Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes1 Sílvia Reis Soares 

Psicóloga
Coordenadora adjunta do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental
silvia_moc@hotmail.com

 

Resumo: A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro.

Palavras-chave: psicanálise; infância; adolescência; internet.

ALGORITHMS, PROTOCOLS AND SPONSORED CONTENT: A PROBLEMATIC COMBINATION WITHIN CHILDREN AND TEENAGERS CLINIC.

Abstract: Psychoanalysis with children and teenagers has presented several crossings from the incidence of technology, the internet, and social networks. The implication of the analyst in this context is investigated here, in view of the shift in the relation with knowledge, which no longer passes through the assumption of the Other.

Keywords: psychoanalysis; childhood; adolescence; Internet.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

 

I – Estamos na Era da Informação

A internet, criada como Arpanet em 1969, tinha como objetivo interligar laboratórios de pesquisa americanos. Nesse mesmo ano, tivemos também o envio do primeiro e-mail da história. Com a expansão de seu uso, dominou o âmbito acadêmico e se tornou conhecida como Internet. Seu uso comercial foi liberado em 1987 e, posteriormente, empresas fornecedoras de provedores de acesso começaram a surgir. E assim, em 1992, o Laboratório Europeu de Física de Partículas (Cern) inventou a World Wide Web, o famoso www que precede os endereços virtuais, e as informações passaram a estar ao alcance de qualquer usuário. No Brasil, a exploração comercial foi liberada em 1995 e, desde então, temos nos deparado com a difusão da rede e sua multiplicação de formas de exploração (SILVA, 2001).

Com o lançamento do Google, em 1997, a história da internet teve um ponto de virada, disponibilizando a rede para um público extenso e oferecendo o uso de um navegador, tornando-se também o principal mecanismo de buscas, que conta com cerca de 1 bilhão de páginas indexadas, fornecendo agilidade e facilidade ao acesso de informações em decorrência de seus algoritmos (ROCK CONTENT, 2020). Em seguida, surgiram as redes sociais, representando uma forma de contato direto, rápido e possibilitando a troca de informações e o acesso às notícias em tempo real. Importantes serviços foram criados, como o Facebook, o YouTube e o Instagram.

Todas essas são plataformas que servem de entretenimento e são difusoras de informação, substituindo as mídias tradicionais e trazendo tudo ao alcance das mãos. Quantas não foram as revistas e os jornais que deixaram de existir, uma vez que a informação se encontra disponível de graça? Quantos canais de televisão precisaram adequar seu conteúdo e formato ao perder espaço para a Netflix e afins? Desse modo, a internet desencadeou a Quarta Revolução Industrial e o mundo passou a estar na Era da Informação (ROCK CONTENT, 2020). Nesta etapa, conhecida como Internet 2.0, os usuários passaram de uma posição passiva, de meros consumidores, para uma posição ativa, na qual interagem entre si na posição de criadores de conteúdos, confluindo para os influencers da atualidade, ou seja, pessoas que produzem conteúdo e se destacam nas redes em que se encontram. Diante desse cenário, as empresas logo perceberam todo o potencial envolvido e hoje já não se pode falar da internet sem a publicidade que nela encontramos.

É quando surgem em cena os famosos algoritmos, “sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo…” (ROCK CONTENT, 2020, n.p.). São instruções dadas por quem os programa para que resolvam problemas matemáticos, executem tarefas ou realizem cálculos. Assim, com a inserção da publicidade no ambiente virtual, os algoritmos foram ajustados de modo a privilegiar alguns fatores, como a temporalidade, o engajamento e o relacionamento. Organiza a timeline do usuário de modo que os conteúdos exibidos sejam os mais recentes e que estejam recebendo bastantes interações (curtidas, comentários, compartilhamentos), além de priorizar os usuários com quem há interações frequentes. Então, os algoritmos destacam o que entendem ser do interesse do usuário e mostram conteúdos que avaliam como relevantes.

II – Adolescência e atualidade: entre o ideal e o possível

A adolescência, construção social acerca do que a psicanálise compreende como puberdade, é o momento da vida em que o sujeito já não é mais criança e passa a ser tomado pelas irrupções do real do corpo, que está em constante mudança. Miller2 (apud DRUMMOND, 2016) aponta que, tratando-se da adolescência, nos ocupamos de três aspectos: a saída da infância, a diferença dos sexos e o desenvolvimento da personalidade. É, então, um momento crucial, visto que é quando o sujeito se depara em um encontro com o impossível e, a partir do qual, precisará construir uma resposta. “Receber um adolescente é receber alguém em um impasse, pois se defronta com as mudanças corporais, identificações, a lida com os outros e com o Outro, relação com o sexo. Impasses estruturais, encontros com o real, diante dos quais o sujeito se vê desamparado” (STIGLITZ, 2016, apud MEZÊNCIO, 2017, p. 78). Assim, o adolescente encontra-se, naturalmente, envolto a essas questões e, considerando o enfraquecimento do Nome-do-Pai e a proliferação de objetos, o saber já não faz enigma, estando acessível a qualquer momento e em qualquer lugar: ele está ao alcance das mãos. Ou você nunca pediu a alguém que procurasse uma resposta no Google?

Lacan nos diz em “Televisão” que, em nossos tempos, o objeto a foi elevado ao zênite social, ou seja, temos localizado no mais alto ponto do céu o mais de gozar como dominante. “Este primado do objeto a, próprio da época do Outro que não existe, deixa para trás, a identificação simbólica ao ideal” (AMENDOLA, 2020, n.p.). Assim, a inserção social se faz menos por identificação do que por consumação, como aponta Miller.

O celular, gadget que permite o acesso aos apps (aplicativos), está sempre disponível. Não é incomum crianças e adolescentes queixando-se nos consultórios de quererem ou precisarem de um aparelho. Ou, ainda, tem sido frequente ouvir deles que o celular, e até especificamente o TikTok, são motivo de eles viverem, são pontos que os ligam à vida.

O que tem sido percebido na clínica é que o uso excessivo de celulares e afins privilegia relações intermediadas pelo aparelho, o que destaca a total desorientação do adolescente quando privado de seu acesso. É comum vermos um grupo de pessoas próximas fisicamente, em que está, cada uma, atenta ao conteúdo de seu dispositivo, e até mesmo relacionando entre si por meio das redes sociais, em detrimento da relação vis-à-vis. Para além disso, frente às frustrações decorrentes, pouco tem sido possível enquanto saída privilegiada pelo simbólico e frequentemente nos deparamos com atos sobre o corpo como forma de alívio ou punição. Miller nos coloca que os sujeitos contemporâneos hipermodernos são desorientados, sem uma bússola norteadora, o que favorece a imposição do objeto a a esses sujeitos desamparados. “O mais de gozar se esgueira através das redes…” e dita várias formas de burlar o circuito natural dos corpos e da vida (AMENDOLA, 2020, n.p.).

III – Quando os algoritmos encontram sujeitos desorientados: uma angústia infinita

A relação do sujeito contemporâneo com o saber já não é a mesma de outrora. Não se supõe mais que o outro sabe, visto que ele o detém. É comum nos depararmos com influencers seguidos por milhões de pessoas, mas de quem nunca ouvimos falar. Que conteúdos produzem, afinal? Muitos dançam trechos musicais coreografados que se tornam verdadeiros virais, outros dublam cenas famosas de filmes, fazem pegadinhas, promovem desafios, etc. Os conteúdos em vídeo já são privilegiados quanto aos estáticos dos textos e imagens, convocando os usuários a se adequarem às regras para aumentar o engajamento.

Uma das mais recentes redes sociais em evidência é o TikTok. O aplicativo chinês mais baixado de 2021 é uma rede de compartilhamento de vídeos curtos que monta a sua timeline conforme os conteúdos que o usuário se interessa por consumir. Criado em 2016, é um dos poucos apps que ameaçam a hegemonia da Meta, empresa detentora de Facebook, Snapchat, Instagram, WhatsApp e outras mais. Seu feed é formado pela chamada timeline infinita, ou seja, o conteúdo selecionado é escolhido a partir dos algoritmos e não há um fim, não tem momento para o conteúdo acabar. Essa nova configuração implica numa série de sérias consequências: a falta faz falta! E é aí que mora a angústia.

Em estudos recentes, pesquisadores perceberam que os vídeos curtos de conteúdo agradável ao usuário ativam áreas do cérebro ligadas ao sistema de recompensa, o que produz sensação de prazer e satisfação. Assim, ao assistir a um vídeo do aplicativo, ativa-se a produção de dopamina, produzindo sentimentos de felicidade e alegria. Diante do aumento do recebimento do neurotransmissor pelo cérebro, mais ele demanda, contribuindo para sua entrada em estágio de saturação e diminuindo a sua sensibilidade, de modo a necessitar de uma quantidade maior da substância.

IV – O discurso capitalista e o saber: fonte de parva riqueza

É diante de todo esse contexto que temos uma combinação deveras problemática: uso excessivo das redes sociais, aplicativos que te entregam o que te agrada, ainda que não solicitado, e a inexistência da falta ou, ao menos, de um hiato que possa suscitar um questionamento, são imperativos de gozo: Compre! Seja! Faça! Nessa seara, muitos encontraram a oportunidade de se venderem enquanto produtos a serem consumidos: “Te ensino a ganhar dinheiro com o Instagram! Compre meu curso! Siga o meu perfil!”. E o resultado disso é a venda de soluções rápidas por pessoas que ocupam o lugar de mestre e que interpretam o desconhecido (vide as caixinhas de perguntas), mas privilegiando formatos standards de como fazer, vender ou tratar.

Para que o analista esteja à altura de sua época, é preciso que esteja atento ao modo como o falasser se manifesta. Márcia Mezêncio diz que “o laço transferencial é a oferta que cabe ao analista […] e que esse laço é o que pode produzir um lugar onde o sujeito possa se enganchar” (2017, p. 75). E, a partir disso, cavar um amor epistêmico ao inconsciente. Diante disso, então, pergunto: o que faria o analista, em sua posição de semblante do objeto, causa de desejo, diante do sujeito que acredita ter o objeto em suas mãos? Como convocar o sujeito a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco?

 


Referências
AMENDOLA, A. F. O discurso analítico: uma pausa vivificante. Lacan XXI – Revista FAPOL online. 2020, vol 1. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2020/05/26/o-discurso-analitico-uma-pausa-vivificante/?lang=pt-br Acesso em 02 out. 2022.
Conheça a história da Internet, sua finalidade e qual o cenário atual. Rock Content Blog, 2020. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/historia-da-internet/ Acesso em 02 out. 2022.
DRUMMOND, C. Gide e a imiscuição do adulto na criança. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 42, jul./dez. de 2016.
LACAN, J. Televisão. Outros escritos São Paulo: Zahar Editor, 1993.
MEZÊNCIO, M. A constituição do sintoma na juventude: deriva e ruptura. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 43, abr. 2017.
O GLOBO, A. Como o TikTok atua no cérebro e vicia jovens em seus vídeos curtos. EXAME, 2022. Disponível em https://exame.com/ciencia/como-o-tiktok-atua-no-cerebro-de-jovens-com-videos-curtos-e-personalizados/. Acesso em 04 out. 2022.
Saiba como funciona um algoritmo e conheça os principais exemplos existentes no mercado. Rock Content Blog, 2019. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/ Acesso em 03 out. 2022.
SILVA, L. W. Internet foi criada em 1969 com o nome de “Arpanet” nos EUA. Folha de S. Paulo, 2001. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u34809.shtml Acesso em 02 out. 2022.

1 Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Saúde Mental da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022. 
2 Texto de encerramento da 3ª Jornada do Institut de l’Enfant, 2015. 



O grito silencioso: o corpo da criança na clínica da civilização1

Alessandra Thomaz Rocha
Psicanalista, doutora em psicanálise pela UFMG, membro da EBP/AMP
aless.thz@hotmail.com

 

Resumo: O texto trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças. Para isso, a autora aborda a questão do grito em Lacan e localiza a questão do silêncio e sua importância na psicanálise. Articula-os um ao outro e à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

Palavras-chave: Silêncio; grito; criança; acontecimento de corpo; falasser

THE SILENT SCREAM: THE CHILD’S BODY IN THE CLINIC OF CIVILIZATION

Abstract: The text deals with the silent scream issue from the point of view of the political body event from the perspective of the psychoanalytic clinic with children. For this, the author addresses the issue of screaming in Lacan and also locates the issue of silence in Lacan and its importance in psychoanalysis. She articulates them to each other and to the clinic of the parlêtre based on the event of the political body, considering that there is no clinic of the subject without a clinic of civilization.

Key words: Silence; scream; child; body event; parlêtre.

 

CAROLINA BOTURA. IO

 

Como se articulam grito e silêncio? Qual é a relação da criança com seu corpo e o com o gozo, que dele escapa? Qual é o lugar do corpo da criança na clínica da civilização? Para tratar desse assunto, faremos inicialmente uma abordagem sobre o grito a partir de Lacan e, em seguida, sobre o silêncio, para depois articulá-lo à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

O grito

Lacan evoca o grito para falar do silêncio no Seminário 12: problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965, inédito), fazendo circular na sala uma reprodução do célebre quadro de Edward Munch “O grito” (1893). Ele comenta que não encontrou imagem melhor para falar do silêncio do que essa. Menciona o ser que aparece, que tem o aspecto estranho e que não se pode dizer sexuado. Esse ser que

“tapa as orelhas, escancara a boca: ele grita. O que é esse grito? Quem ouviria esse grito que não ouvimos? Se não que ele impõe esse reinado do silêncio […]. Literalmente, o grito parece provocar o silêncio e, aí se abolindo, é sensível que ele o causa, ele o faz surgir, ele lhe permite manter a nota. É o grito que o sustenta, e não o silêncio ao grito” (LACAN, 1964-65, p. 217).

“O grito é uma pura enunciação, o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas” (LAURENT, 2016, p. 210-211). Assim, o silêncio não está fora da linguagem, já que não é anterior ao grito, mas, ao contrário, é o grito que funda o silêncio. Logo, não há silêncio sem grito, pois, como nos afirma Lacan, “O grito faz o abismo onde o silêncio se aloja” (LACAN, 1964-1965, p. 217). O grito é a expressão primitiva e indiferenciada do recém-nascido, que, por estar fora do sentido, convoca seu outro primordial a um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Sob a forma de choro da criança, o grito é transformado em demanda. Para Freud, a primeira experiência de satisfação, por ser inédita, é também irrecuperável enquanto tal. Ela estabelece tanto uma expectativa e uma procura por satisfação quanto uma impossibilidade de reencontro do objeto dessa satisfação, para sempre perdido, constituindo um vazio contínuo e constante para o sujeito, que nenhum objeto substituto pode preencher. Lacan se refere à pausa do silêncio na música como um saber fazer do músico, que é tão essencial quanto uma nota sustentada, e se pergunta se só poderíamos pensar no silêncio como suspensão da palavra.

Taceo não é sileo

Ainda nesse mesmo seminário (1964-1965), Lacan nos remete a duas formas do silêncio, utilizando os termos em latim. Define taceo como a dimensão do silêncio que é aquela da palavra não-dita, enquanto sileo seria um silêncio fundante, estruturante, que aponta para uma ausência essencial da palavra, isto é, um buraco de significação, uma impossibilidade de simbolização (LACAN, 1964-1965) que seria, em última instância, a própria morte. Roland Barthes, em O neutro (2003), referindo-se à língua clássica, também faz uso desses dois termos em latim para abordar o silêncio. Define Sileo como o que remete a uma ausência de movimento e de ruído, uma espécie de pureza atemporal das coisas que existe antes de elas nascerem ou depois de elas desaparecerem; e taceo como o que diz respeito a um calar-se, a um deixar de falar, isto é, um silêncio verbal.

Lacan salienta que “O silêncio forma um laço, um nó fechado entre algo que é um entendimento e algo que, falando ou não, é o Outro, é este nó fechado que pode repercutir quando o atravessa, e talvez mesmo o cave, o grito” (LACAN, 1964-1965, p. 218). Menciona que em algum lugar em Freud existe a percepção primordial desse buraco do grito. Afirma que é no nível do grito que aparece o próximo, o Nebenmensch, o mais próximo, porque é justamente esse vazio intransponível, marcado no interior de nós mesmos, e do qual podemos apenas nos aproximar. Menciona também, nessa lição XII, de 17/03/65, o excelente artigo de Robert Fliess, filho do famoso Wilhelm Fliess, o companheiro de autoanálise de Freud, intitulado “Silence and Verbalization2. Esclarecendo que esse silêncio a que se refere Fliess é “o próprio lugar onde aparece o tecido sobre o qual se desenrola a mensagem do sujeito, é aí onde o nada impresso deixa aparecer o que é esta palavra. E o que é dela é precisamente, neste nível, sua equivalência com uma certa função do objeto a” (LACAN, 1964-1965, p. 218).

O silêncio compõe a própria função da verbalização e manifesta a presença do que é indistinguível da pulsão, ou seja, a presença do objeto a. Há, portanto, uma aproximação entre o silêncio das pulsões e o silêncio que compõe a palavra e a convoca enquanto objeto a. Isso que, na clínica, se presentifica como o silêncio do analista. Essa é a função crucial do silêncio na experiência analítica, convocar o dizer analisante, a partir da presença do analista como silêncio invocante, como semblante de objeto a.

O artigo de Robert Fliess também foi citado por Lacan em 1953, em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, para se referir às palavras e à linguagem em relação ao corpo. Fliess estuda, na análise, a conexão entre a palavra e o gozo através dos silêncios. Distingue três tipos de silêncio que observa clinicamente e diz que são interrupções de uma linguagem semelhantes às pausas ou silêncios de uma partitura musical.

“Há o pequeno silêncio normal, ‘uretral’, no qual o paciente parece ter esquecido a regra analítica e interrompe a fluidez das palavras. O ‘silêncio anal’ alude aos pacientes que se calam, retêm palavras, estão sujeitos a uma inibição. O sujeito não consegue retomar as associações. Mas o pior, segundo ele, é o ‘silêncio oral’, que parece interminável. É um mutismo que dá conta de uma impotência para falar. Lacan menciona Fliess precisamente por essa relação da pulsão à palavra que pode tomar valor de gozo segundo os diferentes estados libidinais mencionados por Freud e sinaliza que, quando o valor de gozo infiltra a palavra, e isso se repara melhor no silêncio, a pulsão a cala. No silêncio há a inibição da satisfação que o sujeito experimenta na produção do fluxo de palavras” (KUPERWAJS, 2021, n/p). 

O acontecimento de corpo político e a clínica da civilização 

Partindo do tema do falasser político e do acontecimento de corpo, considerando o fato de que o gozo foi elevado ao zênite na civilização, Éric Laurent, em seu livro O avesso da biopolítica, nos lembra de que o estatuto fundamental da subjetividade de nossa época é a angústia, e que o sujeito moderno possui uma afinidade com o corte introduzido pela angústia em tudo o que constitui o mundo. É uma relação do sujeito com o corte e com o vazio que pode ser dita “fora do sentido” e contabilizada como a marca de um sujeito que falha (LAURENT, 2016). Ressalta que a desaparição do sujeito contemporâneo se produz no nível da divisão subjetiva, o que acarreta uma perda no nível do desejo, e que essa perda ecoa na operação da fantasia “em que o sujeito se apreende como objeto no pleno (plein) de sua perda. Isso define um funcionamento da psicologia das massas distinto da identificação positiva como um traço extraído do Outro” (LAURENT, 2016, p. 210). Ele nos indica que, na democracia, o Um da união está sempre perdido, pois “a oposição entre o laço social fundado numa identificação com um traço unário, ou um bigodinho, e aquele fundado na fantasia como resposta em face da angústia original nos permite ler de outra maneira (…)” (LAURENT, 2016, p. 210) alguns dos movimentos sociais que tem surgido em resposta à crise. Essas respostas vêm sendo formuladas sob a forma de

“movimentos espontâneos sem palavras de ordem unificadora na Europa latina, sob o significante ‘indignados’, nos EUA e sob o de ‘Occupy…’ em países anglófonos. Trata-se de ocupar um lugar mais indefinido ainda, ou seja, aquele de uma enunciação em que o sujeito pode se retomar em sua desaparição. É um grito do sujeito contra o Outro infernal, que o deixa sem lugar no mundo” (LAURENT, 2016, p. 210).

O grito como pura enunciação é o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas. Logo, “em resposta à angústia, trata-se de escrever alguma coisa nova, alguma coisa que demarque um lugar (place)” (LAURENT, 2016, p. 211), pois “é o lugar que deixa aberto o furo no simbólico que o sujeito tenta ocupar para se apreender” (LAURENT, 2016, p. 211). Porém, resta saber para onde se dirigem as marchas em curso desses movimentos da cultura, já que a suspeita da impotência do homem político contemporâneo se dissemina. Laurent questiona: esses movimentos seriam “a possibilidade de uma manifestação em que o silêncio trabalharia no avesso da pulsão de morte, num mal-entendido vivo que nos afastaria do ajuste final entre liberdade e segurança?” (LAURENT, 2016, p. 211). Seria esse grito silencioso o que poderia operar uma subversão a partir do lugar de uma enunciação eloquente?

Considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização, trata-se, na clínica do falasser, de apostar no inconsciente como o que está ‘a ser definido’, segundo Miller (LAURENT, 2016, p. 201), e de acordo com Laurent, considerar que, diante da liquidez da civilização moderna, a angústia se apresenta de forma generalizada. Por isso, Lacan nos orienta a trabalhar a partir não mais das defesas ligadas ao desejo, mas dos “arranjos e percursos dos regimes de gozo” (LAURENT, 2016, p. 203), como o que se estabelece no nível da pulsão.

Assim, tomando a experiência analítica, não mais nomeada como cura ou tratamento, mas como uma experiência, proposta que se apresenta a partir do último ensino de Lacan, trata-se, na clínica psicanalítica, de apostar no “sintoma como acontecimento” e no “modo de gozar como sintoma”, de forma a localizar, isto é, dar lugar ao falasser político como acontecimento de corpo. Tomar o Outro como corpo, e não como espírito, permite inscrever nele uma marca, que vai mais além do traço unário. É uma marca que permite reler a identificação a partir da inscrição sobre o corpo, a partir do acontecimento de corpo (LAURENT, 2016). “O acontecimento de corpo assinalado por Lacan é mudo. Ou então fala aos gritos, sem direção precisa e fora dos códigos: ‘isso goza onde não fala, isso goza onde não faz sentido’” (BARROS, R., 2011, p. 218).

Laurent (2016) comenta que Miller, em seu texto “Intuições milanesas”, descreve as modificações da clínica na época do não todo e da globalização, assinalando que a “clínica do não todo é aquela em que florescem as patologias descritas como centradas na relação com a mãe, ou […] no narcisismo”, e que o nó é

“uma maneira de responder à estrutura do não todo. […] O ternário RSI se distingue e se opõe ao que era a repartição estanque descontínua entre neurose, perversão e psicose, [e] sem dúvida nos fornece arranjos diferentes, mas que estão em continuidade uns com os outros” (LAURENT, 2016, p. 206).

É o sintoma que se torna a unidade elementar da clínica, e não mais o que se chamava de estrutura clínica, que era uma classe. “Nessa clínica o absoluto, a substância, é o gozo” (LAURENT, 2016, p. 206), que no corpo faz sintoma como um acontecimento, pois “é como se fosse mais simples para o inconsciente de se servir do corpo para tratar o que não pode ser dito” (BONNAUD, 2015, p. 11).

Portanto, o acontecimento de corpo “está, como a angústia, do lado do gozo, que faz desordem no simbólico e que não pode encontrar aí nem seu lugar, nem seu laço, já que se apresenta como irrupção ou emergência” (LAURENT, 2016, p. 209). Porém, a angústia, como afeto que não engana e que é sentido no corpo, está mais em relação ao sexo e ao desejo do que em relação à morte. 

O acontecimento de corpo na clínica com crianças como grito silencioso 

Há um saber que surge da boca das crianças como algo novo, sobre o qual é preciso se debruçar. É preciso investigar, a partir do corpo como Outro, qual seria a relação da criança com o gozo que lhe escapa e que provoca desordem na família. O corpo é o lugar onde um dizer é capturado, mas aparece como enigma de um corpo sexuado, não sem a angústia como sinal. “A criança é feita para aprender, diz Lacan, aprender a fazer o nó a partir do que fracassa. Com isso ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui a ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um” (BARROS, M. 2011, p. 227).

Em tempos de pós-verdade, no qual o que importa não são mais os fatos, mas o que se diz deles, como operar com a enunciação da criança diante de um fechamento ao inconsciente? Como fazer existir o inconsciente quando a subjetividade de nossa época, com sua autodenominação, busca separar o corpo do ser falante e fazer da criança um objeto mudo, a ser escrutinado pelo saber da ciência? Como dar lugar ao Outro do desejo e da palavra, ao falasser, quando o que surge são indivíduos isolados do Outro, arraigados em suas crenças delirantes de um gozo mortífero? É preciso buscar ler o sintoma como grito silencioso nos atos que curto-circuitam a palavra e rechaçam o inconsciente.

Cabe, portanto, ao analista se perguntar sobre o ponto de angústia que mobiliza a criança e seus pais de forma a localizar o não dito que os permitirá formular uma questão. Ao fazer-se parceiro da criança nesse trabalho de elaboração e construção de uma demanda, permite-se a ela lidar com o real opaco que se apresenta de forma cada vez mais avassaladora, a partir de sua posição de objeto a, dejeto das famílias e da civilização.

Na análise com crianças, é possível ler, através dos equívocos e dos lapsos, o que se escreve a partir do corpo fora do corpo, do corpo como Outro, e que surge como acontecimento, como grito silencioso, índice, letra, que abre a possibilidade de inscrição de sua singularidade. É importante localizar o índice inconsciente, a cifra que permite escrever a marca singular do gozo de cada um a partir do saber fazer com as palavras mais além do corpo, para poder dar lugar e nome a uma diferença.

 


Referências 
BARROS, R. Lacan e o acontecimento de corpo. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 217-219.
BARROS, M. Lacan e a criança. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 227-229.
BARTHES, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BONNAUD, H. Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris France : Navarin, 2015.
KUPERWAJS, I. Silêncios. Texto publicado no Boletim infamiliar do XXIII Encontro Brasileiro do campo Freudiano, 2021. Disponível em: https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/wp-content/uploads/2020/12/Kuperwajs-Irene-Sile%CC%82ncios.pdf.
LACAN, J. (1964-1965) O seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito.
LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 238-324.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do IPSM-MG em 06/07/2022. 
2Silence and verbalization: A suplement to the theory of the analytic rule (1949). (Trad. J. D. Nasio) Le silence en psychanalyse. Paris: Payot-Rivages, 1998. In: Lacan, J. Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965), p. 460. 



Sylvia Plath: uma escrita para “O caos da experiência”

Isadora Saraiva Vianna de Resende Urbano
Graduada em Estudos Literários e Mestra em
Teoria da Literatura Comparada pela UFMG
isaresendeurbano@gmail.com

Resumo: Este artigo discute o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta Sylvia Plath (1932-1963). Partindo de trechos de seus diários, cartas e poemas, além do romance A redoma de vidro, procuramos investigar as dimensões que a escrita assumiu na vida da autora. Destacadamente, pontuamos que Plath se valia da escrita como um modo de buscar se fazer amar e de organizar o que nomeava como “o caos da experiência”, numa tentativa de sinthoma que funcionou bem o bastante por muito tempo, mas que, a dada altura, mostrou-se uma saída insuficiente para que Plath sustentasse o desejo de viver.

Palavras-chave: Sylvia Plath; escrita; sinthoma.

SYLVIA PLATH: A WRITING FOR “THE CHAOS OF EXPERIENCE”

Abstract: This article discusses the role of writing as a psychic support for the poet Sylvia Plath (1932-1963). Starting from excerpts from her diariesletters and poems, as well as the novel The bell jarwe seek to investigate the dimensions that writing assumed in the author’s lifeNotablywe point out that Plath used writing as a way of trying to make herself loved andalsoof organizing what she called “the chaos of experience”, in an attempt of making a sinthomethat worked well enough for a long time, but eventuallyproved to be an insufficient way for Plath to sustain the desire to live.

Keywords: Sylvia Plath; writingsinthome.

 

CAROLINA BOTURA. EX-DEUS

 

No Seminário 23, O sinthoma, Lacan nos diz que “uma escrita é (…) um fazer que dá suporte ao pensamento” (LACAN, 2007, p. 140). Pouco à frente, acrescenta: “As pessoas escrevem suas recordações de infância. Isso tem consequências. É a passagem de uma escrita para outra escrita” (ibid., p. 143). A passagem de uma escrita para outra escrita, nesse contexto, é algo que podemos ler como a passagem de uma escrita no corpo para uma escrita textual, por meio da qual registramos nossas impressões e as tornamos legíveis para outras pessoas, e também para nós mesmos.

Escrever suas recordações, como afirma Lacan, certamente tem consequências. No caso de James Joyce, por exemplo, Lacan afirma que a escrita é essencial a seu ego, possibilitando a amarração do nó que rateia na tríade R.S.I. Mas para além do caso Joyce, há um sem-número de pessoas que se apoiam no recurso à escrita e fazem dela algo importante em termos psíquicos. Algumas vezes, essa escrita pode alcançar algo de íntimo e quiçá vital para aquele que escreve, para além de qualquer valor prático ou literário que possa vir a ter. Nesse campo, uma escrita pode, por exemplo, dar corpo aos pensamentos, dar destino ao fluxo de ideias, aquietar a ânsia de dizer, dar consistência às próprias palavras, permitir que algo seja esquecido sem que caia de vez no esquecimento, elaborar, expurgar, etc., o que equivale a dizer que uma escrita pode ter o lugar de uma invenção, uma forma criativa de lidar com os temas que nos tocam, que pode alcançar efeitos terapêuticos ou não, e que, em todo caso, não substitui uma análise, mas pode aparecer como uma estratégia suplementar para lidar com a experiência¹.

Para explorar essas questões, das funções e efeitos de uma escrita, proponho passarmos ao caso concreto e ilustrativo de Sylvia Plath e sua relação particular com as práticas da letra, a partir dos materiais deixados em seu romance, poemas, diários e cartas. Não se trata absolutamente de fazer uma análise de Plath a partir da sua escrita, mas de verificar como essa escrita foi apropriada por ela e que lugares pôde ocupar em sua vida psíquica.  

Sylvia: vida & obra, ou vida-obra

Em um dos poemas de sua juventude, escrito em 1948, o eu-poético de Sylvia Plath responde a questões colocadas por um interlocutor indefinido acerca de sua relação com a escrita:

You ask me why I spend my life writing?

Do I find entertainment?

Is it worthwhile?

Above all, does it pay?

If not, then, is there a reason? …

 

I write only because

There is a voice within me

That will not be still.

                               (PLATH, 2011, s/p)

Diante dessa voz inquieta, a jovem Sylvia procura na escrita uma saída para apaziguar uma angústia, como nos sugerem os três últimos versos do poema, que indicam que a escrita é tanto consequência dessa voz como solução provisória para sua inquietude. De fato, a determinação de Sylvia, desde muito cedo, para se tornar uma escritora, nos mostra a importância que dava a essa atividade: mais que um hobby ou uma fonte de renda, Sylvia se valia da escrita como um modo de inventar seu eu artístico, que se confunde com seu eu pessoal, e descobrir uma voz própria. Mas não devemos idealizar: se a escrita, por um lado, podia lhe dar um senso de identidade e uma preciosa ferramenta de elaboração, por outro lado, a preocupação com a qualidade literária dessa escrita, atrelada imaginariamente ao seu valor pessoal, também era uma das suas grandes angústias, como ela escreve, em 1951, em seu diário:

Posso escrever? Conseguirei escrever se me dedicar o suficiente? Quanta coisa preciso sacrificar para poder escrever, de todo modo, até descobrir se sou mesmo boa? Acima de tudo, PODE UMA MULHER SEM IMAGINAÇÃO, EGOÍSTA, EGOCÊNTRICA E INVEJOSA ESCREVER QUALQUER COISA QUE VALHA A PENA? (PLATH, 2017, p. 121).

Dois anos depois, Sylvia foi escolhida para um estágio em Nova York, onde seria editora convidada da revista Mademoiselle. Em agosto, de volta a casa, tentou cometer suicídio, mas foi encontrada ainda com vida e pôde ser salva. Depois disso, foi internada temporariamente no hospital psiquiátrico McLean, onde conheceu a psiquiatra Ruth Beuscher, com quem manteve contato até o fim de sua vida. É dessa experiência traumática que Sylvia se apossou para escrever, quase dez anos depois, aquele que seria seu primeiro e único romance, A redoma de vidro.

É difícil dizer em que medida e de que maneiras o trabalho de rememoração realizado durante a escrita de A redoma de vidro teria ocasionado uma revivificação dos afetos ligados a essa experiência. Algumas pistas deixadas por suas cartas, entretanto, sugerem que a ficcionalização dessa época tenha sido experimentada por Sylvia em termos positivos, ainda que imaginemos que revirar esses conteúdos não tenha sido uma tarefa fácil.

No romance, é Esther Greenwood, o alter-ego ficcional de Plath, quem revive a experiência em Nova York e a tentativa de suicídio, após a qual é internada e conhece a dra. Nolan (correspondente de Beuscher), que parece ser a única a ouvi-la e compreendê-la sem condescendência. A importância de Nolan para Esther reflete a dimensão da relação transferencial de Sylvia com Beuscher, que se estenderá muito depois, mesmo após a partida de Sylvia para a Inglaterra, por meio de cartas2. Não por acaso, quando o casamento de Plath e Ted Hughes entrou em crise, foi a Beuscher que Sylvia recorreu como apoio emocional, e foi ela quem lhe recomendou um divórcio “limpo”… e paciência.

Pela transferência, Beuscher ofereceu a Sylvia uma figura materna alternativa à da própria mãe, e pôde suprir parcialmente uma carência afetiva de Sylvia, para quem o amor da mãe parecia insuficiente. Significativamente, a relação de Sylvia com a mãe se mostra intimamente ligada à sua relação com a escrita, como nos mostram seus diários:

POR QUE NÃO SINTO QUE ELA [a mãe] ME AMA? O QUE ESPERO EXATAMENTE QUE SEJA O “AMOR” POR PARTE DELA? O QUE É QUE NÃO RECEBO E ME FAZ CHORAR? Creio que sempre senti que ela me usa como uma extensão de si mesma; que eu, quando cometo suicídio, ou tento, faço com que ela passe “vergonha”, sinta-se acusada. O que é verdade, claro. Trata-se de uma acusação de que seu amor foi ineficaz. (…) Como, gostaria de saber, mamãe entendeu minha tentativa de suicídio? Como resultado da incapacidade de escrever, sem dúvida. Eu achava que não podia escrever porque ela ia se apropriar de tudo. Só isso? Eu sentia que, se não escrevesse, ninguém me aceitaria como ser humano. Escrever, portanto, era um modo de substituir minha personalidade: se você não me ama, ame o que escrevo & me ame por escrever. Há muito mais: um modo de organizar e reorganizar o caos da experiência (PLATH, 2017, p. 519-520).

Nesse trecho, de 1958, Sylvia revela algo da maior importância: sua sensação de não ser suficientemente amada pela mãe, o significado atribuído por ela à sua tentativa de suicídio, e sua tentativa de, pela escrita, se fazer amar e organizar “o caos da experiência”. Nesse sentido, o lugar que a escrita ocupa para Plath é diferente, ainda que tenha pontos de convergência, daquele que ela tinha para escritores como Joyce, para quem escrever foi um modo de constituir um corpo, ou Virginia Woolf, para quem, como escreve Stella Harrison, tratava-se de “venir à bout de la réalité” (HARRISON, 2010, p. 81). Para Plath, por outro lado, a escrita tomou o lugar de uma invenção imprescindível, não exatamente para superar a realidade nem para fazer um corpo, mas para aquietar a voz interior, para ser validada “como ser humano”, para ser amada e para “organizar e reorganizar” (i.e., para elaborar) a experiência.

Além disso, sua escrita também estava ligada à demanda por reconhecimento, como indicam os fatos de ter publicado seus textos, endereçando-os diretamente ao Outro, e ter buscado estabelecer-se na carreira de escritora, procurando uma validação editorial/crítica para sua literatura. Essa demanda, sabemos, se desdobra em demanda de amor, como nos ensina Lacan em seu Seminário 5As formações do inconsciente, em que demonstra que, no limite, aquilo que uma demanda almeja é sempre o amor (LACAN, 1999, p. 418). Com efeito, é por meio da escrita e do reconhecimento que essa escrita poderia lhe trazer que Sylvia buscava se afirmar como merecedora desse amor que, a seu ver, lhe era negado³.

Uma pergunta se impõe: por que, mesmo com o recurso à escrita, Sylvia optou pelo suicídio? Para essa pergunta, tudo o que podemos afirmar é que, com tantos fatores envolvidos4, sua passagem ao ato não pode ser atribuída a um único evento, sendo necessariamente sobredeterminada. Uma segunda observação é que, em todo caso, uma solução criada pelo sujeito pode vir a falhar: não há, nem é possível haver, uma invenção que nos imunize ao sofrimento e que garanta que vá funcionar para sempre. Na verdade, é justo quando o sofrimento aparece que essa solução é colocada à prova, e nem sempre se mostrará suficiente para sustentar um sujeito em meio à angústia, como aconteceu com Plath.

No caso da autora, a escrita parece ter servido como uma tentativa de sinthoma que durante muitos anos atendeu, com menor ou maior sucesso, às suas necessidades de elaboração, mas em dado momento falhou, como qualquer saída pode falhar. Cabe destacar que o fracasso dessa tentativa não é sinal de que a escrita tenha sido o que lhe fez mal e/ou o que a levou ao suicídio: quanto a isso, é impossível fazer uma afirmação categórica, como aponta Luciana Silviano Brandão (2009, p. 72) ao se interrogar sobre a questão dos escritores suicidas e da suposta toxidez da escrita. Fato é que Plath, que andou ao lado da morte durante tantos anos — com a morte de seu pai, na infância, e a tentativa de suicídio ainda na juventude —, tentou se valer da escrita para elaborar essas experiências e o fez, tanto quanto pôde.

Exemplo disso é que, em 1962, Plath havia escrito a Beuscher que já não achava mais que fazia o tipo suicida, mas, na escrita, continuava o trabalho de elaboração, tanto pela rememoração e ficcionalização do tema, em A redoma de vidro, quanto em suas “confissões” poéticas, como no caso do célebre poema Lady Lazarus, em que Plath escreve: “Dying / Is an art, like everything else. / I do it exceptionally well. / I do it so it feels like hell. / I do it so it feels real. / I guess you could say I’ve a call” (PLATH, 2007, p. 62). Fingidas ou não, as ideias suicidas e a glorificação da morte pertencem, em última instância, à autora que as escreveu, e, escrevendo-as, talvez tenha podido até mesmo adiar sua realização factual.

Desse modo, podemos pensar que a escrita forneceu a Sylvia um espaço em que ideias como essas puderam ser trabalhadas e “colocadas para fora”, promovendo algum efeito de catarse, mas sem a intervenção de um Outro que pudesse interrogar essa convicção mortífera anunciada com tanta clareza sob o manto do “fingimento” literário, tecido a sós. Por razões como essa, o processo de elaboração pela via literária pode ser bastante ambíguo, como pontuou Frieda Hughes, filha de Plath, no documentário Sylvia Plath: inside the Bell Jar, produzido pela BBC em 2018:

“I think [that] to give a voice to an experience is like letting go. I always think the words remember it for us, so we don’t have to carry it anymore (…). We can write it all down, let it go. And they’re all out there. And if we ever wan
to be reminded, they’re all there for us because we have made sure they are, but they are all at a distance. Perhaps it can imbue a sense of freedom, but also, I think: ‘This happened to me. It was real’.”

Há casos, porém, em que a escrita de Plath não se debruçou sobre aquilo que havia acontecido com ela, no passado, mas sim sobre o que se apresentava como questão no então presente, como material que demandava análise com urgência. É o caso de seu último poema, Edge, escrito a poucos dias de seu suicídio, que retrospectivamente pode ser lido como antecipação e sinalização de sua passagem ao ato, dado o novo sentido que os versos adquiriram após a sua morte: “The woman is perfected. / Her dead / Body wears the smile of accomplishment (…)” (PLATH, 2007, p. 96). Nesse caso, a elaboração poética, que performou textualmente a satisfação de sua morte, falhou enquanto elaboração “terapêutica”, sendo incapaz de manter a morte no campo do semblante (ou da fantasia?), e sustentar em si, no espaço restrito do simbólico, uma satisfação suficiente para dar outro destino a essa pulsão destrutiva.

De certo modo, foi ao tirar a própria vida que Sylvia completou o poema, o realizou, entrando em continuidade com a sua produção artística e encontrando uma saída para o sofrimento: aquela que, para nós, é, entre todas, a menos desejável, por custar um preço excessivamente alto. Passando do simbólico ao real, Sylvia saltou do campo da escrita para entrar na zona em que a fina matéria viva se desfaz e se torna matéria inerte. Nessa passagem, não parece ter sido a escrita, e sim o silêncio do Outro, a falta do Outro (a falta de amor, mas também a falta de uma escuta, de uma interpretação, de um ato), o abismo em que a poeta se joga, movida pela certeza em sua incapacidade de “ser ela mesma”, de ser amada e de se amar, como escreve em sua última carta. Passando do simbólico ao real do corpo, Plath deslizou do campo dos sentidos para o sem sentido — o que não nos impede de ler nesse ato a mensagem que, com sua morte, nos convocou a ouvir.

 

 


Referências
BRANDÃO, L. S. Rememoração e reminiscência em De amor e trevas de Amós Oz. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.
HARRISON, S. Virginia Woolf, bataille vers un sinthome. Quarto, n. 97, junho, 2010, p. 79-82.
LACAN, J. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. (Trad. Sérgio Laia). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
PLATH, S. A redoma de vidro. (Trad. Chico Mattoso). São Paulo: Mediafashion, 2016.
PLATH, S. Letters Home. Aurelia Schober Plath (Ed.) Londres: Faber & Faber, 2011. Edição Kindle.
PLATH, S. Os diários de Sylvia Plath: 1950-1962. Org. Karen V. Kukil. (Trad. Celso Nogueira). 2ª ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
PLATH, S. Poemas. (Trad. Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça). 2ª edição. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 127-138
PLATH, S. The letters of Sylvia Plath. Volume II: 1956–1963. Faber & Faber, 2018. Edição Kindle.
SYLVIA Plath: inside The Bell Jar. Dir. Teresa Griffiths. Londres: BBC, 2018. Documentário, 59 min.

1. Porque a escrita, nesse sentido, é uma invenção individual, que servirá bem para alguns, mas não para todos. Além disso, porque ela não conta com a presença de um analista que possa interpretar e atuar com relação ao que se produziu. Sem a presença do analista, o sujeito pode chegar perto, talvez, do que se alcançaria com uma “auto análise”, mas não muito mais que isso. Isso não quer dizer que se deva entender a escrita como uma estratégia prejudicial para o sujeito, nem é justo rotular como “precária” a forma que os sujeitos elegem como seu suporte psíquico, embora, como qualquer saída, ela possa falhar. Afinal, frente à contingência, não há nenhuma garantia. À diferença de uma análise, entretanto, quando a escrita falha, não há mais ninguém ali para evitar que o sujeito se quebre. 
2. Em 1962, quando seu casamento entra em crise, Sylvia tenta fazer dessas cartas um substituto para as sessões de psiquiatria que, por razões financeiras e geográficas, eram inviáveis. Ela chega a implorar a Beuscher que lhe cobre pelas cartas que escrevesse, o que sublinha o estatuto que Sylvia conferiu a esses escritos. 
3. Embora não o diga em termos tão diretos quanto faz em relação à mãe, a própria relação de Sylvia com o marido também passava pela escrita. Ela menciona em seus diários a atração intelectual e admiração que sentia por ele como poeta, e nesse sentido, chama a atenção que Sylvia tenha escolhido em um parceiro marcado pelos significantes “poeta” e “leitor” alguém que pudesse se ligar a ela pelo amor às letras, que ambos compartilhavam, a despeito dos rumos que a relação tomou ao final. 
4. Por exemplo, o divórcio, o sentimento de humilhação, a precariedade da assistência especializada (lembrando que nesses meses Sylvia e Beuscher trocaram cartas, mas não se encontraram), a insegurança financeira, a infraestrutura precária do apartamento em Londres, as dificuldades diante da expectativa de se tornar mãe “solo”, a recepção abaixo da esperada de seu romance, a demissão recente da mãe, o medo de ser internada novamente, a tentativa prévia de suicídio como agravante, etc. 



Paternidade e neurose obsessiva : a literatura de Karl Ove Knausgard

Wallace Faustino da Rocha Rodrigues
Doutor em Ciências Sociais, professor de Sociologia na UEMG e aluno do IPSM-MG
wallacefaustinorocha@hotmail.com

Resumo: Seguindo o Complexo de Édipo, o sujeito ante à ameaça de castração tende a ver o pai como o detentor do falo e, consequentemente, obstáculo à realização de seu desejo — quadro esse que se impõe durante toda a sua vida. Diante desse princípio, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, pretende-se uma reflexão sobre a paternidade na neurose obsessiva a partir de um olhar sobre a obra do escritor Karl Ove Knausgard, de modo a proporcionar uma discussão mais ampla sobre a temática.

Palavras-chave: Paternidade; neurose obsessiva; Karl Ove Knausgard

FATHERHOOD AND OBSESSIONAL NEUROSIS: THE LITERATURE OF KARL OVE KNAUSGARD

Abstract

Following the Oedipus Complex, the subject, faced with the threat of castration, tends to see the father as the holder of the phallus and, consequently, an obstacle to the fulfillment of his desire — a situation that imposes itself throughout his life. From this principle, in the light of the three logical stages of Oedipus proposed by Lacan, a reflection on fatherhood in obsessional neurosis is intended from a look at the work of the writer Karl Ove Knausgard in order to provide a broader discussion about the theme.

Keywords: Fatherhood; obsessional neurosis; Karl Ove Knausgard

CAROLINA BOTURA. RAINHA

 

“Uma criança era vida, e quem gostaria de virar as costas para a vida?”
Karl-Ove Knausgard, Um outro amor

Em O homem dos ratos, Freud apresenta como a imagem do falecido pai de seu paciente é recriada simbolicamente com a finalidade de barrar o seu desejo (FREUD, 1909/2020). Reconstruído na teia do imaginário, o Pai vigilante é aquele por quem o neurótico espera aprovação ou rejeição. O engano do neurótico é o de que o Outro cerceia o seu desejo, prendendo-se enganado em sua própria trama de que, restituído o Pai, conseguiria a realização de seu desejo — ao mesmo tempo em que a sua restituição representa o vigor da castração (LACAN, 1966/2021).

O pai simbólico, morto, é agente de interdição, abrindo o acesso ao desejo por sua submissão à lei, unindo desejo e lei. Por sua vez, o pai imaginário é aquele construído involuntariamente pelo neurótico em sua versão idealizada ou terrível. O obsessivo, portanto, volta-se para pagar a dívida paterna, sendo que a sua versão idealizada, ou terrível, é uma forma de encobri-la. Freud demonstra isso no relato que faz do desespero de seu paciente em pagar a dívida referente ao pince-nez perdido. Se não o paga, o falecido pai seria punido — porém, essa dívida não existe (FREUD, 1909/2020).

O redimensionamento do Outro, que não está ali, e a permanente ameaça de castração paralisa o neurótico, tornando-o impotente na realização do desejo. Assim, questiona-se: quando a ameaça de castração se torna menos evidente, a ponto de permitir maior possibilidade de o neurótico prosseguir em direção ao seu desejo? Para efeitos deste texto, a paternidade é uma delas.

 

Paternidade e obsessão

Na teia do Édipo, o pai deseja a mãe, interditando-a à criança, que passa a dividir o seu objeto de desejo com a figura castradora. Ambiciona, então, a morte do pai para ter a exclusividade do objeto desejado.

Em Lacan, o Nome-do-Pai está no discurso da mãe, sendo para onde aponta o desejo. A metáfora paterna é uma operação significante articulando o Complexo de Édipo ao de Castração. Logo, o Édipo deixa a sua base evolucionista do desenvolvimento infantil ao permanecer atemporal, por se situar em uma premissa da estrutura. Desse modo são apresentados três tempos lógicos para o Édipo (LACAN, 1957-1958/1999).

O primeiro está centrado na identificação da criança ao objeto de desejo da mãe — equivalência falo e criança. Ergue-se uma tríade a partir desses dois elementos: criança, mãe e falo. Ser falante, a mãe fica submetida à lei simbólica, tornando-se um Outro absoluto para a criança.

No segundo tempo está a simbolização — o fort-da (FREUD, 1920/2019b). A mãe, representada pelo carretel, também o é por palavras, enunciando a sua simbolização. É a entrada da criança na linguagem. Pela premissa do estágio do espelho, ergue-se o binarismo significante S1 e S2, por onde o sujeito caminharia.

Antes disso, a intermediação criança-mãe se dava pelo falo. A linguagem passa a condicionar o posicionamento da criança no mundo. A mãe deixa de ser objeto primordial, passando ao de signo. Com a metáfora paterna, o desejo da mãe é deslocado para outro lugar, não mais estando na criança.

Significante, o Nome-do-Pai faz a mãe ser simbolizada. Se, no primeiro tempo lógico, o Outro é a mãe, o Nome-do-Pai barra o Outro absoluto; no segundo, a criança é inserida na ordem do simbólico. Lacan introduz o Édipo da castração simbólica, faz com que a identificação da criança com o falo da mãe seja recalcada e coloca a mãe no nível significante do desejo do Outro.

No terceiro tempo tem-se o declínio do Complexo de Édipo, com o menino deixando de ser falo para ser alguém com falo. É iniciado o processo de significação ao seu pênis, com o pai como identificação com o ideal do eu. A matriz simbólica é o significante Nome-do-Pai, conferindo-lhe virilidade — já a menina é posicionada como objeto de desejo masculino.

Em sua existência como alguém com falo, há o temor pela castração. O ideal do eu, simbolizado na figura paterna, edifica-se no universo simbólico como construção sua. Entende-se a grande admiração ao pai em Homem dos ratos e explica-se, então, os seus dilemas, sobretudo no tocante à escolha do casamento, sempre à espera da aprovação do pai simbólico, adiando a realização de seu desejo. O temor pela perda do falo acompanha o de não corresponder às expectativas de alguém tão grande (FREUD, 1909/2020).

Ao obsessivo, a ameaça ao falo é constante. Ao se relacionar com um ser castrado, teme perder o falo. Diante disso, tomando os três tempos lógicos acima apresentados, mostra-se como a mãe, em determinado momento, por possuir o seu próprio falo, deixa de ser uma ameaça castradora. Por isso que a paternidade poderia ser, para o obsessivo, o testemunho da potência e a possibilidade de se romper com a trama neurótica na qual se encontra enredado.

 

Paternidade e potência — um caso na literatura

Para ilustrar essa discussão, toma-se a obra de Karl Ove Knausgard. Em seu projeto literário Minha luta, dividido em seis volumes, o escritor norueguês trata episódios de sua vida elaborando remotas lembranças da infância até obscuros pensamentos e preconceitos, a ponto de promoverem um inevitável julgamento da parte de seus leitores.

Para os propósitos do presente artigo, os dois primeiros volumes mostram-se mais significativos, contribuindo para que o elemento obsessivo seja observado na trajetória do escritor/personagem. Em A morte do pai, Knausgard centra a narrativa na figura paterna (KNAUSGARD, 2015a). Em seu relato, tem-se um homem distante, incompreensível para os filhos e até mesmo para a mãe. Tirânico, isola-se no alcoolismo. Não há, ao longo do livro, descrição de momentos agradáveis vividos com os dois filhos — Knausgard era o caçula. Pelo contrário, pois a convivência mútua é sempre relatada a partir de uma sufocante tensão.

Curioso é que os castigos sempre esperados de um pai autoritário raramente se mostram presentes, denotando a exploração do simbólico da parte do autor da obra. Ao contrário, tem-se sempre a apresentação quanto ao que aconteceria se ele o descobrisse, com um excesso de cuidado para que isso não ocorresse — parece mais uma obsessão pelo castigo do que a sua realidade.

Em contrapartida, Knausgard escreve apresentando-se como um jovem repleto de frustrações, como as pelo seu péssimo desempenho como músico da banda de rock da qual faz parte, por ser um escritor e redator medíocre e descompromissado, pelo excesso de timidez e fracasso nas tentativas de relacionamento com as meninas — a perda da virgindade tarda ainda por muitos anos —, pela dificuldade com amizades, entre outras. Isso se dá principalmente quando se compara constantemente ao seu irmão mais velho, Ingve, descrito como bastante independente. Destaca-se que nunca elogia o seu próprio trabalho — embora louve os de muitos outros colegas.

Como o título do primeiro volume indica, o livro é marcado pela morte de seu pai. Em sua descrição, isso se dá de forma agonizante, em decorrência do álcool. A sua decrépita situação é ilustrada ainda pelo relato de um episódio em que seu pai, dentro de casa, quebra a perna e opta por permanecer ferido no chão, bebendo, a pedir por socorro.

Nota-se como, diferentemente do que se observa em O homem dos ratos, o pai não é digno de admiração, mas, sim, de repulsa — algo comum na neurose obsessiva, a existência de algo equivalente a esse polo tirania-admiração. Castrador, funciona como um constante juiz, e o neurótico, sabendo de sua condição limitadora, ainda assim, em seu imaginário, opera sempre em busca da aprovação desse Outro, figura austera provida de severidade, que, certamente, não virá.

Um outro amor, o segundo volume, se inicia com a descrição de seu divórcio com Tonje e sua mudança para Estocolmo, onde conhece Linda Boström, com quem viria a ter três filhos. É aqui, após narrar a morte do pai, que Knausgard apresenta a felicidade da paternidade, alterando o tom de sua narrativa, mesmo ao exibir as dificuldades que enfrenta na conciliação da família com o trabalho (KNAUSGARD, 2014).

À sua chegada à Suécia, tem-se um reconhecimento insignificante do trabalho como escritor, pelo qual evidencia um grande desejo outrora cerceado pela figura do Pai. No começo do livro, antes do nascimento de sua primogênita Vanja, muitos dos pensamentos obsedantes ainda se fazem presentes, como no caso em que, no encontro com outros escritores, apaixonado por Linda, tendo dificuldades com a possível aproximação, faz, diante do espelho, diversos cortes em seu rosto. O fato, naturalmente, chama a atenção dos colegas, que não entendem o motivo pelo qual fez aquilo.

Com a paternidade, Knausgard volta-se para a organização da casa, chegando a executar trabalhos braçais na reforma do novo lar para receber Vanja. A procrastinação para a escrita aos poucos se desvanece, e até se isola da esposa grávida para confeccionar um grande trabalho, cujo prazo para envio da versão final expirava. Esse trabalho viria a lhe credenciar maior reconhecimento na escrita, abrindo as portas para a posterior redação de Minha luta.

Mesmo na consumação da paternidade, traços de sua neurose ainda se fazem presentes. Para ilustrar esse ponto, basta trazer algumas de suas posturas ante Vanja, como a obsessão pela limpeza da filha na hora de comer — uma característica de seu pai no tratamento com os filhos que o autor deixa bastante demarcado.

Interessante como, à leitura da obra, nota-se exatamente o preceito assinalado por Gazolla, quando enuncia o teatro do obsessivo que roteiriza, dirige, assina a cenografia, atua, ilumina e assiste ao seu próprio espetáculo. O Pai simbólico de Knausgard permanece mesmo após a sua morte, que, em seu primeiro livro, da maneira como foi descrita, funciona como um modo de edulcorar a sua tirania. O totem, na configuração enunciada por Freud, ali permanece, castrando-o. Uma castração apenas amenizada pela paternidade, ao transferir a sua libido para a produção literária, abrindo caminho para a execução da escrita. Após a paternidade, até mesmo trabalhos julgados como enfadonhos e difíceis, como o de revisão de tradução, tornam-se toleráveis e prazerosos, segundo os dizeres do próprio autor.

Diante disso, a remissão à sua infância e adolescência, no terceiro volume, se dá de uma forma muito mais amena ao permitir a aproximação com a arte (KNAUSGARD, 2015b). Aqui não se trata mais de desabafo, tal como no primeiro volume de Minha luta. Knausgard escreve sobre a escrita e sua vida como escritor, outrora cerceado pela figura do Pai (KNAUSGARD, 2017).

Se, como diz Lacan (1966/2021), o obsessivo compensa a degradação do pai ao buscar preencher o buraco simbólico por ele deixado com o mito, com a fantasia, pode-se dizer que Knausgard segue essa trilha com a sua escrita. Em Homem dos ratos, conjuga-se a imagem narcísica com o real difícil de suportar. O paciente de Freud fica, então, preso às circunstâncias de sua própria fantasia, em que seu pai é sustentado em um lugar inalcançável (FREUD, 1909/2020). Minha luta poderia seguir o mesmo caminho se se permanecesse apenas na triste morte do pai. Entretanto, Knausgard vai por outra direção por meio da paternidade. O desejo de ser pai é manifestado em sua primeira noite com Linda, insinuando uma saída de seu lugar de vigiado, julgado pelo Pai (KNAUSGARD, 2014, 2015a).

Nem de longe deseja-se esgotar essa temática. A ideia fundamental é a de apresentar contribuições que possam direcionar a uma discussão mais profunda sobre a paternidade e o lugar por ela ocupado na psicanálise. Tomou-se, aqui, a neurose obsessiva como referência.

 


Referências 
FREUD, Sigmund. (1924). A dissolução do complexo de Édipo. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 16. Companhia das Letras, São Paulo, 2018.
FREUD, Sigmund. (1912-1913). Totem e tabu. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11. Companhia das Letras, São Paulo, 2019a.
FREUD, Sigmund. (1920). Além do princípio do prazer. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 14. Companhia das Letras, São Paulo, 2019b.
FREUD, Sigmund. (1909). Observações sobre um caso de neurose obsessiva (“O homem dos ratos”, 1909). In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 9. Companhia das Letras, São Paulo, 2020.
GAZZOLA, Luiz Renato. Estratégias na neurose obsessiva. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2015.
KNAUSGARD, Karl Ove. Um outro amor. Companhia das Letras, São Paulo, 2014.
KNAUSGARD, Karl Ove. A morte do pai. Companhia das Letras, São Paulo, 2015a.
KNAUSGARD, Karl Ove. A ilha da infância. Companhia das Letras, São Paulo, 2015b.
KNAUSGARD, Karl Ove. A descoberta da escrita. Companhia das Letras, São Paulo, 2017.
LACAN, Jacques. (1957-1958). Os três tempos do Édipo. In: LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
LACAN, Jacques. (1966). De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses. In: LACAN, Jacques. Escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2021.



A experiência analítica de testemunhos de perda no hospital

Marina del Papa
Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG e aluna do IPSM-MG
marina.delpapa09@gmail.com

Resumo: Este trabalho visa a transmitir o relato de uma experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital. Parte-se da premissa de que, quando um sujeito busca uma instituição hospitalar, ele o faz, a princípio, pela urgência biológica e traumática de seu corpo; porém, de maneira concomitante, pode-se verificar uma atualização psíquica e singular de sua relação com a castração e o real. A prática psicanalítica passa fundamentalmente por algo desta ordem: um testemunho de perda, seja em sua construção teórico-clínica, seja na travessia do fantasma no final de uma análise. Trabalhar em um hospital traz a possibilidade de não só revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como também fazer ressoar a potência da presença do analista com seu corpo, enquanto via transferencial de testemunho para o sujeito.

Palavras-chave: Psicanálise; testemunho de perda; hospital.

THE PSYCHOANALYTICAL EXPERIENCE OF TESTIMONIALS OF LOSS IN THE HOSPITAL

Abstract: This work aims to convey the report of a clinical experience guided by psychoanalysis within a hospital. It is assumed that, when a subject goes to a hospital, he does so, at first, because of the biological and traumatic urgency of his body; however, at the same time, it is possible to verify a psychic and singular update of his relationship with castration and the real. The psychoanalytic practice fundamentally passes through something of this order: a testimony of loss, whether in its theoretical-clinical construction, or in the crossing of the phantasm at the end of an analysis. Working in a hospital brings the possibility of not only revisiting important concepts for clinical listening, but also echoing the power of the psychoanalyst’s presence with his body, as a transferential path of testimony to the subject.

Keywords: Psychoanalysis; testimony of loss; hospital.

CAROLINA BOTURA. CASA PARA UM ANIMAL

 

Em vista das discussões levantadas durante o segundo período de formação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, as quais se baseavam na prática do analista em instituições, e da temática proposta para o Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “Analista: Presente!”, vi-me interessada em escrever sobre minha experiência de trabalho dentro de um hospital de Belo Horizonte (MG). O fragmento de caso que compartilho a seguir tornou oportuna a retomada de conceitos importantes da psicanálise, como a localização subjetiva e a transferência, e, igualmente, abriu margem para uma reflexão sobre a presença do analista como via de testemunho, posição esta que torna possível um giro a partir do qual o sujeito pode avançar sobre seu dito e sua implicação com a perda.  

O caso Rubens

Rubens era um senhor de 76 anos para o qual foi requisitada assistência psicológica devido à angústia da equipe médica que o tratava, que não conseguia realizar o diagnóstico de sua doença. O que se sabia desse paciente é que ele sofria de algo relacionado ao pâncreas, embora isso não ficasse claro nos exames tumorais.

Esse sujeito não recebia visitas. Era educado com a equipe, mas bastante solitário. Acompanhei-o por cinco meses, até o momento de sua morte. Boa parte desse período — quatro meses exatamente — se destinou à definição de seu diagnóstico. Sempre o encontrava deitado; nisso, sentava-me a seu lado e buscava investigar sua história. Ele falava muito pouco sobre si e, por isso, pude colher apenas poucos dados: “fui diagnosticado com bipolaridade muitos anos atrás”, “perdi uma filha quando ela era criança por um câncer”, “tenho filhos, mas não são próximos” e “um casamento perdido”.

O paciente sempre interpunha à continuação de sua história queixas de dor. Revirando-se na cama, ele dizia das dores que tinha no corpo. A propósito, fazia uma descrição detalhada delas. Permaneci acompanhando-o, sentando-me ao lado de sua cama, na presença constante de suas queixas. Seu corpo não mais respondia a uma série de funções. Houve dias em que apenas o acompanhei em seu silêncio. Aliás, por alguns meses, essa foi a forma de acompanhamento que pude ofertar: uma presença e uma disponibilidade de escuta, indo a seu leito quase diariamente.

Depois de alguns meses, durante uma sessão, teve início o giro do caso. Nesse dia, Rubens afirmou sentir muita dor. Ele mal conseguia se movimentar no leito, contorcendo-se agoniado e com febre, o que o fazia ter calafrios. Ele, então, sorriu para mim e disse: “Que profissãozinha ruim a sua, hein?! Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Eu o respondi dizendo: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. O paciente tremia de frio. Em vista disso, levantei-me e o cobri com o cobertor. Nesse momento, ele demonstrou espanto com meu gesto, agradecendo-me em seguida.

Após essa sessão, ocorreram algumas mudanças com Rubens: ele passou a se sentar na cama para os atendimentos, dando amostras de que um sujeito começou a se presentificar ali. Outro modo de dizer se instaurou. O paciente pôde construir uma elaboração sobre um momento traumático de sua vida, que foi a perda de sua filha: “Briguei com tudo e todos”. Ele considerava justa sua solidão: “Fiz mal a meus filhos e minha esposa; é natural que não venham. Eu causei tudo isso, fiz coisas muito erradas. É justo que eu morra sozinho, mas não gostaria de morrer com dor. […] Está perdido, não tem mais o que ser feito”. Cortes, interpretações, desconstruções e conclusões foram sendo produzidos pelo paciente. Outra elaboração foi sobre como ter uma morte mais digna dentro das coisas que ele fez na vida e de outras que ele perdeu, sem possibilidade de restauração. Em uma das sessões, já com um sujeito instaurado, pude dizer a ele: “Hoje você trabalhou”. Nisso, ele me respondeu: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”.

Rubens veio a falecer pouco tempo depois. Como ficou acordado pela equipe médica após o diagnóstico de câncer no pâncreas, ele não seria submetido a tratamentos com poucas chances de êxito, tendo sido realizado apenas um paliativo. Juntamente à equipe, foi possível colocar em jogo a posição desse paciente: ele não poderia evitar a morte, mas poderia morrer sem grandes dores. Essa foi a ética possível para esse sujeito, que pôde realizar algum trabalho sobre suas perdas.  

Considerações iniciais

Quando oferecemos um espaço de escuta, como no caso de Rubens, algumas vezes nos deparamos com sujeitos em uma posição apagada, posição essa mais voltada à descrição corporal dos sintomas e a uma verificação queixosa da manifestação destes. Digo algumas vezes porque entendo que a maioria dos casos não é assim. Nesse sentido, o primeiro ponto que considero importante destacar para compreender a experiência de um testemunho de perda é a presença do analista.  

Presença como testemunha

Clotilde Leguil (2022) escreveu, no boletim extra A presença do psicanalista como testemunha de perda, que a presença do analista é articulada por Lacan não tanto a uma ausência, mas a uma perda. O fato de o analista estar ali com seu corpo, com sua voz, com sua respiração no mesmo lugar em que está o analisante — este também com seu corpo e com sua angústia — tem uma função decisiva. O corpo do analista em sua modalidade de presença exerce uma função de testemunha daquilo que se perde. O surgimento do inconsciente se produz no próprio modo daquilo que aparece e depois desaparece, no modo do que se dá a conhecer e depois se deixa esquecer, no modo do que estava lá, mas que já não está mais. A autora acrescenta que o inconsciente se manifesta como o que se perde, como aquilo que apenas é encontrado, que já está perdido, ganhando consistência se, e somente se, houver uma testemunha de seu surgimento.

Depreendo, do fragmento supracitado, a importância da dimensão da presença, isto é, a importância de manter constantes as idas, de convocar esse sujeito a falar e, mais do que falar, de acompanhar, em meio a seu dito, as dores, as angústias e os odores do corpo: em outras palavras, estar ao lado daquele corpo. A sessão que ocorre como divisor de águas, como ponto de mutação de um sujeito que descrevia suas dores para outro sujeito, que inicia um trabalho analítico, é aquela que tem como marca a constatação de Rubens: “Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Essa é uma indicação passível de ser compreendida como testemunho? O texto de Clotilde Leguil nos leva a recordar da terminologia lacaniana testemunha para abarcar a presença do analista. Lacan (1964) ressalta que, desde o início da psicanálise, quando Freud trabalha a estrutura do inconsciente e instaura uma prática, esse é um campo que, por natureza, se perde. É aí que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda.

Compreendo, a partir disso e tendo acompanhado Rubens por quatro meses, que existe uma sustentação em suportar o corpo real enquanto presença. Enquanto orientação clínica, aposta-se que exista um sujeito que se instaura pela perda. É por essa orientação, não desassociada do ato de suportar o corpo e sua angústia, que se pode dizer: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. Dessa forma, outro elemento indispensável para essa reflexão é a transferência.

O segundo momento do fragmento, em que o paciente inicia seu trabalho e uma abertura subjetiva se instaura, ele nomeia “de amor”: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”. Isso demonstra que a transferência se instaura em uma constatação de localidade subjetiva com o Outro, a qual não seria viável sem a presença da localidade enquanto presença. Assim, como encontramos na orientação lacaniana, a transferência vinculada a uma presença é necessária (LACAN, 1964).

Por fim, tendo sido instaurados esses elementos para Rubens, verifica-se uma ultrapassagem do dito para um sujeito com um inconsciente, pois, quando avançada essa constatação de presença, o paciente se coloca a trabalhar, relacionando a perda traumática de sua filha, que morreu de câncer quando era criança, a um câncer descoberto em estágio avançado, dizendo do trauma que o marcava por ter presenciado a hemorragia no corpo da menina. Rubens constata em sessão que, após a morte da filha, ele se colocou em uma posição desenfreada na vida, enquanto sujeito disposto a perder todo o resto: o casamento, os filhos, o dinheiro, o emprego, nada mais lhe importava. Próximo de morrer, ele pôde julgar a ausência de alguém.

Sendo assim, levanto o último elemento da reflexão: para que haja o testemunho do analista, é necessária a localização subjetiva do sujeito com seu inconsciente; é nesse momento que o que está em jogo não é mais apenas um espaço de escuta, mas, sim, uma experiência analítica. Só existe um testemunho. Se existe um sujeito aberto a essa experiência, é necessária a presença de um analista que queira colocá-lo a trabalho.  

A localização subjetiva

O analista, como testemunha de perda, testemunha, na presença de um sujeito, quando este aparece ou é convocado aparecer. O sujeito surge, como diz Lacan (1966), para além de seus ditos, sendo implicado pela demanda que ele apresenta. Isso equivale a um sujeito com um sintoma que ultrapassa o diagnóstico médico. Como mencionado por Lacan, trata-se de um sintoma como enigma para o sujeito que tem uma fantasia — essa seria uma condição mínima definida como instrumento.

Miller (1997), em Lacan elucidado, nos orienta exatamente sobre essa diferenciação quando toca o método lacaniano para que possa se apresentar como uma análise: o mecanismo dos ditos é falso, pois este não vale mais que o mecanismo da psicologia do eu. A localização subjetiva consiste em distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito. É necessário sempre inscrever algo, com um índice subjetivo do dito, o que verificamos no mal-entendido, naquilo que o paciente apresenta como uma verdade absoluta ou no que é predominantemente falso, no que ele deseja mas teme, ultrapassando o sentido de um dito.  

Considerações finais

A partir dessa experiência, reflito sobre a importância da presença de uma orientação psicanalítica nas instituições. A presença e a conduta dessa orientação implicam uma aposta no inconsciente e em sua abertura. Para isso, é necessário fazer presença, às vezes, com as palavras, outras, com o corpo, mas sempre apostando em uma possibilidade singular para cada sujeito e que este possa se ouvir e se implicar para além do que é dito. Isso ultrapassa qualquer protocolo hospitalar, incluindo tempo de sessão, quantidade de atendimentos por dia, o que o plano de saúde sugere etc. Não se trata de nada disso. É uma aposta em oferecer uma experiência de testemunho, elevando o sujeito à maior dignidade possível: a de ser sujeito de sua própria história.

 

 


 Referências
LACAN, J. (1964). O seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. (1966). Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LEGUIL, C. A presença do psicanalista como testemunha de perda. 2022. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
MILLER, J.-A. Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.



Almanaque On-line – Agosto/2023 – Nº 31

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

Giselle Moreira

Apresentamos a 31ª edição da revista Almanaque On-line, que tem como eixo temático “A clínica universal do delírio”, em consonância com o argumento da próxima Jornada da EBP-MG – O que há de novo nas psicoses… ainda – e do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que acontecerá em fevereiro de 2024 sob o título Todo mundo é louco.

Os textos que compõem esta edição marcam um contraponto a uma perspectiva despatologizante que busca eliminar o real do sinthoma. A clínica universal do delírio configura, por sua vez, uma orientação política da psicanálise e parte da leitura lacaniana de que os discursos não são mais que defesas contra o real, o que permite deduzir, nesse caso, que ninguém é normal: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31).  (Leia mais)

TRILHAMENTOS

Schreber, ainda contemporâneo

Sérgio Laia

Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”. (Leia mais)


 

Todo mundo é louco

Frederico Zeymer Feu de Carvalho

Texto de explicitação do aforismo lacaniano “todo mundo é louco”, tema do congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2024, destacando seu contexto de enunciação, ligado ao impossível de se ensinar, e o último ensino de Lacan, do qual esse aforismo é uma bússola. (Leia mais)


 

O ordinário do gozo, fundamento da nova clínica do delírio

Dominique Laurent

A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária. (Leia mais)


 

“Folitiquement” incorreto

Pascale Fari

O significante “loucura” não é mais admissível em psiquiatria. O psiquismo tem sido apagado, o qualificativo “mental” se tornou uma relíquia incômoda e o que permanece é simplesmente “a doença”. Diante do sufixo-mestre atual, neuro, o essencial não é mais o que o paciente tem a dizer, mas sim que ele engula a coisa. O cérebro é o objeto primordial dessa doença, a máquina é seu modelo original. É a psicanálise que, por sustentar a dimensão da subjetividade, constitui o obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico. (Leia mais)


 

Clínica psicanalítica do delírio

Laurent Dupont

Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”. (Leia mais)

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista Sérgio de Campos

No final do volume 2 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses – volume este intitulado “As psicoses ordinárias” (CAMPOS, 2022a) – você cita Lacan quando ele afirma, a propósito da religião, que a psicanálise não triunfará: ela sobreviverá ou não. Podemos ampliar a questão da sobrevivência da psicanálise no que diz respeito ao que temos nos dedicado, atualmente, no Campo Freudiano, a saber, à problemática da despatologização… (Leia mais)

ENCONTROS

A despatologização lacaniana e a outra

Francesca Biagi-Chai

A autora examina a concepção de despatologização, apresentando os argumentos que justificam a oposição já apresentada no título do texto: a lacaniana e a outra. Se a autora afirma que a instituição lacaniana despatologiza, é porque está concebida segundo a topologia moebiana, regida pelo discurso e pela clínica. A despatologização “selvagem” permite equivaler “o sentimento de cada pessoa” à sua realidade e essa deve, portanto, ser reconhecida como tal. Evidencia-se, assim, a evacuação do inconsciente e, igualmente, do sintoma. (Leia mais) 


Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma

Philippe la Sagna

Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele. (Leia mais)

PRELÚDIOS

O método psicanalítico: de Freud a Lacan e retorno

Paula Pimenta

Este artigo se propõe a apresentar em detalhes o texto de Miller (1997), intitulado “O método psicanalítico”, e o texto quase homônimo de Freud (1904[1905]/2017), intitulado “O método psicanalítico freudiano”. O percurso a ser feito partirá do texto de Freud, passando pelo de Miller e retornando ao de Freud com a intenção de promover uma interlocução entre eles. (Leia mais)


Uma leitura do texto freudiano “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”

Cristiana Pittella

A partir de uma leitura de orientação lacaniana do texto em que Freud procura transmitir o método psicanalítico, depreende-se a importância da formação do psicanalista para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise. (Leia mais)


 

Inventar a própria maneira de ler

Márcia Mezêncio

Este artigo traz a leitura, a contextualização e o comentário acerca do artigo de Freud intitulado “Sobre o início do tratamento”, publicado em 1913 na série que ficou conhecida como Escritos técnicos, e desdobra algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise, remetidas ao momento atual. (Leia mais)


 

Uma introdução ao amor transferencial

Renata Mendonça

Este artigo apresenta uma releitura de “Observações sobre o amor transferencial” (1915[1914]) para abordar as indicações de Freud sobre o método psicanalítico, incluindo no debate também alguns autores de nossa época, como Lacan e Miller, mostrando o quanto o texto freudiano é contemporâneo e necessário à clínica psicanalítica. (Leia mais)


 

Lembrar, repetir, perlaborar

Lucia Maria de Lima Mello

A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa. (Leia mais) 


 

Do sentido à satisfação do sintoma

Kátia Mariás

O texto aborda as Conferências XVII e XXIII de Freud sobre o sentido dos sintomas e sobre os caminhos da formação dos sintomas. Nessas conferências, ao partir do sentido – Sinn – para a significação, a referência – a Bedeutung –, Freud vai do sentido ao gozo do sintoma. (Leia mais)


 

Construções e reminiscências

Luciana Silviano Brandão

A autora faz um percurso ao longo do texto “Construções em análise”, trabalha os conceitos de recordações ultranítidas, verdade histórica, rememoração e reminiscência. Sua hipótese é a de que a verdade histórica se equipara conceitualmente à reminiscência. (Leia mais)

PÓLIS

A escola, o instituto e a ética das consequências – Conferência proferida na atividade Para que serve o Instituto? – abril/2023

Jésus Santiago

No presente texto, o autor apresenta a forma de funcionamento da Escola e do Instituto a partir da ideia de que o princípio de orientação para a prática clínica é o mesmo que para a prática institucional dedicada à formação analítica. O modo como a psicanálise apreende as coisas do mundo diz mais de uma dimensão ética do que propriamente epistêmica – trata-se de uma dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do inconsciente. O autor, faz, então, uma leitura sobre os ambientes psicanalíticos contemporâneos e sobre a diferença entre a Escola e o Instituto. (Leia mais)

INCURSÕES

Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses  

Sérgio de Castro

O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino e determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade. (Leia mais)


 

O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares  

Alejandra Glaze

Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. (Leia mais)


 

Alocução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano

Tereza Facury

A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos. (Leia mais)


 

A criança, seus delírios e os delírios de seus pais

Suzana Faleiro Barroso

A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai. (Leia mais)


 

Supereu solúvel no álcool? 

Miguel Antunes 

A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo. (Leia mais)

DE UMA NOVA GERAÇÃO

A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo 

Paulo Henrique Assunção Rocha 

No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. (Leia mais)


 

Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea? (Leia mais)


 

Do dom de Mauss ao inominável da pulsão

Laydiane Pereira de Matos

Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. (Leia mais)




Editorial – Almanaque On-line – Agosto/2023 – Nº 31

Giselle Moreira

Imagem: Renata Laguardia

 

Caros leitores,

Apresentamos a 31ª edição da revista Almanaque On-line, que tem como eixo temático “A clínica universal do delírio”, em consonância com o argumento da próxima Jornada da EBP-MG – O que há de novo nas psicoses… ainda – e do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que acontecerá em fevereiro de 2024 sob o título Todo mundo é louco.

Os textos que compõem esta edição marcam um contraponto a uma perspectiva despatologizante que busca eliminar o real do sinthoma. A clínica universal do delírio configura, por sua vez, uma orientação política da psicanálise e parte da leitura lacaniana de que os discursos não são mais que defesas contra o real, o que permite deduzir que, nesse caso, de perto ninguém é normal[1]: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31).

O universal se coloca no centro da nossa temática, mas seria essa orientação um falso universal a ser lido à luz da lógica do não-todo, ou seja, do um a um?

Abrimos a revista com Trilhamentos, rubrica composta por textos que traçam uma orientação epistêmica para essas questões. De início, contamos com a aula inaugural, proferida por Sérgio Laia, que abriu as atividades do IPSM-MG neste último semestre. Seu texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, ao passo que localiza como a fraturada Ordem do Mundo por ele experimentada se realiza, em nossos dias, para todos.

Na sequência, Frederico Feu desdobra, passo a passo, como a clínica universal do delírio está sob o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa a falta de um significante na linguagem capaz de nomear o gozo. A partir desse ponto, o autor lê o aforismo “todo mundo é louco” como concernente a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica. Dominique Laurent localiza que a norma neurótica, constituída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo, mas que hoje as normas se multiplicam. A autora pondera que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, o que leva a uma “subversão” das diferenças feitas até então entre neurose e psicose. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma que constitui um avanço em uma clínica do inclassificável. O texto de Pascale Fari advém de uma discussão de caso em uma instituição e parte do silêncio embaraçado da equipe após a sua intervenção: “Ele está completamente louco nesse momento”. Fari interpreta esse silêncio localizando que a “loucura” não era mais admissível, nem mesmo no discurso psiquiátrico. O significante se tornara um tabu e, portanto, a autora se interroga quais seriam as consequências desse apagamento da loucura. Finalizando Trilhamentos, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o “todo mundo é louco” lacaniano como uma tentativa de cura diante do real: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.

Na rubrica Encontros, Francesca Biagi Chai opera uma oposição entre o que nomeia ser uma “despatologização selvagem”, que desconhece a loucura, e a “despatologização lacaniana”. Despatologizar, no sentido lacaniano, não consistiria em aplanar a clínica, mas, ao contrário, em dar ao gozo o seu valor, na medida em que ele sempre possa ser interrogado. Após o texto de Francesca, segue a conversação que ocorreu entre a autora, Jacques-Alain Miller, La Sagna e Anaëlle. Por sua vez, Philippe La Sagna irá abordar as consequências da crise do DSM-V e o advento do sistema RDoC, projeto norte-americano que visa formalizar um novo sistema diagnóstico que alinha suas classificações às descobertas em genômica e neurociências. Ao texto também segue a conversação, desta vez entre o autor, Hervé Castanet e Angèle Terrier

Como uma novidade, a partir desta edição a Almanaque On-line contará com a rubrica Pólis, destinada a, eventualmente, divulgar artigos concernentes às questões éticas e políticas que se impõem às instituições psicanalíticas a serviço do discurso analítico. Inaugurando essa proposta, contamos com a conferência proferida por Jésus Santiago no IPSM-MG na qual ele parte da ideia de que o princípio de orientação de uma prática institucional dedicada à formação do analista é o mesmo da prática clínica: trata-se do princípio de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência. Portanto, nos alerta sobre o risco de se assumir um viés especulativo e de incorporar de forma apressada os significantes-mestres que circulam como resposta ao mal-estar da civilização. Jésus encerra sua fala diferenciando a Escola em relação ao Instituto, ao passo que sustenta, para ambos, a “ética das consequências” em contraposição a uma “ética da boa intenção”.

O entrevistado desta edição é Sérgio de Campos, que nos traz direcionamentos sobre a política e a clínica das psicoses, após recente publicação dos dois volumes de seu livro Investigações lacanianas sobre a psicose. A partir das questões a ele endereçadas, Sérgio localiza como a despatologização – sob uma ótica que espera que todo mundo possa ser normal – serve também para recobrir a experiência da segregação. No que toca à clínica das psicoses, recomenda a prudência e localiza como a prática da “ajuda-contra” tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio sem a pretensão de erradicá-lo. Por fim, o paradigma da esquizofrenia é abordado para lançar luz à ética irônica que permeia a clínica universal do delírio: “há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo”.

Na rubrica Prelúdios, dedicada a publicar os textos advindos das 59ª Lições Introdutórias, podemos percorrer o trabalho de uma leitura lacaniana e milleriana em torno dos fundamentos clínicos de Freud. Aqui, as autoras recorrem a vinhetas clínicas e, assim, conferem atualidade aos textos freudianos que lhes servem de base para as apresentações. Iniciando a rubrica, Paula Pimenta propõe uma interlocução entre o texto freudiano “O método psicanalítico”, de 1905, e as conferências de Miller de título homônimo proferidas em Curitiba em 1987, apresentando pontos comuns e outros díspares, demarcados pela inserção temporal própria a cada um. O texto de Cristiana Pittella sustenta vivamente a questão: o que é um psicanalista? A autora trata do ato de leitura em jogo na interpretação analítica, assim como do trabalho de reescrita que compete ao analisante. Márcia Mezêncio aborda questões relacionadas ao começo de uma análise e, em um movimento de detalhar a técnica, esclarece a ética concernente à prática analítica. Renata Mendonça faz, em seu texto, um percurso sobre a transferência, destacando que “o amor está presente, não foi rechaçado ou refutado, mas incluído no tratamento”. Lúcia Melo remete os três verbos que dão título ao texto freudiano – “Lembrar, repetir, perlaborar” – aos conceitos fundamentais formalizados por Lacan no Seminário 11, em uma leitura permeada pelas três consistências: Simbólico, Imaginário, Real. Kátia Mariás percorre o caminho do sentido dos sintomas à satisfação, trajeto que revela a íntima conexão entre gozo e defesa. Finalizando a rubrica, Luciana Silviano Brandão retoma a noção freudiana de “verdade histórica” para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana – a reminiscência e a rememoração – e, assim, faz avançar questões pertinentes à alucinação.

Em Incursões, apresentamos os trabalhos dos núcleos de nossa Seção Clínica. Sérgio de Castro apresenta, com clareza, elementos da primeira clínica de Lacan, em que se destaca o ordenamento simbólico sustentado pelo Nome-do-Pai. É, então, a partir das mutações desse ordenamento e do advento de uma “ordem de ferro”, que Castro irá indicar questões relativas à “norma psicótica” em sua extensão contemporânea. Alexandra Glaze pondera que se, por um lado, sempre houve algo de delirante nos assuntos familiares, por outro, recorta uma especificidade atual: um delírio ligado a um imaginário desenfreado. Considerando as modificações da ordem familiar, a autora faz uma aposta clínica: “construir um novo laço que aloje aquilo que se apresenta como heterogêneo a esse mesmo laço”. Em consonância, Tereza Facury demarca qual o lugar da criança numa organização social atravessada por normas que se ampliam com a progressão da ciência, e coloca a questão de saber como nós psicanalistas responderemos, então, à segregação trazida à ordem do dia como efeito da universalização. Suzana Barroso trata sobre a repercussão do último ensino de Lacan, condensado no aforismo “todo mundo é louco”, para a clínica da psicose infantil. A partir de uma vinheta clínica, a autora demarca orientações para uma prática que priorize intervenções destinadas a promover alguma negativização do gozo, para que se possibilite o laço social. Encerrando essa rubrica, Miguel Antunes aborda a clínica da toxicomania, transformando a famosa frase “o supereu alcoólico é solúvel no álcool” em interrogação. Para desdobrar essa questão, o autor fará um percurso sobre a noção de supereu de Freud a Lacan, destacando, para além de sua face reguladora, sua vertente voraz e de imperativo de gozo.

De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise. Paulo Rocha faz avançar aspectos pertinentes à clínica da neurose obsessiva e sua “falsa normalidade” a partir do texto literário O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, obra que também foi adaptada para o cinema. Edwiges Neves localiza mudanças que se verificam na prática analítica no que concerne à transferência e coloca como pergunta se a psicose ordinária poderia ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea. Fechando os textos que compõem esta edição da Almanaque, Laydiane de Matos aborda o conceito de dom na obra do antropólogo Marcel Mauss, articulando à noção de objeto em Freud e Lacan, para tratar a função do assentimento no que concerne à hiância entre o gozo e a lei do Outro. A autora, por fim, abre a questão sobre como podemos ler os modos de subjetividade nos tempos atuais em que o assentimento se declina, o Outro não existe e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos ofertados.

Esta edição foi composta com as belas imagens cedidas pelas artistas Sofia Nabuco e Renata Laguardia, que não apenas ilustram, mas reverberam algo entre os textos, a quem muito agradecemos.

Renata Laguárdia vive e trabalha em São Paulo. É graduada em Artes Visuais com habilitação em pintura pela UFMG e tem mestrado na École Européenne Supérieure de l’Image. Já participou de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Renata faz formação em psicanálise no Corpo Freudiano, em São Paulo.

https://www.instagram.com/renatalaguardiaxavier/

Sofia Nabuco é técnica em Artes Visuais, ilustradora e tatuadora. Residente da capital mineira há 10 anos, trabalha com aquarela e ilustrações digitais. Tem publicações nas revistas Laudelinas e OuroCanibal, além dos livros Aleatórias, em coautoria com Constança Guimarães, e O passeio da Larissa, de Diogo Rufatto.

https://www.sofianabuco.com/

Por fim, agradecemos aos autores que contribuíram com esta edição e à equipe de publicação, pela alegre parceria e pelo cuidado na pesquisa, tradução e revisão dos trabalhos.

Aos nossos leitores, fica o convite para a apreciação dos textos!


Referência
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978)
[1] Referência à música “Vaca Profana”, composição de Caetano Veloso



Schreber, ainda contemporâneo[1]

Sérgio Laia
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
laia.bhe@terra.com.br

Resumo: Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”.

Palavras-chave: psicose; emasculação; imaginário; real; ordem simbólica; Nome-do-Pai.

SCHREBER, STILL CONTEMPORARY 

Abstract: This text aims to demonstrate Schreber’s contemporaneity based on his Memory and the commentaries made by Freud and Lacan on this book. It highlights what Schreber experimented as a rupture of the Order of World, an emasculation and a resource invented and called by him as “drawing”.

Keywords: psychosis; emasculation; imaginary; real; symbolic order; Name-of-Father.

 

Imagem: Renata Laguardia

Ao propor, para Lilany Pacheco, Diretora do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), esta aula com este título, quis, de início, me servir daquele que pôde se tornar um “caso” decisivo para a clínica psicanalítica das psicoses (FREUD, 1912/2021; SCHREBER, 1903/1980) e articulá-lo à próxima Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) – Há algo de novo nas psicoses… ainda. Porém, em que uma psicose, marcada claramente pela anulação, no simbólico, desse significante ordenador fundamental que Lacan chamou de Nome-do-Pai, pode ser contemporânea deste nosso mundo perpassado muito mais por uma crítica (e mesmo uma derrocada) do patriarcado? O que o delírio schreberiano de procriação e de filiação, fortemente marcado por conotações religiosas e redentoras, pode ser contemporâneo aos nossos dias atravessados pela descrença no Pai, pelo desmantelamento dos ideais e por transformações que distanciam a família do que tradicionalmente se conceberia como sendo uma família? Por que, também, um caso assolado pela persistência de um delírio extraordinário, por alucinações auditivas e visuais, seria contemporâneo quando, em nossa clínica, as psicoses se apresentam de forma muito mais ordinária e sem essas características com que classicamente eram diagnosticadas?

Ora, a persistente contemporaneidade de Schreber já se destacaria pela permanente importância de seu texto para a clínica psicanalítica das psicoses. Assim, Schreber ainda seria contemporâneo porque se trata de um caso incontornável para cada um de nós que sustenta, com a psicanálise, tratamentos possíveis para as psicoses ou, valendo-me de um escrito de Lacan (1966/2001, p. 214), sua persistente contemporaneidade se alinha com aquela mesma de Freud pois “o texto de Schreber é um grande texto freudiano, no sentido de que, antes de ser Freud que o esclareça, é ele que ilumina a pertinência das categorias cunhadas por Freud, sem dúvida, para outros objetos”. O próprio Freud (1912/2021, p. 622) antecipa essa designação que lhe fará Lacan ao afirmar, no final de seu estudo sobre Schreber, que “na verdade, os ‘raios divinos’ de Schreber compostos por condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides são tão somente os investimentos libidinais materializados e projetados para fora, e emprestam ao seu delírio uma concordância flagrante com nossa teoria”. De fato, como um desses “outros objetos” aludido por Lacan (1966/2001, p. 214), o funcionamento do aparelho psíquico concebido por Freud não deixa de se fazer presente quando Schreber (1903/1980, p. 35) compara “a alma humana […] contida nos nervos do corpo” a “fios de linha mais finos” e, assim, por meio das impressões externas, “os nervos são levados a vibrações que, de um modo inexplicável, produzem o sentimento de prazer e desprazer; possuem a capacidade de reter recordações das impressões recebidas (a memória humana)”. A contemporaneidade de Schreber também pode ser relacionada ainda à própria contemporaneidade de Lacan (1966/2001, p. 215) pois este último ressalta que “o texto de Schreber se verifica como um texto a ser inscrito no discurso lacaniano” ao permitir-lhe “retomar o fio” que o leva à “aventura freudiana” a partir da “trincheira aberta” por sua tese de doutorado dedicada à psicose paranoica.

Publicado em 1903, sustento também que Memórias de um doente dos nervos pode ser lido como uma espécie de vanguarda para sua época e muito mais próximo de nossos dias. Afinal, entre tantas revelações realmente impressionantes, encontramos nele o relato de como um homem alemão e tradicional, Presidente da Corte de Apelação de Dresden, que se concebia como tendo “uma natureza tranquila, quase sóbria, sem paixão, com pensamento claro e cujo talento individual se orientava mais para a crítica intelectual fria do que para a atividade criadora de uma imaginação solta” (SCHREBER 1903/1980, p. 82), foi a princípio surpreendido pela ideia de como “deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito”  e, algum tempo depois, não sem resistir, a princípio, à exigência de ser transformado em mulher, acabou por consagrar seu corpo a essa emasculação para, numa copulação com Deus, poder gerar uma nova raça humana e encontrar alguma solução para os males terríveis que o atormentavam (SCHREBER, 1903/1980, p. 60, 72-78 e 175-177).

Schreber (1903/1980, p. 60) sustentava que sua aspiração inicial de ser uma mulher em uma relação sexual seria, em “plena consciência”, rejeitada com “indignação” por ele, mas acabou por considerar que ela lhe havia “sido inspirada por influências externas que estavam em jogo”. Ao abordar o quanto a emasculação de seu corpo o deixava entregue a violentos assédios sexuais promovidos por Flechsig, chega mesmo a destacar que esse seu primeiro e mais renomado psiquiatra não aparecia aí como um homem, mas em sua “qualidade de alma” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Ainda assim, não deixa de afirmar o seguinte: “pode-se imaginar o quanto toda a minha honra, o meu amor-próprio viril, bem como toda a minha personalidade moral se rebelava contra esse plano vergonhoso, quando tive certeza de ter tomado conhecimento dele” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Porém, também relata que, nessa mesma ocasião, foi “tomado por representações sagradas sobre Deus e a Ordem do Mundo, e excitado pelas primeiras revelações sobre as coisas divinas que tinha tido através da relação com outras almas” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Portanto, é a nessa excitação ou, para utilizar um termo lacaniano, é a nesse gozo que Schreber se apoia para ceder sua “honra”, seu “amor-próprio viril” e sua “personalidade moral”. E, assim, o modo como se consagra, mesmo que não sem resistência, a esse fora que lhe afeta o corpo, feminizando-o, me parece ser um marco importante de sua contemporaneidade, na medida em que vivemos hoje em um mundo onde as diferenças de gênero são em geral abordadas como meros efeitos de uma dominação histórico-social e os corpos são cada vez mais convocados a viver o que há de fluido e múltiplo em seus modos de satisfação.

Um último aspecto da contemporaneidade de Schreber, relacionado a um modo como opera com o imaginário, me surpreendeu, embora, conforme veremos, não deixe de estar associado às suas experiências com a emasculação. Assim, vou explicitar um pouco mais, primeiro, o que me permitiu, de início, declarar Schreber ainda como contemporâneo a nós e, em seguida, abordar sua experiência com o que Lacan (1958/1966, p. 571, schéma I) chamou de “gozo transexualista”. Por fim, procurarei mostrar como ele faz uso da imagem para operar com o real do gozo que lhe toma o corpo, evocando, a meu ver, o que Miller (2006-2007/2013) destacou como o imaginário no último ensino de Lacan.

Fratura, desordenamento e reconstrução

Ao concluir um Congresso da AMP intitulado A ordem simbólica no século XXI e anunciar o seguinte, Um real para o século XXI, Miller (2014, p. 22) afirma que vivemos um “desarranjo da ordem simbólica” e a “pedra angular” dessa ordem, ou seja, “o Nome-do-Pai, se trincou”, na medida em que o capitalismo e a ciência colocam radicalmente em questão as referências paternas até então vigentes. Também nos lembra que o próprio Lacan, ao longo de seu ensino, “depreciou essa função-chave” relacionada ao pai, passando a considerá-la “nada mais do que um sinthoma, isto é, a suplência de um furo” (MILLER, 2014, p. 22). Por sua vez, esse furo que o Nome-do-Pai não colmata, afeta toda espécie humana, “é a inexistência da relação sexual” porque, para os “seres vivos que falam”, há uma “carência de saber concernente à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22) e a qualquer proporcionalidade entre os corpos sexuados. A foraclusão, portanto, não é mais apenas um mecanismo específico das psicoses e que atinge, no simbólico, o Nome-do-Pai: quanto à inexistência de uma proporcionalidade entre os sexos, a essa carência de um saber capaz de regular a sexualidade humana como acontece com a dos outros seres vivos não falantes, a esse “rebaixamento do Nome-do-Pai”, a foraclusão se generaliza e experimentamos, por conseguinte, uma “extensão da categoria de loucura a todos os seres falantes” (MILLER, 2014, p. 22).

Esse abalo das referências paternas, bem como a exposição, também cada vez mais atual, desse furo relativo aos corpos humanos sexuados, fazem Miller (2014, p. 23) declarar que há “uma grande desordem no real”. Essa declaração me parece mostrar, no âmbito do que nos tem acontecido, esta “ideia-limite” (MILLER, 2014, p. 28) encontrada no último ensino de Lacan (1975-76/2007, p. 133): “o real é sem lei” . Esse desordenamento no real e esse destaque à trinca (ou à fratura) que atinge o Nome-do-Pai como significante fundamental são, como insistirei a seguir, indícios importantes do que apresento como a atualidade de Schreber.

Em seu livro, a Ordem do Mundo é definida como “uma ‘construção prodigiosa’, diante de cuja sublimidade recuam todas as representações construídas pelos homens e povos, no curso da história, sobre suas relações com Deus” (SCHREBER, 1903/1984, p. 47). Em outros termos, a sublimidade da Ordem do Mundo se eleva frente às representações divino-paternais formuladas historicamente. Mais adiante, a função da Ordem do Mundo é articulada à conservação do que é vivo, na medida em que Schreber (1903/1984, p. 81, nota 35) a concebe como a “relação legítima”, ou seja, fundada em uma lei, e “que subsiste entre Deus e a criação” convocada “à vida, dada como algo em si, através da essência e das qualidades de Deus”.

Mesmo com o que tem de sublime, vital e prodigioso, a Ordem do Mundo foi alvo de um ataque: “ocorreu […] uma fratura, estreitamente ligada” a seu “destino pessoal” (SCHREBER, 1903/1984, p. 48), e Lacan (1958/1966, p. 558) se vale dessa fratura para localizar “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. Logo, fraturada a Ordem do Mundo, nada mais fica como antes da vida do sujeito, tudo se desregula e ele sucumbe ao peso da mortificação real de seu corpo. Nesse contexto, é importante lembrar que Schreber (1903/1984, p. 49 e 227) atribuiu essa “fratura” a um “assassinato de alma” e – como “as almas eram feitas, segundo sua condição de existência, em conformidade com a Ordem do Mundo, apenas para gozar” enquanto “o homem ou outras criaturas da Terra” se dedicavam a “uma ação na vida prática” – tal assassinato faz como que uma desertificação do gozo atinja severamente todo o mundo. Evocando, então, Lacan (1960/1966, p. 819) e sua célebre citação de um poema de Valéry (1921/1984, p. 28-29), o mundo de Schreber se torna sem vida e vão, frente a essa falha que incide sobre o gozo e compromete gravemente também toda ação humana.

Especificamente para Schreber, tal comprometimento é o próprio adoecimento que, durante quase uma década, o afasta da regularidade de um convívio familiar e social, além de impedi-lo de gozar do posto vitalício, pautado em uma nomeação irreversível, definida por ordem do rei e que o consagrava como Juiz-Presidente da Corte de Apelação da cidade de Dresden. Mas essa fratura tem efeitos devastadores também sobre a própria Ordem do Mundo porque, como nos mostra a leitura que Freud (1912/2021, p. 558) faz do livro de Schreber, devido a tal lacuna, “a existência do próprio Deus parece ameaçada”, uma vez que os nervos dos seres humanos vivos […], no estado de uma excitação extrema” passam a exercer “uma atração tal sobre os nervos divinos que Deus não consegue mais se livrar deles”.

Minha questão, em termos lacanianos, é se não poderíamos ler essa fratura da Ordem do Mundo também como a própria constatação – tão contemporânea – de uma inexistência do Outro que, no entanto, não apaga a presença do Outro como corpo em nossas vidas. Nesse mesmo contexto, também indago se não haveria – nessa excitação extrema dos vivos demarcada por Schreber – uma antecipação do que hoje vivemos como uma imperiosa exigência de satisfação. Assim, a fratura da Ordem do Mundo experimentada por Schreber se realiza, em nossos dias, para todos, o que não deixa de ressoar a formulação lacaniana que Miller (2022) nos convidou a tomar como o título do próximo Congresso da AMP, em 2024: “todo mundo é louco”.

assassinato de alma – marca dessa fratura que incidiu sobre a Ordem do Mundo e desestabilizou Schreber, como ser humano, em sua ação na vida prática – envolvia “circunstâncias” que “não estão claras” para ele, relacionadas à sua vida privada e que precisaram ser excluídas do livro para garantir-lhe a publicação (FREUD, 1912/2021, p. 582). Logo, segundo Freud, esse “assassinato” poderia ter sido elucidado por fatos que estariam, por exemplo, no Capítulo III de Memórias de um doente dos nervos e que foi suprimido para que esse livro fosse publicado. Freud (1912/2021, p 583), seguindo as pistas literárias deixadas pelo próprio Schreber, particularmente aquelas do poema “Manfredo” de Byron, acaba encontrando a menção a um incesto, mas verifica que, nesse ponto, “se rompe […] o curto fio”. Logo após se deparar com tal ruptura e verificando o quanto uma suposta ligação com um incesto não se sustenta, passa a se referir à expressiva quantidade de poluções que Schreber tem no curto período quando as visitas diárias da esposa no hospital deixam de acontecer e, então, retoma a “suposição” de que “o adoecimento” teria a ver com “uma irrupção de uma moção homossexual” da qual o laço com a esposa e, também, a própria paranoia seriam uma espécie de defesa: o desejo homossexual perturbaria consideravelmente um homem como Schreber (sobretudo em sua época) e, então, a paranoia eclodiria como uma tentativa de afastá-lo dessa perturbação, embora também o abalou consideravelmente.

Freud (1912/2021, p. 584) não deixa de ressaltar que falta “um conhecimento mais preciso” da “história de vida” de Schreber para que se pudesse explicar as razões de a “irrupção da libido homossexual” ter se dado após sua nomeação como Presidente da Corte de Apelação. Ao não encontrar os dados que confeririam mais precisão ao que determinaria o “assassinato de alma” e sem conseguir qualquer acesso à presença de algum desejo homossexual recusado por Schreber antes do desencadeamento da psicose, Freud (1912/2021, p. 583) se vale do lugar que o psiquiatra Flechsig, ou seja, um homem, passou a ocupar no delírio de perseguição desse “doente dos nervos”, assim como da andropausa que, de algum modo, já poderia afetar-lhe o corpo e a disposição sexual, além dos fracassos vividos, juntamente com a esposa, com relação à geração de filhos. A figura de Flechsig, em que Freud (1912/2021, p. 589-590) chega também a localizar uma “transferência” do “anseio” vivido com relação ao pai e ao irmão com uma “intensificação erótica”, torna-se decisiva para a formulação da hipótese relativa à moção homossexual da qual a paranoia seria uma defesa:

o motivo do adoecimento foi o surgimento de uma fantasia feminina do desejo (homossexual passiva), que tomara por objeto a pessoa do médico. Contra essa mesma fantasia, ergueu-se parte da personalidade de Schreber, uma intensa resistência, e a luta defensiva, que talvez tivesse podido igualmente consumar-se em outras formas, escolheu, por motivos que desconhecemos, a forma do delírio de perseguição. Aquele por quem o doente antes ansiava agora se tornava o perseguidor, e o conteúdo da fantasia de desejo, o conteúdo da perseguição. (FREUD, 1912/2021, p. 586)

Por sua vez, Lacan (1958/1966, p. 558) também associa o assassinato de alma a “um dano” que Schreber consegue “desvelar apenas em parte”. Porém, o que foi retirado para viabilizar a publicação do Memórias de um doente dos nervos  (cujo Capítulo III serve como referência-vazia por se encontrar literalmente suprimido) passa a ser lido como a instalação, no livro mesmo, do que foi assassinado, ou seja, da anulação, em uma psicose, do que Lacan (1969/2001, p. 373, grifos nossos) chama de transmissão […] de uma constituição subjetiva, ou seja, a presença mesma da foraclusão se demarca no corpo textual de um livro e, por isso, Lacan (1958/1966, p. 559) se empenha para mostrar, “na forma mais desenvolvida do delírio com a qual o livro se confunde […] uma estrutura que se verificará similar ao processo mesmo da psicose”. Assim, no que Schreber escreveu como suas Memórias, encontramos o furo da foraclusão do Nome-do-Pai, a presença do que é imemorável e não dá lugar a qualquer história de uma transmissão na qual um sujeito é tramado.

Nesse contexto, vale ainda citar o valor que Lacan (1958/1966, p. 535) confere à “cadeia quebrada” como marca da “irrupção no real” do “símbolo”. Afinal, se tradicionalmente o símbolo é junção de duas partes separadas, essa separação, essa ruptura, também o constitui, embora seja mais dissimulada pelas estruturas clínicas diferentes das psicoses, ou seja, pelas neuroses e perversões. É essa presença ineludível da quebra de um encadeamento, de uma transmissão subjetiva, de uma história, é essa separação característica do símbolo que, no entanto, se tenta dissimular e que, ao contrário, nas alucinações auditivas testemunhadas por psicóticos, implica que, “no lugar onde o objeto indizível é rejeitado no real, uma palavra (mot) se faz escutar […] vindo no lugar do que não tem nome” (LACAN, 1958/1966, p. 535, grifos nossos). Portanto, esse livro de Memórias do imemorável, de registro do que ficou foracluído de toda inscrição, é essa palavra que, mesmo sem lugar até então em sua vida subjetiva, Schreber quis fazer ecoar. Não foi sem razão que, com a expectativa de a ciência futuramente se beneficiar de suas descobertas e como o projeto de retornar à sua “vida prática” de Presidente da Corte de Apelação, Schreber fez todos os esforços para publicar esse livro que, sobretudo em sua época, não deixava de soar insólito e desconcertante para tais objetivos. Por conseguinte, é interessante considerarmos que conseguiu fazê-lo ser aceito pela editora Oswald Mutze de Leipzig (SANTNER, 1997, p. 18) que, diferente dos objetivos científico-profissionais que o mobilizavam, mas não sem dar-lhe a possibilidade de registro da palavra que não encontrava lugar em sua vida, publicava apenas livros ocultistas e teosóficos.

Lacan (1958/1966, p. 564), a partir de sua leitura do livro de Schreber, ressalta que “é em torno desse furo onde o suporte da cadeia significante falta ao sujeito”, onde a cadeia se quebra ou, ainda, em termos schreberianos, onde a Ordem do Mundo foi fraturada, “que é travada toda a luta onde o sujeito se reconstrói”. Nesse contexto, diferente dos pós-freudianos que insistiram na hipótese freudiana de que, com a paranoia, Schreber se defendia contra a homossexualidade, Lacan (1958/1966, p. 567) prefere indicar que tal hipótese só foi sustentada por Freud porque este, ao redigir e publicar seu estudo sobre tal caso, respectivamente em 1911 e 1912, ainda não havia escrito “Introdução ao narcisismo” (1914). Cotejando, então, o estudo sobre Schreber e as descobertas de Freud a propósito do lugar do narcisismo na economia libidinal e no adoecimento subjetivo (inclusive por suas incidências mortíferas), Lacan (1958/1966, p. 567) considera que, se “a ideia da Entmannung”, ou seja, da emasculação, da feminização do próprio corpo, deixa de suscitar, com o tempo, a indignação de Schreber, é porque ele acaba por experimentá-la como uma inversão da experiência de que como “sujeito estava morto”.

Evocando, então, de início, a célebre e terrível concepção schreberiana de si como um “o primeiro cadáver leproso” conduzindo “um cadáver leproso” (SCHREBER, 1903/1984, p. 106), Lacan (1958/1966, p. 568) a toma como uma “regressão do sujeito”, “tópica”, “ao estádio do espelho, na medida em que a relação com o outro especular se reduz aí a seu gume mortal”. Mas Lacan (1958/1966, p. 568-569) também nos mostra que, a essa morte do sujeito, responde “uma prática transexualista”, na qual Schreber se feminiza e acaba se entregando à “copulação divina”, que lhe servirá de restauração da “estrutura imaginária” mais além daquela regressão tópica que lhe assolou mortiferamente o corpo. Logo, não sem sofrimentos consideráveis, a emasculação serve a Schreber para ir além da própria cadaverização, para tentar ter outro corpo e, desse modo, podemos dizer, como mulher, um Outro diferente daquele que o persegue, assim como outra relação com a vida. Nessa direção em que o corpo, uma vez emasculado, possa fazer-lhe as vezes de Outro, Schreber mostra-nos também o quanto é mesmo contemporâneo ao arco-íris formado pelas cores LGBTQI+.

Imaginário

Muito ainda poderia ser apresentado e esclarecido sobre como a emasculação perturba, toma o corpo de Schreber e ganha um lugar nesse “problema de solução elegante” (LACAN, 1958/1966, p. 572) no qual as psicoses encontram-se envolvidas. Certamente, em outra ocasião, poderei me dedicar a essa explicitação. Neste texto, interessa-me agora muito mais focalizar um modo específico de Schreber se posicionar e conceber sua emasculação. Nesse modo, considero que encontramos um uso do imaginário que não se restringe àquele de uma reconstrução do que lhe foi solapado por sua morte como sujeito. Trata-se de um uso que me parece já apontar para a nova concepção do imaginário no último ensino de Lacan, elucidada por Miller (2006-2007/2012, p. 147-276).

Ainda no período em que a emasculação era experimentada apenas como uma injúria ou, mais especificamente, quando os “raios divinos” a aludiam como “supostamente iminente”, eles “acreditavam poder zombar” de Schreber dizendo-lhe: “‘Miss Schreber’” e, nesse contexto, é importante considerar o esclarecimento de Marilene Carone, tradutora brasileira, situado em uma nota de pé-de-página, de que, na Alemanha, o termo inglês Miss tinha então um sentido pejorativo, indicando uma mulher solteira cuja reputação era duvidosa (SCHREBER, 1903/1984, p. 136). Nessa mesma ocasião, outras expressões, segundo Schreber (1903/1984, p. 136), lhe eram “frequentemente usadas e repetidas até a exaustão”, tais como: “‘Você deve ser representado como alguém entregue à devassidão voluptuosa’, etc., etc.”. A palavra representado é destacada pelo próprio Schreber (1903/1984, p. 136), que também lhe agrega, em uma nota de pé-de-página, um esclarecimento que julgo decisivo:

O conceito de “representar”, isto é, dar a uma coisa ou pessoa outra aparência, diferente da que ela tem por sua natureza real (expressando em termos humanos [ou seja, acrescento, fora da língua dos nervos e das almas]: “falsificar”) desempenhou e ainda hoje desempenha um papel muito importante no universo conceitual das almas […] Talvez tenha-se chegado à convicção de que, uma vez que se conseguisse criar de um homem uma impressão diferente da que corresponde às suas características reais, também poderia ser possível tratar o homem em questão de acordo com esta impressão. Tudo isso se reduz, pois, a um autoengano, completamente sem valor do ponto de vista prático, uma vez que o homem, naturalmente, no seu comportamento de fato, e particularmente na linguagem (humana), sempre dispõe de meios de fazer valer suas características reais contra a “representação” intencionada.

Verificamos que a emasculação imposta a seu corpo, mesmo implicando-lhe transformações e experiências de gozo reais, não deixa de lhe ser, também, o que a língua dos nervos concebe como “representação” e, os humanos, “falsificação”.  Ela se compõe, portanto, como um “autoengano” o faz colocar-se “contra a ‘representação’ intencionada”. Nessa via contrária, nessa leitura do que pode existir de falso no que experimenta realmente como imposto, considero que Schreber se confere algum uso do benefício da dúvida e, assim, utiliza um recurso decisivo, a meu ver, para o tratamento das psicoses.

Essa possibilidade de ir contra, não sucumbir e, sobretudo, encontrar outro destino para o que lhe imposto parece-me se consolidar ainda mais com o que, segundo a concepção das almas, é o “desenhar”: trata-se do “‘uso consciente da imaginação, com o objetivo de produzir imagens (predominantemente imagens mnemônicas) que depois são vistas pelos raios’” (SCHREBER, 1903/1984, p. 222). Assim, frente ao “martírio espiritual” que lhe “era proporcionado pelo falatório idiota das vozes”, ele se permite desenhar, tornar “visível” em sua “cabeça ou também fora dela”, de forma que essas vozes passam a ter “a impressão” de que os “objetos e fenômenos” assim desenhados “realmente existiram” e, como essa imposição vinda das vozes e os nervos são experimentados como milagres, ele chega a chamar o procedimento do desenho de “milagre às avessas” (SCHREBER, 1903/1984, p. 223). Importante esclarecer que não se trata do desenho como o que se registra ou se esboça, com finalidade artística ou não, mas de uma espécie de projeção ou duplicação, em imagens, do que se está fazendo ou se pode fazer. Nos termos mesmos de Schreber (1903/1984, p. 223):

Posso me “desenhar” em outro lugar, diferente daquele no qual eu de fato estou; por exemplo, enquanto me sento ao piano, estar ao mesmo tempo no quarto ao lado em frente ao espelho, com roupas femininas […], criar para mim mesmo e para os raios, quando estou deitado na cama à noite, a impressão de que meu corpo é dotado de seios e de órgãos sexuais femininos. Desenhar um traseiro no meu corpo […] tornou-se para mim um hábito de tal forma que eu o faço quase involuntariamente toda vez que me inclino.

Para uma elucidação de como esse uso do imaginário chega a permitir-lhe não sucumbir ao que lhe é imposto, vale citar o modo com que por vezes lidava com os “pássaros miraculados” cujas vozes, em outras circunstâncias, exigiam-lhe trabalhar até a exaustão para respondê-las e decifrá-las: “fazendo troça” com tais aves, ele fazia com que aparecessem em sua cabeça a “própria imagem” desses pássaros “sendo devorados por um gato” (SCHREBER, 1903/1984, p. 224). Com isso, parece-me que ele acede a outro gozo, bem diferente daquele que lhe era imposto e o devastava “a satisfação produzida por esta atividade é realmente grande”, sobretudo ao conseguir “obter do modo mais fácil possível as imagens desejadas”, de forma que a “visão de imagens atua […] de um modo purificador sobre os raios, e eles”, assim, o “penetram […] sem a violência destrutiva que lhes é peculiar” (SCHREBER, 1903/1984, p. 225).

Segundo Miller (2006-2007/2012, p. 258), no ultimíssimo ensino de Lacan, uma análise implica “ultrapassar a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse ultrapassamento, o corpo tem uma função decisiva: “no silêncio do real, e enquanto sempre se tem que desconfiar do simbólico que mente, só resta o recurso ao imaginário, isto é, ao corpo” (MILLER, 2006-2007/2012, p. 259). Vimos que a emasculação de Schreber toma seu corpo como uma saída frente ao furo da foraclusão do Nome-do-Pai no simbólico, mas, ainda assim, ele sucumbe a tal furo. Ela também lhe confere alguma voz para responder ao silêncio do real do gozo que lhe toma o corpo, esse silêncio que, no entanto, parece ser almejado na medida em que Schreber insiste na exaustação que lhe provoca o falatório das vozes e, nesse contexto, seu livro destemido e perturbador me parece ser um modo de ele se fazer escutar nessa que seria a sua voz. Logo, a emasculação, nesse caso, não deixa de ser, às avessas, uma consagração, mesmo que delirante, aos referenciais paternos. Não é sem razão que, evocando esse recurso paterno que é o falo, Lacan (1958/1966, p. 566) nos brindou com uma interpretação que se aplica à emasculação schreberiana: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens”. Ora, a invenção do desenhar nos aponta para outra via e, mesmo que não tenha sido tão trilhada quanto aquela da emasculação, implica o corpo e me parece oferecer a Schreber uma oportunidade muito mais satisfatória para “superar”, como formula Miller (2006-2007, p. 259) “a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse contexto, se a consagração delirante ao pai na emasculação ganha mais corpo que o desenhar, é porque, possivelmente, Schreber habitava um mundo ainda muito centrado nas insígnias paternas e, assim, o recurso ao desenho, no modo como ele o inventa e pratica, soa mais contemporâneo ao nosso mundo desabitado do que é paternalmente ordenado.


 

Referências
FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1912).
LACAN, L. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 531-583. (Trabalho original publicado em 1958).
LACAN, J. Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 793-827. (Trabalho original proferido em 1960).
LACAN, J. Présentation des “Mémoires d’un névropathe”. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 213-217. (Trabalho original publicado em 1966).
LACAN, J. Note sur l’enfant. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 373-374. (Trabalho original escrito em 1969).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. (Trabalho original proferido em 2006-2007).
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (org). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
MILLER, J.-A. Tout le monde est fou – AMP 2024. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 112, p. 48-57, nov. 2022.
SANTNER, E. L. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984. (Trabalho original publicado em 1903).
VALÉRY, P. Esboço de uma serpente. In: CAMPOS, A. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 26-57. (Poema original publicado em 1921).
[1] Aula inaugural do Curso de Psicanálise do IPSM-MG proferida em 6 de março de 2023.



Todo mundo é louco[1]

Frederico Zeymer Feu de Carvalho
Psicanalista, A.P. da Escola Brasileira de Psicanálise AMP
fredericofeu@uol.com.br

Resumo: Texto de explicitação do aforismo lacaniano “todo mundo é louco”, tema do congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2024, destacando seu contexto de enunciação, ligado ao impossível de se ensinar, e o último ensino de Lacan, do qual esse aforismo é uma bússola. 

Palavras-chave: loucura; psicose; delírio; discurso analítico.

EVERYONE IS CRAZY

Abstract: Explanation text of the Lacanian aphorism “everyone is crazy”, theme of the 2024 Congress of the World Association of Psychoanalysis, highlighting its enunciation context, linked to the impossible to teach, and Lacan’s last teaching, of which this aphorism is a compass. 

Keywords: craziness; psychosis; delirium; analytical speech.

Imagem: Renata Laguardia

1.
A frase “todo mundo é louco” é um aforismo criado por Lacan no ano de 1978. Ele pode ser tomado como um “condensado do seu ultimíssimo ensino”, conforme proposto por J.-A. Miller (2007-2008/2015, p. 309). Está sob a égide e o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à não garantia do Outro concernindo, portanto, à linguagem como tal. Esse aspecto recobre duas proposições negativas de Lacan: “não há Outro do Outro” e “não há metalinguagem”, proposições equivalentes entre si, que refletem tanto a incompletude do simbólico quanto a inconsistência de um sistema lógico, tal como abordado pela tradição lógico-filosófica do século XX. O segundo aspecto é a intraduzibilidade do gozo. Esse aspecto não concerne ao sistema da língua, tomado em si mesmo e por si mesmo, mas à falta de um significante no Outro para nomear ou referir o gozo, conforme o “princípio da indeterminação da tradução” de Quine (1951), segundo o qual haverá sempre inadequação entre a palavra e a coisa, o sentido e a referência.

No ensino clássico de Lacan, S(Ⱥ) designa, primordialmente, a incompletude e a inconsistência do Outro que está no fundamento da ordem simbólica, sendo então designado como “significante de uma falta no Outro” (LACAN, 1960/1998, p. 832), cujo correlato é $, o sujeito recoberto pela barra devido à falta de um significante que o represente, mas aludindo também àquilo que o Nome-do-Pai não é capaz de nomear.

No ultimíssimo ensino de Lacan, esse que começa, segundo a periodização proposta por Miller, no capítulo nono do Seminário 23, S(Ⱥ) se torna o “furo no real”. Ou seja, passamos da incompletude e inconsistência do simbólico a um furo no real. Lacan se refere a esse matema como o “verdadeiro furo” (LACAN, 1975-76/2007, p. 130), remetendo ao troumatisme (em francês, trou significa um “buraco”), ao traumatismo da incidência do gozo fora do sentido que afeta o falasser, para além, portanto, da falta inerente ao simbólico que afeta o sujeito. No traçado dos nós, esse furo é localizado fora do registro simbólico, na medida em que não há o Outro do simbólico, e na conjunção entre o Imaginário e o Real, demarcando a opacidade do imaginário. Talvez a única proposição possível para esse furo no real seja uma outra proposição negativa: não há proporção sexual (Il n’a pas de rapport sexuel). Estamos, portanto, confrontados com a presença desse furo no real, com esse troumatisme, para além da falta ou limite do simbólico. Esse traumatismo é o que se apresenta no acontecimento de corpo que marca a incidência do gozo como fora do sentido.

Essas considerações nos remetem à questão enigmática por excelência, “que queres” (che vuoi), mas na medida em que ela permanece sem resposta. Para além da dialética do desejo que caracteriza o ensino clássico de Lacan, segundo a qual o desejo é sempre desejo de desejo, tal questão nos remete ao gozo como fora de sentido. Se pudéssemos localizar o furo no real, talvez seja justamente nessa inadequação do gozo, na medida em que o gozo do falasser não se articula ao Outro, diferentemente do que a falta ligada à castração permite articular na dialética do desejo, na medida em que o neurótico é aquele que “faz de sua castração algo positivo, ou seja, a garantia da função do Outro” (LACAN, 1962-63/2005, p. 56). Desde esse ponto de vista, a loucura de todo mundo, ordinária, que se refere ao falasser, seria mais próxima de um parafuso a mais que permanece solto ou desarticulado do que de um parafuso a menos que faltaria no universo dos parafusos.

2.

Como proposição, “Todo mundo é louco” é um paradoxo, ou seja, não tem estatuto lógico, assim como a célebre frase de Epimênides, “todo cretense é mentiroso”, dita por um cretense (MILLER, 2022). O paradoxo consiste em que ambas as proposições só poderiam ser ditas ou de um ponto de vista transcendental, um ponto de vista fora do conjunto de todos os mentirosos cretenses ou de todos os loucos, lugar de exceção que desmente a proposição universal, ou de um ponto de vista imanente, ou seja, de um ponto de vista particular de quem é designado mentiroso ou louco, só podendo ser dita por um indivíduo do conjunto, ou seja, por um mentiroso ou por um desarrazoado, sem ter alcance universal.

Como um aforismo da prática analítica, por sua vez, a frase “todo mundo é louco” equivale a uma generalização decorrente da incidência de uma experiência enigmática de gozo conotada por um S1, uma marca de gozo, ao qual se liga um S2, ou seja, um saber, e à disjunção entre eles.

Se postulamos, com esse aforismo, a igualdade fundamental do falasser, é porque esse S1, como tal, é fora-de-sentido; como consequência, o S2, que busca engendrar algum sentido a essa experiência sem sentido, será necessariamente delirante. Passamos então do operador de perplexidade, S1, ao saber delirante, S2 (MILLER, 2007-2008/2015).

É a essa experiência primária do gozo que se refere o matema S(Ⱥ) no ultimíssimo ensino de Lacan. Não há resposta para o enigma endereçado ao Outro em relação a essa experiência. Ela se impõe ao ser falante a partir de uma dupla certeza: isso quer dizer alguma coisa e isso concerne a mim, visto que essa experiência é um acontecimento que concerne ao meu corpo; mas não se sabe o quê isso quer dizer, engendrando, assim, o trabalho inconsciente de cifração.

A certeza concerne, portanto, ao real, e não ao simbólico. Ela pode ser formulada nesses termos: há gozo ou há do gozo. Mas, quando essa certeza se estende ao campo da linguagem, entramos no delírio.

Duas vias se colocam a partir daí, duas formas de se arranjar com esse furo no real. A primeira delas consiste em atribuir um sentido retroativo a essa marca de gozo, S1, a partir do saber inconsciente, S2, no sentido de um trabalho de interpretação do inconsciente em torno do desejo do Outro, ou seja, levando em conta um laço com o Outro. Mas como o Outro é barrado, esse saber conserva seu caráter delirante. Freud chamou essa significação retroativa de naträglicha posteriori, chamando a atenção para seu caráter ficcional e falacioso. De fato, se a fantasia é uma resposta do real a essa experiência enigmática de gozo, ela não deixa de levar em conta um laço com o Outro por intermédio da extração do objeto a, ao qual o neurótico se consagra, ao transportar para o Outro a função desse objeto sob a forma da Demanda do Outro, $ <> D, como Lacan desenvolve em seu Seminário sobre a angústia (LACAN, 1962-63/2005).

Essa via demonstra o limite do teste de realidade como uma barreira para o delírio. Miller aborda esse ponto a partir do texto freudiano “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (FREUD, 1911/1969). Freud diz, nesse texto, que a passagem do princípio do prazer ao princípio de realidade não afeta o inconsciente como tal e que o princípio de realidade é, na verdade, uma continuação do princípio do prazer sob novas condições. Em outras palavras, a renúncia ao princípio do prazer, que é soberano (há gozo), só é possível por intermédio de um ganho de prazer, de uma compensação, de uma infiltração da fantasia no campo da realidade, o que mostra que o gozo, como tal, é impossível de negativizar.

A segunda via do falasser para se arranjar com o furo no real refere-se à busca de uma significação da experiência enigmática fora do laço com o Outro, sem o apoio no Outro ou desacreditando o Outro, no sentido da Unglauben, da descrença. Essa possibilidade pode se dar de diferentes maneiras. O saber pode assumir a forma de um delírio extraordinário, de uma auto elaboração da experiência enigmática de gozo, como vemos em Schreber, ou de uma manipulação da língua, como vemos em Joyce, ou seja, a partir de uma invenção que não está no cardápio do Outro. Ambos se utilizam do material da própria língua para criar uma nova língua, particular, que remodela o Outro, em lugar de fazer um laço com ele.

Nesse sentido, podemos dizer ainda que a ironia esquizofrênica, como uma outra maneira de fazer frente ao furo no real, toma partido de S(Ⱥ), na forma de uma crítica feroz do Outro, sem remendá-lo, e sem que, necessariamente, esse furo no real seja tamponado pelo delírio.

Ao considerar essas duas vias, a via da neurose e a via da psicose, tomamos a afirmação genérica “todo mundo é louco” de uma forma restrita, o que permite dizer que a psicose, ao contrário da loucura, não é para todo mundo. Provisoriamente, podemos concluir, então, que todo mundo é louco antes de ser ou não psicótico.

A experiência universal do delírio (continuísta) se concilia, assim, com o realismo clínico da estrutura (descontinuísta). Em outros termos, o aforismo “todo mundo é louco” concerne mais a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica, do que a uma orientação clínica, no sentido da sua estratégia e da direção do tratamento.

3.

Se o contexto geral do aforismo “todo mundo é louco” pertence ao ultimíssimo ensino de Lacan, seu contexto específico pode ser localizado no ano de 1978. Miller solicita a Lacan que ele intervenha, a partir de um escrito, em favor do Departamento de Psicanálise de Paris VIII (Universidade de Vincennes). Esse texto ficou conhecido com o título “Lacan a favor de Vincennes” e foi publicado em português no número 65 da Revista Correio da Escola Brasileira de Psicanálise.

Esse contexto específico leva em consideração as questões sobre o ensino da psicanálise, não só na universidade. Ele aborda, em primeiro lugar, a diferença entre o discurso do analista e o discurso da universidade, mas também as dificuldades de ensino da psicanálise se levarmos em consideração a estrutura do próprio discurso analítico, uma vez que o agenciamento desse discurso exclui o saber exposto da psicanálise. Como ensinar então o que não se ensina?

Nesse texto, a frase “todo mundo é louco” é acompanhada da explicitação “isto é, delirante”, que a complementa. A frase que se segue é a seguinte: “é isso mesmo que se demonstra no primeiro passo rumo ao ensino”. Ou seja, como afirma Miller (2022), afirmar que todo mundo delira é a condição de todo ensino. Trata-se de uma “crítica feroz à função do ensino” (MILLER, 2022, p. 11), forma da ironia analítica que não deixa de remeter à ironia esquizofrênica. A frase refere-se, portanto, ao impossível inerente ao ofício de ensinar qualquer coisa, ao impossível de educar, como dizia Freud, e não à clínica propriamente dita e ao impossível próprio do discurso analítico.

Pelo contrário, podemos dizer que é justamente por conceber que há um impossível em jogo, ou seja, por se orientar pelo real, que a prática analítica não é apenas um delírio. Pois nada pode fazer frente ao delírio senão o real, e não a razão ou a crença.

Isso não quer dizer que a prática analítica nada tenha a ver com o saber. Mas trata-se de um saber suposto e não de um saber exposto que se ensine ou que se aplique como uma técnica. No discurso do analista, o saber é sous-posé, sub-posto ao objeto a, seu agente (a/S2). Esse saber suposto é um saber deslocalizado e contingencial. Não sabemos quando ou de onde ele pode emergir, mas ele é suposto advir da transferência. Ele é também disjunto de S1 (S2 // S1), o significante mestre do inconsciente. O que isso quer dizer?

Trata-se, justamente, da emergência de um novo saber, disjunto da cadeia significante (S1 – S2) que subsiste no inconsciente como automaton (repetição do mesmo); de um saber que não engendra um novo sentido, mais um saber-fazer com o S1 isolado pela experiência analítica como marca de gozo. Esse saber disjunto, fruto da experiência analítica, de nada serve para outro analisante. Por isso não pode ser ensinado. Ele é limitado por seu alcance singular e pragmático. Mesmo que ele seja uma espécie de ficção ou de invenção, como acontece frequentemente na psicose, esse limite singular e pragmático é também um limite ao delírio. Mas podemos dizer que esse S2, oriundo da prática analítica, é um saber que concerne a um real e ao embate com o fora-do-sentido.

4.

É possível evocar, ainda, o contexto contemporâneo desse aforismo, ou seja, o imperativo da despatologização. Miller (2022, p. 10) observa que Lacan não diz “todo mundo é normal”, mas “todo mundo é louco”, o que convém mais a um apagamento dos limites entre normalidade e loucura do que a uma despatologização generalizada. Todo mundo é louco à sua maneira.

A despatologização, ao contrário, vista como um imperativo contemporâneo, supõe, por detrás da “reivindicação democrática de uma igualdade fundamental dos cidadãos” (MILLER, 2022, p. 9), a conversão de uma patologia a um modo identitário ligado a um determinado estilo de vida. O estilo de vida viria, assim, no lugar de uma designação clínica. O fim da clínica, que podemos ver no horizonte dessa reivindicação, busca também o fim de toda hierarquia fundamentada no saber, isto é, de toda assimetria na relação entre médico ou profissional psi e paciente.

Mas, ser nomeado por um estilo de vida pode ser tão alienante quanto uma nomeação diagnóstica – em relação à qual a psicanálise sempre se pautou por uma reserva, em especial em sua oposição ao DSM e a favor do respeito à singularidade –, embora a despatologização, seja, ao menos aparentemente, menos segregativa.

Essa reivindicação se estende ao campo jurídico, afirmando-se a partir do direito ao próprio corpo e à nomeação de si mesmo, como na frase autodeclarativa “eu sou o que eu digo que eu sou”, forma contemporânea do cogito ergo sum (“penso, logo existo”) de Descartes, que reafirma a soberania do Eu, ficando o médico ou o psi, apesar de algumas ressalvas da lei, sob a autoridade do paciente.

Em relação a essa autodeclaração, podemos formular a questão: o que é uma autoridade clínica? Recorro aqui a uma expressão conhecida de Carlo Viganò para se referir ao saber contingente que advém da experiência analítica, mesmo dentro de uma instituição. A autoridade clínica não é o saber do especialista; tampouco aquilo que o paciente pode dizer de si mesmo, mas o que se impõe por si mesmo na medida em que, como diz Lacan, “isso fala”.

5.

Por fim, gostaria de me referir à conferência feita por Pascale Fari, membro da Escola da Causa Freudiana de Paris, pronunciada na cidade de Rosário, em uma atividade preparatória da XXIII Jornada da Escola de Orientação Lacaniana, em outubro de 2022. Essa conferência parte de uma formulação de Miller durante a Conversação de Antibes, em torno das psicoses ordinárias: “falar é um transtorno de linguagem” (BATISTA; LAIA, 2012, p. 250), que se articula à frase dita por Lacan, em 1978.

De fato, a frase “todo mundo é louco” pode ser tomada em um sentido banal. Somos todos loucos na medida em que falamos a torto e a direito, em uma fuga desenfreada do sentido, sem nos preocuparmos se o que falamos existe ou não. A ideia de que “falar é um transtorno de linguagem” enfatiza, por sua vez, mais as repercussões e ressonâncias da linguagem no corpo, o fato de que padecemos da linguagem que falamos.

Isso é evidente, por exemplo, em relação à injúria. Mas todo delírio está ligado, de alguma forma, a uma significação íntima. Um elemento, um significante qualquer, de repente se destaca do conjunto articulado da linguagem e se absolutiza, torna-se louco, no sentido de um significante primordial que pode, até mesmo, ressignificar todo o conjunto da língua, como acontece com Schreber.

Lacan chamou de lalíngua a existência da língua fora do laço social e que subsiste à normalização da linguagem pelo discurso. “Lalíngua encarna esse núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana” (FARI, 2023, s/p). Sendo assim, podemos dizer que não existe A Língua, que a língua é uma multiplicidade inconsistente, e que só existem línguas particulares, efetivamente faladas, mutantes e vivas, como uma ficção gramaticalmente ordenada por regras de uso, mas cuja significação íntima não pode ser compartilhada. É o laço social que normaliza o sentido, isto é, os desvios de lalíngua, introduzindo uma rotina, uma pragmática de seu uso no mar dos mal-entendidos.

O que especifica o esquizofrênico, diz Lacan, é o fato de habitar a língua sem a ajuda dos discursos estabelecidos. É o que revela um paciente que se inquieta pelo fato de se sentir excluído do grupo de colegas na escola: “Eu me dirijo a eles, fazendo uma pergunta. Eles podem até me responder, mas isso não desencadeia nenhuma conversa”. Ele deseja entrar no laço social, mas é como se não tivesse a senha de acesso, e isso o angustia a ponto de se sentir um objeto estranho, não admitido nos agrupamentos sociais, por não compartilhar do mesmo regime de crenças, ou melhor, pela dificuldade em fazer semblante social com a linguagem.

Essa dificuldade típica da psicose é inerente a todo ato de tomar a palavra. Não quando se fala pelos cotovelos, como se diz, seguindo o moinho das palavras, mas quando o uso da palavra exige que se diga “eu” como sujeito da enunciação. Uma paciente, ao retornar para uma segunda entrevista, começou a sessão exatamente com essa pergunta essencial: “quem fala?”. A paciente se refere “a quem cabe tomar a palavra em uma sessão analítica?”. Certamente, há uma proliferação de vozes que falam em nós e que serão decantadas no decorrer de uma análise; mas essa pergunta, “quem fala?”, não deixa de evocar a emergência de um sujeito no moinho das palavras, seja quando se faz um ato falho ou um Witz, seja para operar o corte veiculado por um ato de enunciação.

Ao tomar a palavra, o falasser corre sempre o risco de se desconectar do Outro, por falar a mais ou a menos, por se mostrar inadequado, por expor uma forma de satisfação sintomática, enfim, uma forma particular de recortar e usar a linguagem e de usufruí-la como sua lalíngua. O corpo goza em silêncio, mas é com as marcas de gozo fixado em um acontecimento de corpo que se fala.

Não sem razão, o ato de tomar a palavra está na raiz de muitas formas de desencadeamento da psicose. Se falar é um transtorno de linguagem, podemos dizer que ele também é uma espécie de acontecimento de corpo que atualiza o seu trauma. De certa forma, sempre falamos sozinhos, desde o lugar em que se está fora do sistema da língua.

O discurso analítico é, nesse sentido, uma nova forma de laço social que permite acolher um sujeito a partir desse lugar de enunciação em que somos estranhos à linguagem, em sua inigualável singularidade, para além de um modo de vida identitário e de nossa alienação ao Outro. Nesse sentido, o discurso analítico é um laço social inusitado, destinado a desnudar nossa relação íntima com a língua, isolando seus pontos de ancoragem no corpo, seus S1s, a fim de que o analisante possa se virar com isso de uma outra maneira. Mas não é isso, precisamente, um delírio? A reconstrução de um saber a partir de seus elementos díspares, não simbólicos e intraduzíveis?


Referências
BATISTA, M.C.; LAIA, S. (Orgs.). A Psicose Ordinária (A Convenção de Antibes). Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.
FARI, P.  Hablar es um transtorno de lenguaje. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=qz4jD-2ONDw. Acesso em: 10 abr. 2023.
FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1969. (Trabalho original publicado em 1911).
LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1960).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
MILLER, J.-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
[1] Seminário pronunciado no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, em março de 2023, em torno do tema do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que terá lugar em Paris, no ano de 2024.



O ordinário do gozo, fundamento da nova clínica do delírio[1] 

Dominique Laurent
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
laurent.dominique@wanadoo.fr

Resumo: A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária. 

Palavras-chave: norma; lei; psicose, neurose, sinthoma; psicose ordinária.

THE ORDINARY OF JOUISSANCE, FOUNDATION OF THE NEW CLINIC OF DELIRIUM

 Abstract: The neurotic norm is a false evidence imposed on the history of patriarchy. Norms are said in the plural, they proliferate, while the law is said in the singular. It is necessary to understand that the paternal metaphor is never fully realized, in order to go beyond the binary neurosis and psychosis. The concept of sinthome, in this sense, constituted an advance in the “unclassifiable” clinic, that is, in the clinic of ordinary psychosis. 

Keywords: norm; law; psychosis; neurosis, sinthome; ordinary psychosis.

Imagem: Renata Laguardia

A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996 em seu seminário, inaugura, dizia ele, “a era lacaniana da psicanálise”, a “da errância, a dos não-tolos erram, a daqueles que são mais ou menos tolos do pai, mais ou menos tolos do Outro” (MILLER, 2005, p. 10-11).

Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais como um todo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever em Gaia ciência que “Deus está morto”, já não estaria inscrevendo essa questão? Houve, entretanto, ideais que foram resistentes e puderam assentar de modo decisivo a função paterna, um dos detentores do título do Outro. Isso é tão verdadeiro que na psicanálise “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante que o Outro existe” (MILLER, 2005, p. 10). Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho de sua desconstrução e de sua pluralização no equívoco dos não-tolos erram. Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de basta. Não há mais necessidade de ninguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente se tornou louca. 

Crença e loucura

A função paterna se apresenta daqui para frente como o avesso do mestre, sob a forma depreciada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia para todos, para assegurar a satisfação de seus desejos e lhes devotando um amor igual. O verdadeiro Outro, ao qual se recorre como garantia, é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica para aquele que encarna a função de pai como se comportar, mas ela autoriza e reconhece, de modo inédito, estilos de vida outrora condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai tem conduzido os movimentos de reivindicação e de luta das mulheres, dos gays e lésbicas para registros diversos cujo último, depois do mariage pour tous,[2] diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber um filho por P.M.A.[3] 

Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para-além do pai. O bom uso da função do significante-mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não seja fora-da-lei. O discurso do direito, ao assegurar a promoção do direito à diferença, pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito com o gozo? Em outras palavras, a identificação a um significante-mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não se resolve apenas na prática sexual, o sintoma verifica isso, mesmo que o parceiro sexual seja ocasionalmente o parceiro sintoma do sujeito.

A norma neurótica, construída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan dava a entender em Os complexos familiares,[4] a neurose é, sob muitos aspectos, um efeito de perspectiva tomado em uma relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs em um momento da história do patriarcado. Sem dúvida Lacan falava de um momento remoto. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, elas são falantes. A lei se diz no singular, ela pode, para Lacan, se reduzir aos comandos da fala segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também as que são majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo pelo qual se vive a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não é única. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas P.M.A., o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais casais ou não, encarregados de família ou não. O combate pela emancipação feminista em relação à ordem simbólica tradicional, seguido pela noção de gender, que tenta reduzir a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida até os queer que, confrontados a uma fuga de identificações, se prendem a modos de gozar cada vez mais singulares.

Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma, isto é, do parceiro gozo.

Do patriarcado ao parceiro gozo 

Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal em sua composição e recomposição, assim como as da parentalidade. Mais ainda, estamos sendo confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, pelo retorno por artifício ao casamento funesto da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um regime novo, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado dos estilos de vida. O valor social atrelado a um ou a outro varia segundo o preço atribuído pela civilização ao ideal e ao objeto a. Não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem em seu modo de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil acreditar que elas sejam ainda a norma. 

Os tipos de sintomas e os imperativos de gozo 

Lacan apreendeu o sintoma em sua dimensão singular, isto é, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, já que ele remete sempre ao um a um. Essa perspectiva do sintoma é, entretanto, correlativa de uma outra, a do sintoma apreendido pela estrutura. Em “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, Lacan (1973/2003) coloca a questão sobre os tipos de sintomas como a clínica os isolou antes da psicanálise, pelo olhar da particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade desses tipos como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não respondem ao nominalismo da contingência, mas ao realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são então identificáveis pelo “imperativo de gozo”. A Zwangneurose deve ser generalizada para além daquilo que a neurose obsessiva permite perceber.

Essa questão do gozo está em primeiro plano no caso freudiano do Homem dos Lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, dedicou a ele todo um seminário de DEA.[5] É com esse caso que Freud introduz pela primeira vez o termo Verwerfung, rejeição à castração, que é acompanhado, ao mesmo tempo, de um reconhecimento da castração. Para Lacan, como observa J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado assim: “como formular uma coexistência da Verwerfung e do reconhecimento da realidade?” (MILLER, 1987-88, p. 11). J.-A. Miller situa em primeiro lugar a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele nomeia “forclusão como mecanismo simbólico” (LACAN, 1954/1998, p. 388-89). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento linguageiro significante – e não um sentido – que é subtraído do circuito”. É um elemento “que faz sentir seus efeitos somente por sua ausência, e que mobiliza muitas significações em torno dela, sem que essas significações cheguem a alcançar esse próprio significante” (MILLER, 1987-88, p. 16).

A forclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não põe em questão toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar na assunção […] da função paterna, mas sobre a função da castração” (MILLER, 1987-88, p. 21). A forclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956 com a “Questão preliminar…” (LACAN, 1957-58/1998). A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica numa forclusão do Nome-do-Pai?

Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são interrogadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Assim que um menos se dirige ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito se desestabiliza. É o que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se esse falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (MILLER, 1987-88, p.40).

A paranoia e a clínica universal do delírio

A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a forclusão generalizada vem evidenciar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente reabsorvido pela mortificação significante e que, a esse respeito, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que ali onde está o gozo, e não simplesmente o joui-sens[6] fálico, é a língua em seu conjunto que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se faz com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se imobilizam dependem do sinthoma e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthoma tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas de procurar em cada caso a singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.

O conceito de sinthoma constituiu um avanço considerável para compreender uma clínica confusa, “inclassificável”, e aquela que chamamos desde a Conversação de Arcachon de clínica da psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, a ênfase dada por Lacan ao impacto do dizer sobre o corpo antes da entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade […] é a mesma coisa” (LACAN, 1975-76/2007, p. 52). Lacan havia mostrado desde o estádio do espelho a paranoia constitutiva do sujeito em seu imaginário em relação ao outro e elaborou os diferentes tratamentos desta paranoia constitutiva. Ele chega a concluir com a teoria dos nós que a psicose paranoica consiste em que o sujeito amarre a três, em uma continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros traz o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1964/1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S(Ⱥ).

O impacto do dizer no corpo, antes de qualquer entrada em cena do olhar no estádio do espelho, depende do troumatisme.[7] Ele é apreendido a partir do furo, da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como fazendo furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamava de “clínica universal do delírio aquela que toma seu ponto de partida disso, que todos nossos discursos são apenas defesas contra o real” (MILLER, 1996, p. 90). A fórmula “todo mundo é louco, isto é, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31) remete à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que concerne a sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso subverte as diferenças feitas até então entre neurose e psicose.

Para concluir, não é excessivo dizer que, com a declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico para se defender do real não é mais a norma mesmo que haja sempre pais e mães em torno dos quais o discurso se apega mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, a esse respeito, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Letícia Mello

Referências
MILLER, J.-A. O Homem dos Lobos. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eólia, 1987-88.
MILLER, J.-A. Clínica irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32
LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. (Texto original publicado em 1954).
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1957-58).
LACAN, J. Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original redigido em 1973).
 
[1]Texto publicado originalmente na revista La Cause du Désir, n. 98, p. 26-30, 2018.
[2] Lei de 17 de maio de 2013 que abre às pessoas do mesmo sexo, residindo na França, a possibilidade de se casarem.
[3] Procriação Medicamente Assistida.
[4] Cf. LACAN, J. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1987.
[5] Cf. AFLALO, A. Réévaluation du cas de l’Homme aux loups. La Cause freudienne, n. 43, 1999, p. 85-117.
[6] N.T.: Jogo de palavras valendo-se da homofonia entre joui-sens, “sentido gozado”, e jouissance, “gozo”.
[7] N.T.: Jogo de palavras com trou, “furo”, e traumatisme, “traumatismo”.