Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes1 Sílvia Reis Soares
Psicóloga
Coordenadora adjunta do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental
silvia_moc@hotmail.com
Resumo: A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro.
Palavras-chave: psicanálise; infância; adolescência; internet.
ALGORITHMS, PROTOCOLS AND SPONSORED CONTENT: A PROBLEMATIC COMBINATION WITHIN CHILDREN AND TEENAGERS CLINIC.
Abstract: Psychoanalysis with children and teenagers has presented several crossings from the incidence of technology, the internet, and social networks. The implication of the analyst in this context is investigated here, in view of the shift in the relation with knowledge, which no longer passes through the assumption of the Other.
Keywords: psychoanalysis; childhood; adolescence; Internet.
I – Estamos na Era da Informação
A internet, criada como Arpanet em 1969, tinha como objetivo interligar laboratórios de pesquisa americanos. Nesse mesmo ano, tivemos também o envio do primeiro e-mail da história. Com a expansão de seu uso, dominou o âmbito acadêmico e se tornou conhecida como Internet. Seu uso comercial foi liberado em 1987 e, posteriormente, empresas fornecedoras de provedores de acesso começaram a surgir. E assim, em 1992, o Laboratório Europeu de Física de Partículas (Cern) inventou a World Wide Web, o famoso www que precede os endereços virtuais, e as informações passaram a estar ao alcance de qualquer usuário. No Brasil, a exploração comercial foi liberada em 1995 e, desde então, temos nos deparado com a difusão da rede e sua multiplicação de formas de exploração (SILVA, 2001).
Com o lançamento do Google, em 1997, a história da internet teve um ponto de virada, disponibilizando a rede para um público extenso e oferecendo o uso de um navegador, tornando-se também o principal mecanismo de buscas, que conta com cerca de 1 bilhão de páginas indexadas, fornecendo agilidade e facilidade ao acesso de informações em decorrência de seus algoritmos (ROCK CONTENT, 2020). Em seguida, surgiram as redes sociais, representando uma forma de contato direto, rápido e possibilitando a troca de informações e o acesso às notícias em tempo real. Importantes serviços foram criados, como o Facebook, o YouTube e o Instagram.
Todas essas são plataformas que servem de entretenimento e são difusoras de informação, substituindo as mídias tradicionais e trazendo tudo ao alcance das mãos. Quantas não foram as revistas e os jornais que deixaram de existir, uma vez que a informação se encontra disponível de graça? Quantos canais de televisão precisaram adequar seu conteúdo e formato ao perder espaço para a Netflix e afins? Desse modo, a internet desencadeou a Quarta Revolução Industrial e o mundo passou a estar na Era da Informação (ROCK CONTENT, 2020). Nesta etapa, conhecida como Internet 2.0, os usuários passaram de uma posição passiva, de meros consumidores, para uma posição ativa, na qual interagem entre si na posição de criadores de conteúdos, confluindo para os influencers da atualidade, ou seja, pessoas que produzem conteúdo e se destacam nas redes em que se encontram. Diante desse cenário, as empresas logo perceberam todo o potencial envolvido e hoje já não se pode falar da internet sem a publicidade que nela encontramos.
É quando surgem em cena os famosos algoritmos, “sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo…” (ROCK CONTENT, 2020, n.p.). São instruções dadas por quem os programa para que resolvam problemas matemáticos, executem tarefas ou realizem cálculos. Assim, com a inserção da publicidade no ambiente virtual, os algoritmos foram ajustados de modo a privilegiar alguns fatores, como a temporalidade, o engajamento e o relacionamento. Organiza a timeline do usuário de modo que os conteúdos exibidos sejam os mais recentes e que estejam recebendo bastantes interações (curtidas, comentários, compartilhamentos), além de priorizar os usuários com quem há interações frequentes. Então, os algoritmos destacam o que entendem ser do interesse do usuário e mostram conteúdos que avaliam como relevantes.
II – Adolescência e atualidade: entre o ideal e o possível
A adolescência, construção social acerca do que a psicanálise compreende como puberdade, é o momento da vida em que o sujeito já não é mais criança e passa a ser tomado pelas irrupções do real do corpo, que está em constante mudança. Miller2 (apud DRUMMOND, 2016) aponta que, tratando-se da adolescência, nos ocupamos de três aspectos: a saída da infância, a diferença dos sexos e o desenvolvimento da personalidade. É, então, um momento crucial, visto que é quando o sujeito se depara em um encontro com o impossível e, a partir do qual, precisará construir uma resposta. “Receber um adolescente é receber alguém em um impasse, pois se defronta com as mudanças corporais, identificações, a lida com os outros e com o Outro, relação com o sexo. Impasses estruturais, encontros com o real, diante dos quais o sujeito se vê desamparado” (STIGLITZ, 2016, apud MEZÊNCIO, 2017, p. 78). Assim, o adolescente encontra-se, naturalmente, envolto a essas questões e, considerando o enfraquecimento do Nome-do-Pai e a proliferação de objetos, o saber já não faz enigma, estando acessível a qualquer momento e em qualquer lugar: ele está ao alcance das mãos. Ou você nunca pediu a alguém que procurasse uma resposta no Google?
Lacan nos diz em “Televisão” que, em nossos tempos, o objeto a foi elevado ao zênite social, ou seja, temos localizado no mais alto ponto do céu o mais de gozar como dominante. “Este primado do objeto a, próprio da época do Outro que não existe, deixa para trás, a identificação simbólica ao ideal” (AMENDOLA, 2020, n.p.). Assim, a inserção social se faz menos por identificação do que por consumação, como aponta Miller.
O celular, gadget que permite o acesso aos apps (aplicativos), está sempre disponível. Não é incomum crianças e adolescentes queixando-se nos consultórios de quererem ou precisarem de um aparelho. Ou, ainda, tem sido frequente ouvir deles que o celular, e até especificamente o TikTok, são motivo de eles viverem, são pontos que os ligam à vida.
O que tem sido percebido na clínica é que o uso excessivo de celulares e afins privilegia relações intermediadas pelo aparelho, o que destaca a total desorientação do adolescente quando privado de seu acesso. É comum vermos um grupo de pessoas próximas fisicamente, em que está, cada uma, atenta ao conteúdo de seu dispositivo, e até mesmo relacionando entre si por meio das redes sociais, em detrimento da relação vis-à-vis. Para além disso, frente às frustrações decorrentes, pouco tem sido possível enquanto saída privilegiada pelo simbólico e frequentemente nos deparamos com atos sobre o corpo como forma de alívio ou punição. Miller nos coloca que os sujeitos contemporâneos hipermodernos são desorientados, sem uma bússola norteadora, o que favorece a imposição do objeto a a esses sujeitos desamparados. “O mais de gozar se esgueira através das redes…” e dita várias formas de burlar o circuito natural dos corpos e da vida (AMENDOLA, 2020, n.p.).
III – Quando os algoritmos encontram sujeitos desorientados: uma angústia infinita
A relação do sujeito contemporâneo com o saber já não é a mesma de outrora. Não se supõe mais que o outro sabe, visto que ele o detém. É comum nos depararmos com influencers seguidos por milhões de pessoas, mas de quem nunca ouvimos falar. Que conteúdos produzem, afinal? Muitos dançam trechos musicais coreografados que se tornam verdadeiros virais, outros dublam cenas famosas de filmes, fazem pegadinhas, promovem desafios, etc. Os conteúdos em vídeo já são privilegiados quanto aos estáticos dos textos e imagens, convocando os usuários a se adequarem às regras para aumentar o engajamento.
Uma das mais recentes redes sociais em evidência é o TikTok. O aplicativo chinês mais baixado de 2021 é uma rede de compartilhamento de vídeos curtos que monta a sua timeline conforme os conteúdos que o usuário se interessa por consumir. Criado em 2016, é um dos poucos apps que ameaçam a hegemonia da Meta, empresa detentora de Facebook, Snapchat, Instagram, WhatsApp e outras mais. Seu feed é formado pela chamada timeline infinita, ou seja, o conteúdo selecionado é escolhido a partir dos algoritmos e não há um fim, não tem momento para o conteúdo acabar. Essa nova configuração implica numa série de sérias consequências: a falta faz falta! E é aí que mora a angústia.
Em estudos recentes, pesquisadores perceberam que os vídeos curtos de conteúdo agradável ao usuário ativam áreas do cérebro ligadas ao sistema de recompensa, o que produz sensação de prazer e satisfação. Assim, ao assistir a um vídeo do aplicativo, ativa-se a produção de dopamina, produzindo sentimentos de felicidade e alegria. Diante do aumento do recebimento do neurotransmissor pelo cérebro, mais ele demanda, contribuindo para sua entrada em estágio de saturação e diminuindo a sua sensibilidade, de modo a necessitar de uma quantidade maior da substância.
IV – O discurso capitalista e o saber: fonte de parva riqueza
É diante de todo esse contexto que temos uma combinação deveras problemática: uso excessivo das redes sociais, aplicativos que te entregam o que te agrada, ainda que não solicitado, e a inexistência da falta ou, ao menos, de um hiato que possa suscitar um questionamento, são imperativos de gozo: Compre! Seja! Faça! Nessa seara, muitos encontraram a oportunidade de se venderem enquanto produtos a serem consumidos: “Te ensino a ganhar dinheiro com o Instagram! Compre meu curso! Siga o meu perfil!”. E o resultado disso é a venda de soluções rápidas por pessoas que ocupam o lugar de mestre e que interpretam o desconhecido (vide as caixinhas de perguntas), mas privilegiando formatos standards de como fazer, vender ou tratar.
Para que o analista esteja à altura de sua época, é preciso que esteja atento ao modo como o falasser se manifesta. Márcia Mezêncio diz que “o laço transferencial é a oferta que cabe ao analista […] e que esse laço é o que pode produzir um lugar onde o sujeito possa se enganchar” (2017, p. 75). E, a partir disso, cavar um amor epistêmico ao inconsciente. Diante disso, então, pergunto: o que faria o analista, em sua posição de semblante do objeto, causa de desejo, diante do sujeito que acredita ter o objeto em suas mãos? Como convocar o sujeito a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco?