objeto olhar e a pulsão escópica são essenciais nessa cena: “vi com meus olhos” e o “olhar da mãe”. Ao elaborar o “estádio do espelho”, Lacan primeiro apontou esse momento em que a criança, diante do caos e da fragmentação de seu ser, tenta recuperar uma unidade na imagem especular que ela investe libidinal e imaginariamente para se fazer um eu. Mais adiante, ele enfatizará a importância do olhar do Outro e da pulsão escópica. Da mesma forma, durante essa cena da criança que ele toma nos braços, o Outro, Lacan é testemunha da ruptura do ser que abala essa criança, mas o olhar que ele oferece faz com que ele participe do acontecimento até ocupar a posição causal que faz com que essa cena exista porque é vista. O Outro, por seu olhar, torna-se aquele que acompanha a criança no momento de sua entrada no mundo e acaba sendo o elemento ativo fundamental que, ao criá-lo, transforma esse mundo hostil em mundo apaziguado. O Outro enquadra a experiência da criança com seu olhar.

Os pais traumáticos e a marca de um significante no corpo

A psicanálise, indica Lacan, é “a demarcação do que se compreende de obscurecido, do que se obscurece como compreensão, em virtude de um significante que marcou um ponto no corpo” (LACAN, 1971-72/2012, p. 145). Um psicanalista reproduz uma produção da neurose, indica Lacan, e nisso todos estão de acordo. Essa neurose é atribuída, não sem razão, à ação dos pais, e isso na medida em que “converge para um significante que emerge dela que a neurose vem a se ordenar segundo o discurso cujos efeitos produziram o sujeito” (LACAN, 1971-72/2012, p. 145). Lacan fala então dos pais traumáticos: “Todo pai ou mãe traumático está, em suma, na mesma posição que o psicanalista” (LACAN, 1971-72/2012, p. 146). Lacan precisa que se o psicanalista, de sua posição, reproduz a neurose, “o pai ou mãe traumáticos a produzem inocentemente” (LACAN, 1971-72/2012, p. 146). É o que nos mostra esse exemplo de Lacan, psicanalista e também pai traumático, mas inocente.

Observamos ainda como Lacan, nessa vinheta clínica, ilustra sua posição em relação à mãe. Ele indica que seus olhos são abertos pela adivinhação materna. É o olhar dessa mãe sobre seu filho, sua adivinhação materna, que o faz adivinhar o trauma, que o torna visível a ele. Vemos aqui como o significante “adivinhação” opera um deslizamento, etimologicamente fundado, entre adivinho e divino, deixando aparente esse divino que está ligado à figura da criança, da criança como se ela fosse um Deus, da criança “inocente e alegre”, tal como Victor Hugo retrata em seu poema intitulado “Quando a criança aparece”,3 e tal como Freud a designa em “Introdução ao narcisismo”: His Majesty the baby.

A criança lacaniana não é uma inocente

Observamos também como, para Lacan, a criança freudiana é culpada de se deixar levar pelo gozo masoquista que ela sentiu ou sofreu, ou seja, que dela decorreu. Há na criança uma inclinação que a impele a se tornar o objeto caído do Outro. Ser tratada como um objeto, como um cão (LACAN, 1958-59/2016, p. 141). Há nela uma disposição precoce para a degradação, um masoquismo primordial que a impele de sofrer com sua própria degradação e de tirar dela uma satisfação fundamental, um gozo. Algo insiste no âmago do ser, cuja existência Lacan afirmou como uma necessidade primária, esse algo que põe cada ser à mercê de ser abandonado por aquele que o sustenta simbolicamente em sua experiência de nomeação.

Para Lacan, a criança não é uma inocente, ela é culpada do gozo que extrai usando o significante, mas também deixando-se levar por seu masoquismo primordial. Para Freud, e depois para Lacan, a neurose infantil não vem propriamente do encontro traumático com o Outro, mas do real, do gozo em jogo nesse encontro, gozo sobre o qual a criança não pode colocar nenhuma palavra e do qual pode fazer certo uso. A criança lacaniana não conhece a negligência, pois, por causa da linguagem, não há para ela simbiose possível com o autor de seus dias, mas há sempre a discordância do mal-entendido.

A discórdia da criança nascida mal-entendida: o trauma (le troumatisme) 

A criança é separada desse mundo no qual o nascimento a lançou, que já estava lá antes de sua chegada. Ela é uma imigrante no país da fala, no país onde o apelo pode não encontrar resposta. Uma criança nasceu, um rasgo se produziu, uma falha se abriu, uma distância permanece irredutível. Houve um corte, uma separação. A criança jamais desvelará o mistério de sua origem e, diante da pergunta “Quem é esta criança aí?” (LACADÉE, 2010), é preciso ter cuidado para não acreditar que essa problemática da origem se tornaria alcançável. A amnésia infantil testemunha a impossibilidade de qualquer sujeito responder a essa pergunta – a criança não volta à origem, ela é introduzida pela via do mal-entendido à dimensão do real. Algo escapa ao sujeito, algo do qual ele está sempre separado; esse real não simbolizável pode retornar, pode emergir na virada de cada história. À pergunta “Quem é esta criança aí?” poderíamos, então, propor a resposta de que a criança, por ser uma criança, é fundamentalmente traumatizada. “Do trauma, não há outro: o homem nasce mal-entendido” (LACAN, 1981, p. 12). Para devolver vigor e rigor ao termo “trauma”, Lacan forjou o neologismo troumatisme (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974), como dizer da melhor forma que isso que faz trauma na criança é o encontro com um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro. Há para a criança um furo no saber, ela não consegue colocar em palavras o que vive, o que sente, o que encontra. Ela experimenta uma experiência fora do sentido, uma experiência de gozo no sentido de um encontro com um real que ela não pode assimilar. A criança lacaniana é, portanto, uma criança traumatizada (troumatisé) porque exposta a momentos traumáticos.

 

Tradução: Giselle Moreira
Revisão: Letícia Mello

Referências
LACADÉE, P. Qui est-il, cet enfant-là. In: Le malentendu de l’enfant. Paris: Éditions Michèle, 2010.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1958-1959). O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LACAN, J. (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Texto inédito).
LACAN, J. (1980). Le malentendu. Ornicar?, n. 22/23, Lyre, Paris, 1981.

1. Texto apresentado na Conversação em torno do livro Janela da Escuta: o adolescente especialista de si e a tessitura de uma rede sob medida, promovida pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina da Seção Clínica do IPSM-MG, em 24/09/2022.
2. Título original: “Le parent traumatiquela date du trauma et l’enfant troumatisé”. O autor se serve do neologismo lacaniano troumatisé, que será desdobrado ao longo deste texto. Optamos aqui por mantê-lo em francês.    
3. No original, “Lorsque l’enfant paraît” (1831): Lorsque l’enfant paraît, le cercle de  famille/Applaudit à grands cris./Son doux regard qui brille/Fait briller tous les yeux,/Et les plus tristes fronts, les plus souillés peut-être,/Se dérident soudain à voir l’enfant paraître,/ Innocent et joyeux. Em português: Quando a criança aparece, o círculo familiar/Aplaude com grande clamor./Seu doce olhar que brilha/Faz brilhar todos os olhos,/E os rostos mais tristes, talvez os mais sujos,/De repente se animam ao ver a criança aparecer,/Inocente e alegre. (Tradução nossa)



Implicações da criminalização do aborto a partir da psicanálise1 

Ondina Machado
Psicanalista, membro da EBP-RJ/AMP
E-mail: ondinamrm@gmail.com

 

Resumo: Em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise? Se A Mãe existe, sob a perspectiva da norma fálica, e A Mulher não existe, conforme formulado por Lacan, o que é um filho para uma mulher? Considerando que uma mulher não pressupõe um filho, fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, excluindo o lado não-todo fálico no qual ela também pode se situar. Uma mulher não pode não querer ser mãe? A criminalização do aborto quer punir essa mulher, desconsiderando que o filho não é solução para todas as mulheres. Assim, a criminalização do aborto compromete a assunção do desejo por um filho. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho?

Palavras-chave: criminalização do aborto; mulher; mãe; desejo.

IMPLICATIONS OF THE CRIMINALIZATION OF ABORTION THROUGH THE LENS OF PSYCHOANALYSIS

Abstract: What would the criminalization of abortion imply from the point of view of psychoanalysis? If The Mother exists, from the perspective of the phallic norm, and The Woman does not exist, as formulated by Lacan, what is a son for a woman? Considering that a woman does not presuppose a son, to make abortion a crime is to make every woman The mother, excluding the not-all phallic side in which she can also find herself. Can a woman not want to be a mother? The criminalization of abortion wants to punish this woman, disregarding that the son is not the solution for all women. Thus, the criminalization of abortion compromises the assumption of desire for a son. How can a woman sign this desire if she is required by law to have a son?

Keywords: criminalization of abortion; woman; mother; desire.
 

CAROLINA BOTURA. NIUNAMENOS

 

Proponho nos centrarmos na questão da “criminalização” do aborto, e não no aborto em si, porque entendo que a decisão de abortar cabe a cada mulher. Mas gostaria de pensar com vocês em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise. Sobre isso acho que posso dizer alguma coisa.

O desejo materno:

Supõe-se que o desejo materno é inerente à mulher. Aquela que não deseja um filho entra em um escaninho à parteé uma aberração. As soluções freudianas do Édipo também levam em conta que mulher e mãe se equivalem ou, pelo menos, que a maternidade tem papel fundamental na vida de uma mulher. Não podemos mais dizer isso nos dias de hoje.

A discussão sobre criminalização do aborto demonstra que filho não é solução para todas as mulheres. A criminalização do aborto pune a mulher que se recusa a ser mãe, pelo menos naquele momento. Como assim? Uma mulher não pode não querer ser mãe, independente das condições em que essa gravidez ocorreu? Ela estaria negando sua vocação natural, biológica e social?

Sabemos que, na criminalização, a questão é que o desejo da mulher não entra nessa discussão. Sabemos também que existem outras “intenções”, como o controle do corpo feminino pelo patriarcado, a manutenção do poder sobre ele e uma misoginia estrutural que Freud chamou de “rechaço à feminilidade”. Assim, gostaria de apresentar a vocês o que seria um filho sob o ponto de vista da psicanálise.

O que é um filho para uma mulher? Reforço a pergunta destacando o “para uma mulher”. Costumamos fazer essa pergunta de outra maneira: o que é um filho para uma mãe? No entanto, quero propor pensar o filho para alguém que ainda não o tem, que ainda não é mãe, que não pretende ser, nesse momento ou mesmo nunca.

Uma mulher não pressupõe um filho; uma mãe, sim, esta pressupõe um filho, mas uma mulher não. O aborto entra na vida de uma mulher exatamente nesse momento, quando ela não quer ser mãe.

Um filho não é um dado natural na vida de uma mulher. Quando uma mulher quer ter um filho é porque ela supõe que ele lhe falta, falta imaginariamente como um complemento. Não ter um filho pode ser entendido, por essa mulher, como uma falta, por muitos motivos. Ou porque ela entende que ser mãe é uma consequência socialmente prevista, ou por querer dar um filho ao seu parceiro, ou, ainda, porque é algo que ela quer viver como uma experiência de cuidado ou da própria gestação.

A relação amorosa não supõe um filho, nem a heteroafetiva, nem a homoafetiva. Mas vamos examinar essa parceria pelo ponto de vista do casal homem e mulher, sabendo que não é o gênero que define as posições no amor, e sim o modo de gozo. 

Vamos ao clássico:

Supõe-se que o homem coloca uma mulher como causa de seu desejo, o que faz daquela mulher um sintoma para aquele homem, e faz daquele homem um amante para aquela mulher. Nada a ver com filho. O filho não entra na parceria amorosa, o filho é uma parceria da mãe com o próprio filho.

A fala de Jair Bolsonaro sobre as mães solo como “mães sem marido” mostra o erro sobre o que é um filho para sua mãe. A mãe, em tese, não precisa de marido, e isso se demonstra na multidão de mães que criam seus filhos sozinhas. O pai entra como aquele que, por amor, vai cuidar dos filhos dela. Aqui podemos identificar uma das maneiras pelas quais fica evidente que a relação sexual não existe: não existe como relação porque cada um quer uma coisa diferente; diferente e não complementar.

Chegamos, então, à fórmula lacaniana na qual um filho é o objeto a para uma mãe. Esse é um ponto que considero de suma importância para pensar a criminalização do aborto e suas consequências, pois fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, é encerrar toda mulher no regime fálico, excluindo o lado nãotodo fálico no qual ela também pode se situar. Mas vejamos isso com calma.

A mãe e a mulher:

No Seminário 20, ao mesmo tempo em que Lacan diz que A Mulher não existe, ou seja, que não há uma representação inconsciente que universalize o ser mulher, ele diz também que “a mulher só existe como mãe” (LACAN, 1972-73/1985, p.133), ou seja, somente A mãe entra como um significante que se representa para outro significante. A Mãe existe, A Mulher não existe.

Dizer que A mãe existe é colocá-la no lado fálico da sexuação, é tomá-la sob a perspectiva da norma fálica, portanto, pela visão do homem, do patriarcado, sobre a mulher. Nada a ver com a mulher. Dá para entender o raciocínio de Lacan, pois, para o homem, como todo alicerçado no falo, existe A mãe, ele sabe o que é uma mãe. O que ele não sabe, nem nós as mulheres sabemos, é o que é uma mulher. Cada uma terá que construir seu ser de mulher na articulação do corpo com o significante. 

Pensem isso no macro:

Uma cultura falocêntrica só pode incluir em si A mãe. É sempre como mãe que as mulheres entram no social, nas políticas públicas, por exemplo. É como mãe também que as mulheres são idealizadas, é como mãe que elas são “as rainhas do lar”.

Com as mulheres não se sabe o que fazer, não se sabe lidar com seus corpos sangrantes, sua TPM, sua menopausa, seu destemor, seu “dom de iludir”, enfim. O espaço público é para as mães, para as mulheres só o privado. As políticas e as leis não contemplam o desejo das mulheres, porque dele nada se sabe e, assim, torna-se temerário. Por isso dão uma resposta que aprisiona a mulher: deduzem que toda mulher quer um filho.

Agora voltemos ao micro, ao “a cada mulher”:

A criminalização do aborto, então, recai sobre a mulher, comprometendo a assunção do desejo por um filho pois, se a lei obriga, como saber se se quer, ou não? Assim, as mulheres, efetivamente, não podem decidir, nem tampouco se responsabilizarem pela decisão, afinal foram obrigadas. A criminalização impõe um permanente “sim” como resposta, na medida em que dizer “não” obriga a buscar soluções fora da lei. Leva as mulheres a uma transgressão perigosa que põe suas vidas em risco, em especial a das mulheres pobres que ficam sujeitas a abortos em péssimas condições técnicas e de higiene. A ONG Rede Feminista de Juristas reporta mais de 850 mil abortos ao ano, pelos dados de 2017, a maioria deles sem condições adequadas.

E aqui podemos ver que quem é excluída é a mulher, não a mãe. Somos minoria por essa exclusão, não pela quantidade de nós na população, mas pela exclusão de nosso ser de mulher.

Mas um filho não é só da mãe, vocês me diriam. Sim, um filho é o resultado de uma demanda por um complemento imaginário articulado a uma lei. O resultado dessa articulação é o desejo. A lei à qual Lacan se refere é associada ao pai, à função pai. O que é essa função? Como função, ela se descola da figura do pai. Lacan coloca nesse lugar o pai real, não o pai imaginário, nem o pai simbólico. Como real, ele é contingente, é sem palavras, é um lugar vazio de significação. Como função, pode ser exercido por qualquer um ou por qualquer coisa: o pai da mãe, a mulher da mãe, o trabalho, outros filhos, outros homens. O que importa é que haja uma articulação entre a pulsão e uma ordenação simbólica que inclua o objeto a/filho na subjetividade da mãe como uma promessa de satisfação, ou seja, como um semblante do que lhe falta. Vejam como aqui se separa a mãe da mulher: o filho é um objeto da fantasia da mãe, portanto, está no mesmo lugar do objeto fetiche, objeto de um gozo fixado, pré-determinado na fantasia e independente de suas características, ou seja, o objeto é tomado como um tampão, um simulacro. Já quando pensamos no filho articulado a uma rede simbólica, trata-se de um lugar de objeto que pode deslizar para diferentes formas de satisfação. Se fixado, é gozo e exclui a cadeia significante, exclui o Outro. Quando o objeto ocupa um lugar simbólico, ele cria uma demanda endereçada ao Outro e instaura o desejo que, justamente por ser desejo, não se fixa. É a famosa frase de Lacan: só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. É essa dialética que separa o corpo da mãe do corpo do filho, é o que faz com que a mãe assine um desejo pelo filho supondo que ele vá satisfazê-la. O desejo não pode ser anônimo, no sentido de ser o desejo de alguém e não de qualquer um, ou mesmo a obediência a uma lei. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho? É essa assinatura que fará de uma mulher mãe de um filho. Um filho, caso ele saiba fazer semblante de complemento, se torna um sintoma na subjetividade da mãe.

Vejam que o problema da criminalização do aborto recai sobre umas e não outras, pois aquelas que querem ter, podem ter.

Gostaria de encerrar minha participação com uma vinheta clínica que, espero, exemplifique o que falei até aqui.

Vivendo uma vida de muitos excessos, uma mulher descobre que está grávida e, mesmo tendo condições financeiras para abortar, descobre em si um desejo de ser mãe até então inimaginável. Seguiram todas as recomendações médicas durante o pré-natal por perceber que disso dependeria o futuro do filho.

Minha hipótese é que esse filho, concebido em um momento de vida desregrada, funcionou como um ponto de basta na iteração insana de um gozo que colocava sua vida em risco. Quando seu filho pergunta sobre o pai, ela diz não saber quem é, que o que sabe é que o queria como filho.

A maternidade como um desejo, e não uma condição, fica bem clara na definição que Romildo do Rêgo Barros (2003, p. 130) dá sobre o desejo materno: “O que pode definir uma mãe não são as prerrogativas do personagem, nem sequer o lugar na família, mas o fato de ser um desejo”.
Referências 

 


LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais, aindaRio de Janeiro: Zahar, 1985.
BARROS, R. do R. Sobre a função materna. In: VIEIRA, M. A. (Org.). Mães. Rio de Janeiro: Subversos, 2003.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 30/09/2022.



Toxicomanias◊Adixões1

Ernesto Sinatra
Psicanalista, AME da EOL/AMP
ernestossinatra@gmail.com

 

Resumo: Ernesto Sinatra fundamenta as suas razões para a criação do termo adixões, escrito com o X freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Sem abandonar o termo toxicomanias, a proposta do termo adixiones encontra um fundamento ético em que o X aponta para a marca singular do gozo sinthomático de cada Um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação de objetos de gozo que pretende para todos o mesmo. O X marca a singularidade do gozo e a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação. Dessa forma, Sinatra aponta que a psicanálise oferece a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos que intoxicaram sua existência. Nessa clínica, o singular é a bússola que cabe ao analista seguir.

Palavras chaves: adixões; fixação; toxicomanias; gozo sinthomático.

DRUG ADDICTIONS  ADIXIONES

Abstract: Ernesto Sinatra justifies his reasons for creating the term adixões, written with the freudian X of fixierung, to emphasize the mark of the singular fixation of satisfaction with which each ONE responds to the trauma of non-relationship and, thus, differentiate it from the given generalizations to the term addictions, to which any and all forms of consumption apply. Without abandoning the term drug addiction, the proposal for the term adixiones finds an ethical foundation in which the X points to the singular mark of the synthomatic jouissance of each One that resists, being cataloged by the banalization of the consumer market with its manufacture of objects of jouissance that intends to for all the same. The X marks the uniqueness of enjoyment and the subjective responsibility for one’s own satisfaction. In this way, Sinatra points out that psychoanalysis offers the possibility of questioning the alienation of each One to the objects that intoxicated their existence. In this clinic, the singular is the compass that the analyst must follow.

Keywords: adixões; fixation; drug adicctions; synthomatic jouissance.


CAROLINA BOTURA. LU3


De jeito nenhum lhes digo que o discurso capitalista seja medíocre; é, pelo contrário, algo loucamente astucioso. Loucamente astucioso, mas destinado a explodir. (…) É insustentável… num truque que poderia lhes explicar… porque o discurso capitalista está aí, vocês veem… [
indica o discurso no quadro-negro]… uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $… que é o sujeito… basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consuma, se consuma tão bem que se consome. (LACAN, 1972)

 

  1. Introdução: Um discurso que ao se consumar causa o consumo

Ao consideramos a extensão dos tóxicos na vida cotidiana, chegamos – já se vão trinta anos – à tese da toxicomania generalizada: drogas cada vez mais sofisticadas produzidas em escala planetária, atravessando as mais variadas fronteiras, assim como os diferentes estratos sociais; drogas cada vez mais ao alcance de todos e de todo tipo – inclusive as lícitas.

De nossa parte, continuamos afirmando que as adições constituem um dos sintomas mais relevantes do estado atual da civilização, mas me apresso em conjeturar que já não se trata do mesmo sintoma com o qual caracterizávamos o século passado. Hoje as “cicatrizes da evaporação do pai” se aderem aos corpos a partir da multiplicação dos gozos: a pais pulverizados, gozos pluralizados.

“Adições” se emprega hoje como uma chave para todo uso, e quase todos os flagelos atribuídos à pós-modernidade caem sob essa denominação: tudo é “tóxico”. Assistimos a uma implosão das “adições” impulsionada pelo imperativo do mercado2 com listas de novos adictos, designados não só a partir de substâncias, mas a partir dos objetos de consumo – sexo, sexting,3 videogames, pornografia, telefones celulares, séries, esportes, Internet, compras… A lista ameaça ser infinita, inclusive, recentemente, o filósofo Byung Chul-Han fazia referência a “uma sociedade adita aos likes”.

A partir de nossa orientação, interpretamos que o discurso capitalista – “loucamente astuto” – se consome com o franqueamento do impossível que impõe a circularidade de sua orientação.

É o que impulsiona o consumo desenfreado de objetos que saturam o mercado, objetos que são oferecidos a cada indivíduo – transformando-o por esse mesmo fato em um consumidor – para suturar o furo da não-relação e negar o perecível.

“Nada é impossível!” é a frase que identifica a marca líder em vestuário, cujo logotipo – minimalista – antecipou o like das redes sociais: Nike = Like! E, por seus efeitos comerciais – ou seja, por seu sucesso no mercado de consumo –, bem poderíamos acrescentar, seguindo a referência de Lacan a Marx, que, uma vez mais, com um sorriso cínico-canalha, “o capitalista ri”.

Consuma-se dessa maneira o destino fantasmático que cifra o discurso capitalista (impulsionado por essa frase); mas, ali, onde o mercado impulsiona a um gozo ilimitado com os objetos, o sujeito, “senhor e mestre” de suas ações apenas em aparência, não cessa de fazer saber através de suas inibições, sintomas e angústias: “Não posso! Ainda que queira, não posso!.

  1. ADIXÕES, um conceito adulterado4

As adixões tornaram a se generalizar, quer dizer, a se banalizar, pois enquanto o mercado promove com suas classificações infinitas as adixões a tudo, a causa real que as determina volta a ser negada.

Tal generalização do tóxico tem sido também o fundamento com o qual certos especialistas, fundamentados na biologia, realizam classificações cotidianas com as quais nutrem – até a bulimia – os Manuais de Saúde Mental, a partir de números que identificam transtornos, que, por sua vez, se autorizam em estatísticas, aos quais são atribuídas etiquetas que fixam tais transtornos que costumam ser, como corolário, complementados com psicofármacos.

A partir de nossa investigação, caracterizamos o nov@ sintoma com o termo “adixões”, a fim de cifrar o princípio da toxicidade mesma do gozo como tal, mais além do objeto eleito.

Desta forma, destacamos que qualquer ação pode portar uma satisfação,5 com a condição de marcar6 com um X a incógnita da singularidade do gozo de – e para – cada um, e marcar, para além disso, a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação.

As adixões encontram assim seu fundamento ético. Para verificarmos isso, analisemos um sintagma cristalizado que circula com inquietante familiaridade: as “pessoas tóxicas”. Aqui nos encontramos em um enredo teórico com consequências clínicas: referir-se à toxicidade de alguém induz a uma prática segregativa fundada em uma concepção paranoica do mundo, pois, ao identificar uma pessoa como uma droga, ela não somente é segregada por essa mesma condição, mas a condição da rejeição implica em situá-la como a causa do mal: o Outro é mau e é preciso me afastar dele – ou dela – e estigmatizá-lo por essa condição tóxica.

Fica claro até que ponto essa concepção contradiz o ensinamento fundamental da psicanálise, pois comprovamos na clínica analítica que o gozo é tóxico e recai sobre cada Um a responsabilidade por seus atos, condição que aqui é negada: se ele é tóxico, eu sou inocente… exceto se eu o consumo.

Com nosso desenho epistêmico, o x de adixões mostra a marca singular do obscuro gozo sinthomático de cada um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação tecno-seriada de objetos de gozo,7 que pretende o mesmo para todos.

  1. O fundamento bipolar do consumo

O princípio das adixões: as mercadorias têm em si um valor aditivo, já que se inserem na própria fenda da subjetividade que causa o artificioso da sexualidade humana8 e desencadeia o consumo. O vazio, depois de suturado, é saturado com objetos pelas tecnociências, destinados a produzir o gozo complementar dos sexos que não existe, já que em seu lugar há um vazio. Sublinhemos que o que se substitui, como objeto do mercado, não é um objetomas um gozo, entretanto um gozo que não existe – este é o paradoxo central –, o gozo do qual se busca produzir o equivalente, com o auxílio das tecnociências, imitando aquele da relação sexual que não existe!

Reencontramos aqui o fundamento das adixões como novo sintoma: a proliferação dos objetos em série oculta, pois, o que realmente se trafica, que é a substância do gozo como tal (como se existisse). Em seu lugar, outro gozo desliza entre as mercadorias.

A iteração do gozo, então, causa o movimento dos objetos que se substituem uns pelos outros: 1 gadget; 1 gadget; 1 gadget… É a infinitização dos objetos que o mercado produz e que nunca chega a produzir o objeto adequado, embora prometa satisfazer ao parlêtre fazendo-o, finalmente, existir!

Além disso, devemos incluir uma subsérie na sequência principal do vazio central, já que um gadget pode não se substituir por outro gadget, senão por outro modelo do mesmo gadget: antes de sair o IPhone 7 no mercado, já se dizia que apenas o IPhone 8 transformaria a tecnologia celular, etc., mas já chegamos ao 14? E tudo continua igual!!!!

A temporalidade que se constrói a partir da subsérie é inquietante: por um lado, a infinitização nega o perecível – já que o objeto tem sempre o mesmo nome, há apenas uma diferença real (quer dizer: ordinal, como no caso dos reis) –, mas, por outro lado, a iteração produz a obsolescência do gadget a um ritmo vertiginoso.

O segredo do gozo do gadget é que nenhum objeto final jamais será capaz de satisfazer plenamente, porque há uma defasagem no próprio gozo que falta no lugar onde ele não existe. Essa é a falácia que se compra – na verdade, que causa o comprar – e que produz a moral a aditiva do consumidor, dividida entre a tristeza, produzida pela abstinência, e o triunfo, produzido pelo ter. Tal é o fundamento maníaco-depressivo, ou bipolar, do consumo, sobre o qual se instalam as adixões – as que designamos e assim o preferimos, com x.

O mercado simula oferecer uma lógica – fálica – sustentada no campo do desejo e na produção de bens, mas seu fundamento real é o mais além do princípio do prazer. Ou seja, é o campo do gozo orientado pelo consumo insaciável dos indivíduos, aqueles que, quanto mais consomem, mais são consumidos como objeto de gozo do mercado. Entre a exaltação maníaca da possessão do objeto e a queda depressiva, a partir de sua falta, mostra-se, descaradamente, o vazio, o ponto exato da não-relação, o que, por um lado, recicla o processo de consumo em uma metonímia assintótica, mas, por outro lado, segrega os indivíduos que caem do consumo, fora do processo de produção.

Mais uma vez localizamos a segregação na via rápida do consumo, a partir de sua rodovia principal. A inquietante familiaridade das drogas sublinha este componente aditivo do circuito de consumo que inclusive pode nos intoxicar com uma palavra. Assim “nasceram” as adixões, que continuarão a se reproduzir a partir do circuito bipolar que explora o mercado uma e outra vez, construindo a moral do consumo, quer dizer: a do consumidor.

  1. O mercado é Um mesmo!

Depreende-se que a prática da psicanálise vai contra a operação do mercado que sabe-fazer, sabe consumar o negócio do consumo a partir da falha inaugural da subjetividade. Ao contrário da perspectiva de promover uma satisfação ilimitada, autoerótica, de uma felicidade para todos a partir do ter O objeto adequado, a psicanálise só pode oferecer a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos com os quais “intoxicou” sua existência.

É claro que não se trata de sustentar uma premissa tola “antiprogressiva”, nem de promover uma ascese mística em prol de possibilitar um desprendimento dos objetos de gozo, senão de evitar que se continue sendo o objeto real do consumo; se alguém quer gozar dos objetos, que eles não gozem dele!

Talvez, nessa orientação, a verdadeira subversão da política lacaniana consista em ir contra o mercado em si mesmo, ou seja, contra-a-produção-inconsciente-em-série- de-objetos, com os quais alguém se havia revestido em orientação contrária ao desejo de viver. Isso implica avançar na análise até localizar o gozo singular que o impulsionou ao encontro dessa série, para questionar, o que não implica necessariamente rejeitar, senão, mais propriamente, discriminar os objetos investidos.

O mercado se tornaria assim o nome do inferno em si mesmo, sede das ADIXÕES, a partir das quais se tentou sustentar o transe de uma felicidade impossível, processada entre drogas, redes e telas.

  1. TOXICOMANIAS <> ADIXÕES: dois casos de duplo comando

5.1 Mercanta

Sete momentos localizados em uma análise especificam a lógica que determinou o consumo de um homem dividido entre o gozo obtido com a cocaína e um gozo masturbatório em frente às telas. Seu isolamento permitiu evitar uma passagem ao ato ao estabelecer o circuito do gozo sob transferência, localizado a partir de um detalhe e produzido apenas ao final da elaboração, adicionando, através da intervenção analítica, um oitavo momento.

O triunfo (1) se produz sempre que algo de certa relevância ocorre como esperado (um sucesso profissional, por exemplo); um sentimento estranho (2) no corpo, uma resposta extravagante que afeta seu corpo e que, depois de muito tempo, ele consegue circunscrever em uma frase – “Posso tudo!” –, chamando-a de euforia (3), estado do corpo que diferencia da alegria: presença de uma agitação corporal irreprimível, contínua, que inclui em algo maior o estranho e a onipotência (mencionados nos dois momentos anteriores); a euforia deriva em erotização (4) e, geralmente, se resolve pela via autoerótica diante de uma tela combinada com uma condição fantasmática precisa; empurrando ao consumo (5) sempre realizado em solidão, circunscrito por ações temerárias para conseguir a substância, que sustentam a erotização e canalizam a euforia.

Uma vez desencadeado o consumo de cocaína (às vezes combinado com álcool), não pode parar. É assim que chegamos ao desenganche subjetivo em que a degradação do Outro (6) adquire um papel central, cifrando um duplo movimento indicado pela ambiguidade do termo degradação: a) genitivo objetivo: perseguido pelo “monstro que me consome as entranhas”, chega sempre à beira do colapso físico e mental, perturbado por alucinações que se misturam a pesadelo. Ali, o pai morto retorna para acusá-lo de seus pecados, dando lugar a delírios desencadeados por situações triviais do entorno que promovem nele signos inequívocos da maldade inescrutável do Outro. Nelas, ele está certo de que será vítima da brutal figuração assassina do Pai, a quem acusa de todos os seus males, com todas as injúrias imagináveis. Depois advém b) a forma genitivo-subjetiva da degradação que o empurra para a devastação, pois, após a fúria inicial, é arrastado por uma culpabilidade que o deixa vários dias preso, chorando, sem se alimentar e desejando sua morte, sem animar-se a buscá-la. Finalmente, sua frase Não peço isso, é meu corpo”(7) orienta a saída: deixa de consumir em um estado de perplexidade e desespero. Mas, devido à iteração do circuito, cada vez era mais reduzida sua capacidade de alcançá-la.

Um dia, em plena degradação, decidiu com extrema dificuldade interromper o consumo para ir à sua análise. Já na sessão, enquanto tentava explicar a satisfação que lhe produzia o consumo, produziu um lapso, na realidade uma formação neológica: mercanta (8).

A partir daquele momento, pôde com ela não apenas nomear o circuito de gozo que o consumia, mas, também – e muito especialmente –, contar com uma ferramenta para aceder a uma saída, mais além da insuficiente resposta do corpo, único limite com o qual contava até então, e que, a essa altura, se encontrava seriamente comprometido.

No início das entrevistas, foram recebidas e tratadas interferências parasitárias que produziam frases interrompidas que o levavam ao mutismo, determinadas por uma interceptação mental reprovadora. O resultado foi um alívio que deu acesso à análise, pois o sujeito se encontrava afetado por uma sólida transferência negativa ao seu analista anterior e, por fim, à psicanálise.

O que resulta é que a função da cocaína (o gozo toxicômano) habitava um lábil desejo sexual não suficientemente articulado ao gozo fálico e resolvido pela via masturbatória, sua única via de resolução sexual sustentada pelo gozo escópico (adixão às telas), com um duplo consumo que condensava seu fulgurante e paroxístico êxito; esse circuito que fracassa em um segundo momento por uma nova irrupção do Pai real9 que volta a deixar as coisas no lugar onde estavam antes do consumo.

No campo das toxicomanias, estamos habituados a receber indivíduos que sofrem do furor maníaco do consumo; a particularidade, neste caso, é que ele evidencia o que poderíamos chamar de uma passagem à análise reforçada por um significante prêt-à-porter, por um neologismo produzido sob transferência e que permitiu ao sujeito contar com um artefato sinthomático para tentar, pelo menos, desbastar o gozo de um circuito mortífero com o qual ele desdobrava seu consumo entre um gozo toxicômano e uma adixão às telas.
5.2 Smartwatches10 / “Viver… mata”

Talvez o mais recente paradoxo da tecnologia seja o emprego que os consumidores encontraram para um dos apps mais viralizados. Ao descrevê-lo, encontraremos uma interface entre as adixões e as toxicomanias.

Os smartwatches oferecem uma ferramenta destinada a favorecer a vida saudável – como seus desenvolvedores frequentemente alegam – ao incorporar funções de monitoramento cardíaco, pressão arterial, açúcar no sangue e outras destinadas à promoção da saúde.

Seguindo a oferta ao pé da letra, os consumidores de tecnologia têm respondido com um emprego desse aplicativo que se tornou popular entre outros consumidores… de drogas.

De acordo com entrevistas realizadas – publicadas em reportagem do canal de finanças CNBC –, o app é utilizado como um dispositivo de monitoramento para se informar, em tempo real, das alterações produzidas no organismo pelo consumo de drogas, a fim de interrompê-las e evitar uma overdose, sempre e quando o consumidor assim decidir.

A tecnologia que produziu os relógios inteligentes talvez não tenha contado com essa outra inteligência, a dos consumidores de duplocomando, que têm sabido empregá-la para aquilo que esses gadgets foram criados: retardar a morte, até onde seja possível, enquanto dure a vida. Por exemplo, fóruns Reddit,11 dedicados a investigar o tema,12 com múltiplos comentários de consumidores que chegaram à conclusão de que o limite “saudável” para o consumo de cocaína é de 150 batimentos por minuto; dessa maneira, eles evitariam uma overdose que induziria a uma morte fulminante.

Decorre disso que o consumo do app acompanha o consumo de drogas: enquanto um consumo não ocorre sem o outro, os desenvolvedores, fabricantes, consumidores, todos felizes! Sucesso garantido! Já que o empuxe à intoxicação – com as drogas de escolha – encontraria agora, com os relógios inteligentes, uma poderosa ferramenta de prevenção. Poderíamos agora formulá-la desta forma: drogas sim, morte não!…? Os consumidores de duplo-comando encontrariam, assim, um limite – paradoxal, por fim – para seus excessos?

Nada é menos certo, pois não importa quantas medidas exatas e estatísticas precisas sejam responsáveis pelo procedimento preventivo, os usuários de drogas já terão sentido em seus próprios corpos o “limite” que comanda tal procedimento: uma satisfação imparável de querer ir mais além. É esse “limite ilimitado” dos partidários do duplo-consumo o que produzirá – inevitavelmente – o fracasso do procedimento.

Uma vez que o gozo está à espreita, o saber nunca alcança, mesmo que o indivíduo tente com o delírio do sentido encobrir seu – irrefreável – impulso mortífero. Ou também, uma vez mais, entre toxicomanias e adixões, os desenganados se enganam.

  1. Adixões ficcionalizam isso o que as toxicomanias realizam?

Tendo chegado a essa interface de duplo comando – e somente na condição de não esquecermos que nenhuma classificação pode apagar a diferença de Um com os outros (Uns)13 –, não serão as adixões contemporâneas a tentativa em cada Um de armar-se um corpo vivível, com os objetos oferecidos pelo mercado e que muitas vezes portam ficções a partir de identificações às quais aderir?

adixão ao consumo mostra aqui seu papel como protagonista que, ao declinar na chamada “adixão às compras” com sua subespécie “adixão à roupa”, constitui um paradigma do que podem vestir, ou seja, o que de certas adixões podem ficcionar.

Proponho isso, uma vez que, no espectro mencionado do gozo, as adixões podem, desse modo, sustentar-se em realizações fantasmáticas, em muitas ocasiões mais próximas das cócegas,14 enquanto os usuários das drogas duras, como têm sido chamadas, tendem a prescindir de ficções em seus consumos e a presença do gozo encarcerado neles se mostra mais decididamente pelas devastações corporais e subjetivas, sobre si mesmos ou sobre terceiros.

Deixemos agora a hipótese das adixões como ficcionalização das “adições”, o que denominamos: toxicomania. Quer dizer que, ali, onde nas toxicomanias o gozo da substância tóxica se infiltraria no corpo – para que isso goze –, as adixões tentam “infiltrar” ficções nesse corpo, para que “eu”, de alguma forma, deseje?

Se assim fosse, a recusa do inconsciente levaria a um empuxo com uma dupla tração: por um lado, a partir das toxicomanias, e, por outro lado, a partir das adixões, deste lugar produzindo uma prótese ficcional que ofereceria um semblante de consistência (narcisista?), permitindo esquecer – nem que seja por alguns momentos – a insatisfação do desejo e a fenda real do gozo.

A pura repetição do Um do gozo que se manifesta nas toxicomanias – e que o Outro social teve que inventar, promover, em nossos dias com o termo “adição” – se apresenta nas adixões por meio de uma “solução do desejo”, ou seja, daquilo que no gozo produz sentido (MILLER, 2011).

Mais uma vez devemos ser cautelosos em nossas classificações, pois o gozo canalizado pela pulsão de morte não deixa de espreitar, lançando os indivíduos que pretendiam gozar do lado-cócegas – nas adixões light, aquelas supostamente orientadas pelo desejo de viver – em direção ao encarceramento com apenas um movimento. Tal como precisamente ilustra o trágico destino que aguarda a esposa de Tony Takitani, ficção literária de Haruki Murakami (2019), quando ela é levada pelo amor a abandonar sua adição às compras.

Sem chegar a tais extremos, podemos agora re-situar as crises de angústia – incompreensíveis ao senso comum – que costumam se produzir em consumidores furiosos, uma vez que tenham adquirido o objeto mais valorizado, precisamente aquele que parecia inacessível. Uma mulher em análise, ainda em lágrimas, não conseguia se livrar da sensação que havia vivido dias atrás, antes de ir às compras com sua melhor amiga e ter conseguido “aqueles sapatos tão especiais” que ambas tanto tinham desejado. Logo depois de sair da loja, eufórica, ela parou, de repente, e disse à sua amiga, agarrando-a pelo braço: Mão é isso o que eu queria… não é isso o que eu quero!”, chorando desconsoladamente, interrompendo os olhares dos transeuntes. O gozo da adixão explodia assim em seus sapatos, mostrando o mestre que realmente comanda o desejo insatisfeito.

Porém, mais além das classificações (inclusive das nossas), as toxicomanias – decididamente, e até o final – mostram a pura (re)iteração no real do Um do gozo, enquanto as adixões – das narinas desse mesmo gozo-Um, também elas – persistem numa tentativa, que não cessa de fracassar, na iteração do consumo, de “infiltrar” a cada vez algo de sentido naquilo que, de início, já não o tem, convocando um desejo que se desvanece: o desejo de viver.

Salientamos que esse núcleo duro do gozo toxicômano permanece no cerne do conceito de ADIXÕES, advertindo-nos que, por mais que o mercado pretenda, é necessário destacar que NÃO HÁ ADIXÕES LIGHT, já que a pulsão de morte sempre espreita o indivíduo, envolta em insuspeitadas estruturas formais dos sintomas que distribui.

  1. As toxicomanias, mais além das adixões

As toxicomanias realmente mostram o próprio paradoxo da existência: por um lado, a tentativa de saturar o vazio produzido pelo apagamento do Um original, com as poli-substâncias tóxicas que o mercado fornece; por outro lado, a presença apocalíptica, real, desta falha geológica: a própria fenda do gozo humano que ameaça aniquilar a cada um. Por isso, as toxicomanias constituem o protótipo do que a época elevou ao zênite da civilização, evidenciando o fundamento autoerótico da existência.

Adixões: com esse significante, dizíamos, temos interpretado a multiplicidade de nomes com os quais o Outro social e o mercado pretendem dar valor etiológico e classificatório às substâncias, a ponto de explodir seus confortáveis escaninhos: desde “pessoas tóxicas”, à “dependência do trabalho”, até a “dependência do sexo”, tudo pode ser classificado. Mas a implosão do não-todo estoura sob seus narizes, infinitizando essas mesmas classificações a partir do que resiste a ser encerrado em um nome: a toxicidade do gozo insiste e transborda qualquer classificação. Por isso, o nome de adixões tem o valor por marcar a iteração do gozo que se trafica, para contrariar o paratodo do mercado de consumo, destacando em cada “adicção” a fixação singular de gozo que empuxa a cada falasser.

Ao contrário, as toxicomanias estão mais aquém das adixões, já que toxicomanias é o nome que conservamos – a partir de nossa epistemologia psicanalítica – para denotar a operação da pulsão de morte que tenta fazer existir o gozo infiltrando-se no corpo, instigando a recusa do inconsciente por esse mesmo meio: tóxico-maníaco.

Paradoxalmente, dizíamos, esta é a particularidade sintomática da época atual: fazer Um com o corpo de modo autoerótico – mas, acrescentamos: sem corpo. Curiosamente, poderíamos conjecturar que o irrisório, quer dizer, a pretensão do toxicômano, é fazer existir o gozo no corpo e fora do corpo… que não haja nada mais, que não se adicione nada mais.

Mas à noite… a solidão desespera (Cordera dixit15). Aí o vazio realmente (re)emerge, o original, aquele do “eclipse do Um” que o toxicômano tentou saturar com a substância artificial do mercado e a abstinência da droga é o pedágio imposto pela pulsão de morte para recordá-lo disso.

Enquanto isso, a solidão globalizada constitui um resto das adixões contemporâneas que recordam a nós, consumidores – já que nesse ponto somos todos adit@s (SINATRA, 2016) –, que mais aquém da fenda do gozo o vazio espreita, também o gozo das drogas. E tem sido a partir daí, desse vazio, a tentativa, que deixamos em aberto, de nos servir das adixões para localizar com elas o fundamento bipolar, o caráter tóxico e maníaco do consumo.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Lilany Pacheco

Referências
LACAN, J. Do discurso psicanalítico: Conferência em Milão (12 de maio 1972). (Texto inédito).
MILLER, J.-A. Curso de la Orientación Lacaniana, “El Uno solo”, Sesión del 30-3-2011. (Texto inédito).
MURAKAMI, H. Tony Takitani. Barcelona: Tusquets Editores, 2019.
SINATRA, E. @s nov@s adit@s: a implosão do gênero na feminização do mundo. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2013.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 04/10/2022.
2. Encarnado e patrocinado, por exemplo, pela frase super adictiva: “imposible is nothing!”slogan de lançamento de uma marca líder do mercado, cujo logotipo minimalista coincide com os likes do Facebook.
3. Junção das palavras “sex” e “texting”, que pode ser traduzida livremente como “sexo por mensagens de texto”. Atualmente, a palavra tem um significado mais abrangente e se refere também ao envio de fotos, vídeos e mensagens de áudio. (N. T.)
4. Sobre esse neologismo adixão, conferir em: SINATRA, E. AdiXiones. Buenos Aires: GRAMA Ediciones, 2020. Ver também nota 6.
5. Essa hipótese de trabalho, “nada é sem gozo”, destacada por Miller em Sutilezas Analíticas, nos levou, no Seminário do TyA, a verificar, a partir da prática analítica, seus diferentes modos de manifestação.
6. Seguindo Jacques-Alain Miller, escrevemos adixiones, com o x freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com a qual cada Um respondeu ao trauma da não-relação.
7. Especialmente, a exploração do gozo do olhar que se dissemina pelas múltiplas tecno-telas que o mercado oferece.
8. Que não haja relação sexual quer dizer, para aplicá-la à ocasião, que não há complementariedade de gozo entre o lado macho e o lado feminino, para evidenciar a fenda própria da sexualidade nos humanos, o que J. Lacan denominou com um neologismo: sexuação.
9. A manifestação do ódio ao pai era tão intensa que não podia deixar de injuriá-lo, apesar de saber perfeitamente que o pai não era o culpado pelo que lhe sucedia, do que ele não conseguia fazer, especialmente, porque estava morto.
10. Acrescentaríamos para os não-incautos que – outra vez – erram.
11. Portal da internet, site de marcadores sociais com áreas de discussão, que atribui pontos a seus usuários por votos favoráveis realizados aos seus envios.
12. O tema é, para nós, o do duplo consumo – smartwatches+drogas –, ou o do consumo de duplo comando na interface adixões e toxicomanias, como podemos denominá-los.
13. Recordemos que escrevemos adixões – com o x freudiano de fixierung – para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada Um respondeu ao trauma da não relação; não o esquecer implica ter presente não só os riscos da generalização que vale para todos (Todos adictos!), senão uma das consequências do estrago do ser nomeado para: o empuxo à segregação que porta a identificação das massas.
14. Isso vale, especialmente, nos casos dos “adictos” das minisséries.
15. Cordera dixit. Consideramos que seria o desdobramento de cordeiro, o filhote de ovelha, com “dixit” com o jogo de cartas Dixit criado por Jean-Louis Roubira e publicado pela Editora Libellud, no qual um dos participantes sugere características da ilustração de uma carta da mão, possibilitando que cada adversário também selecione um card que se encaixe com a descrição dada. Reveladas as cartas, os oponentes devem adivinhar qual era a ilustração originalmente anunciada. (N. T.)



Um corpo de angu1

Nathália Temponi Natal 
Psiquiatra das Redes de Saúde Mental de Itabirito, Mariana e Ouro Preto
nathtemponi@uol.com.br
 Cláudia Reis 
Psicanalista, membro da EBP/AMP
claudia.r.reis@terra.com.br

Resumo: Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e ,Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro.

Palavras-chave: Toxicomanias; psicose; instituição; analista.

A BODY OF ANGU

Abstract: This writing was constituted from a presentation at a Clinical Section of the Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, in which Nathália was responsible for writing about the clinical case and ,Cláudia, for the comments. Our field of interest was to investigate the relationship that a subject can maintain with a toxic substance and the analyst’s position in conducting the clinical case and, consequently, verify the effects of this encounter.

Keywords: Drugaddictions; psychosis; institution; analyst.

 

CAROLINA BOTURA. OCORPOABRIGA

 

Rogério foi acolhido na instituição de Saúde Mental em 2007, encaminhado pela Unidade Básica de Saúde com relato de que havia chegado agressivo e alcoolizado. Quando lhe perguntado o motivo do encaminhamento, respondeu:

“eu bebo desde o dia em que nasci, minha mãe colocava cerveja na mamadeira e me dava. Meu pai que mandava ela fazer isso, porque eu era muito agitado. Bebo para ver se alivia minha cabeça e se diminui meu estresse. Acho que tô piorando minha cabeça; já tentei parar de beber várias vezes e não consigo. Não consigo resolver meus problemas. Tem hora que eu penso que vou machucar alguém de tanto estresse. Quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram. Quero parar! Ninguém gosta de cachaceiro!”

Relata que, quando criança, via pouco o pai; sentia sua falta e, quando o encontrava, este lhe dava cerveja.

Assumo esse caso em 2019. A todos os plantões, ele chegava alcoolizado, falava muito alto, entrava nos consultórios e interrompia os outros atendimentos. Traz no corpo diversas escoriações, marcas de cortes e cicatrizes de suturas em sua face, por vezes fraturas de partes dos membros superiores, costelas e dentes quebrados. Sua marcha é atáxica, devido a sequela em trauma do quadril na ocasião de um acidente. Observa-se uma piora de sua marcha nos dois últimos anos, provavelmente pelo consumo acentuado do álcool.

Tem chegado cada vez mais machucado; a cada dia, um corte e uma nova sutura em alguma parte do seu corpo, geralmente no rosto e couro cabeludo, por consequência de quedas da própria altura pelo consumo intenso de álcool. Costuma dizer: “o cadáver chegou!”.

Em março de 2020 eclodiu a pandemia do coronavírus e Rogério acentuou o uso do álcool. Ao ser acolhido pela instituição, conseguia passar o dia sem beber, fazendo uso apenas quando chegava em casa e aos fins de semana. A equipe observou o quanto foi importante esse acolhimento devido à urgência que se apresentava nesse caso.

Destaca-se da fala de Rogério sua revolta na infância por ver pouco seu pai e a afirmação de que, quando se encontravam, este lhe dava cerveja. Dos prontuários da instituição, extrai-se, já no acolhimento, que, em sua realidade psíquica, mamava cerveja. Quando se refere a parar de beber, nos traz uma colagem com a morte: “quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram”. Mais adiante: “Eu já estou morto, quem bebe esse tanto já está morto”.

Tem-se uma queixa da falta do pai, relatos de um sentimento de abandono e desamparo e nota-se a presença da pulsão de morte. Esses pontos nos levaram a tomar o Lacan do início de seu ensino, em Complexos Familiares (LACAN 1938/2003), em que relaciona a toxicomania com o desmame. Aponta que o desmame representa a forma primordial da imago materna e que é um momento fundador dos sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. Portanto, instaura marcas importantes na formação do sujeito. Segue suas elaborações afirmando que, traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo a marca permanente da relação biológica que ele interrompe. O desmame é aceito ou recusado, e a continuação do desenvolvimento evocará as marcas daquela crise. É a recusa do desmame que tende a restabelecer esses primeiros conteúdos experimentados. Importante destacar que se trata de um período anterior ao advento do objeto. Diz ainda que esses conteúdos moldam as experiências psíquicas posteriores e são reevocados por associação. Quanto à imago, cito:

“tem que ser sublimada, para que novas relações se introduzam com o grupo social e para que novos complexos se integrem no psiquismo. Na medida em que resiste a essas novas exigências […] a imago, salutar em sua origem transforma-se num fator de morte. […] Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma original que lhe dá o desmame, revela-se nos suicídios […] naqueles que se evidencia a forma oral do complexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas. A análise desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe” (LACAN, 1938/2003, p. 41).

Que efeitos de sentido pode Rogério ter dado ao escutar que era cerveja que mamava?

Notamos uma desordem. Trata-se de um sujeito disfuncional. A forma como leva a própria vida, como não se conecta com o mundo que o cerca, o modo como experimenta seu corpo e o jeito de se relacionar com suas próprias ideias nos levam a tal afirmação. Não consegue ajustar-se socialmente, demonstra uma impotência em relação a conseguir encaixar-se num trabalho, suas relações são problemáticas. Seu corpo vagueia e tem a coordenação motora prejudicada. Um corpo que cai, corta, sutura, não se fixa; um angu, como bem nomeou a analista. Subjetivamente notamos um desenganche do Outro; a cabeça é ruim, porta um mal-estar, uma identificação com o objeto a como dejeto. Não se trata de uma identificação simbólica, mas real: “o cadáver chegou”.

A solução encontrada para todo esse mal-estar é beber. Poderíamos construir uma hipótese, a de que, diante da queixa da falta do pai, este lhe transmitiu esse modo de gozo? Ao aproximar a toxicomania da psicose, teríamos no gozar com o corpo uma forma de substituir o Nome-do-Pai?

Que lugar o objeto álcool ocupa para esse sujeito? O que essa substância representa, uma vez que sabemos que a intoxicação não é da substância, mas do significante?

Rogério está intoxicado pelo que essa droga representa para ele. Qual é o drama subjetivo que essa representação vem a responder?

Colhe-se em sua fala que se trata do encontro com o pai, o elo que os une. Desde seu nascimento (“a cerveja na mamadeira”), até a morte deste pai (“meu pai morreu bebendo comigo”), temos uma trajetória marcada pela presença dessa substância. Desde a falta do pai, sentida no início de sua vida, até a morte enquanto falta, Rogério encontra uma solução, um objeto que tampona, e até transborda: o álcool.

Como fazer desconsistir a droga e trilhar nosso objetivo, que é cavar a passagem do gozo da substância ao gozo pela palavra?

O gozo do toxicômano exclui o corpo do Outro, é autoerótico. Constitui-se como o suposto saber sobre o gozo, ou seja, tem-se uma certeza de gozo com a droga que é um objeto causa de gozo. A aposta da psicanálise é que existe o sujeito do gozo e o sujeito da palavra, e esta circula. Ao oferecer a escuta para que o toxicômano fale, pode despertar algo pulsional.

Nossa orientação teórica acredita que tem um sujeito do inconsciente no doente, por isso operamos a nível do sujeito, e não da droga, exigindo abstinência, por exemplo.

No que toca uma instituição para toxicômanos, sabe-se que esta precisa ser construída a partir do real e conviver com a ideia de que não há tratamento sem recaídas, e, exatamente por isso, tem que contar com algumas estratégias, como pudemos ver no relato do caso. Diante das transgressões do paciente, observa-se um vínculo, mas não muito apertado; um vínculo frouxo. Talvez por isso Rogério, aos trancos e barrancos do seu caminho, lá coloca seu corpo há 15 anos, e parece que ali endereça seu desamparo.

Tarrab (2000) fala da importância de se estar advertido e não ser tragado pelos discursos que circulam nas instituições. Deixar-se surpreender e apostar, sem garantias. Uma posição ética de escutar o sujeito mais além do nome que traz e o marca e dar lugar a sua particularidade. Delinear a entrada na transferência como uma possibilidade de saída.

Interessante o ponto de impasse da equipe diante da condução de tratamento. A solicitação de supervisão clínico-institucional foi uma saída importante. Encaminha-se, pela linguagem, o desafio de Rogério ao saber da equipe, que a colocava impotente e angustiada. Esta, a partir daí, sente-se mais segura para se posicionar e fazer o que precisava ser feito. Existem momentos em que as palavras faltam, e os pacientes passam ao ato para serem atendidos. Do ponto de vista terapêutico, é necessário realizar a internação, que muitas vezes lhes dará o limite corporal. As internações pontuais promovem um intervalo, um respiro.

Tivemos um dado importante que se deu durante a pandemia. Inserido como caso de exceção na PD, diminui o consumo. Nas enchentes deste ano, sem atendimento por duas semanas, a equipe o encontra com os cabelos e barba crescidos e humor deprimido. Poderíamos ter aí um indicador de que uma estratégia de mantê-lo em regime mais próximo poderia ser interessante?

Parece ser esse o desafio do caso. Algo da ordem de uma escuta mais regular, da construção de algum laço que lhe desse um lugar e possibilitasse modificar a posição do gozo desse sujeito, mais compatível com um corpo com outra consistência, que não a de angu.

 


Referências
LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003
TARRAB, M. Las salidas de la toxicomania. In: Más alla de las drogas: estudios psicoanalíticos. La Paz: Plural, 2000.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022.