Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes1 Sílvia Reis Soares 

Psicóloga
Coordenadora adjunta do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental
silvia_moc@hotmail.com

 

Resumo: A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro.

Palavras-chave: psicanálise; infância; adolescência; internet.

ALGORITHMS, PROTOCOLS AND SPONSORED CONTENT: A PROBLEMATIC COMBINATION WITHIN CHILDREN AND TEENAGERS CLINIC.

Abstract: Psychoanalysis with children and teenagers has presented several crossings from the incidence of technology, the internet, and social networks. The implication of the analyst in this context is investigated here, in view of the shift in the relation with knowledge, which no longer passes through the assumption of the Other.

Keywords: psychoanalysis; childhood; adolescence; Internet.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

 

I – Estamos na Era da Informação

A internet, criada como Arpanet em 1969, tinha como objetivo interligar laboratórios de pesquisa americanos. Nesse mesmo ano, tivemos também o envio do primeiro e-mail da história. Com a expansão de seu uso, dominou o âmbito acadêmico e se tornou conhecida como Internet. Seu uso comercial foi liberado em 1987 e, posteriormente, empresas fornecedoras de provedores de acesso começaram a surgir. E assim, em 1992, o Laboratório Europeu de Física de Partículas (Cern) inventou a World Wide Web, o famoso www que precede os endereços virtuais, e as informações passaram a estar ao alcance de qualquer usuário. No Brasil, a exploração comercial foi liberada em 1995 e, desde então, temos nos deparado com a difusão da rede e sua multiplicação de formas de exploração (SILVA, 2001).

Com o lançamento do Google, em 1997, a história da internet teve um ponto de virada, disponibilizando a rede para um público extenso e oferecendo o uso de um navegador, tornando-se também o principal mecanismo de buscas, que conta com cerca de 1 bilhão de páginas indexadas, fornecendo agilidade e facilidade ao acesso de informações em decorrência de seus algoritmos (ROCK CONTENT, 2020). Em seguida, surgiram as redes sociais, representando uma forma de contato direto, rápido e possibilitando a troca de informações e o acesso às notícias em tempo real. Importantes serviços foram criados, como o Facebook, o YouTube e o Instagram.

Todas essas são plataformas que servem de entretenimento e são difusoras de informação, substituindo as mídias tradicionais e trazendo tudo ao alcance das mãos. Quantas não foram as revistas e os jornais que deixaram de existir, uma vez que a informação se encontra disponível de graça? Quantos canais de televisão precisaram adequar seu conteúdo e formato ao perder espaço para a Netflix e afins? Desse modo, a internet desencadeou a Quarta Revolução Industrial e o mundo passou a estar na Era da Informação (ROCK CONTENT, 2020). Nesta etapa, conhecida como Internet 2.0, os usuários passaram de uma posição passiva, de meros consumidores, para uma posição ativa, na qual interagem entre si na posição de criadores de conteúdos, confluindo para os influencers da atualidade, ou seja, pessoas que produzem conteúdo e se destacam nas redes em que se encontram. Diante desse cenário, as empresas logo perceberam todo o potencial envolvido e hoje já não se pode falar da internet sem a publicidade que nela encontramos.

É quando surgem em cena os famosos algoritmos, “sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo…” (ROCK CONTENT, 2020, n.p.). São instruções dadas por quem os programa para que resolvam problemas matemáticos, executem tarefas ou realizem cálculos. Assim, com a inserção da publicidade no ambiente virtual, os algoritmos foram ajustados de modo a privilegiar alguns fatores, como a temporalidade, o engajamento e o relacionamento. Organiza a timeline do usuário de modo que os conteúdos exibidos sejam os mais recentes e que estejam recebendo bastantes interações (curtidas, comentários, compartilhamentos), além de priorizar os usuários com quem há interações frequentes. Então, os algoritmos destacam o que entendem ser do interesse do usuário e mostram conteúdos que avaliam como relevantes.

II – Adolescência e atualidade: entre o ideal e o possível

A adolescência, construção social acerca do que a psicanálise compreende como puberdade, é o momento da vida em que o sujeito já não é mais criança e passa a ser tomado pelas irrupções do real do corpo, que está em constante mudança. Miller2 (apud DRUMMOND, 2016) aponta que, tratando-se da adolescência, nos ocupamos de três aspectos: a saída da infância, a diferença dos sexos e o desenvolvimento da personalidade. É, então, um momento crucial, visto que é quando o sujeito se depara em um encontro com o impossível e, a partir do qual, precisará construir uma resposta. “Receber um adolescente é receber alguém em um impasse, pois se defronta com as mudanças corporais, identificações, a lida com os outros e com o Outro, relação com o sexo. Impasses estruturais, encontros com o real, diante dos quais o sujeito se vê desamparado” (STIGLITZ, 2016, apud MEZÊNCIO, 2017, p. 78). Assim, o adolescente encontra-se, naturalmente, envolto a essas questões e, considerando o enfraquecimento do Nome-do-Pai e a proliferação de objetos, o saber já não faz enigma, estando acessível a qualquer momento e em qualquer lugar: ele está ao alcance das mãos. Ou você nunca pediu a alguém que procurasse uma resposta no Google?

Lacan nos diz em “Televisão” que, em nossos tempos, o objeto a foi elevado ao zênite social, ou seja, temos localizado no mais alto ponto do céu o mais de gozar como dominante. “Este primado do objeto a, próprio da época do Outro que não existe, deixa para trás, a identificação simbólica ao ideal” (AMENDOLA, 2020, n.p.). Assim, a inserção social se faz menos por identificação do que por consumação, como aponta Miller.

O celular, gadget que permite o acesso aos apps (aplicativos), está sempre disponível. Não é incomum crianças e adolescentes queixando-se nos consultórios de quererem ou precisarem de um aparelho. Ou, ainda, tem sido frequente ouvir deles que o celular, e até especificamente o TikTok, são motivo de eles viverem, são pontos que os ligam à vida.

O que tem sido percebido na clínica é que o uso excessivo de celulares e afins privilegia relações intermediadas pelo aparelho, o que destaca a total desorientação do adolescente quando privado de seu acesso. É comum vermos um grupo de pessoas próximas fisicamente, em que está, cada uma, atenta ao conteúdo de seu dispositivo, e até mesmo relacionando entre si por meio das redes sociais, em detrimento da relação vis-à-vis. Para além disso, frente às frustrações decorrentes, pouco tem sido possível enquanto saída privilegiada pelo simbólico e frequentemente nos deparamos com atos sobre o corpo como forma de alívio ou punição. Miller nos coloca que os sujeitos contemporâneos hipermodernos são desorientados, sem uma bússola norteadora, o que favorece a imposição do objeto a a esses sujeitos desamparados. “O mais de gozar se esgueira através das redes…” e dita várias formas de burlar o circuito natural dos corpos e da vida (AMENDOLA, 2020, n.p.).

III – Quando os algoritmos encontram sujeitos desorientados: uma angústia infinita

A relação do sujeito contemporâneo com o saber já não é a mesma de outrora. Não se supõe mais que o outro sabe, visto que ele o detém. É comum nos depararmos com influencers seguidos por milhões de pessoas, mas de quem nunca ouvimos falar. Que conteúdos produzem, afinal? Muitos dançam trechos musicais coreografados que se tornam verdadeiros virais, outros dublam cenas famosas de filmes, fazem pegadinhas, promovem desafios, etc. Os conteúdos em vídeo já são privilegiados quanto aos estáticos dos textos e imagens, convocando os usuários a se adequarem às regras para aumentar o engajamento.

Uma das mais recentes redes sociais em evidência é o TikTok. O aplicativo chinês mais baixado de 2021 é uma rede de compartilhamento de vídeos curtos que monta a sua timeline conforme os conteúdos que o usuário se interessa por consumir. Criado em 2016, é um dos poucos apps que ameaçam a hegemonia da Meta, empresa detentora de Facebook, Snapchat, Instagram, WhatsApp e outras mais. Seu feed é formado pela chamada timeline infinita, ou seja, o conteúdo selecionado é escolhido a partir dos algoritmos e não há um fim, não tem momento para o conteúdo acabar. Essa nova configuração implica numa série de sérias consequências: a falta faz falta! E é aí que mora a angústia.

Em estudos recentes, pesquisadores perceberam que os vídeos curtos de conteúdo agradável ao usuário ativam áreas do cérebro ligadas ao sistema de recompensa, o que produz sensação de prazer e satisfação. Assim, ao assistir a um vídeo do aplicativo, ativa-se a produção de dopamina, produzindo sentimentos de felicidade e alegria. Diante do aumento do recebimento do neurotransmissor pelo cérebro, mais ele demanda, contribuindo para sua entrada em estágio de saturação e diminuindo a sua sensibilidade, de modo a necessitar de uma quantidade maior da substância.

IV – O discurso capitalista e o saber: fonte de parva riqueza

É diante de todo esse contexto que temos uma combinação deveras problemática: uso excessivo das redes sociais, aplicativos que te entregam o que te agrada, ainda que não solicitado, e a inexistência da falta ou, ao menos, de um hiato que possa suscitar um questionamento, são imperativos de gozo: Compre! Seja! Faça! Nessa seara, muitos encontraram a oportunidade de se venderem enquanto produtos a serem consumidos: “Te ensino a ganhar dinheiro com o Instagram! Compre meu curso! Siga o meu perfil!”. E o resultado disso é a venda de soluções rápidas por pessoas que ocupam o lugar de mestre e que interpretam o desconhecido (vide as caixinhas de perguntas), mas privilegiando formatos standards de como fazer, vender ou tratar.

Para que o analista esteja à altura de sua época, é preciso que esteja atento ao modo como o falasser se manifesta. Márcia Mezêncio diz que “o laço transferencial é a oferta que cabe ao analista […] e que esse laço é o que pode produzir um lugar onde o sujeito possa se enganchar” (2017, p. 75). E, a partir disso, cavar um amor epistêmico ao inconsciente. Diante disso, então, pergunto: o que faria o analista, em sua posição de semblante do objeto, causa de desejo, diante do sujeito que acredita ter o objeto em suas mãos? Como convocar o sujeito a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco?

 


Referências
AMENDOLA, A. F. O discurso analítico: uma pausa vivificante. Lacan XXI – Revista FAPOL online. 2020, vol 1. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2020/05/26/o-discurso-analitico-uma-pausa-vivificante/?lang=pt-br Acesso em 02 out. 2022.
Conheça a história da Internet, sua finalidade e qual o cenário atual. Rock Content Blog, 2020. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/historia-da-internet/ Acesso em 02 out. 2022.
DRUMMOND, C. Gide e a imiscuição do adulto na criança. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 42, jul./dez. de 2016.
LACAN, J. Televisão. Outros escritos São Paulo: Zahar Editor, 1993.
MEZÊNCIO, M. A constituição do sintoma na juventude: deriva e ruptura. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 43, abr. 2017.
O GLOBO, A. Como o TikTok atua no cérebro e vicia jovens em seus vídeos curtos. EXAME, 2022. Disponível em https://exame.com/ciencia/como-o-tiktok-atua-no-cerebro-de-jovens-com-videos-curtos-e-personalizados/. Acesso em 04 out. 2022.
Saiba como funciona um algoritmo e conheça os principais exemplos existentes no mercado. Rock Content Blog, 2019. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/ Acesso em 03 out. 2022.
SILVA, L. W. Internet foi criada em 1969 com o nome de “Arpanet” nos EUA. Folha de S. Paulo, 2001. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u34809.shtml Acesso em 02 out. 2022.

1 Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Saúde Mental da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022. 
2 Texto de encerramento da 3ª Jornada do Institut de l’Enfant, 2015. 



O grito silencioso: o corpo da criança na clínica da civilização1

Alessandra Thomaz Rocha
Psicanalista, doutora em psicanálise pela UFMG, membro da EBP/AMP
aless.thz@hotmail.com

 

Resumo: O texto trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças. Para isso, a autora aborda a questão do grito em Lacan e localiza a questão do silêncio e sua importância na psicanálise. Articula-os um ao outro e à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

Palavras-chave: Silêncio; grito; criança; acontecimento de corpo; falasser

THE SILENT SCREAM: THE CHILD’S BODY IN THE CLINIC OF CIVILIZATION

Abstract: The text deals with the silent scream issue from the point of view of the political body event from the perspective of the psychoanalytic clinic with children. For this, the author addresses the issue of screaming in Lacan and also locates the issue of silence in Lacan and its importance in psychoanalysis. She articulates them to each other and to the clinic of the parlêtre based on the event of the political body, considering that there is no clinic of the subject without a clinic of civilization.

Key words: Silence; scream; child; body event; parlêtre.

 

CAROLINA BOTURA. IO

 

Como se articulam grito e silêncio? Qual é a relação da criança com seu corpo e o com o gozo, que dele escapa? Qual é o lugar do corpo da criança na clínica da civilização? Para tratar desse assunto, faremos inicialmente uma abordagem sobre o grito a partir de Lacan e, em seguida, sobre o silêncio, para depois articulá-lo à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

O grito

Lacan evoca o grito para falar do silêncio no Seminário 12: problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965, inédito), fazendo circular na sala uma reprodução do célebre quadro de Edward Munch “O grito” (1893). Ele comenta que não encontrou imagem melhor para falar do silêncio do que essa. Menciona o ser que aparece, que tem o aspecto estranho e que não se pode dizer sexuado. Esse ser que

“tapa as orelhas, escancara a boca: ele grita. O que é esse grito? Quem ouviria esse grito que não ouvimos? Se não que ele impõe esse reinado do silêncio […]. Literalmente, o grito parece provocar o silêncio e, aí se abolindo, é sensível que ele o causa, ele o faz surgir, ele lhe permite manter a nota. É o grito que o sustenta, e não o silêncio ao grito” (LACAN, 1964-65, p. 217).

“O grito é uma pura enunciação, o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas” (LAURENT, 2016, p. 210-211). Assim, o silêncio não está fora da linguagem, já que não é anterior ao grito, mas, ao contrário, é o grito que funda o silêncio. Logo, não há silêncio sem grito, pois, como nos afirma Lacan, “O grito faz o abismo onde o silêncio se aloja” (LACAN, 1964-1965, p. 217). O grito é a expressão primitiva e indiferenciada do recém-nascido, que, por estar fora do sentido, convoca seu outro primordial a um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Sob a forma de choro da criança, o grito é transformado em demanda. Para Freud, a primeira experiência de satisfação, por ser inédita, é também irrecuperável enquanto tal. Ela estabelece tanto uma expectativa e uma procura por satisfação quanto uma impossibilidade de reencontro do objeto dessa satisfação, para sempre perdido, constituindo um vazio contínuo e constante para o sujeito, que nenhum objeto substituto pode preencher. Lacan se refere à pausa do silêncio na música como um saber fazer do músico, que é tão essencial quanto uma nota sustentada, e se pergunta se só poderíamos pensar no silêncio como suspensão da palavra.

Taceo não é sileo

Ainda nesse mesmo seminário (1964-1965), Lacan nos remete a duas formas do silêncio, utilizando os termos em latim. Define taceo como a dimensão do silêncio que é aquela da palavra não-dita, enquanto sileo seria um silêncio fundante, estruturante, que aponta para uma ausência essencial da palavra, isto é, um buraco de significação, uma impossibilidade de simbolização (LACAN, 1964-1965) que seria, em última instância, a própria morte. Roland Barthes, em O neutro (2003), referindo-se à língua clássica, também faz uso desses dois termos em latim para abordar o silêncio. Define Sileo como o que remete a uma ausência de movimento e de ruído, uma espécie de pureza atemporal das coisas que existe antes de elas nascerem ou depois de elas desaparecerem; e taceo como o que diz respeito a um calar-se, a um deixar de falar, isto é, um silêncio verbal.

Lacan salienta que “O silêncio forma um laço, um nó fechado entre algo que é um entendimento e algo que, falando ou não, é o Outro, é este nó fechado que pode repercutir quando o atravessa, e talvez mesmo o cave, o grito” (LACAN, 1964-1965, p. 218). Menciona que em algum lugar em Freud existe a percepção primordial desse buraco do grito. Afirma que é no nível do grito que aparece o próximo, o Nebenmensch, o mais próximo, porque é justamente esse vazio intransponível, marcado no interior de nós mesmos, e do qual podemos apenas nos aproximar. Menciona também, nessa lição XII, de 17/03/65, o excelente artigo de Robert Fliess, filho do famoso Wilhelm Fliess, o companheiro de autoanálise de Freud, intitulado “Silence and Verbalization2. Esclarecendo que esse silêncio a que se refere Fliess é “o próprio lugar onde aparece o tecido sobre o qual se desenrola a mensagem do sujeito, é aí onde o nada impresso deixa aparecer o que é esta palavra. E o que é dela é precisamente, neste nível, sua equivalência com uma certa função do objeto a” (LACAN, 1964-1965, p. 218).

O silêncio compõe a própria função da verbalização e manifesta a presença do que é indistinguível da pulsão, ou seja, a presença do objeto a. Há, portanto, uma aproximação entre o silêncio das pulsões e o silêncio que compõe a palavra e a convoca enquanto objeto a. Isso que, na clínica, se presentifica como o silêncio do analista. Essa é a função crucial do silêncio na experiência analítica, convocar o dizer analisante, a partir da presença do analista como silêncio invocante, como semblante de objeto a.

O artigo de Robert Fliess também foi citado por Lacan em 1953, em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, para se referir às palavras e à linguagem em relação ao corpo. Fliess estuda, na análise, a conexão entre a palavra e o gozo através dos silêncios. Distingue três tipos de silêncio que observa clinicamente e diz que são interrupções de uma linguagem semelhantes às pausas ou silêncios de uma partitura musical.

“Há o pequeno silêncio normal, ‘uretral’, no qual o paciente parece ter esquecido a regra analítica e interrompe a fluidez das palavras. O ‘silêncio anal’ alude aos pacientes que se calam, retêm palavras, estão sujeitos a uma inibição. O sujeito não consegue retomar as associações. Mas o pior, segundo ele, é o ‘silêncio oral’, que parece interminável. É um mutismo que dá conta de uma impotência para falar. Lacan menciona Fliess precisamente por essa relação da pulsão à palavra que pode tomar valor de gozo segundo os diferentes estados libidinais mencionados por Freud e sinaliza que, quando o valor de gozo infiltra a palavra, e isso se repara melhor no silêncio, a pulsão a cala. No silêncio há a inibição da satisfação que o sujeito experimenta na produção do fluxo de palavras” (KUPERWAJS, 2021, n/p). 

O acontecimento de corpo político e a clínica da civilização 

Partindo do tema do falasser político e do acontecimento de corpo, considerando o fato de que o gozo foi elevado ao zênite na civilização, Éric Laurent, em seu livro O avesso da biopolítica, nos lembra de que o estatuto fundamental da subjetividade de nossa época é a angústia, e que o sujeito moderno possui uma afinidade com o corte introduzido pela angústia em tudo o que constitui o mundo. É uma relação do sujeito com o corte e com o vazio que pode ser dita “fora do sentido” e contabilizada como a marca de um sujeito que falha (LAURENT, 2016). Ressalta que a desaparição do sujeito contemporâneo se produz no nível da divisão subjetiva, o que acarreta uma perda no nível do desejo, e que essa perda ecoa na operação da fantasia “em que o sujeito se apreende como objeto no pleno (plein) de sua perda. Isso define um funcionamento da psicologia das massas distinto da identificação positiva como um traço extraído do Outro” (LAURENT, 2016, p. 210). Ele nos indica que, na democracia, o Um da união está sempre perdido, pois “a oposição entre o laço social fundado numa identificação com um traço unário, ou um bigodinho, e aquele fundado na fantasia como resposta em face da angústia original nos permite ler de outra maneira (…)” (LAURENT, 2016, p. 210) alguns dos movimentos sociais que tem surgido em resposta à crise. Essas respostas vêm sendo formuladas sob a forma de

“movimentos espontâneos sem palavras de ordem unificadora na Europa latina, sob o significante ‘indignados’, nos EUA e sob o de ‘Occupy…’ em países anglófonos. Trata-se de ocupar um lugar mais indefinido ainda, ou seja, aquele de uma enunciação em que o sujeito pode se retomar em sua desaparição. É um grito do sujeito contra o Outro infernal, que o deixa sem lugar no mundo” (LAURENT, 2016, p. 210).

O grito como pura enunciação é o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas. Logo, “em resposta à angústia, trata-se de escrever alguma coisa nova, alguma coisa que demarque um lugar (place)” (LAURENT, 2016, p. 211), pois “é o lugar que deixa aberto o furo no simbólico que o sujeito tenta ocupar para se apreender” (LAURENT, 2016, p. 211). Porém, resta saber para onde se dirigem as marchas em curso desses movimentos da cultura, já que a suspeita da impotência do homem político contemporâneo se dissemina. Laurent questiona: esses movimentos seriam “a possibilidade de uma manifestação em que o silêncio trabalharia no avesso da pulsão de morte, num mal-entendido vivo que nos afastaria do ajuste final entre liberdade e segurança?” (LAURENT, 2016, p. 211). Seria esse grito silencioso o que poderia operar uma subversão a partir do lugar de uma enunciação eloquente?

Considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização, trata-se, na clínica do falasser, de apostar no inconsciente como o que está ‘a ser definido’, segundo Miller (LAURENT, 2016, p. 201), e de acordo com Laurent, considerar que, diante da liquidez da civilização moderna, a angústia se apresenta de forma generalizada. Por isso, Lacan nos orienta a trabalhar a partir não mais das defesas ligadas ao desejo, mas dos “arranjos e percursos dos regimes de gozo” (LAURENT, 2016, p. 203), como o que se estabelece no nível da pulsão.

Assim, tomando a experiência analítica, não mais nomeada como cura ou tratamento, mas como uma experiência, proposta que se apresenta a partir do último ensino de Lacan, trata-se, na clínica psicanalítica, de apostar no “sintoma como acontecimento” e no “modo de gozar como sintoma”, de forma a localizar, isto é, dar lugar ao falasser político como acontecimento de corpo. Tomar o Outro como corpo, e não como espírito, permite inscrever nele uma marca, que vai mais além do traço unário. É uma marca que permite reler a identificação a partir da inscrição sobre o corpo, a partir do acontecimento de corpo (LAURENT, 2016). “O acontecimento de corpo assinalado por Lacan é mudo. Ou então fala aos gritos, sem direção precisa e fora dos códigos: ‘isso goza onde não fala, isso goza onde não faz sentido’” (BARROS, R., 2011, p. 218).

Laurent (2016) comenta que Miller, em seu texto “Intuições milanesas”, descreve as modificações da clínica na época do não todo e da globalização, assinalando que a “clínica do não todo é aquela em que florescem as patologias descritas como centradas na relação com a mãe, ou […] no narcisismo”, e que o nó é

“uma maneira de responder à estrutura do não todo. […] O ternário RSI se distingue e se opõe ao que era a repartição estanque descontínua entre neurose, perversão e psicose, [e] sem dúvida nos fornece arranjos diferentes, mas que estão em continuidade uns com os outros” (LAURENT, 2016, p. 206).

É o sintoma que se torna a unidade elementar da clínica, e não mais o que se chamava de estrutura clínica, que era uma classe. “Nessa clínica o absoluto, a substância, é o gozo” (LAURENT, 2016, p. 206), que no corpo faz sintoma como um acontecimento, pois “é como se fosse mais simples para o inconsciente de se servir do corpo para tratar o que não pode ser dito” (BONNAUD, 2015, p. 11).

Portanto, o acontecimento de corpo “está, como a angústia, do lado do gozo, que faz desordem no simbólico e que não pode encontrar aí nem seu lugar, nem seu laço, já que se apresenta como irrupção ou emergência” (LAURENT, 2016, p. 209). Porém, a angústia, como afeto que não engana e que é sentido no corpo, está mais em relação ao sexo e ao desejo do que em relação à morte. 

O acontecimento de corpo na clínica com crianças como grito silencioso 

Há um saber que surge da boca das crianças como algo novo, sobre o qual é preciso se debruçar. É preciso investigar, a partir do corpo como Outro, qual seria a relação da criança com o gozo que lhe escapa e que provoca desordem na família. O corpo é o lugar onde um dizer é capturado, mas aparece como enigma de um corpo sexuado, não sem a angústia como sinal. “A criança é feita para aprender, diz Lacan, aprender a fazer o nó a partir do que fracassa. Com isso ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui a ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um” (BARROS, M. 2011, p. 227).

Em tempos de pós-verdade, no qual o que importa não são mais os fatos, mas o que se diz deles, como operar com a enunciação da criança diante de um fechamento ao inconsciente? Como fazer existir o inconsciente quando a subjetividade de nossa época, com sua autodenominação, busca separar o corpo do ser falante e fazer da criança um objeto mudo, a ser escrutinado pelo saber da ciência? Como dar lugar ao Outro do desejo e da palavra, ao falasser, quando o que surge são indivíduos isolados do Outro, arraigados em suas crenças delirantes de um gozo mortífero? É preciso buscar ler o sintoma como grito silencioso nos atos que curto-circuitam a palavra e rechaçam o inconsciente.

Cabe, portanto, ao analista se perguntar sobre o ponto de angústia que mobiliza a criança e seus pais de forma a localizar o não dito que os permitirá formular uma questão. Ao fazer-se parceiro da criança nesse trabalho de elaboração e construção de uma demanda, permite-se a ela lidar com o real opaco que se apresenta de forma cada vez mais avassaladora, a partir de sua posição de objeto a, dejeto das famílias e da civilização.

Na análise com crianças, é possível ler, através dos equívocos e dos lapsos, o que se escreve a partir do corpo fora do corpo, do corpo como Outro, e que surge como acontecimento, como grito silencioso, índice, letra, que abre a possibilidade de inscrição de sua singularidade. É importante localizar o índice inconsciente, a cifra que permite escrever a marca singular do gozo de cada um a partir do saber fazer com as palavras mais além do corpo, para poder dar lugar e nome a uma diferença.

 


Referências 
BARROS, R. Lacan e o acontecimento de corpo. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 217-219.
BARROS, M. Lacan e a criança. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 227-229.
BARTHES, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BONNAUD, H. Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris France : Navarin, 2015.
KUPERWAJS, I. Silêncios. Texto publicado no Boletim infamiliar do XXIII Encontro Brasileiro do campo Freudiano, 2021. Disponível em: https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/wp-content/uploads/2020/12/Kuperwajs-Irene-Sile%CC%82ncios.pdf.
LACAN, J. (1964-1965) O seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito.
LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 238-324.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do IPSM-MG em 06/07/2022. 
2Silence and verbalization: A suplement to the theory of the analytic rule (1949). (Trad. J. D. Nasio) Le silence en psychanalyse. Paris: Payot-Rivages, 1998. In: Lacan, J. Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965), p. 460. 



Sylvia Plath: uma escrita para “O caos da experiência”

Isadora Saraiva Vianna de Resende Urbano
Graduada em Estudos Literários e Mestra em
Teoria da Literatura Comparada pela UFMG
isaresendeurbano@gmail.com

Resumo: Este artigo discute o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta Sylvia Plath (1932-1963). Partindo de trechos de seus diários, cartas e poemas, além do romance A redoma de vidro, procuramos investigar as dimensões que a escrita assumiu na vida da autora. Destacadamente, pontuamos que Plath se valia da escrita como um modo de buscar se fazer amar e de organizar o que nomeava como “o caos da experiência”, numa tentativa de sinthoma que funcionou bem o bastante por muito tempo, mas que, a dada altura, mostrou-se uma saída insuficiente para que Plath sustentasse o desejo de viver.

Palavras-chave: Sylvia Plath; escrita; sinthoma.

SYLVIA PLATH: A WRITING FOR “THE CHAOS OF EXPERIENCE”

Abstract: This article discusses the role of writing as a psychic support for the poet Sylvia Plath (1932-1963). Starting from excerpts from her diariesletters and poems, as well as the novel The bell jarwe seek to investigate the dimensions that writing assumed in the author’s lifeNotablywe point out that Plath used writing as a way of trying to make herself loved andalsoof organizing what she called “the chaos of experience”, in an attempt of making a sinthomethat worked well enough for a long time, but eventuallyproved to be an insufficient way for Plath to sustain the desire to live.

Keywords: Sylvia Plath; writingsinthome.

 

CAROLINA BOTURA. EX-DEUS

 

No Seminário 23, O sinthoma, Lacan nos diz que “uma escrita é (…) um fazer que dá suporte ao pensamento” (LACAN, 2007, p. 140). Pouco à frente, acrescenta: “As pessoas escrevem suas recordações de infância. Isso tem consequências. É a passagem de uma escrita para outra escrita” (ibid., p. 143). A passagem de uma escrita para outra escrita, nesse contexto, é algo que podemos ler como a passagem de uma escrita no corpo para uma escrita textual, por meio da qual registramos nossas impressões e as tornamos legíveis para outras pessoas, e também para nós mesmos.

Escrever suas recordações, como afirma Lacan, certamente tem consequências. No caso de James Joyce, por exemplo, Lacan afirma que a escrita é essencial a seu ego, possibilitando a amarração do nó que rateia na tríade R.S.I. Mas para além do caso Joyce, há um sem-número de pessoas que se apoiam no recurso à escrita e fazem dela algo importante em termos psíquicos. Algumas vezes, essa escrita pode alcançar algo de íntimo e quiçá vital para aquele que escreve, para além de qualquer valor prático ou literário que possa vir a ter. Nesse campo, uma escrita pode, por exemplo, dar corpo aos pensamentos, dar destino ao fluxo de ideias, aquietar a ânsia de dizer, dar consistência às próprias palavras, permitir que algo seja esquecido sem que caia de vez no esquecimento, elaborar, expurgar, etc., o que equivale a dizer que uma escrita pode ter o lugar de uma invenção, uma forma criativa de lidar com os temas que nos tocam, que pode alcançar efeitos terapêuticos ou não, e que, em todo caso, não substitui uma análise, mas pode aparecer como uma estratégia suplementar para lidar com a experiência¹.

Para explorar essas questões, das funções e efeitos de uma escrita, proponho passarmos ao caso concreto e ilustrativo de Sylvia Plath e sua relação particular com as práticas da letra, a partir dos materiais deixados em seu romance, poemas, diários e cartas. Não se trata absolutamente de fazer uma análise de Plath a partir da sua escrita, mas de verificar como essa escrita foi apropriada por ela e que lugares pôde ocupar em sua vida psíquica.  

Sylvia: vida & obra, ou vida-obra

Em um dos poemas de sua juventude, escrito em 1948, o eu-poético de Sylvia Plath responde a questões colocadas por um interlocutor indefinido acerca de sua relação com a escrita:

You ask me why I spend my life writing?

Do I find entertainment?

Is it worthwhile?

Above all, does it pay?

If not, then, is there a reason? …

 

I write only because

There is a voice within me

That will not be still.

                               (PLATH, 2011, s/p)

Diante dessa voz inquieta, a jovem Sylvia procura na escrita uma saída para apaziguar uma angústia, como nos sugerem os três últimos versos do poema, que indicam que a escrita é tanto consequência dessa voz como solução provisória para sua inquietude. De fato, a determinação de Sylvia, desde muito cedo, para se tornar uma escritora, nos mostra a importância que dava a essa atividade: mais que um hobby ou uma fonte de renda, Sylvia se valia da escrita como um modo de inventar seu eu artístico, que se confunde com seu eu pessoal, e descobrir uma voz própria. Mas não devemos idealizar: se a escrita, por um lado, podia lhe dar um senso de identidade e uma preciosa ferramenta de elaboração, por outro lado, a preocupação com a qualidade literária dessa escrita, atrelada imaginariamente ao seu valor pessoal, também era uma das suas grandes angústias, como ela escreve, em 1951, em seu diário:

Posso escrever? Conseguirei escrever se me dedicar o suficiente? Quanta coisa preciso sacrificar para poder escrever, de todo modo, até descobrir se sou mesmo boa? Acima de tudo, PODE UMA MULHER SEM IMAGINAÇÃO, EGOÍSTA, EGOCÊNTRICA E INVEJOSA ESCREVER QUALQUER COISA QUE VALHA A PENA? (PLATH, 2017, p. 121).

Dois anos depois, Sylvia foi escolhida para um estágio em Nova York, onde seria editora convidada da revista Mademoiselle. Em agosto, de volta a casa, tentou cometer suicídio, mas foi encontrada ainda com vida e pôde ser salva. Depois disso, foi internada temporariamente no hospital psiquiátrico McLean, onde conheceu a psiquiatra Ruth Beuscher, com quem manteve contato até o fim de sua vida. É dessa experiência traumática que Sylvia se apossou para escrever, quase dez anos depois, aquele que seria seu primeiro e único romance, A redoma de vidro.

É difícil dizer em que medida e de que maneiras o trabalho de rememoração realizado durante a escrita de A redoma de vidro teria ocasionado uma revivificação dos afetos ligados a essa experiência. Algumas pistas deixadas por suas cartas, entretanto, sugerem que a ficcionalização dessa época tenha sido experimentada por Sylvia em termos positivos, ainda que imaginemos que revirar esses conteúdos não tenha sido uma tarefa fácil.

No romance, é Esther Greenwood, o alter-ego ficcional de Plath, quem revive a experiência em Nova York e a tentativa de suicídio, após a qual é internada e conhece a dra. Nolan (correspondente de Beuscher), que parece ser a única a ouvi-la e compreendê-la sem condescendência. A importância de Nolan para Esther reflete a dimensão da relação transferencial de Sylvia com Beuscher, que se estenderá muito depois, mesmo após a partida de Sylvia para a Inglaterra, por meio de cartas2. Não por acaso, quando o casamento de Plath e Ted Hughes entrou em crise, foi a Beuscher que Sylvia recorreu como apoio emocional, e foi ela quem lhe recomendou um divórcio “limpo”… e paciência.

Pela transferência, Beuscher ofereceu a Sylvia uma figura materna alternativa à da própria mãe, e pôde suprir parcialmente uma carência afetiva de Sylvia, para quem o amor da mãe parecia insuficiente. Significativamente, a relação de Sylvia com a mãe se mostra intimamente ligada à sua relação com a escrita, como nos mostram seus diários:

POR QUE NÃO SINTO QUE ELA [a mãe] ME AMA? O QUE ESPERO EXATAMENTE QUE SEJA O “AMOR” POR PARTE DELA? O QUE É QUE NÃO RECEBO E ME FAZ CHORAR? Creio que sempre senti que ela me usa como uma extensão de si mesma; que eu, quando cometo suicídio, ou tento, faço com que ela passe “vergonha”, sinta-se acusada. O que é verdade, claro. Trata-se de uma acusação de que seu amor foi ineficaz. (…) Como, gostaria de saber, mamãe entendeu minha tentativa de suicídio? Como resultado da incapacidade de escrever, sem dúvida. Eu achava que não podia escrever porque ela ia se apropriar de tudo. Só isso? Eu sentia que, se não escrevesse, ninguém me aceitaria como ser humano. Escrever, portanto, era um modo de substituir minha personalidade: se você não me ama, ame o que escrevo & me ame por escrever. Há muito mais: um modo de organizar e reorganizar o caos da experiência (PLATH, 2017, p. 519-520).

Nesse trecho, de 1958, Sylvia revela algo da maior importância: sua sensação de não ser suficientemente amada pela mãe, o significado atribuído por ela à sua tentativa de suicídio, e sua tentativa de, pela escrita, se fazer amar e organizar “o caos da experiência”. Nesse sentido, o lugar que a escrita ocupa para Plath é diferente, ainda que tenha pontos de convergência, daquele que ela tinha para escritores como Joyce, para quem escrever foi um modo de constituir um corpo, ou Virginia Woolf, para quem, como escreve Stella Harrison, tratava-se de “venir à bout de la réalité” (HARRISON, 2010, p. 81). Para Plath, por outro lado, a escrita tomou o lugar de uma invenção imprescindível, não exatamente para superar a realidade nem para fazer um corpo, mas para aquietar a voz interior, para ser validada “como ser humano”, para ser amada e para “organizar e reorganizar” (i.e., para elaborar) a experiência.

Além disso, sua escrita também estava ligada à demanda por reconhecimento, como indicam os fatos de ter publicado seus textos, endereçando-os diretamente ao Outro, e ter buscado estabelecer-se na carreira de escritora, procurando uma validação editorial/crítica para sua literatura. Essa demanda, sabemos, se desdobra em demanda de amor, como nos ensina Lacan em seu Seminário 5As formações do inconsciente, em que demonstra que, no limite, aquilo que uma demanda almeja é sempre o amor (LACAN, 1999, p. 418). Com efeito, é por meio da escrita e do reconhecimento que essa escrita poderia lhe trazer que Sylvia buscava se afirmar como merecedora desse amor que, a seu ver, lhe era negado³.

Uma pergunta se impõe: por que, mesmo com o recurso à escrita, Sylvia optou pelo suicídio? Para essa pergunta, tudo o que podemos afirmar é que, com tantos fatores envolvidos4, sua passagem ao ato não pode ser atribuída a um único evento, sendo necessariamente sobredeterminada. Uma segunda observação é que, em todo caso, uma solução criada pelo sujeito pode vir a falhar: não há, nem é possível haver, uma invenção que nos imunize ao sofrimento e que garanta que vá funcionar para sempre. Na verdade, é justo quando o sofrimento aparece que essa solução é colocada à prova, e nem sempre se mostrará suficiente para sustentar um sujeito em meio à angústia, como aconteceu com Plath.

No caso da autora, a escrita parece ter servido como uma tentativa de sinthoma que durante muitos anos atendeu, com menor ou maior sucesso, às suas necessidades de elaboração, mas em dado momento falhou, como qualquer saída pode falhar. Cabe destacar que o fracasso dessa tentativa não é sinal de que a escrita tenha sido o que lhe fez mal e/ou o que a levou ao suicídio: quanto a isso, é impossível fazer uma afirmação categórica, como aponta Luciana Silviano Brandão (2009, p. 72) ao se interrogar sobre a questão dos escritores suicidas e da suposta toxidez da escrita. Fato é que Plath, que andou ao lado da morte durante tantos anos — com a morte de seu pai, na infância, e a tentativa de suicídio ainda na juventude —, tentou se valer da escrita para elaborar essas experiências e o fez, tanto quanto pôde.

Exemplo disso é que, em 1962, Plath havia escrito a Beuscher que já não achava mais que fazia o tipo suicida, mas, na escrita, continuava o trabalho de elaboração, tanto pela rememoração e ficcionalização do tema, em A redoma de vidro, quanto em suas “confissões” poéticas, como no caso do célebre poema Lady Lazarus, em que Plath escreve: “Dying / Is an art, like everything else. / I do it exceptionally well. / I do it so it feels like hell. / I do it so it feels real. / I guess you could say I’ve a call” (PLATH, 2007, p. 62). Fingidas ou não, as ideias suicidas e a glorificação da morte pertencem, em última instância, à autora que as escreveu, e, escrevendo-as, talvez tenha podido até mesmo adiar sua realização factual.

Desse modo, podemos pensar que a escrita forneceu a Sylvia um espaço em que ideias como essas puderam ser trabalhadas e “colocadas para fora”, promovendo algum efeito de catarse, mas sem a intervenção de um Outro que pudesse interrogar essa convicção mortífera anunciada com tanta clareza sob o manto do “fingimento” literário, tecido a sós. Por razões como essa, o processo de elaboração pela via literária pode ser bastante ambíguo, como pontuou Frieda Hughes, filha de Plath, no documentário Sylvia Plath: inside the Bell Jar, produzido pela BBC em 2018:

“I think [that] to give a voice to an experience is like letting go. I always think the words remember it for us, so we don’t have to carry it anymore (…). We can write it all down, let it go. And they’re all out there. And if we ever wan
to be reminded, they’re all there for us because we have made sure they are, but they are all at a distance. Perhaps it can imbue a sense of freedom, but also, I think: ‘This happened to me. It was real’.”

Há casos, porém, em que a escrita de Plath não se debruçou sobre aquilo que havia acontecido com ela, no passado, mas sim sobre o que se apresentava como questão no então presente, como material que demandava análise com urgência. É o caso de seu último poema, Edge, escrito a poucos dias de seu suicídio, que retrospectivamente pode ser lido como antecipação e sinalização de sua passagem ao ato, dado o novo sentido que os versos adquiriram após a sua morte: “The woman is perfected. / Her dead / Body wears the smile of accomplishment (…)” (PLATH, 2007, p. 96). Nesse caso, a elaboração poética, que performou textualmente a satisfação de sua morte, falhou enquanto elaboração “terapêutica”, sendo incapaz de manter a morte no campo do semblante (ou da fantasia?), e sustentar em si, no espaço restrito do simbólico, uma satisfação suficiente para dar outro destino a essa pulsão destrutiva.

De certo modo, foi ao tirar a própria vida que Sylvia completou o poema, o realizou, entrando em continuidade com a sua produção artística e encontrando uma saída para o sofrimento: aquela que, para nós, é, entre todas, a menos desejável, por custar um preço excessivamente alto. Passando do simbólico ao real, Sylvia saltou do campo da escrita para entrar na zona em que a fina matéria viva se desfaz e se torna matéria inerte. Nessa passagem, não parece ter sido a escrita, e sim o silêncio do Outro, a falta do Outro (a falta de amor, mas também a falta de uma escuta, de uma interpretação, de um ato), o abismo em que a poeta se joga, movida pela certeza em sua incapacidade de “ser ela mesma”, de ser amada e de se amar, como escreve em sua última carta. Passando do simbólico ao real do corpo, Plath deslizou do campo dos sentidos para o sem sentido — o que não nos impede de ler nesse ato a mensagem que, com sua morte, nos convocou a ouvir.

 

 


Referências
BRANDÃO, L. S. Rememoração e reminiscência em De amor e trevas de Amós Oz. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.
HARRISON, S. Virginia Woolf, bataille vers un sinthome. Quarto, n. 97, junho, 2010, p. 79-82.
LACAN, J. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. (Trad. Sérgio Laia). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
PLATH, S. A redoma de vidro. (Trad. Chico Mattoso). São Paulo: Mediafashion, 2016.
PLATH, S. Letters Home. Aurelia Schober Plath (Ed.) Londres: Faber & Faber, 2011. Edição Kindle.
PLATH, S. Os diários de Sylvia Plath: 1950-1962. Org. Karen V. Kukil. (Trad. Celso Nogueira). 2ª ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
PLATH, S. Poemas. (Trad. Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça). 2ª edição. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 127-138
PLATH, S. The letters of Sylvia Plath. Volume II: 1956–1963. Faber & Faber, 2018. Edição Kindle.
SYLVIA Plath: inside The Bell Jar. Dir. Teresa Griffiths. Londres: BBC, 2018. Documentário, 59 min.

1. Porque a escrita, nesse sentido, é uma invenção individual, que servirá bem para alguns, mas não para todos. Além disso, porque ela não conta com a presença de um analista que possa interpretar e atuar com relação ao que se produziu. Sem a presença do analista, o sujeito pode chegar perto, talvez, do que se alcançaria com uma “auto análise”, mas não muito mais que isso. Isso não quer dizer que se deva entender a escrita como uma estratégia prejudicial para o sujeito, nem é justo rotular como “precária” a forma que os sujeitos elegem como seu suporte psíquico, embora, como qualquer saída, ela possa falhar. Afinal, frente à contingência, não há nenhuma garantia. À diferença de uma análise, entretanto, quando a escrita falha, não há mais ninguém ali para evitar que o sujeito se quebre. 
2. Em 1962, quando seu casamento entra em crise, Sylvia tenta fazer dessas cartas um substituto para as sessões de psiquiatria que, por razões financeiras e geográficas, eram inviáveis. Ela chega a implorar a Beuscher que lhe cobre pelas cartas que escrevesse, o que sublinha o estatuto que Sylvia conferiu a esses escritos. 
3. Embora não o diga em termos tão diretos quanto faz em relação à mãe, a própria relação de Sylvia com o marido também passava pela escrita. Ela menciona em seus diários a atração intelectual e admiração que sentia por ele como poeta, e nesse sentido, chama a atenção que Sylvia tenha escolhido em um parceiro marcado pelos significantes “poeta” e “leitor” alguém que pudesse se ligar a ela pelo amor às letras, que ambos compartilhavam, a despeito dos rumos que a relação tomou ao final. 
4. Por exemplo, o divórcio, o sentimento de humilhação, a precariedade da assistência especializada (lembrando que nesses meses Sylvia e Beuscher trocaram cartas, mas não se encontraram), a insegurança financeira, a infraestrutura precária do apartamento em Londres, as dificuldades diante da expectativa de se tornar mãe “solo”, a recepção abaixo da esperada de seu romance, a demissão recente da mãe, o medo de ser internada novamente, a tentativa prévia de suicídio como agravante, etc. 



Paternidade e neurose obsessiva : a literatura de Karl Ove Knausgard

Wallace Faustino da Rocha Rodrigues
Doutor em Ciências Sociais, professor de Sociologia na UEMG e aluno do IPSM-MG
wallacefaustinorocha@hotmail.com

Resumo: Seguindo o Complexo de Édipo, o sujeito ante à ameaça de castração tende a ver o pai como o detentor do falo e, consequentemente, obstáculo à realização de seu desejo — quadro esse que se impõe durante toda a sua vida. Diante desse princípio, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, pretende-se uma reflexão sobre a paternidade na neurose obsessiva a partir de um olhar sobre a obra do escritor Karl Ove Knausgard, de modo a proporcionar uma discussão mais ampla sobre a temática.

Palavras-chave: Paternidade; neurose obsessiva; Karl Ove Knausgard

FATHERHOOD AND OBSESSIONAL NEUROSIS: THE LITERATURE OF KARL OVE KNAUSGARD

Abstract

Following the Oedipus Complex, the subject, faced with the threat of castration, tends to see the father as the holder of the phallus and, consequently, an obstacle to the fulfillment of his desire — a situation that imposes itself throughout his life. From this principle, in the light of the three logical stages of Oedipus proposed by Lacan, a reflection on fatherhood in obsessional neurosis is intended from a look at the work of the writer Karl Ove Knausgard in order to provide a broader discussion about the theme.

Keywords: Fatherhood; obsessional neurosis; Karl Ove Knausgard

CAROLINA BOTURA. RAINHA

 

“Uma criança era vida, e quem gostaria de virar as costas para a vida?”
Karl-Ove Knausgard, Um outro amor

Em O homem dos ratos, Freud apresenta como a imagem do falecido pai de seu paciente é recriada simbolicamente com a finalidade de barrar o seu desejo (FREUD, 1909/2020). Reconstruído na teia do imaginário, o Pai vigilante é aquele por quem o neurótico espera aprovação ou rejeição. O engano do neurótico é o de que o Outro cerceia o seu desejo, prendendo-se enganado em sua própria trama de que, restituído o Pai, conseguiria a realização de seu desejo — ao mesmo tempo em que a sua restituição representa o vigor da castração (LACAN, 1966/2021).

O pai simbólico, morto, é agente de interdição, abrindo o acesso ao desejo por sua submissão à lei, unindo desejo e lei. Por sua vez, o pai imaginário é aquele construído involuntariamente pelo neurótico em sua versão idealizada ou terrível. O obsessivo, portanto, volta-se para pagar a dívida paterna, sendo que a sua versão idealizada, ou terrível, é uma forma de encobri-la. Freud demonstra isso no relato que faz do desespero de seu paciente em pagar a dívida referente ao pince-nez perdido. Se não o paga, o falecido pai seria punido — porém, essa dívida não existe (FREUD, 1909/2020).

O redimensionamento do Outro, que não está ali, e a permanente ameaça de castração paralisa o neurótico, tornando-o impotente na realização do desejo. Assim, questiona-se: quando a ameaça de castração se torna menos evidente, a ponto de permitir maior possibilidade de o neurótico prosseguir em direção ao seu desejo? Para efeitos deste texto, a paternidade é uma delas.

 

Paternidade e obsessão

Na teia do Édipo, o pai deseja a mãe, interditando-a à criança, que passa a dividir o seu objeto de desejo com a figura castradora. Ambiciona, então, a morte do pai para ter a exclusividade do objeto desejado.

Em Lacan, o Nome-do-Pai está no discurso da mãe, sendo para onde aponta o desejo. A metáfora paterna é uma operação significante articulando o Complexo de Édipo ao de Castração. Logo, o Édipo deixa a sua base evolucionista do desenvolvimento infantil ao permanecer atemporal, por se situar em uma premissa da estrutura. Desse modo são apresentados três tempos lógicos para o Édipo (LACAN, 1957-1958/1999).

O primeiro está centrado na identificação da criança ao objeto de desejo da mãe — equivalência falo e criança. Ergue-se uma tríade a partir desses dois elementos: criança, mãe e falo. Ser falante, a mãe fica submetida à lei simbólica, tornando-se um Outro absoluto para a criança.

No segundo tempo está a simbolização — o fort-da (FREUD, 1920/2019b). A mãe, representada pelo carretel, também o é por palavras, enunciando a sua simbolização. É a entrada da criança na linguagem. Pela premissa do estágio do espelho, ergue-se o binarismo significante S1 e S2, por onde o sujeito caminharia.

Antes disso, a intermediação criança-mãe se dava pelo falo. A linguagem passa a condicionar o posicionamento da criança no mundo. A mãe deixa de ser objeto primordial, passando ao de signo. Com a metáfora paterna, o desejo da mãe é deslocado para outro lugar, não mais estando na criança.

Significante, o Nome-do-Pai faz a mãe ser simbolizada. Se, no primeiro tempo lógico, o Outro é a mãe, o Nome-do-Pai barra o Outro absoluto; no segundo, a criança é inserida na ordem do simbólico. Lacan introduz o Édipo da castração simbólica, faz com que a identificação da criança com o falo da mãe seja recalcada e coloca a mãe no nível significante do desejo do Outro.

No terceiro tempo tem-se o declínio do Complexo de Édipo, com o menino deixando de ser falo para ser alguém com falo. É iniciado o processo de significação ao seu pênis, com o pai como identificação com o ideal do eu. A matriz simbólica é o significante Nome-do-Pai, conferindo-lhe virilidade — já a menina é posicionada como objeto de desejo masculino.

Em sua existência como alguém com falo, há o temor pela castração. O ideal do eu, simbolizado na figura paterna, edifica-se no universo simbólico como construção sua. Entende-se a grande admiração ao pai em Homem dos ratos e explica-se, então, os seus dilemas, sobretudo no tocante à escolha do casamento, sempre à espera da aprovação do pai simbólico, adiando a realização de seu desejo. O temor pela perda do falo acompanha o de não corresponder às expectativas de alguém tão grande (FREUD, 1909/2020).

Ao obsessivo, a ameaça ao falo é constante. Ao se relacionar com um ser castrado, teme perder o falo. Diante disso, tomando os três tempos lógicos acima apresentados, mostra-se como a mãe, em determinado momento, por possuir o seu próprio falo, deixa de ser uma ameaça castradora. Por isso que a paternidade poderia ser, para o obsessivo, o testemunho da potência e a possibilidade de se romper com a trama neurótica na qual se encontra enredado.

 

Paternidade e potência — um caso na literatura

Para ilustrar essa discussão, toma-se a obra de Karl Ove Knausgard. Em seu projeto literário Minha luta, dividido em seis volumes, o escritor norueguês trata episódios de sua vida elaborando remotas lembranças da infância até obscuros pensamentos e preconceitos, a ponto de promoverem um inevitável julgamento da parte de seus leitores.

Para os propósitos do presente artigo, os dois primeiros volumes mostram-se mais significativos, contribuindo para que o elemento obsessivo seja observado na trajetória do escritor/personagem. Em A morte do pai, Knausgard centra a narrativa na figura paterna (KNAUSGARD, 2015a). Em seu relato, tem-se um homem distante, incompreensível para os filhos e até mesmo para a mãe. Tirânico, isola-se no alcoolismo. Não há, ao longo do livro, descrição de momentos agradáveis vividos com os dois filhos — Knausgard era o caçula. Pelo contrário, pois a convivência mútua é sempre relatada a partir de uma sufocante tensão.

Curioso é que os castigos sempre esperados de um pai autoritário raramente se mostram presentes, denotando a exploração do simbólico da parte do autor da obra. Ao contrário, tem-se sempre a apresentação quanto ao que aconteceria se ele o descobrisse, com um excesso de cuidado para que isso não ocorresse — parece mais uma obsessão pelo castigo do que a sua realidade.

Em contrapartida, Knausgard escreve apresentando-se como um jovem repleto de frustrações, como as pelo seu péssimo desempenho como músico da banda de rock da qual faz parte, por ser um escritor e redator medíocre e descompromissado, pelo excesso de timidez e fracasso nas tentativas de relacionamento com as meninas — a perda da virgindade tarda ainda por muitos anos —, pela dificuldade com amizades, entre outras. Isso se dá principalmente quando se compara constantemente ao seu irmão mais velho, Ingve, descrito como bastante independente. Destaca-se que nunca elogia o seu próprio trabalho — embora louve os de muitos outros colegas.

Como o título do primeiro volume indica, o livro é marcado pela morte de seu pai. Em sua descrição, isso se dá de forma agonizante, em decorrência do álcool. A sua decrépita situação é ilustrada ainda pelo relato de um episódio em que seu pai, dentro de casa, quebra a perna e opta por permanecer ferido no chão, bebendo, a pedir por socorro.

Nota-se como, diferentemente do que se observa em O homem dos ratos, o pai não é digno de admiração, mas, sim, de repulsa — algo comum na neurose obsessiva, a existência de algo equivalente a esse polo tirania-admiração. Castrador, funciona como um constante juiz, e o neurótico, sabendo de sua condição limitadora, ainda assim, em seu imaginário, opera sempre em busca da aprovação desse Outro, figura austera provida de severidade, que, certamente, não virá.

Um outro amor, o segundo volume, se inicia com a descrição de seu divórcio com Tonje e sua mudança para Estocolmo, onde conhece Linda Boström, com quem viria a ter três filhos. É aqui, após narrar a morte do pai, que Knausgard apresenta a felicidade da paternidade, alterando o tom de sua narrativa, mesmo ao exibir as dificuldades que enfrenta na conciliação da família com o trabalho (KNAUSGARD, 2014).

À sua chegada à Suécia, tem-se um reconhecimento insignificante do trabalho como escritor, pelo qual evidencia um grande desejo outrora cerceado pela figura do Pai. No começo do livro, antes do nascimento de sua primogênita Vanja, muitos dos pensamentos obsedantes ainda se fazem presentes, como no caso em que, no encontro com outros escritores, apaixonado por Linda, tendo dificuldades com a possível aproximação, faz, diante do espelho, diversos cortes em seu rosto. O fato, naturalmente, chama a atenção dos colegas, que não entendem o motivo pelo qual fez aquilo.

Com a paternidade, Knausgard volta-se para a organização da casa, chegando a executar trabalhos braçais na reforma do novo lar para receber Vanja. A procrastinação para a escrita aos poucos se desvanece, e até se isola da esposa grávida para confeccionar um grande trabalho, cujo prazo para envio da versão final expirava. Esse trabalho viria a lhe credenciar maior reconhecimento na escrita, abrindo as portas para a posterior redação de Minha luta.

Mesmo na consumação da paternidade, traços de sua neurose ainda se fazem presentes. Para ilustrar esse ponto, basta trazer algumas de suas posturas ante Vanja, como a obsessão pela limpeza da filha na hora de comer — uma característica de seu pai no tratamento com os filhos que o autor deixa bastante demarcado.

Interessante como, à leitura da obra, nota-se exatamente o preceito assinalado por Gazolla, quando enuncia o teatro do obsessivo que roteiriza, dirige, assina a cenografia, atua, ilumina e assiste ao seu próprio espetáculo. O Pai simbólico de Knausgard permanece mesmo após a sua morte, que, em seu primeiro livro, da maneira como foi descrita, funciona como um modo de edulcorar a sua tirania. O totem, na configuração enunciada por Freud, ali permanece, castrando-o. Uma castração apenas amenizada pela paternidade, ao transferir a sua libido para a produção literária, abrindo caminho para a execução da escrita. Após a paternidade, até mesmo trabalhos julgados como enfadonhos e difíceis, como o de revisão de tradução, tornam-se toleráveis e prazerosos, segundo os dizeres do próprio autor.

Diante disso, a remissão à sua infância e adolescência, no terceiro volume, se dá de uma forma muito mais amena ao permitir a aproximação com a arte (KNAUSGARD, 2015b). Aqui não se trata mais de desabafo, tal como no primeiro volume de Minha luta. Knausgard escreve sobre a escrita e sua vida como escritor, outrora cerceado pela figura do Pai (KNAUSGARD, 2017).

Se, como diz Lacan (1966/2021), o obsessivo compensa a degradação do pai ao buscar preencher o buraco simbólico por ele deixado com o mito, com a fantasia, pode-se dizer que Knausgard segue essa trilha com a sua escrita. Em Homem dos ratos, conjuga-se a imagem narcísica com o real difícil de suportar. O paciente de Freud fica, então, preso às circunstâncias de sua própria fantasia, em que seu pai é sustentado em um lugar inalcançável (FREUD, 1909/2020). Minha luta poderia seguir o mesmo caminho se se permanecesse apenas na triste morte do pai. Entretanto, Knausgard vai por outra direção por meio da paternidade. O desejo de ser pai é manifestado em sua primeira noite com Linda, insinuando uma saída de seu lugar de vigiado, julgado pelo Pai (KNAUSGARD, 2014, 2015a).

Nem de longe deseja-se esgotar essa temática. A ideia fundamental é a de apresentar contribuições que possam direcionar a uma discussão mais profunda sobre a paternidade e o lugar por ela ocupado na psicanálise. Tomou-se, aqui, a neurose obsessiva como referência.

 


Referências 
FREUD, Sigmund. (1924). A dissolução do complexo de Édipo. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 16. Companhia das Letras, São Paulo, 2018.
FREUD, Sigmund. (1912-1913). Totem e tabu. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11. Companhia das Letras, São Paulo, 2019a.
FREUD, Sigmund. (1920). Além do princípio do prazer. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 14. Companhia das Letras, São Paulo, 2019b.
FREUD, Sigmund. (1909). Observações sobre um caso de neurose obsessiva (“O homem dos ratos”, 1909). In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 9. Companhia das Letras, São Paulo, 2020.
GAZZOLA, Luiz Renato. Estratégias na neurose obsessiva. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2015.
KNAUSGARD, Karl Ove. Um outro amor. Companhia das Letras, São Paulo, 2014.
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KNAUSGARD, Karl Ove. A descoberta da escrita. Companhia das Letras, São Paulo, 2017.
LACAN, Jacques. (1957-1958). Os três tempos do Édipo. In: LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
LACAN, Jacques. (1966). De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses. In: LACAN, Jacques. Escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2021.



A experiência analítica de testemunhos de perda no hospital

Marina del Papa
Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG e aluna do IPSM-MG
marina.delpapa09@gmail.com

Resumo: Este trabalho visa a transmitir o relato de uma experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital. Parte-se da premissa de que, quando um sujeito busca uma instituição hospitalar, ele o faz, a princípio, pela urgência biológica e traumática de seu corpo; porém, de maneira concomitante, pode-se verificar uma atualização psíquica e singular de sua relação com a castração e o real. A prática psicanalítica passa fundamentalmente por algo desta ordem: um testemunho de perda, seja em sua construção teórico-clínica, seja na travessia do fantasma no final de uma análise. Trabalhar em um hospital traz a possibilidade de não só revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como também fazer ressoar a potência da presença do analista com seu corpo, enquanto via transferencial de testemunho para o sujeito.

Palavras-chave: Psicanálise; testemunho de perda; hospital.

THE PSYCHOANALYTICAL EXPERIENCE OF TESTIMONIALS OF LOSS IN THE HOSPITAL

Abstract: This work aims to convey the report of a clinical experience guided by psychoanalysis within a hospital. It is assumed that, when a subject goes to a hospital, he does so, at first, because of the biological and traumatic urgency of his body; however, at the same time, it is possible to verify a psychic and singular update of his relationship with castration and the real. The psychoanalytic practice fundamentally passes through something of this order: a testimony of loss, whether in its theoretical-clinical construction, or in the crossing of the phantasm at the end of an analysis. Working in a hospital brings the possibility of not only revisiting important concepts for clinical listening, but also echoing the power of the psychoanalyst’s presence with his body, as a transferential path of testimony to the subject.

Keywords: Psychoanalysis; testimony of loss; hospital.

CAROLINA BOTURA. CASA PARA UM ANIMAL

 

Em vista das discussões levantadas durante o segundo período de formação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, as quais se baseavam na prática do analista em instituições, e da temática proposta para o Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “Analista: Presente!”, vi-me interessada em escrever sobre minha experiência de trabalho dentro de um hospital de Belo Horizonte (MG). O fragmento de caso que compartilho a seguir tornou oportuna a retomada de conceitos importantes da psicanálise, como a localização subjetiva e a transferência, e, igualmente, abriu margem para uma reflexão sobre a presença do analista como via de testemunho, posição esta que torna possível um giro a partir do qual o sujeito pode avançar sobre seu dito e sua implicação com a perda.  

O caso Rubens

Rubens era um senhor de 76 anos para o qual foi requisitada assistência psicológica devido à angústia da equipe médica que o tratava, que não conseguia realizar o diagnóstico de sua doença. O que se sabia desse paciente é que ele sofria de algo relacionado ao pâncreas, embora isso não ficasse claro nos exames tumorais.

Esse sujeito não recebia visitas. Era educado com a equipe, mas bastante solitário. Acompanhei-o por cinco meses, até o momento de sua morte. Boa parte desse período — quatro meses exatamente — se destinou à definição de seu diagnóstico. Sempre o encontrava deitado; nisso, sentava-me a seu lado e buscava investigar sua história. Ele falava muito pouco sobre si e, por isso, pude colher apenas poucos dados: “fui diagnosticado com bipolaridade muitos anos atrás”, “perdi uma filha quando ela era criança por um câncer”, “tenho filhos, mas não são próximos” e “um casamento perdido”.

O paciente sempre interpunha à continuação de sua história queixas de dor. Revirando-se na cama, ele dizia das dores que tinha no corpo. A propósito, fazia uma descrição detalhada delas. Permaneci acompanhando-o, sentando-me ao lado de sua cama, na presença constante de suas queixas. Seu corpo não mais respondia a uma série de funções. Houve dias em que apenas o acompanhei em seu silêncio. Aliás, por alguns meses, essa foi a forma de acompanhamento que pude ofertar: uma presença e uma disponibilidade de escuta, indo a seu leito quase diariamente.

Depois de alguns meses, durante uma sessão, teve início o giro do caso. Nesse dia, Rubens afirmou sentir muita dor. Ele mal conseguia se movimentar no leito, contorcendo-se agoniado e com febre, o que o fazia ter calafrios. Ele, então, sorriu para mim e disse: “Que profissãozinha ruim a sua, hein?! Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Eu o respondi dizendo: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. O paciente tremia de frio. Em vista disso, levantei-me e o cobri com o cobertor. Nesse momento, ele demonstrou espanto com meu gesto, agradecendo-me em seguida.

Após essa sessão, ocorreram algumas mudanças com Rubens: ele passou a se sentar na cama para os atendimentos, dando amostras de que um sujeito começou a se presentificar ali. Outro modo de dizer se instaurou. O paciente pôde construir uma elaboração sobre um momento traumático de sua vida, que foi a perda de sua filha: “Briguei com tudo e todos”. Ele considerava justa sua solidão: “Fiz mal a meus filhos e minha esposa; é natural que não venham. Eu causei tudo isso, fiz coisas muito erradas. É justo que eu morra sozinho, mas não gostaria de morrer com dor. […] Está perdido, não tem mais o que ser feito”. Cortes, interpretações, desconstruções e conclusões foram sendo produzidos pelo paciente. Outra elaboração foi sobre como ter uma morte mais digna dentro das coisas que ele fez na vida e de outras que ele perdeu, sem possibilidade de restauração. Em uma das sessões, já com um sujeito instaurado, pude dizer a ele: “Hoje você trabalhou”. Nisso, ele me respondeu: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”.

Rubens veio a falecer pouco tempo depois. Como ficou acordado pela equipe médica após o diagnóstico de câncer no pâncreas, ele não seria submetido a tratamentos com poucas chances de êxito, tendo sido realizado apenas um paliativo. Juntamente à equipe, foi possível colocar em jogo a posição desse paciente: ele não poderia evitar a morte, mas poderia morrer sem grandes dores. Essa foi a ética possível para esse sujeito, que pôde realizar algum trabalho sobre suas perdas.  

Considerações iniciais

Quando oferecemos um espaço de escuta, como no caso de Rubens, algumas vezes nos deparamos com sujeitos em uma posição apagada, posição essa mais voltada à descrição corporal dos sintomas e a uma verificação queixosa da manifestação destes. Digo algumas vezes porque entendo que a maioria dos casos não é assim. Nesse sentido, o primeiro ponto que considero importante destacar para compreender a experiência de um testemunho de perda é a presença do analista.  

Presença como testemunha

Clotilde Leguil (2022) escreveu, no boletim extra A presença do psicanalista como testemunha de perda, que a presença do analista é articulada por Lacan não tanto a uma ausência, mas a uma perda. O fato de o analista estar ali com seu corpo, com sua voz, com sua respiração no mesmo lugar em que está o analisante — este também com seu corpo e com sua angústia — tem uma função decisiva. O corpo do analista em sua modalidade de presença exerce uma função de testemunha daquilo que se perde. O surgimento do inconsciente se produz no próprio modo daquilo que aparece e depois desaparece, no modo do que se dá a conhecer e depois se deixa esquecer, no modo do que estava lá, mas que já não está mais. A autora acrescenta que o inconsciente se manifesta como o que se perde, como aquilo que apenas é encontrado, que já está perdido, ganhando consistência se, e somente se, houver uma testemunha de seu surgimento.

Depreendo, do fragmento supracitado, a importância da dimensão da presença, isto é, a importância de manter constantes as idas, de convocar esse sujeito a falar e, mais do que falar, de acompanhar, em meio a seu dito, as dores, as angústias e os odores do corpo: em outras palavras, estar ao lado daquele corpo. A sessão que ocorre como divisor de águas, como ponto de mutação de um sujeito que descrevia suas dores para outro sujeito, que inicia um trabalho analítico, é aquela que tem como marca a constatação de Rubens: “Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Essa é uma indicação passível de ser compreendida como testemunho? O texto de Clotilde Leguil nos leva a recordar da terminologia lacaniana testemunha para abarcar a presença do analista. Lacan (1964) ressalta que, desde o início da psicanálise, quando Freud trabalha a estrutura do inconsciente e instaura uma prática, esse é um campo que, por natureza, se perde. É aí que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda.

Compreendo, a partir disso e tendo acompanhado Rubens por quatro meses, que existe uma sustentação em suportar o corpo real enquanto presença. Enquanto orientação clínica, aposta-se que exista um sujeito que se instaura pela perda. É por essa orientação, não desassociada do ato de suportar o corpo e sua angústia, que se pode dizer: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. Dessa forma, outro elemento indispensável para essa reflexão é a transferência.

O segundo momento do fragmento, em que o paciente inicia seu trabalho e uma abertura subjetiva se instaura, ele nomeia “de amor”: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”. Isso demonstra que a transferência se instaura em uma constatação de localidade subjetiva com o Outro, a qual não seria viável sem a presença da localidade enquanto presença. Assim, como encontramos na orientação lacaniana, a transferência vinculada a uma presença é necessária (LACAN, 1964).

Por fim, tendo sido instaurados esses elementos para Rubens, verifica-se uma ultrapassagem do dito para um sujeito com um inconsciente, pois, quando avançada essa constatação de presença, o paciente se coloca a trabalhar, relacionando a perda traumática de sua filha, que morreu de câncer quando era criança, a um câncer descoberto em estágio avançado, dizendo do trauma que o marcava por ter presenciado a hemorragia no corpo da menina. Rubens constata em sessão que, após a morte da filha, ele se colocou em uma posição desenfreada na vida, enquanto sujeito disposto a perder todo o resto: o casamento, os filhos, o dinheiro, o emprego, nada mais lhe importava. Próximo de morrer, ele pôde julgar a ausência de alguém.

Sendo assim, levanto o último elemento da reflexão: para que haja o testemunho do analista, é necessária a localização subjetiva do sujeito com seu inconsciente; é nesse momento que o que está em jogo não é mais apenas um espaço de escuta, mas, sim, uma experiência analítica. Só existe um testemunho. Se existe um sujeito aberto a essa experiência, é necessária a presença de um analista que queira colocá-lo a trabalho.  

A localização subjetiva

O analista, como testemunha de perda, testemunha, na presença de um sujeito, quando este aparece ou é convocado aparecer. O sujeito surge, como diz Lacan (1966), para além de seus ditos, sendo implicado pela demanda que ele apresenta. Isso equivale a um sujeito com um sintoma que ultrapassa o diagnóstico médico. Como mencionado por Lacan, trata-se de um sintoma como enigma para o sujeito que tem uma fantasia — essa seria uma condição mínima definida como instrumento.

Miller (1997), em Lacan elucidado, nos orienta exatamente sobre essa diferenciação quando toca o método lacaniano para que possa se apresentar como uma análise: o mecanismo dos ditos é falso, pois este não vale mais que o mecanismo da psicologia do eu. A localização subjetiva consiste em distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito. É necessário sempre inscrever algo, com um índice subjetivo do dito, o que verificamos no mal-entendido, naquilo que o paciente apresenta como uma verdade absoluta ou no que é predominantemente falso, no que ele deseja mas teme, ultrapassando o sentido de um dito.  

Considerações finais

A partir dessa experiência, reflito sobre a importância da presença de uma orientação psicanalítica nas instituições. A presença e a conduta dessa orientação implicam uma aposta no inconsciente e em sua abertura. Para isso, é necessário fazer presença, às vezes, com as palavras, outras, com o corpo, mas sempre apostando em uma possibilidade singular para cada sujeito e que este possa se ouvir e se implicar para além do que é dito. Isso ultrapassa qualquer protocolo hospitalar, incluindo tempo de sessão, quantidade de atendimentos por dia, o que o plano de saúde sugere etc. Não se trata de nada disso. É uma aposta em oferecer uma experiência de testemunho, elevando o sujeito à maior dignidade possível: a de ser sujeito de sua própria história.

 

 


 Referências
LACAN, J. (1964). O seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. (1966). Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LEGUIL, C. A presença do psicanalista como testemunha de perda. 2022. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
MILLER, J.-A. Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.