Manuscrito H[1]

Manuscrito H1

Elisa Alvarenga
A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

elisalvarenga@gmail.com

Resumo: O “Manuscrito H”, enviado por Freud a Fliess em 1895, é situado entre os textos em que Freud pensa as psicoses, no plural, entre as neuropsicoses de defesa, no final do século XIX. Freud percebe que o mecanismo das psicoses difere do recalque das neuroses, mas ainda não consegue precisá-lo bem.

 Palavras-chave: neuropsicoses; defesa; recalque.

H MANUSCRIPT

 Abstract: The “H Manuscript”, sent to Fliess by Freud in 1895, is situated among the texts in which Freud talks about psychoses, in plural, among the defense neuropsychoses, at the end of the XIXth century. Freud realizes that psychoses mechanism is different from neuroses repression, but he can’t yet precise it.

 Keywords: neuropsychoses; defense; repression.

 

Introdução

 

Começo com uma pergunta: a psicose é para Freud uma estrutura, no sentido lacaniano do termo? Abordada inicialmente no quadro das “Neuropsicoses de defesa”, a psicose é vista como uma maneira específica de defesa, e como tal distinta da neurose. Freud se interessa num primeiro momento pelas psicoses, no plural, pois ele distingue diversas maneiras de enfrentar realidades penosas, no sentido de representações inconciliáveis com o eu. O mecanismo do recalque já está então no centro do problema.

O “Manuscrito H”, que comentaremos hoje aqui, pertence a esse período inicial, em que Freud vai elaborando sua concepção do aparelho psíquico e resgatando a importância da sexualidade nas neuroses e nas psicoses. Ele desemboca, na virada do século XIX ao século XX, na primeira tópica freudiana (ics-pcs-cs) e na teoria da libido. Vai ser a época dos grandes relatos de casos clínicos e Freud debruça-se então especialmente sobre a paranoia e a esquizofrenia, consideradas em série como maneiras mais ou menos radicais de desviar a libido do mundo exterior. O seu “recalque” distingue-se bem do recalque da neurose.

A segunda tópica (isso-eu-supereu) surge após a introdução da pulsão de morte na teoria da libido e os critérios antes utilizados se revelam insuficientes para diferenciar neuroses e psicoses: a defesa, o destino do afeto, a retração da libido, a relação com a homossexualidade, a relação com a realidade. Freud se interessa pela maneira como os psicóticos se afastam da realidade e pela especificidade do seu “recalque”. A realidade em questão é uma realidade psíquica ou simbólica, a realidade da castração. É a maneira de posicionar-se frente a essa realidade que vai caracterizar o mecanismo em questão na psicose, em oposição ao recalque da neurose. Freud passa então das psicoses, no plural, à psicose, no singular (ALVARENGA, 1992, p. 5).

O conceito de psicose em Lacan, nos anos 50, no Seminário As psicoses e no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, dois anos depois, diz respeito a uma estrutura, irredutível à estrutura neurótica. Vamos percorrer hoje aqui alguns textos freudianos desse período inicial, em torno das neuropsicoses de defesa, de 1895 até 1900, levando em consideração que esse conceito de defesa não perde sua importância, pois ele reaparece ao final da vida de Freud no texto “A divisão do eu no processo de defesa”.

As neuropsicoses de defesa (1894)

 O interesse de Freud pelas psicoses foi provavelmente despertado pelos problemas clínicos colocados pela histeria. Já nos “Estudos sobre a histeria”, publicados em 1895, Freud propõe um modelo de “psicose histérica” como resultado de um fracasso da defesa. Começaremos nosso percurso por uma leitura das “neuropsicoses de defesa”, assunto dos artigos dos anos 1890, assim como dos manuscritos e cartas enviados a Fliess.

Wilhelm Fliess era um médico otorrinolaringologista, correspondente assíduo de Freud nesse período do seu pensamento, e que tinha umas teorias um pouco delirantes sobre as patologias mentais. É considerado como “o analista” de Freud, o qual lhe fazia confidências e submetia a ele seus pensamentos e novas ideias. A correspondência entre os dois pesquisadores tem um papel fundamental na elaboração de alguns conceitos freudianos.

A reticência de Freud em receber pacientes psicóticos em análise não parece tão acentuada no início de sua prática, talvez em função mesmo da inclusão das psicoses entre as neuropsicoses de defesa. Ele falará principalmente da paranoia e dos episódios delirantes agudos. Nesse artigo de 1894, Freud estabelece uma conexão entre neurose e psicose como resultados de mecanismos de defesa ligados a uma divisão da consciência, expressão de uma disposição patológica: uma representação desperta um afeto penoso que a pessoa decide esquecer, mas esse esquecimento fracassa e conduz a uma histeria, a uma obsessão ou a uma psicose alucinatória.

Na neurose, o eu torna a representação fraca retirando-lhe o afeto, quantidade de excitação que, na histeria, é deslocada para o corpo na conversão. Nas obsessões e fobias, a representação é excluída das associações, mas o afeto se liga a outras representações que se tornam obsedantes. Freud introduz então uma “psicose de dominação”: uma jovem que sofre de autoacusações obsessivas perde sua capacidade crítica e seu sentimento de culpa acentua-se de tal forma que ela chega à psicose, sendo curada após alguns meses de tratamento.

Se, nas neuroses, a defesa é efetuada pela separação entre a representação inconciliável e o afeto que lhe corresponde, há

uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem sucedida. Aqui, o eu rejeita (verwirft) a ideia incompatível juntamente com seu afeto e comporta-se como se a ideia jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que o tenha conseguido, o sujeito encontra-se numa psicose, confusão alucinatória. (FREUD, 1894/1976, p. 71)

Além disso,

O conteúdo de uma psicose alucinatória consiste na acentuação da ideia que foi ameaçada pela causa precipitante do desencadeamento da doença. O eu se defendeu da ideia incompatível através da fuga para a psicose. Ele escapa da ideia intolerável; esta, porém, é ligada inseparavelmente a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu alcança esse resultado, ele se destaca, também, parcial ou inteiramente, da realidade. As ideias do sujeito recebem a vividez das alucinações; assim, quando a defesa consegue ser levada a cabo, ele se encontra em um estado de confusão alucinatória. (FREUD, 1894/1976, p. 71)

Dois exemplos:

      1. Mãe que perdeu o bebê: embala um pedaço de tronco em seus braços, como se fosse um bebê.
      2. Mulher que foi abandonada: veste-se para esperar o noivo todos os dias.

A confusão alucinatória não é habitualmente compatível com a histeria ou com as obsessões, mas uma psicose de defesa pode vir interromper episodicamente o curso de uma neurose histérica ou mista. Freud isola os mecanismos, mas admite sua incidência sobre um mesmo sujeito.

A distinção entre os mecanismos da neurose e da psicose é elaborada por Lacan a partir do termo “rejeição” (Verwerfung), já utilizado em 1894. A alucinação, resultado da rejeição da representação, é exatamente o que Lacan vai chamar de retorno no real do que não foi simbolizado pelo sujeito.

Manuscrito H – Paranoia – 24.01.1895

 Freud introduz a paranoia nas neuropsicoses de defesa por uma analogia com a neurose obsessiva, como uma “psicose intelectual”, considerando-a como mais uma forma de defesa, ao lado da histeria, da obsessão e da confusão alucinatória. “Alguém se torna paranoico em relação a coisas que não pode suportar” (FREUD, 1895/2016, p. 15). Mas é preciso uma predisposição específica para isso.

Freud dá como exemplo uma paciente que apresentava delírios de observação e perseguição. Ele crê que ela sofre de uma neurose de caráter sexual, com eventuais acessos de paranoia. Tendo tentado, sem sucesso, suprimir a tendência à paranoia restaurando a lembrança de uma cena de sedução, ele se pergunta sobre o caráter específico de defesa paranoica. A paciente foi assediada por um hóspede e se recusava a se lembrar da cena de assédio e se sentir culpada. Sua culpa retorna de fora no delírio de observação e recriminação.

A doença tentava evitar uma autocensura recalcando-a, mas a recriminação retornava de fora: a paciente era observada e criticada.

O julgamento sobre ela fora desalojado para fora. As pessoas diziam aquilo que normalmente ela teria dito para si mesma ela. […] O julgamento vindo de dentro, ela teria de aceitar. O que vinha de fora, ela podia recusar. Dessa forma o julgamento, a recriminação, era afastado do Eu. A paranoia tem, portanto, o propósito de se defender de uma representação intolerável para o Eu projetando seu conteúdo no mundo exterior. […] Trata-se do abuso de um mecanismo psíquico utilizado com frequência. (FREUD, 1895/2016, p. 17-18)

Para Lacan, seria melhor abandonar o termo “projeção”, pois a projeção na psicose “é o mecanismo que faz voltar de fora o que está preso na Verwerfung, ou seja, o que foi posto fora da simbolização geral que estrutura o sujeito” (LACAN, 1955-56/1985, p. 58).

O próprio Freud coloca em questão tal termo, diferenciando a projeção como mecanismo neurótico de imputar ao outro o que não reconheço em mim – se não gosto de fulano penso que fulano não gosta de mim – do mecanismo da psicose: é incorreto dizer que a sensação suprimida internamente é projetada para o exterior, a verdade é que, pelo contrário, aquilo que foi abolido internamente retorna desde fora (FREUD, 1911/2021).

Freud dá vários exemplos de defesa que levam a um delírio de perseguição e nota que a megalomania consegue eliminar do eu a ideia penosa melhor ainda que a paranoia: “a ideia delirante é mantida com a mesma energia com que o Eu se defende de alguma outra ideia penosamente insuportável. Portanto, eles amam o delírio como a si mesmos” (FREUD, 1895/2016, p. 20). Exemplos:

      1. O paranoico querelante não suporta a ideia de ter feito algo errado e imputa o erro ao Outro: delírio de reivindicação
      2. A nação não suporta a ideia de ter sido vencida: paranoia de massa, delírio de traição. Mais atual, uma massa que não aceita ter perdido uma eleição, delírio de fraude
      3. O alcoólatra não suporta a ideia de ter ficado impotente pela bebida. A culpa é da mulher: delírio de ciúmes
      4. O hipocondríaco não admite que sua doença tem a ver com suas condutas: delírio de envenenamento
      5. O funcionário não admite seu fracasso em ser promovido: delírio de complô e de perseguição
      6. A cozinheira que perdeu seus atrativos: delírio erotômano ou de grandeza

Também no caso Schreber, Freud desenvolve com mais clareza a gramática da paranoia, a partir de três formas de negar a proposição básica “Eu, um homem, amo um homem” (FREUD, 1911/2021, p. 604-606): negar o objeto, o verbo ou o sujeito:

      1. Eu não o amo, eu a amo, porque ela me ama: erotomania
      2. Eu não o amo, eu o odeio, porque ele me persegue: delírio de perseguição
      3. Não sou eu que o amo, é ela que o ama: delírio de ciúmes

Freud compara, então, no quadro da página 21, as formas de defesa da histeria, da obsessão, da confusão alucinatória, da paranoia e da “psicose histérica”. Na histeria, o conteúdo intolerável fica fora da consciência e o afeto é deslocado para o corpo. Na obsessão o afeto é mantido, mas o conteúdo representativo é substituído por outro (deslocado). Na confusão alucinatória, o afeto e o conteúdo são afastados do eu por um desligamento parcial do mundo exterior, com alucinações agradáveis ao eu (ver os dois primeiros exemplos). Na paranoia, ao contrário, o afeto e a ideia intolerável são mantidos, mas projetados no mundo exterior. As alucinações são desagradáveis ao eu, mas apoiam a defesa. Já nas “psicoses histéricas”, o afeto domina a consciência e as alucinações são hostis ao eu. Trata-se da histeria aguda dos “Estudos sobre a histeria”, na qual “o eu está sendo constantemente esmagado pelos produtos da doença” (FREUD, 1895/1974, p. 319). O sentimento de culpa de uma paciente torna-se tão acentuado que ela acredita ser uma criminosa.

Para Lacan, Freud põe em jogo mecanismos de defesa semelhantes para as neuroses e as psicoses, embora seus efeitos sejam fenomenologica e psicopatologicamente distintos. Os diferentes mecanismos deveriam, inversamente, ser deduzidos a partir dos resultados.

Manuscrito K – As neuroses de defesa – 01.01.1896

 Freud retoma um ano depois algumas ideias sobre a paranoia. O “recalque” só se efetua depois que a lembrança já causou desprazer. Não se trata de uma recriminação recalcada, mas de um desprazer pelo qual o outro é considerado responsável, através do mecanismo da projeção. O sintoma primário é a desconfiança em relação aos outros e o paciente não acredita na censura. As vozes representam as autoacusações. As frases são inicialmente deformadas, confusas e ameaçadoras, para depois associar-se à desconfiança. O processo termina, seja pelo que Freud chama de melancolia – impressão de insignificância do eu –, seja pela megalomania.

Freud interessa-se cada vez mais pela especificidade do “recalque” na psicose. Na paranoia, a relação entre o discurso e a lembrança “recalcada” não pode tornar-se consciente e o eu recusa qualquer crença na censura. Freud chama de Unglauben essa descrença na censura, que fará com que tomemos a inocência como um signo da paranoia, enquanto a culpabilidade delirante é um signo da melancolia. Essa questão da crença aparece várias vezes nos escritos de Freud e só vinte anos depois, em “A negação” (1925), ele nos dará as chaves para entender essa “descrença” dos paranoicos. A relação à lembrança que não pode tornar-se consciente indica que se trata aqui de algo distinto de um recalque. Essa recusa na crença parece ser a precursora do mecanismo finalmente isolado como Verwerfung.

Análise de um caso de paranoia crônica (1896)

 Em seus “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa”, Freud apresenta um caso que confirma sua teoria de uma “psicose de defesa”. Trata-se de uma mulher de 32 anos que, seis meses após o nascimento de seu primeiro filho, manifesta os primeiros sinais da doença: ela se fecha em si mesma e torna-se desconfiada: todos fazem tudo para magoá-la, adivinham seus pensamentos e sabem de tudo que se passa em sua casa.

Um dia surge o pensamento de que a observam enquanto se despe, e mais tarde sente seus genitais como “se sente uma mão pesada”. Tem alucinações de mulheres nuas e dos órgãos femininos e masculinos. Vozes desconhecidas começam a importuná-la, comentando suas ações, ameaçando-a e recriminando-a.

Quando começa a análise dessa paciente, Freud pensa que ela se comporta como uma histérica. Porém, os dados inconscientes são, a maior parte do tempo, escutados interiormente ou alucinados como vozes. A origem dos sintomas da paciente estaria no “recalque” das relações que ela tivera com o irmão e as falsas interpretações da paranoia se apoiariam sobre um recalque. As alucinações visuais seriam fragmentos das experiências infantis recalcadas, correspondendo ao retorno do recalcado. Sua vergonha transforma-se em suspeita em relação aos vizinhos e as vozes devem sua origem ao “recalque” de recriminações provocadas por um acontecimento análogo ao traumatismo infantil. Seria característico da paranoia a alusão dissimulada e as formas de linguagem incomuns.

Comparativamente à neurose obsessiva, em que o sujeito desconfia de si mesmo e a censura retorna nas representações obsessivas, na paranoia a censura é “recalcada” pela via da “projeção”: a desconfiança diz respeito aos outros e as censuras retornam nas ideias delirantes. Incapaz de se responsabilizar por seus atos e palavras, o sujeito paranoico atribui a culpa ao Outro, assim como as acusações. A alucinação paranoica sofreria uma deformação na qual uma imagem recente substitui a antiga. Pensamentos em voz alta são deformados e substituídos por outros pensamentos. O eu se adapta a eles por um trabalho delirante de interpretação que acaba por modificá-lo.

Em 1922, Freud acrescenta a esse caso uma nota sobre sua evolução, dando-lhe finalmente o diagnóstico de dementia paranoides, o mesmo conferido a Schreber.

A interpretação dos sonhos (1900)

 No capítulo VII de “A interpretação dos sonhos”, Freud se detém sobre os delírios e as psicoses. Após o paralelo com as neuropsicoses, encontramos aqui um outro, entre os delírios e os sonhos. Freud se interessa pelos delírios dos pacientes confusos, decorrentes de uma censura que não dissimula mais sua ação. Ela apaga tudo que lhe desagrada e torna o resto incoerente. A questão é saber se a supressão operada pela censura no sonho é da mesma ordem que a censura em jogo na psicose.

Freud compara a psicose ao sonho como realização de desejo: o sonho seria um fragmento da vida psíquica infantil que foi suplantado. Na psicose, o sujeito voltaria também a modos de trabalho psíquico antigos e suprimidos (unterdrückten) e encontra-se incapaz de satisfazer suas necessidades em relação ao mundo exterior. Freud nota sua negligência em relação à diferença entre os termos “recalcado” (verdrängt) e “suprimido” (unterdrükt). Ao dizer que a guardiã de nossa saúde mental é a censura entre o inconsciente e o pré-consciente, ele deixa a psicose associada ao mecanismo do recalque.

Finalmente, a diferença que define a psicose em relação ao sonho é estabelecida: neste, os impulsos vindos do inconsciente podem entrar em cena sem colocar o aparelho motor em movimento, ao passo que na psicose há um enfraquecimento da censura crítica ou um reforço patológico das excitações inconscientes que submetem o pré-consciente a seu poder e dominam as palavras e atos do sujeito ou levam à regressão alucinatória durante a vigília. Essa regressão é assim associada à submissão do pré-consciente ao inconsciente, antiga ideia de submissão do eu que será posteriormente desenvolvida em termos de conflito entre o eu e o isso.

Essa invasão pelo inconsciente tem o mesmo modelo que o estado segundo histérico, chamado de “psicose histérica” em 1895. A antiga diferença estabelecida entre os sintomas neuróticos da histeria e a psicose histérica é análoga à oposição entre o sonho e a psicose: os sintomas da neurose histérica são tidos como o resultado da realização de um desejo ao qual se opõe o desejo pré-consciente, como no sonho o pré-consciente impede o acesso à motilidade voluntária. Na psicose não haveria essa oposição do pré-consciente.

Concluindo, nos textos contemporâneos do “Manuscrito H”, sobre a paranoia, Freud considera os tipos de recalque isolados passo a passo como mecanismos de defesa que resultarão na separação entre o recalque (Verdrängung) e a rejeição, ou foraclusão (Verwerfung), isolados plenamente no caso do Homem dos Lobos, como vocês verão mais adiante. No final do século XIX, Freud conserva uma concepção dinâmica dos acontecimentos psíquicos, talvez mais próxima do último Lacan, que exploramos na preparação do próximo Congresso da AMP: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”.


Referências
 ALVARENGA, E. O conceito de psicose em Freud. Belo Horizonte: Ed. Tahl, 1992.
FREUD, S. A psicoterapia da histeria. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 309-363. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Manuscrito H: Paranoia (24.01.1895). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 15-21. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Manuscrito K: As neuroses de defesa (01.01.1896). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016,p. 23-34. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. As neuropsicoses de defesa. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. III, 1976. (Trabalho original publicado em 1894).
FREUD, S. Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa: Análise de um caso de paranoia crônica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 200-211. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. IV, 1972, p. 543-560. (Trabalho original publicado em 1900).
FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (Caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1911).
FREUD, S. A negação. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 305-314. (Trabalho original publicado em 1925).
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1957-58).

[1] Apresentação ocorrida em 12 de setembro de 2023 no interior da programação das 60ª Lições Introdutórias à Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.



Constituição e perda do campo da realidade

Constituição e perda do campo da realidade1

Kátia Mariás
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

katiamariasp@gmail.com

Resumo: O texto aborda a constituição do campo da realidade a partir da extração do objeto a e o modo como se dá a perda da realidade na neurose que, por meio da fantasia, busca reparar a realidade. O texto trata também de como, na psicose, essa subtração do objeto não ocorre, provocando a perda da realidade seguida de uma tentativa de reparação por meio do delírio.

Palavras-chave: constituição da realidade; perda da realidade; neurose; psicose; objeto a.

CONSTITUTION AND LOSS OF THE FIELD OF REALITY

Abstract: The text addresses the constitution of the field of reality by the extraction of object a as well as the way the loss of reality occurs in neurosis which, through fantasy, seeks to repair reality. The text also deals with how, in psychosis, this subtraction of the object does not happen, causing the loss of reality, followed by an attempt to repair it through delusion.

Keywords: constitution of reality; loss of reality; neurosis; psychosis; object a.

 

 

A experiência de satisfação

Para Freud, a condição para que a realidade seja constituída é que algo seja subtraído ao sujeito, funcionando como índice de uma realidade externa. É esse vazio subjetivo que organiza e corrige o mundo interno.

O campo da realidade não é dado a priori, precisa ser construído, pois não depende da percepção do objeto, não diz respeito a nenhuma realidade exterior, mas refere-se ao objeto perdido.

Em 1895, Freud elabora um projeto, conhecido como “Projeto para uma psicologia científica”, através do qual ambiciona apresentar uma psicopatologia nos moldes de uma Naturwissenschaft. Ou seja, constrói um modelo de aparelho psíquico que funciona segundo o modelo do arco reflexo e é constituído por sistemas de neurônios que recebem a quantidade de excitação e descarregam-na, tornando-se vazios novamente. Freud demonstra a função primária do aparelho psíquico, que é a tendência a descarregar toda a excitação que o perturba, negando, dessa forma, seu próprio funcionamento. Mas, como o aparelho deve manter-se funcionando, faz-se necessária a introdução de uma função secundária, expressa no princípio de constância.

Freud apresenta-nos as duas experiências fundamentais capazes de desencadear a constituição da realidade para o sujeito: as experiências de satisfação e de dor. Ambas as experiências são necessidades do organismo e exigem que se realize no meio externo uma “ação específica” para eliminar a excitação. Essa ação só pode ser realizada por um outro que venha a funcionar como força auxiliar do sujeito. É, portanto, a eliminação da tensão decorrente dos estímulos internos que dá lugar à vivência de satisfação. Toda vez que o estado de excitação e a percepção do desprazer reaparecem, a lembrança do objeto de satisfação será reativada em busca da descarga, produzindo, assim a alucinação. O aparelho psíquico não distingue entre o que é percebido e o que é lembrado. Tanto o objeto temido quanto o objeto desejado são apresentados como percebidos, e não lembrados, ou seja, são alucinados.

Como o princípio de prazer não é capaz de distinguir o objeto real do objeto alucinado, é necessário um princípio de correção que confira ao aparelho psíquico uma eficiência mínima, que será dada pelo princípio de realidade.

A perda da realidade

 O que temos em “Neurose e psicose” (Freud, 1924/2016a)? Que a neurose seria um conflito entre o Eu e o Isso e, a psicose, um conflito entre o Eu e o mundo exterior. Ou seja, tanto a neurose como a psicose se originam do conflito entre o Eu com as várias instâncias que o controlam, embora haja um fracasso na função do Eu que se esforça em conciliar as exigências dessas instâncias. A questão é saber como o Eu consegue sair ileso desse conflito.

Vale lembrar que “Além do princípio do prazer”, “O problema econômico do masoquismo” e “O eu e o isso” já haviam sido escritos, o que fez com que Freud pudesse avançar na diferenciação entre neurose e psicose a partir do conflito entre Eu, Isso e Supereu. Podemos observar que o Eu dividido, ao tentar reconciliar as várias exigências feitas a ele, sacrifica uma parte da realidade em graus diferentes. Freud termina o texto “Neurose e psicose”, assim, perguntando sobre o mecanismo análogo ao recalcamento que leva o Eu a se desligar do mundo exterior, na psicose.

Em “A perda da realidade na neurose e na psicose” (Freud, 1924/2016b), escrito poucas semanas depois da conclusão de “Neurose e Psicose”, ele avança em relação a esse último, uma vez que ele está tentando extrair consequências para a nosografia psicanalítica, baseada no conflito e na divisão do Eu.

A perda, ou afrouxamento da realidade, na neurose se dá a partir de um recalcamento fracassado da pulsão. Quando o fator desencadeador de uma neurose é conhecido, o sujeito se afasta da experiência traumática e a relega à amnésia. Por qual caminho a neurose procura resolver o conflito? Recalcando a exigência pulsional, desvalorizando-a. Freud nos fornece o exemplo da paciente que, apaixonada por seu cunhado, fica abalada com a seguinte ideia no leito de morte da irmã: “agora ele está livre e pode se casar com você”. Essa cena é imediatamente esquecida e, com isso, é acionado o processo de regressão que leva aos sofrimentos histéricos. A moça recalca a exigência pulsional, que é o amor pelo cunhado. Haveria uma obediência inicial e uma posterior tentativa de fuga. A neurose não recusa a realidade, apenas não quer saber nada sobre ela; uma parte da realidade é evitada por uma espécie de fuga. Na neurose, a ênfase recai sobre o segundo tempo – o fracasso do recalcamento. Ela se contenta, via de regra, em evitar a parte correspondente da realidade e proteger-se do encontro com ela.

Na psicose, há dois passos: primeiramente, o Eu é arrancado da realidade; no segundo passo, procura reparar o prejuízo e restabelecer a relação com a realidade às custas do Isso. Há, nesse segundo passo, o caráter de reparação, que também procura compensar a perda de realidade, mas através da criação de uma nova realidade, que não apresenta mais o mesmo embate da realidade abandonada.

No caso trazido por Freud, a reação psicótica teria sido recusar a realidade do fato da morte da irmã. Haveria, aqui, uma fuga inicial seguida de uma fase ativa de reestruturação através do delírio, por exemplo.

A psicose a recusa e procura substituí-la. A tarefa da psicose é procurar percepções que correspondam à nova realidade pela via da alucinação. Aqui, a ênfase incide integralmente no primeiro passo – fuga da realidade –, que é patológico e pode levar ao adoecimento.

O segundo passo na neurose e na psicose sustenta-se nas mesmas tendências; em ambos os casos, ele serve à ânsia por poder do Isso, que não se deixa intimidar pela realidade. As duas são a expressão da rebelião do Isso contra o mundo exterior, seu desprazer ou sua incapacidade para se adequar à necessidade real.

Neurose e psicose se distinguem muito mais entre si na primeira reação introdutória do que na tentativa de reparação. Freud insiste, de várias formas, em esclarecer que o segundo tempo em ambas as estruturas são parecidos, uma vez que o fracasso está colocado nas duas formas clínicas.

A diferença crucial entre neurose e psicose é enfraquecida pelo fato de que na neurose não faltam tentativas de substituir a realidade indesejada por uma mais de acordo com o desejo. Isso é possível graças à existência de um mundo de fantasia. É desse mundo de fantasia que a neurose retira material para novas formações de desejo. Na psicose, o mundo da fantasia desempenha o mesmo papel, configurando o reservatório de onde se recolhem a matéria e o protótipo para a construção da nova realidade.

O fantástico novo mundo da psicose quer se alojar no lugar da realidade exterior. O da neurose se apoia em uma parte da realidade, assim como a brincadeira da criança, e lhe empresta um significado especial e um sentido secreto, que chamamos simbólico. Lacan nos ajuda a compreender esse trecho ao afirmar que a realidade não é homônima de realidade exterior. No momento em que desencadeia sua neurose, o sujeito elide, escotomiza, uma parte de sua realidade psíquica, ou, se podemos dizer, seu id. Essa parte é esquecida, mas continua a fazer-se ouvir. Mas como? De uma forma simbólica. É como se o sujeito colocasse um armazém à parte na realidade, conservando recursos para uso da construção do mundo exterior. O sujeito tenta fazer ressurgir a realidade elidida, num determinado momento, emprestando-lhe uma significação particular, um sentido secreto, que chamamos simbólico. É na medida em que a realidade não é plenamente rearticulada de maneira simbólica no mundo exterior que há, no sujeito, fuga parcial da realidade, incapacidade de enfrentar essa parte da realidade, secretamente conservada (LACAN, 1955-56/1985, p. 56).

Quando Freud compara o conflito neurótico ao conflito psicótico, em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, ele está afirmando que existe crise ou conflito quando há oposição entre a exigência pulsional e a consideração da realidade pelo sujeito. Se, na neurose, o conflito se dá pelo retorno da exigência pulsional à qual o sujeito renunciou em favor da realidade, na psicose o conflito ocorre quando se impõe, para o sujeito, a parte da realidade recusada em benefício da pulsão. Isso quer dizer que o conflito se apresenta quando é exigida do sujeito psicótico uma consideração parcial da realidade que ele recusa.

Freud (1924/2016b, p. 284) conclui seu texto afirmando que, para ambas, neurose e psicose, conta não apenas a questão da perda de realidade, mas também a de uma substituição da realidade.

Vemos que Freud abordou a psicose pela perda da realidade, já Lacan, ao diferenciar a neurose da psicose no que diz respeito às perturbações que elas produzem nas relações do sujeito com a realidade, se ocupa menos dessa perda se interessando pela própria constituição do campo da realidade. No caso do psicótico, a relação profundamente pervertida com a realidade se chama delírio. É, portanto, com a realidade exterior que, em certo momento, houve buraco, ruptura, dilaceração, hiância. A própria realidade é, em primeiro lugar, provida de um buraco, que o mundo fantástico virá em seguida cumular.

O “não” e o campo da realidade

 As elaborações de Freud apresentadas no “Projeto…” tornam-se mais claras quando lidas com o auxílio de um outro texto, curto, mas de igual densidade: “A negação” (Freud, 1925/2016), publicado 30 anos depois do “Projeto…”. Nesse trabalho, Freud apresenta as operações primordiais que definem a constituição do sujeito e, consequentemente, seu campo de realidade. Ele mantém a hipótese de que “algo” deve ser expulso, deve estar fora, deve estar perdido, para que essa perda seja incluída, seja aceita pelo sujeito e possa ser, enfim, negada. O esforço a ser feito para assimilar essa operação deve se dar num tempo lógico, mítico e não cronológico.

O principal objetivo do teste de realidade não é encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas, sim, reencontrá-lo. Assim, uma precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que os objetos que outrora traziam satisfação real tenham sido perdidos. A condição da prova de realidade é o objeto perdido: ela exige e força a representação a veicular uma falta – a perda do objeto corresponde à abertura do sistema fechado e à ascensão ao mundo da significação. É o processo de nascimento do sujeito e da sua realidade. Trata-se de pôr à prova o exterior pelo interior, da constituição da realidade do sujeito na redescoberta do objeto. O objeto é reencontrado numa busca, uma vez que não se encontra jamais o mesmo objeto. Ante a impossibilidade de apropriação do objeto, o sujeito se vale da fantasia.

Nesse texto, Freud apresenta a dupla operação primordial – Bejahung e Ausstossung, afirmação e expulsão –, fundamental para a articulação dos mecanismos psíquicos de negação, a saber, a Verneinung, para a perversão, a Verdrangung, para a neurose e a Verwerfung, para a psicose.

Freud conclui que é pela via do “não” que se pode dizer o “sim”. O “não” é o certificado de origem, é a marca fundamental e distintiva do sujeito. O termo Verwerfung, introduzido no texto “A negação”, será traduzido por Lacan como foraclusão e definitivamente isolado como sendo a operação presente nas psicoses.

Jacques-Alain Miller (1996, p. 51) retoma a nota que Lacan (1957-58/1998, p. 559-560) acrescentou em 1966 a “De uma questão preliminar a todo tratamento da psicose”, citando uma fórmula de difícil entendimento: “o campo da realidade se sustenta apenas pela extração do objeto a que, entretanto, lhe enquadra”. Ele desenvolve essa frase articulando a dimensão libidinal das psicoses ao objeto a, ou seja, a realidade está condicionada ao distanciamento, à extração desse objeto, e é exatamente porque é extraído que ele dá à realidade seu enquadramento: o do furo. O furo é o quadro-realidade, a moldura é o enquadre. O sujeito, como sujeito barrado, é esse furo, falta-a-ser.

 

A janela da fantasia só é constituída sob a condição de que o objeto a seja extraído. É por isso que falamos que a fantasia é enquadramento e, também, tela. O termo “tela”, ao mesmo tempo em que faz obstáculo ao olhar, dissimulando-o, também permite que uma imagem se forme. Há ainda a fantasia-cena, ou seja, é no enquadramento dessa janela, sobre essa tela, que a realidade toma sua significação para nós.

Na psicose, a “morte do sujeito” é o que responde à não-extração do objeto a.

Tomemos a função de ver: para que o olho exerça sua função de ver, ele não pode se ver, ou seja, é preciso que ele seja desinvestido libidinalmente para que possa libidinizar o objeto que é visto por ele. A visão do campo da realidade esconde o olhar. Na psicose, o que ocorre é que o olhar se torna visível precisamente porque, como objeto a, ele não se encontra extraído do campo da realidade. O que se produz, portanto, quando o objeto a não é extraído, é o transporte do olhar para esse ponto no infinito, e é isso que o torna visível. A experiência da psicose prova que a não-extração do objeto é correlata da multiplicação das vozes e da multiplicação dos olhares (MILLER, 1996).

Lacan é exemplar com o caso “Eu venho do salsicheiro”. A paciente, ao murmurar “Eu venho do salsicheiro”, escuta como resposta: “Porca”.  O sujeito não recebe sua mensagem de maneira invertida, como o neurótico, mas recebe sua própria mensagem vinda de fora, vinda do real.

Na neurose, o pai é tomado como aquele que agencia a castração. Nesse sentido, pode-se afirmar que a castração é o certificado de que ali teve origem o sujeito. A castração é a expulsão, a renúncia pulsional à qual o sujeito se submete, permitindo a afirmação de um campo de significantes, chamados, por Lacan, de primordiais.

Como já dito, Freud nos ensina que é a partir do “não” que se pode dizer o “sim”. Ou melhor, é porque o sujeito aceita a castração que o seu mundo da realidade se constitui. Com a castração, abre-se uma brecha, uma lacuna que divide o sujeito, inserindo-o no campo do desejo, da promessa de um reencontro com o objeto que outrora lhe trouxe satisfação. É essencialmente o significante do Nome-do-pai que se trata de ser transmitido na neurose.

a psicose, no entanto, não é isso que acontece. A catástrofe na psicose é exatamente porque o pai não foi capaz de transmitir o seu nome, deixando o sujeito “largado”, à deriva. A passagem ao ato pode, muitas vezes, ser um tipo de extração forçada, uma vez que o que temos na psicose é a não-extração do objeto a. A presença do objeto a no real – olhar ou a voz – deve ser apreendida em um movimento de retorno.

O que Freud propõe é que a satisfação libidinal seja subtraída ao sujeito para que seu organismo funcione. Um objeto tem, necessariamente, que estar fora para que a realidade seja constituída. Em primeiro lugar, a realidade se constitui como desinvestida pela libido e, em segundo lugar, essa realidade só se constitui como realidade se ela é furada. Um pedaço da realidade lhe foi arrancado e é este pedaço da realidade que a libido investe. Deve haver uma perda subjetiva para que o mundo interno seja organizado, caso contrário, o sujeito “cairá sob o golpe da Verwerfung”. A Verwerfung é a ausência absoluta da operação de subtração, é a consequência psíquica da não-operação Bejahung-Ausstossung, deixando o sujeito fora do universo simbólico, preso do lado de fora, foracluído, preso no mundo da psicose. A importância dessa operação, constitutiva do campo da realidade de um sujeito, é o certificado de que, naquele sujeito, houve a transmissão de um pai.


 

Referências
 FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1990, p. 387-401. (Trabalho original publicado em 1950[1895])
 FREUD, S. Neurose e psicose. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016a, p. 271-278. (Trabalho original publicado em 1924).
 FREUD, S. A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016b, p. 279-286. (Trabalho original publicado em 1924).
FREUD, S. A negação. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 305-314. (Trabalho original publicado em 1925).
 LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
 LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1957-58).
 MILLER, J-A. Mostrado em Prémontré. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

 

[1] Texto apresentado em Lições Introdutórias à Psicanálise, atividade da diretoria de Ensino do IPSM-MG, em 17/10/2023.



Contradições em um caso clínico

Contradições em um caso clínico1

Lucia Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

delimaebp@gmail.com

Resumo: A autora comenta o ensaio clínico de Freud sobre um caso de paranoia, publicado em 1915, ressaltando as modificações conceituais decorrentes dessa pesquisa que abrangem a clínica do sujeito, a fantasia fundamental, a pulsão e fixação. Nesse relato clínico, Freud extrai consequências da contradição entre a teoria que advém de sua pesquisa decorrente do ato de dar a palavra ao paciente.

Palavras-chave: paranoia; fantasia fundamental, pulsão; fixação.

CONTRADITIONS IN A CLINICAL CASE

Abstract: The author comments on Freud’s clinical essay on a case of paranoia, published in 1915, highlighting the conceptual changes resulting from this research covering the subject’s clinic, fundamental fantasy, drive and fixation. In this clinical account, Freud draws consequences from the contradiction between the theory derived from his research and the act of giving the patient a voice.

Key words: paranoia; fundamental fantasy; drive; fixation.

 

Comentar o ensaio clínico de 1915 intitulado “Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica” provoca surpresa desde seu título, acarreta indagações diversas sobre o tema da paranoia, conduz às conexões, releituras com outros textos e tanto amplia quanto demonstra o trabalho de Freud seguindo as implicações do sujeito como categoria operatória na trama dos elementos que constituem sua história.

O caso clínico

Um advogado amigo de Freud o procura com solicitação de parecer  sobre o diagnóstico de uma jovem de 30 anos,  atendendo  ainda o pedido de proteção que esta lhe fizera diante das perseguições de um homem. Ela relata em ocasiões diferentes as experiências vividas com um funcionário do instituto onde trabalhava, um homem atraente por quem se sentia interessada, mas que estava impedido de casamento por razões externas. Aceita o convite de encontro na casa onde ele residia e, depois de muita insistência, vai visitá-lo. Até então, ela não havia procurado ligações com homens, vivendo sozinha com sua mãe.

Algumas ocorrências durante os dois momentos amorosos com esse homem atraente promovem, progressivamente, a transformação do candidato a namorado em perseguidor. Na primeira, no meio de uma cena de amor, vivida tão somente através de abraços e beijos, ela se assusta com um barulho repentino, pancada ou clique vindo da escrivaninha e pergunta ao namorado qual origem do ruído acidental. Na segunda, quando deixa a casa, passa por dois homens na escada, que ao vê-la, murmuraram alguma coisa entre si. Um deles carregava um objeto embrulhado que parecia uma caixa. Ela começa a pensar que se tratava de um aparelho fotográfico e que os homens  haviam registrado escondido seu encontro.

O namorado, quando inquirido pessoalmente e através de cartas, não oferece respostas convincentes, pelo contrário, lamenta que uma relação de início tão bonita tenha sido destruída  por esta “infeliz ideia doentia”. Ela procura o advogado, conta sua experiência e mostra-lhe as cartas na tentativa de justificar, comprovar seu depoimento.

Freud acrescenta mais duas interpretações produzidas pela jovem, quando esta surpreende o namorado conversando em voz baixa com a chefe do serviço, senhora de cabelos brancos, “como sua mãe” , que até então lhe tratara com carinho. A suspeita se intensifica mais uma vez na certeza de que o homem e a senhora mantinham relações e, nessa ocasião, ele relata a aventura amorosa ocorrida anteriormente. Os protestos veementes  sobre o que chamou de insinuações absurdas, principalmente com respeito à traição mencionada, não conseguiram atenuar as interpretações delirantes da jovem.

Freud inicia sua pesquisa examinada na condição de caso clínico, considerando a natureza da demanda dirigida pelo advogado e confessando de sua parte haver outro interesse além do diagnóstico. Solicita a presença da jovem e acolhe não apenas a queixa, mas o depoimento do reiterado abuso sofrido e praticado por um homem que, em diferentes situações do encontro amoroso, convoca espectadores desconhecidos  para registrarem sua cena. Esse homem pretendia envergonhá-la e as fotos, se reveladas, iriam obrigá-la a deixar seu emprego. Ela foi induzida a uma ligação amorosa, mas o perseguidor original, entretanto, será apenas revelado através da leitura de uma  aparente contradição.

Questões teóricas

Uma breve resenha dos textos de Freud sobre a paranoia, desde o “Manuscrito  H”,  demonstra a interessante progressão na pesquisa psicanalítica derivada da experiência clínica, construção cuidadosa, nem sempre linear, um trabalho ao mesmo tempo rigoroso e sutil decididamente marcado pela incompletude e indagações inovadoras.

No “Manuscrito H”, de 1895, Freud situa a paranoia, ao lado da loucura obsessiva, como psicose intelectual, diferenciada em parte, da paranoia crônica, modo patológico de defesa diante de uma representação intolerável para o Eu, projetando seu conteúdo no mundo exterior, válido para todos os tipos de paranoia: querelante, de grandeza, de ciúme, de perseguição. A ideia delirante é uma cópia ou o oposto da representação rechaçada e a referência a si mesmo sempre tenta provar que a projeção está correta.

Freud examina, no “Manuscrito K”,  de 1896, a partir de casos clínicos, a noção de vivência primária, diferenciada da neurose obsessiva. Nesta, o sintoma primário que se forma, a desconfiança, é decorrente do mecanismo da recusa e consequente projeção da crença na recriminação. A lacuna no psíquico é elemento interessante encontrado nessa época e desenvolvido em pesquisas posteriores.

O  encontro de Freud com a autobiografia de Schreber, publicada anteriormente  em 1903, resultou nas “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia”, de 1911, no qual assinala que o delírio político-teológico, impregnado nesse caso da ideia de eternidade e o Deus de Schreber com o qual o paciente iria criar uma nova raça de homens, é associado aos fenômenos de linguagem, entre os quais se destacam os fenômenos de código e mensagem, além das alucinações. A partir desse caso clínico produz investigações substanciais para a chamada “doença da mentalidade”.

Freud considerava que o delírio paranoico era resposta e gênese do conflito  homossexual, além de apresentar várias formas de defesas localizadas em Schreber nas frases: “eu, um homem, amo ele, um homem”; o amor invertido em ódio, porque o perseguidor, uma pessoa amada ou seu representante, torna-se o autor que justifica, no delírio, o ódio: “eu não o amo, eu o odeio, porque ele me persegue”.

O retraimento libidinal malsucedido do narcisismo na paranoia encontrará apoio na realidade, e a pesquisa desse caso fundamentará, três anos depois, um desenvolvimento mais preciso do conceito de narcisismo.

“Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica”, publicado  após a vastidão de seu trabalho sobre Schreber, em um primeiro momento retoma a questão da luta do sujeito contra a intensidade de suas tendências  homossexuais que remetem a uma escolha narcísica do objeto. O perseguido, do mesmo sexo, é representante de alguém que foi amado no passado pelo perseguidor, e sobre ele recai o  conjunto das interpretações e certezas delirantes. “Freud nos adverte  que as análises dos paranoicos nos ensinam que o delírio se presta a um remendo colocado onde havia surgido uma fissura, uma reparação na relação do eu com o mundo exterior”, resultando em defesa bem sucedida, portanto a psicose (CAMPOS, 2022, p. 31).

No caso da jovem paranoica apresentado por Freud, ao mesmo tempo em que ela tenta se libertar das ligações com a imagem primordial da própria mãe através do recurso do delírio paranoico, acusa o namorado de ser suspeito, opondo-se aos argumentos formulados por ele, além de buscar em um advogado apoio para seus delírios  aferrando-se à crença de seus julgamentos, embora o perseguidor original resida na “instância de cuja influência ela quer escapar”, ou seja, a mãe. Realiza a dupla lógica gramatical proposta por Freud, negação e projeção, presentes na paranoia.

O que parece estranho, comenta Freud, é que a jovem consiga defender-se do amor pelo homem com ajuda do delírio  paranoico, embora considere que fantasias e sintomas  comportam deslocamentos e substituições.  Esse achado se contrapõe às suas hipóteses anteriores da prevalência da paranoia nos homens e, como argumento, evoca no plano das fantasias as observações sexuais dos pais feitas pelas crianças, no complexo parental, e constata que os sintomas embora substitutos não conseguem encerrar os conflitos.

A luta sintomática, portanto, é prolongada por novos componentes, e o próprio sintoma sucumbe, torna-se objeto dessa luta opondo-se à mudança. A pesquisa conduzida através desses novos componentes implicará em vários remanejamentos conceituais, tais como inconsciente, pulsão, repetição.

Na redação final do  último parágrafo do texto, Freud sugere que, na própria experiência clínica, através do exercício de escuta e leitura do caso, reside tanto a contradição  quanto o argumento, que se serve dessa contradição para promover novas investigações. Seria a pesquisa o ponto de interesse para além do diagnóstico, vislumbrado e confessado inicialmente por Freud? A nota final dos tradutores desse texto informa que a contradição, nesse caso, é apenas aparente, e a argumentação freudiana se mantém sustentando uma construção original.

Freud verifica a presença de uma inércia psíquica, encontrada também na neurose, que se opõe às mudanças. Essa inércia representa um dos fatores que participam da fixidez e repetição sintomáticas.

Se rastrearmos o ponto de partida dessa inércia especial ela se revela como expressão de enodamentos de pulsões – estabelecidos muito cedo e difíceis de desatar –, com impressões e com os objetos nelas existentes, através de cujos enodamentos  se deteve a continuidade  do desenvolvimento desses componentes pulsionais. (FREUD, 1915/2022, p. 95)

O salto nas argumentações freudianas é imenso a partir desse parágrafo. Até então, a identificação ao objeto amoroso primordial justificava em parte as construções delirantes, como em Schreber, mas a fixação do sintoma apresenta na clínica outros elementos que resistem às mudanças, o principal deles, na esfera pulsional, diz respeito aos modos de satisfação, presentes no jogo entre  vida e morte.

Para melhor cernir a importância dessa questão, buscamos provisoriamente dois pontos de orientação.

O primeiro ponto de orientação, mais imediato, mas difícil de determinar, supostamente pode ser localizado no texto “Além do princípio do prazer”, de 1920 – mais especificamente no posfácio de Marco Antônio Coutinho Jorge (2021) à edição brasileira desse texto pela Autêntica, que se serve da leitura das construções lacanianas, contribuindo assim para o aclaramento de algumas questões relativas ao caso clínico:

      1. O narcisismo é etapa decisiva, necessária, mas insuficiente, na constituição do sujeito, implicado na estrutura psicótica na forma positiva, no caso da paranoia, e na forma negativa, na esquizofrenia. Freud evidencia o narcisismo diretamente ligado à pulsão sexual, mas manifesto em sua dupla vertente – vida e morte. O mito de Narciso veicula essa dupla vertente pulsional, visto que a presença do amor e da morte são marcantes tanto na ficção quanto na realidade.
      2. A repetição comparece na clínica em dois tempos: em 1914, vinculada à pulsão sexual, à fantasia e ao princípio do prazer; e, em 1920, a repetição mostra sua face oculta, a pulsão de morte, o real impossível de ser simbolizado, para além, portanto, do princípio do prazer.
      3. A fantasia, passível de ser definida como associação entre inconsciente e pulsão de morte, sexualiza a pulsão de morte e localiza o gozo ilimitado e mortífero.
      4. Nas psicoses, entretanto, a foraclusão impede a operação do recalque originário e a instauração da fantasia fundamental. O delírio é o que vem tentar suprir a falta, no caso o vazio de registro, marca qualquer para produzir localização do gozo no sujeito psicótico.
      5. Freud concluirá, em “Neurose e psicose” e em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, que há perda da realidade, remendo ou invenção, criação de um mudo novo, correlativos à onipresença tanto da fantasia, quanto da interpretação, nas duas estruturas. A diferença entre essas interpretações dependerá dos recursos subjetivos de cada um.

A segunda orientação advém das diferenças, anunciadas em 1915 por Freud, entre fantasia e fantasia fundamental. Diferentes das fantasias consideradas como formações do inconsciente, as fantasias primordiais encontradas em todas as crianças – que incluem, além da “observação” da relação sexual dos pais, a sedução, castração –, fazem parte do que Freud considerou como recalque primário, inacessível à lembrança, suporte do longo trabalho das construções em análise.

Neste ensaio, a importância do conceito de fantasia fundamental e sua função compensatória na psicose, desenvolvido  por outros pesquisadores,  é mencionado pela primeira vez, e o  caso clínico apresentado confirma o quanto a fantasia é realizada na psicose e imaginarizada na neurose. As investigações mais recentes apresentadas pela clínica das compensações na psicose através da fixidez e repetição das imagens indeléveis informa: “Por não ter podido construir uma fantasia fundamental que venha responder ao enigma do desejo do Outro, o sujeito psicótico se encontra em uma relação de íntima proximidade com um Outro que se apresenta como gozador” (MALEVAL, 2020, p. 199, tradução nossa).

Feitas essas considerações, voltemos ao caso clínico. A vida aparentemente pacífica de uma jovem de 30 anos é perturbada pela demanda amorosa. Quando o corpo dessa jovem é solicitado na resposta à demanda amorosa, e na impossibilidade de encontrar palavras ou atos para cernir essa experiência, surge a cascata de interpretações decididamente marcadas pela certeza. A fixidez de seus julgamentos não dá margem para a dúvida: as intenções do Outro são más. O enigma ou o vazio proposto pela relação sexual encontra sua resposta absoluta fazendo equivaler imaginariamente realidade e fantasia.

A partir de um simples caso clínico, com elementos colhidos em poucas entrevistas, Freud constrói pontes que franqueiam a leitura de uma experiência inédita e permitem que a psicanálise ilumine detalhes despercebidos na passagem das identificações para o circuito pulsional e seus modos misteriosos de satisfação.

O enorme trabalho de investigação que marcou sua incidência sobre o narcisismo e as identificações, até permitir acesso  ao silêncio pulsional, requereu muitos anos de pesquisa de Freud, retomados por Lacan e Miller, que, no campo freudiano, fazem da contradição fonte renovada de trabalho.

As transformações subjetivas e seu elemento invariante, que nesse ensaio clínico Freud nomeou como fixação, ou inércia especial, se repete na história singular e na clínica em geral, decorre da experiência ímpar, em torno de um vazio, lugar da criação de algo sempre novo… ainda.


Referências
 CAMPOS, S. de. Investigação lacaniana das psicoses: As psicoses extraordinárias. Vol. 1. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
FREUD, S. Manuscrito H: Paranoia (24.01.1895). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Trabalho original publicado em 1895).
 FREUD, S. Manuscrito K: As neuroses de defesa (01.01.1896). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. (Trabalho original publicado em 1920).
FREUD, S. Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, psicose e perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1915).
JORGE, M. A. C. Posfácio – Incidências clínicas: o terceiro  passo de Freud. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
MALEVAL, J. C. Coordenadas para la psicosis ordinária. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2020.

 

[1] Texto apresentado em Lições Introdutórias à Psicanálise, atividade da diretoria de Ensino do IPSM-MG, em 05/12/2023.



Neurose e psicose: um início de compreensão

Neurose e psicose: um início de compreensão1

Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, Membro Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

lucianasbl@gmail.com

Resumo: O presente texto visa fazer um apanhado teórico do texto de Freud intitulado “Neurose e psicose”, publicado em 1924. Diante da questão sobre qual seria o mecanismo de defesa da psicose, a autora discorre sobre o conceito de foraclusão em Lacan.

Palavras-chave: neurose; psicose; foraclusão.

NEUROSIS AND PSYCHOSIS: A BEGINNING OF UNDERSTANDING

Abstract: The present text aims to make an overview of Freud’s text “Neurosis and psychosis”, published in 1924. Faced with the question of what the defense mechanism of psychosis would be, the author discusses the concept of foreclosure in Lacan.

Keywords: neurosis; psychosis; foreclosure.

 

 

No pequeno texto “Neurose e psicose”, escrito e publicado por Freud em 1924, há, pela primeira vez, a ocorrência do termo “psicose” em um título. Vê-se também a separação entre duas entidades clínicas: neurose e psicose. Vale lembrar que as concepções tratadas aqui são fruto dos avanços do psicanalista em sua elaboração da segunda tópica e, especialmente, depois de “O eu e o isso”, publicado no ano anterior.

A diferença entre neurose e psicose será pensada em termos do conflito entre as novas instâncias psíquicas, ou seja, entre o Eu, o Isso e o Super-Eu. Em poucas palavras, “a neurose é o resultado de um conflito entre o Eu e seu Isso, ao passo que a psicose é o resultado análogo de uma perturbação semelhante nas relações entre o Eu e o mundo exterior” (FREUD, 1924/2022, p. 271).

Para Freud, as neuroses de transferência se originam da seguinte forma:

O mais curioso é que o “Eu, ao fazer essa operação de recalcamento, está obedecendo as leis do Super-Eu, que, por sua vez, tem origem nas influências do mundo real exterior e que no Super-Eu encontraram sua representação” (FREUD, 1924/2022, p. 272). O fato é que

O Eu tomou partido dessas forças, que suas exigências são nele mais fortes do que as exigências pulsionais do Isso e que o Eu é a força que promove o recalcamento contra aquela parte do Isso e o fortifica através de um contrainvestimento da resistência. A serviço do Super-Eu e da realidade, o Eu entrou em conflito com o Isso; eis o estado de coisas em todas as neuroses de transferência. (FREUD, 1924/2022, p. 272)

Vê-se, dessa forma, que o Eu se torna refém tanto das forças do Isso, quanto das do Super-Eu. O aparelho psíquico não suporta o desprazer e faz o que pode para evitá-lo, por isso essa “dança”, para que sua economia se mantenha estável.

No caso da psicose, Freud considera ser fácil mencionar exemplos de mecanismos de defesa que apontam para a perturbação das relações entre Eu e mundo exterior. Cita um exemplo grave, a amência de Meynert, que se caracteriza por uma aguda confusão alucinatória, na qual o mundo exterior não é percebido, ou sua percepção permanece totalmente ineficaz.

Na “normalidade”, o mundo exterior governa o Eu de duas maneiras: “primeiro, através de percepções atuais e sempre renováveis; segundo, através do repertório de percepções antigas que, como ‘mundo interior’, configuram um patrimônio e um componente do Eu” (FREUD, 1924/2022, p. 273). Já na amência, a aceitação de novas percepções é recusada, o mundo interior tem sua significação retirada e o Eu cria para si um novo mundo exterior e interior.

Em outras formas de psicose, como nas esquizofrenias, percebe-se um embotamento afetivo e uma perda de toda participação no mundo exterior. Em relação à gênese das formações delirantes, a hipótese é que sejam uma tentativa de remendo colocado onde originariamente havia surgido uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior.

Então, na amência, o mundo exterior é completamente abolido, e, nas outras formas de psicose, o sujeito se embota afetivamente e há perda da participação do mundo. Portanto, verifica-se a gravidade da primeira forma.

Freud propõe que a etiologia para o início de uma psiconeurose, ou psicose, continue sendo o impedimento:

Freud afirma que o Super-Eu introduz uma complicação, que é a unificação em si tanto do Isso quanto do mundo exterior, tornando-se, de certa forma, um modelo ideal daquilo a que visa todo o anseio do Eu, ou seja, a reconciliação com suas diversas dependências.

Continuando seu raciocínio, o psicanalista acredita haver afecções que têm por base um conflito entre o Eu e o Super-Eu. Em relação a esse conflito específico, ele afirma ser o caso da melancolia o melhor exemplo dessas “psiconeuroses narcísicas” (FREUD, 1924/2022, p. 275), distinguindo-a, assim, das outras formas de psicoses.

Ele conclui, nesse momento, que a “neurose de transferência corresponde ao conflito entre o Eu e o Isso; a neurose narcísica, a um conflito entre o Eu e o Super-Eu; a psicose, a um conflito entre o Eu e o mundo exterior” (FREUD, 1924/2022, p. 275).

No entanto, mesmo diante da informação de que tanto a neurose, quanto a psicose, se originam do conflito entre o Eu com as várias instâncias que o controlam, a questão de como saber como o Eu consegue sair ileso desse conflito – que estão sempre presentes – é algo a ser discutido.

Ao final de seu texto, Freud coloca uma questão importante: qual seria o mecanismo análogo ao do recalcamento, pelo qual o Eu se desliga do mundo exterior, na psicose?

A foraclusão

Lacan, no primeiro tempo de seu ensino, desenvolverá a ideia da foraclusão (Verwerfung) como o mecanismo específico da psicose. A Verwerfung como um mecanismo de defesa fora utilizada por Freud em seus escritos a fim de demarcar a ação de uma barreira, de uma rejeição ou uma abolição. Mas Lacan (1956/1985, p. 174), no Seminário 3, lhe dá uma noção mais radical:

De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da paranoia. Trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo significante.

Na passagem, percebe-se a clara diferença entre Verwerfung e Verdrangung (recalque). Na Verdrangung, mecanismo clássico da neurose, há chance de o sujeito ter acesso aos conteúdos recalcados através do retorno do recalcado, como os sintomas, sonhos, lapsos. Já na Verwerfung, isso é impossível, pois há uma “exclusão de um dentro primitivo” tornando o que foi suprimido completamente inacessível.

No final desse Seminário sobre as psicoses, Lacan adotará o termo em francês forclusion, em vez de verwerfung: “Não torno a voltar à noção da Verwerfung de que parti, e para a qual, tudo bem refletido, proponho que vocês adotem definitivamente esta tradução que creio ser melhor – a foraclusão” (LACAN, 1956/1985, p. 360).  Sabe-se que o psicanalista toma de empréstimo a foraclusão do vocabulário jurídico, que se refere a um processo acabado legalmente, prescrito. Ou seja, nesse primeiro tempo de seu ensino, ele se apropria desse termo para mostrar a inexistência do Nome-do-Pai na psicose e como esse significante fica fora do simbólico.

Percebe-se que, na primeira clínica de Lacan, baseada na foraclusão, há um acento naquilo que falta ao psicótico, pois falta-lhe o Nome-do-Pai como o que lhe permitiria significantizar o gozo do seu corpo e o gozo do corpo do Outro.

Como entender a foraclusão do Nome-do-Pai? Para isso é necessário compreender a noção da metáfora paterna.

A fórmula da metáfora paterna deriva da noção de metáfora, em que um significante substitui um outro criando um efeito de significação. No caso da metáfora paterna não se trata de um significante qualquer, mas de um especial, o do Nome-do-Pai, que deve atuar sobre outro significante, o do Desejo da Mãe.

O Desejo da Mãe é sempre uma incógnita, pois ninguém sabe o que a mãe quer e um filho nunca estará à altura do que ela quer. Consequentemente, isso se torna um X, um enigma que cada sujeito tentará dar uma significação. O que acontece na psicose é que o Nome-do-Pai falta e não opera sobre o Desejo da Mãe – que poderia produzir a significação fálica. O Desejo permanece uma incógnita, deixando o sujeito sem condições de responder como falo, pois o Nome-do-Pai não está inscrito no campo do Outro, pois foi foracluído.

Por essa razão, o psicótico não consegue responder usando a significação fálica. A psicose seria, portanto, a consequência da foraclusão do Nome-do-Pai e da ausência da significação fálica, levando Lacan a afirmar que o que é foracluído no simbólico reaparece no real.

José

José é um senhor de 70 anos que trabalhou a vida toda em uma grande instituição no campo do transporte. Veio de uma família simples do interior e, com seu ofício, se destacou no seio familiar no quesito financeiro. Começou a trabalhar muito jovem e, mesmo depois de sua aposentadoria, continuou ativo no sindicato daquela empresa. A função desse sindicato é auxiliar os trabalhadores em relação a problemas jurídicos que tenham com a empresa, além de esclarecer seus direitos e deveres. José teve cargo na diretoria dessa instituição por longo período e sua chapa saía vitoriosa por mais de 20 anos nas eleições.

Pode-se dizer que o trabalho e a função no sindicato lhe deram uma sustentação fálica nesse longo tempo. Entretanto, e sem que suspeitasse, sua chapa perdeu as eleições, forçando-o a se aposentar definitivamente.

Poucos meses depois dessa derrota, José entrou em um estado alucinatório e delirante. Acreditava que seu apartamento fosse desmoronar, além de ouvir gritos de pessoas pedindo socorro no elevador. Ou seja, uma catástrofe acontecia ao seu redor. José chegou a tentar se jogar da janela de seu apartamento ao ouvir vozes alucinadas dizendo que o perigo se aproximava. Não conseguia sair da cama e permanecia com olhar estuporado.  Depois que sua família conseguiu levá-lo para tratamento, José conseguiu se estabilizar e está aparentemente sem alucinações. No entanto, encontra-se incapaz de retomar a “vivacidade” dos tempos de antes do desencadeamento.

Esse caso ilustra bem como um sujeito, ao se deparar com a ausência da significação fálica – no caso de José, ao se ver destituído do posto que lhe dava isso de forma imaginária –, responde com o desencadeamento psicótico. Ou seja, como afirmava Lacan em sua primeira clínica, o que foi foracluído no simbólico, retorna no real.


Referências
FREUD, S. Neurose e psicose. In: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 271-278. (Trabalho original publicado em 1924).
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).

 

[1] Texto apresentado em Lições Introdutórias à Psicanálise, atividade da diretoria de Ensino do IPSM-MG, em 08/08/2023.



A clínica no era do real

A clínica no era do real1

Esthela Solano-Suárez
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause freudienne/AMP

solano-suarez@orange.fr

Resumo: A prática clínica tem seu lugar na lacuna entre o dito e o dizer, no qual se privilegia o caso a caso e o particular sob transferência. Ao se orientar por uma defesa contra um real sem lei, produzido por uma desordem a partir do discurso da ciência e do discurso capitalista, o fazer clínico acontece a partir da leitura do singular de cada falasser. A psicanálise, numa clínica orientada pelo real, é capaz de transmitir algo de novo que se verifica no entusiasmo do analista praticante.

Palavras-chave: real; inconsciente; sintoma; transferência.

THE CLINIC IN THE REAL MOMENT

Abstract: Clinical practice takes place between what is said and what is being said, and every single case and what is particular to it gets privileged over under transference. Clinical practice takes place guided by a defense against a lawless real, produced by a disorder from the discourse of science and that of capitalism, and from the reading of the singular part of each parlêtre. In a clinic guided by the real, psychoanalysis is able to transmit something new that can be seen in the excitement of the practicing analyst.

Keywords: real; unconscious; symptom; transference.

A clínica psicanalítica não é uma clínica do comportamento, nem de seus transtornos. Ela não se confunde com uma visada educativa que se declina segundo os critérios em conformidade com uma “norma”. Ela não se limita a um puro formalismo prático, que quer explicar aquilo que se faz ou que não se faz (LACAN, 1955/1998, p. 326). A clínica psicanalítica não se encontra em nenhum outro lugar a não ser “no que se diz em uma análise” (LACAN, 1977, p. 7, tradução nossa). Não é, portanto, uma clínica do fazer, mas uma clínica na qual o dito se renova não por uma realidade factual, mas por sua relação com o dizer.

Freud, ao dar a palavra às histéricas, levou a sério seus ditos, revelando uma verdade que só pode se meio-dizer através das formações do inconsciente. Uma verdade variável, recalcada, inconfessável, afirmada em sua denegação, jorrando no desvio de um lapsus, de um Witz, de um tropeço, de um deslize, e testemunhando por seus efeitos a dimensão na qual se cumpre para o sujeito uma secreta satisfação do gozo. Assim, a descoberta freudiana inaugura o espaço inédito de um dizer que “se infere da lógica que toma como fonte o dito do inconsciente” (LACAN, 1972/2003, p. 453).

Na disjunção entre o dito e o dizer repousa o espaço da clínica analítica. Essa disjunção convoca a distância entre o que é da ordem do meio-dizer da verdade e do real do gozo que ex-siste ao dito.

A abordagem de Freud responde à topologia da banda de Moëbiu, em que o relato do caso e a invenção do conceito seguem um traçado que percorre uma só borda. Certamente isso comporta a exigência da formalização, mas esta se enlaça à experiência e se infere de uma leitura dos ditos do analisante. Escutemos Freud a esse respeito:

Via de regra, contudo, a controvérsia teórica é infrutífera. Tão logo o analista começa a desviar-se do material com o qual deveria contar, corre o risco de intoxicar-se com as próprias afirmações e, no final, de apoiar opiniões que qualquer observação poderia contradizer. (FREUD, 1918[1914]/1996, p. 59)

Essa observação de Freud defende que o campo da clínica psicanalítica se subordina ao mais particular do sujeito. É um convite para que a teoria analítica seja posta em questão na análise de cada caso.

Uma clínica sob transferência

Se a clínica freudiana incorpora elementos da psiquiatria clássica, principalmente a distinção dos tipos de sintomas, longe de ser uma clínica mecanicista, ela pretende compreender, a partir de um trabalho de decifração, tanto a função do sintoma quanto suas vias de formação. Ora, se se verifica que há tipos de sintomas identificáveis e diferenciados, isso não quer dizer, no entanto, que os sintomas do mesmo tipo têm o mesmo sentido. Permanecendo fiel à observação de Freud, Lacan (1973/2003, p. 554) considera que: “Os sujeitos de um tipo, portanto, não tem utilidade para os outros do mesmo tipo”. Assim, observa ele, o discurso de um sujeito obsessivo não se encontrará esclarecido a partir do que é dito por um outro obsessivo. Essa clínica do particular nos abre a via de uma formação suscetível de nos incentivar a saber ignorar o que nós sabemos (LACAN, 1955/1998, p. 355).

Ora, o dito do analisante inclui a presença do analista, que não somente o autoriza, mas constitui seu endereçamento. A experiência da palavra, assim acordada, só se desenvolve “ao preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto saber” (LACAN, 1967/2003, p. 254). A transferência como pivô da experiência analítica comporta a suposição de um sujeito do saber “supostamente presente, dos significantes que estão no inconsciente” (LACAN, 1967/2003, p. 254). Desse modo, a clínica psicanalítica é uma Clínica-Sob-Transferência (MILLER, 1984, p. 142, tradução nossa). Nessas condições, o laço estabelecido entre os dois parceiros da experiência, o analisante e o analista, responde à estrutura inédita do discurso analítico. No discurso analítico, o saber vem em posição de verdade. O analisante não terá outro saber a não ser os efeitos de verdade produzidos por seu trabalho.

O sujeito suposto saber é uma função relativa à articulação significante. Ela introduz a suposição daquilo que quer dizer o sintoma. Essa função suporta a crença no sintoma como formação linguageira suscetível de dar um sentido, um Sinn. Uma tal pressuposição de sentido está a trabalho pelo simples fato de que o sintoma é comunicado ao analista. Ela é primeira, e presta contas das condições de possibilidade da experiência: “No começo da psicanálise está a transferência. Ela ali está graças àquele que chamaremos, no despontar desta formulação: o psicanalisante” (LACAN, 1967/2003, p. 252).

Jacques-Alain Miller (2010, p. 148) demonstra a dupla articulação da transferência em ação no texto da “Proposição de 9 de outubro…”, de Lacan. De fato, se a relação analítica institui o sujeito suposto saber relativo aos efeitos de sentido próprios à articulação significante – der Sinn –, em seguida virá nesse lugar a Bedeutung enquanto “referencial ainda latente” (LACAN, 1967/2003, p. 254). J.-A. Miller argumenta que se trata aqui da função do analista enquanto objeto libidinal, isto é, enquanto objeto a, referente ainda latente quando se produzem os primeiros fenômenos de interpretação (MILLER, 2006/2007, p. 149, tradução nossa). A função da transferência articula assim a vertente semântica e a vertente libidinal. Em consequência, podemos conceber o alcance da definição da transferência dada por Lacan, que, por um lado, faz apelo ao sujeito suposto saber e, por outro, caracteriza a transferência como sendo “a atuação da realidade do inconsciente”, especificando em seguida que “a realidade do inconsciente é a realidade sexual” (LACAN, 1964/1988, p. 143).

Através de suas formações, o inconsciente interpreta a realidade sexual. Isso permite opor-se aos efeitos de sentido das formações do inconsciente – lapsus, atos falhos e sonhos – nos quais se revela “o estatuto fugidio do ser” (MILLER, 2011, s/p) na fulgurância de um efeito de verdade contingente, surpreendente e imprevisível, feito de furo que ex-siste aos ditos, presentificando o real do sexual.

Se os falasseres – os seres que não detêm seu ser senão pela palavra – testemunham uma relação com o sexo singularmente sintomática, barrada pela inibição e habitada pelo afeto da angústia, isso se inscreve como consequência daquilo que do sexual “não cessa de não se escrever” (LACAN, 1972-73/1985, p. 49), a título de relação sexual. Essa impossibilidade “é um furo do saber no real”, em consequência, “não há no dizer da existência relação sexual” (LACAN,1972-73/ 1985, p. 49).

 O real e a clínica

 A clínica psicanalítica é uma clínica que se orienta pelo real. Se o real foi definido por Lacan como sem lei e fora de sentido, o real em jogo na psicanálise não é o real da ciência. O real é um pedaço, não um universo, é um caroço, não um todo. Ele é suscetível de ser isolado como o fora-de-sentido do gozo do sintoma, uma vez que este foi despido de seu aparelho de ficções fantasmáticas, a título de “verdade mentirosa” (LACAN, 1976/2003, p. 569).

É o que os testemunhos dos AE informam a partir da construção do percurso de sua experiência de análise e da redução desta a um caroço. Por esse viés, a clínica do passe é uma transmissão daquilo que é o mais singular do sujeito enquanto resto irredutível, no sentido em que se revela ex-sistir “um pobre real que se apaga como um puro encontro com lalangue e seus efeitos de gozo sobre o corpo” (MILLER, 2014, p. 30).

Ao constatar que até hoje “nossos casos clínicos são construções lógicas de uma clínica sob transferência”, J.-A. Miller (2014, p. 31) nos propõe então, como programa de trabalho, em face da desordem no real introduzida pelas consequências do discurso da ciência e do discurso capitalista no século XXI, seguir o caminho de uma clínica psicanalítica orientada pela “defesa contra o real sem lei e fora de sentido” (MILLER, 2014, p. 31).

Um vasto programa que este número de Revue La cause du Désir[2] coloca na ordem do dia sob o tema do “entusiasmo pela clínica” (“l’engouemant pour la clinique”). Com efeito, se o termo provém de “empanturrar-se”, usado no século XVII no sentido de “sufocar ao obstruir a garganta”, sabemos que não é nesse sentido que vamos nos orientar, enchendo o sintoma de sentido. É, antes, uma questão de “privar o sintoma de sentido” (MILLER, 2011, s/p) e passar da escuta do sentido para a leitura do sem sentido, visando assim a opacidade do real. Talvez o entusiasmo tomado no sentido metafórico atribuído ao termo desde o século XVII, no sentido de “estar cheio de, estar repleto de”, seja um afeto correlato, não dos efeitos de sentido, mas aos efeitos de furo no qual o real ex-siste.

Se o real não cessa de não se escrever, ele não se encontra na exatidão da rotina, nem do padrão. É o caminho da contingência e da invenção que ele convoca. Em cada caso, se desenrola uma reinvenção da psicanálise suscetível de nos transmitir algo de novo, do entusiasmo pela clínica.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Rodrigo Almeida

Referências
FREUD, S. História de uma neurose infantil. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1917).
LACAN, J. Ouverture de la Section Clínique. Ornicar?, n. 9, 1977.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Variantes do tratamento-padrão. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 323-364. (Trabalho original publicado em 1955).
LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 248-264. (Trabalho original publicado em 1967).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1972).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 553-556. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.567-569. (Trabalho original publicado em 1976).
MILLER, J.-A. CST – Clinique Sous Transfert. Ornicar?, n. 29, 1984.
MILLER, J.-A. Lo real del inconciente. In:  Conferencias Porteñas: desde Lacan. Buenos Aires: Paidos, 2010.
MILLER, J.-A. Ler um sintoma. AMP Blog, ago. 2011. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html. Acesso em: 01 ago. 2023.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
SOLANO-SUÁREZ, E. La clinique à l’heure du réel. La Cause du Désir, n. 82, p. 21-24. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2012-3-page-21.htm. Acesso em: 28 out. 2023.

[1] Texto originalmente publicado em 2012 na revista La Cause Du Désir.
[2] Cf. Nota 1.




O ato de leitura em psicanálise

O ato de leitura em psicanálise1

Ram Mandil
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

mandil.bhe@terra.com.br

Resumo: O autor parte da constatação de que vivemos na era da gestão como modelo da ação, como cálculo de proveitos e codificação das escolhas, em nome do bem-estar individual ou coletivo. Nesse sentido, ele destaca a importância de colocar o ato analítico em perspectiva, em um tempo no qual se busca tamponar os encontros, cada vez mais frequentes, com a inconsistência do Outro. E esclarece que é a partir do discurso analítico que podemos orientar o debate sobre a ordem simbólica no século XXI em uma nova dimensão, levando em conta o contraste entre o simbólico como cadeia significante e o simbólico definido em relação ao furo, ao trauma, ao que não cessa de não se escrever.

Palavras-chave: ato analítico; ordem simbólica; cadeia signficante; furo.

THE ACT OF READING IN PSYCHOANALYSIS

Abstract: The author starts from the observation that we live in the era of management as a model of action, as a calculation of profits and codification of choices, in the name of individual or collective well-being. In this sense, he highlights the importance of putting the analytical act into perspective, at a time when we seek to buffer the increasingly frequent encounters with the inconsistency of the Other. And it clarifies that it is from the analytical discourse that we can guide the debate on the symbolic order in the 21st century in a new dimension, taking into account the contrast between the symbolic as a signifying chain and the symbolic defined in relation to the hole, the trauma, the that never ceases to be written.

Keywords: analytical act; symbolic order; signifying chain; hole.

 O que pode ser o ato analítico na época dos protocolos e das diretrizes terapêuticas, em que a ação ideal consiste em reduzir, ao mínimo, toda possibilidade de imprevisto? Como observa Éric Laurent, trata-se de um ”ideal de ação calculada”, na medida em que um ato é concebido como assimilável ao raciocínio, como a conclusão lógica das suas premissas.[2] Ele nos lembra que vivemos a era da gestão como modelo da ação, como cálculo de proveitos e codificação das escolhas, em nome do bem-estar individual ou coletivo. Nesse sentido, é importante colocar o ato analítico em perspectiva, numa época em que se busca tamponar os encontros, cada vez mais frequentes, com a inconsistência do Outro. Assim, podemos dizer que há uma foraclusão do ato em muitos domínios de nossa cultura que envolvem a tomada de decisões, quando se manifesta uma descontinuidade entre o ato e suas premissas.

 O ato analítico e o ato de leitura do sintoma

No que diz respeito ao ato de leitura em psicanálise, na perspectiva do ato analítico, vamos nos referir a uma passagem do caso Dora, mais precisamente à maneira como Freud trata um de seus numerosos sintomas: sua tosse persistente, sua tussis nervosa.

De início, Freud observa que sua tussis, frequentemente acompanhada de um sintoma de afonia, estava diretamente associada à presença ou ausência do homem para qual ela dirigia seu amor naquele momento. Ele ressalta que os episódios de tosse coincidiam com os deslocamentos que o Sr. K. devia fazer. No entanto, ele sugere que ela precisava encontrar um meio para dissimular a coincidência entre seus acessos de tosse e a ausência do homem que ela amava em segredo. De toda maneira, segundo Freud (1905[1901]/1972, p. 37), é preciso ler na periodicidade das crises de tosse “um traço de seu significado original”. Logo em seguida, Freud abre uma discussão sobre a causa dos sintomas histéricos. Devemos considerá-los como sintomas “somáticos” ou como sintomas “psíquicos”? Mesmo sob a perspectiva do somático, Freud indaga-se em que medida eles são influenciados pelo “pensamento”.  Pode-se colocar isso em perspectiva com as recentes elaborações de Jacques-Alain Miller (2011, p. 56-57), especialmente em relação à diferença que ele estabelece entre um “fenômeno de corpo” e um “acontecimento de corpo”. Deve-se tomar um acontecimento de corpo como um efeito do impacto do significante, o que implica um desarranjo ou um desvio do que se imaginaria ser “o gozo natural do corpo vivo”. Dito de outro modo, deve-se considerar um acontecimento de corpo, no sentido do sintoma, como um efeito da ação do significante, “que opera fora do sentido”. É desta ação do significante que se produz uma metáfora, ponto de partida para a metonímia do gozo, na qual se veicula a dialética da significação.

Nesse sentido, vale a pena trazer aqui extrato do texto de Freud (1905[1901]/1972, p. 44):

Tanto quanto posso ver, todo sintoma histérico […] não pode se produzir sem uma certa complacência somática que se manifesta por um processo normal ou patológico num ou sobre um órgão do corpo. Esse processo só se produz uma vez – e a capacidade de repetir-se é uma das características de um sintoma histérico – a menos que tenha uma importância, um significado psíquico. O sintoma histérico não tem esse significado, em si, mas tem o significado que se lhe empresta, soldado a ele, por assim dizer; e em todos os casos o significado pode ser diferente, segundo a natureza dos pensamentos recalcados que estejam lutando por expressão.

Examinemos uma das interpretações que Freud faz da tosse de Dora. Pode-se dizer que ele toma, de início, esse sintoma do lado da metonímia: como suas queixas contra seu pai persistiam ao mesmo tempo que seus acessos de tosse, Freud (1905[1901]/1972, p. 44) escreve que foi “levado a pensar que esse sintoma podia ter uma significação em relação ao seu pai”. Por outro lado, Freud (1905[1901]/1972, p. 44) vai atrair nossa atenção para o aspecto metafórico do sintoma, sua relação com o gozo sexual, o sintoma como substituto de um prazer sexual: “o sintoma significa a representação – a realização – de uma fantasia de conteúdo sexual”.

Lembremos, aqui, a vinheta bem conhecida na qual Freud encontra outra ocasião para interpretar a tosse de Dora. Ele sublinha a insistência de Dora ao dizer que a Sra. K. não estava apaixonada por seu pai, mas que apenas estava com ele porque ele era “ein vermögender Mann” (um homem de posses, rico). Aqui é importante seguir, de perto, o texto de Freud (1905[1901]/1972, p. 45):

Certos pormenores da maneira como ela se expressou – particularidades que omito aqui, como a maioria das outras partes puramente técnicas do trabalho da análise – levaram-me a perceber atrás desta frase o seu sentido oposto oculto, ou seja, que seu pai era um homem sem recursos. [O que em alemão – “ein unvermögender Mann” – significa também um homem impotente, no sentido sexual do termo.]

O que parece importante não é a emergência de uma significação escondida, mas a revelação de uma contradição com um valor de significante da falta no Outro. Freud apresenta a contradição a Dora: como ela pode insistir, ao mesmo tempo, numa ligação sexual entre seu pai e a Sra. K. e a impotência de seu pai? Pode-se ver aqui que a falta no Outro aponta para um impasse na relação sexual. É notável como, naquele momento, o fantasma de Dora vem justamente tapar esse furo, ao dizer a Freud que existem muitos outros meios de obter prazer sexual. Nesse momento ela confessa pensar no sexo oral.

Duas dimensões do sintoma se fazem aí presentes: a que é apreendida pelo sentido e a que permanece opaca a toda significação. Pode-se dizer que o gozo apreendido pelo sentido é o que está enquadrado no fantasma. No caso de Dora, Freud (1905[1901]/1972, p. 45) faz esta observação:

A conclusão era inevitável no sentido de que, com sua tosse espasmódica que, como de hábito, se reportava por seu estímulo excitante a uma cócega na garganta, ela pintava para si mesma uma cena de satisfação sexual per os entre as duas pessoas cujo caso amoroso ocupava tão incessantemente sua mente.

Ainda que Freud reconheça no desaparecimento do sintoma, logo após essa interpretação, uma confirmação de sua tese segundo a qual o sintoma desaparece uma vez sua significação revelada, ele também deixa margem para um aspecto do sintoma que permanece fora do alcance do sentido. Para Freud, um sintoma não pode ser completamente elucidado pelo sujeito, e é justo aí que reside sua eficácia como sintoma. Aliás, como esse sintoma da tosse de Dora sempre se mostrou intermitente, Freud encontra aí uma possível explicação de seu desaparecimento. Mas, de fato, ele não parece duvidar que sua dissolução decorre desta interpretação.

Vamos nos referir agora à relação que Freud estabelece entre o sintoma de tosse de Dora e o seu corpo. Além de ser uma forma de identificação com seu pai, pelos espasmos e pelos mucos – dois elementos de conotação sexual –, pode-se reconhecer nessa tosse, tal como Freud a analisa, aquilo que J.-A. Miller identifica como sendo os dois níveis de gozo: o gozo do corpo vivo, na sua dimensão autoerótica, e o gozo marcado pelo significante. Freud (1905[1901]/1972, p. 80) dá uma boa imagem da relação entre os dois: primeiramente, ele descreve a dimensão autoerótica do sintoma de Dora como a presença, em sua garganta, “de uma irritação real e orgânica”, que funcionava, diz ele, como “o grão de areia ao redor do qual a ostra forma sua pérola”. Depois, ele precisa: “Esta irritação era suscetível de fixação, pois dizia respeito a uma parte do corpo que, em Dora, conservara acentuadamente sua importância como zona erógena” (FREUD, 1905[1901]/1972, p. 80). Essa irritação convinha para a expressão de todos seus diferentes estados de excitação libidinal. Em torno do grão de areia contingencial observa-se a formação de um gozo que conflui com o sentido, de um gozo situado na relação com o Outro, seja a tosse de Dora entendida como signo da identificação com seu pai, seja como representação de sua relação com o Sr. K., ou, bem, a tosse como representação-realização de uma relação sexual fantasmática através de sua identificação com a Sra. K.

Podemos concluir que a leitura do sintoma de Dora pode ser feita em duas dimensões: ou se lê nele a expressão de uma polifonia de sentido, ou orienta-se a leitura para separá-lo de todas suas significações. Nessa perspectiva, pode-se dizer, valendo-me aqui da metáfora freudiana, que a leitura de um sintoma consiste no esforço para ler o grão de areia no interior da pérola, o grão de areia em torno do qual a pérola se formou.

A metáfora do grão de areia não deixa de evocar aqui uma outra metáfora, a que Lacan criou sobre a letra como “litoral”. Um litoral enquanto diferente de uma fronteira, na medida em que ele articula dois lados heterogêneos, como a terra e o mar. Dito de outro modo, a letra tanto como elemento simbólico, quanto um receptáculo do gozo, aspecto que se torna mais evidente quando ela não está comprometida com o sentido.

 Ler um sintoma, ler o inconsciente

Interroguemos, agora, a relação entre “ler um sintoma” e “ler o inconsciente”. Em “Ler um sintoma”, J.-A. Miller insiste sobre a diferença entre os dois: o sintoma, em sua relação com o real, se apresenta como fixação, como o que está sempre no mesmo lugar, enquanto se percebe o inconsciente a partir de fenômenos fugazes, como os sonhos, o lapso, os atos falhos, etc.[3]

Lembremos aqui algumas das ideias de Jacques Lacan sobre a leitura no discurso psicanalítico, especialmente a última passagem da lição do Seminário 20, Mais, ainda: “A função do escrito”. Sabemos que, nessa passagem do Seminário, ele tem a escrita de James Joyce em mente. Lacan compara o ato de leitura em psicanálise ao esforço que devemos fazer para ler Finnegans Wake. Só podemos ler uma formação do inconsciente ou um lapso, do mesmo modo como é exigida a leitura de Finnegans Wake, como um número infinito de leituras possíveis. Não se pode lê-los, senão como mau-lidos ou de maneira oblíqua.

“O de que se trata no discurso analítico é sempre isto – ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa”, dirá Lacan (1972-73/1985, p. 52). De certa maneira, é o que se pode inferir do ato de leitura que Freud fez do sintoma de tosse de Dora. O que se diz, como significante, podia ter uma multiplicidade de sentidos. Logo, isso não tem uma significação particular, o que indica, de certo modo, a presença do lugar vazio da significação.

No entanto, na mesma lição, Lacan introduz uma nova dimensão ao ato de ler o inconsciente: a dimensão do ler-se. Ele produz uma alegoria da observação das abelhas e dos pássaros: por exemplo, se vemos um grupo de pássaros voar baixo, dizemos que uma tempestade se aproxima. Em certa medida, pode-se comparar esta leitura com a leitura do inconsciente, pela vertente do sentido. Mas o que Lacan quer saber é se se pode considerar que os pássaros fazem também esta leitura de sua maneira especial de voar, como estando em relação com a tempestade. Segundo ele, esta é a verdadeira questão da leitura do inconsciente. Como já observou J.-A. Miller, a questão é saber se nós podemos considerar o próprio inconsciente como um leitor, como um intérprete. Donde a questão de como ler o inconsciente, visto ser ele um leitor de si mesmo.

Lacan nos faz observar que, no discurso analítico, supomos que o sujeito do inconsciente é um sujeito que sabe ler. Pode-se supor não apenas que ele sabe ler, mas que ele pode também aprender a ler. No entanto, essa lição conclui de forma enigmática, quando ele afirma que aquilo que o sujeito do inconsciente pode aprender a ler não tem nada a ver “com o que vocês possam escrever a respeito” (LACAN, 1972-73/1985, p. 52). Uma das interpretações possíveis desta frase é que aquilo que o inconsciente pode verdadeiramente aprender a ler, ao longo de uma experiência analítica, é alguma coisa que não pode se escrever. O que não pode se escrever, e sabemos disso através do próprio Lacan é, de fato, a relação (rapport) sexual entre os falasseres (parlêtres).

 O escrito para não se ler

Uma semana antes desta lição sobre a função da escrita no discurso analítico, Lacan havia redigido um Posfácio ao livro 11 do seu Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Nesse Posfácio, há nova referência a James Joyce, como aquele que introduziu a dimensão da escrita como não sendo destinada à leitura: “um escrito como para não se ler” (LACAN, 1964/1985, p. 263).

Há aqui um contraponto que deve ser levado em consideração. No fim da lição sobre a função do escrito do Seminário 20, Lacan indica uma leitura disso que não pode ser escrito. No entanto, devemos levar em conta que o que não pode ser escrito – a relação sexual como impossível – deixa uma marca, um traço que abre para a dimensão da letra. Lacan o havia assinalado quando introduziu o matema S(Ⱥ), o significante da falta no Outro. Nós podemos inferir que este significante pode ser considerado como uma letra, uma letra a ser lida como “um grão de areia”, e não como um significante a espera de uma significação.

Gostaria de me referir aqui a uma passagem de Um retrato do artista quando jovem, de James Joyce, na qual se percebe como a letra vem em primeiro plano a cada vez que o sujeito se vê confrontado com a inconsistência do Outro.

Numa passagem dessa obra encontra-se o seguinte diálogo entre o jovem Stephen Dedalus – “James Joyce tentando decifrar seus enigmas”, segundo Lacan – e Wells, seu colega de classe:

Depois que ele saiu, Wells veio até Stephen e lhe disse:

“Diga-nos uma coisa, Dedalus, você beija sua mãe antes de ir deitar?”

Stephen respondeu:

“Beijo, sim.”

Wells virou-se para os demais camaradas e disse:

“Escutem uma coisa, este camarada aqui está dizendo que beija a mãe dele todas as noites antes de ir deitar.”

Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela direção, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:

“Não beijo nada.”

Wells disse:

“Escutem vocês, este camarada aqui está dizendo que não beija a mãe dele antes de ir deitar.”

Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu todo seu corpo quente e confuso, de súbito. Qual era a resposta certa para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. […] Fora Wells que o empurrara para dentro da valeta na véspera […] Agir assim era uma coisa má; todos os camaradas tinham dito. E como a água estava fria e escorregadia! […]

O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro; […] Tentava ainda pensar qual seria a resposta certa. Era direito beijar sua mãe, ou não era direito beijar sua mãe? Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umideciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! por que as pessoas faziam isso assim com seus rostos? (JOYCE, 1998, p. 17-18)

Nessa passagem, gostaria de chamar a atenção para o fato de Stephen estar aqui confrontado com a inconsistência do Outro, ou melhor, com o enigma da falta no Outro. Qual é a resposta certa? O que o Outro quer de mim? É interessante notar que esse fragmento é seguido de certos acontecimentos de corpo: ele sente seu corpo quente e confuso. Depois ele se lembra do momento em que foi jogado no fosso, o corpo todo coberto com um lodo frio. Mas o que chama a atenção é que Stephen passa da interrogação sobre a resposta certa para um questionamento sobre a própria palavra beijar – kiss. Ele não se interessa tanto pelo sentido da palavra kiss, mas principalmente por uma suposta relação entre essa palavra e o corpo, entre essa palavra e o gesto que lhe corresponde. O parágrafo termina com Stephen associando as letras dessa palavra com a materialidade do som. Kiss, ao final, é a escrita do som que vem da boca. É também o meio que ele encontra para cifrar, condensar o gozo no qual fora jogado através do enigma insolúvel produzido pelo colega. Pode ser que esta passagem nos ajude a compreender o que é o ato de ler um sintoma, se o tomamos como “o encontro material entre um significante e o corpo, o próprio choque da linguagem sobre o corpo” (MILLER, 2011. p. 58).

Dois pontos podem enriquecer o debate sobre o ato de leitura em psicanálise. De um lado, acompanhando as elaborações de J.-A. Miller sobre o estatuto do inconsciente, é bastante útil a distinção que ele faz entre “o inconsciente real” e “o inconsciente transferencial”. Essa distinção dá um duplo estatuto ao inconsciente, ou mais, ela permite conceber o inconsciente como um Janus. Nesse sentido, poder-se-ia tomar o inconsciente real como um enxame de S1 (essaim) ou como letras que funcionariam como receptáculos para o gozo fora do sentido. Nosso interesse pela leitura do inconsciente deveria ser contrabalançada pelo que vem da leitura do sintoma. Se existe uma parte do sintoma que responde à leitura do inconsciente, o que está em questão é a possibilidade de ler, no sintoma, o que resta e o que se repete, produzindo um gozo fora do sentido para o sujeito.

O segundo ponto está implicado na oposição entre o sujeito considerado como “falta-a-ser” e o sujeito considerado como um furo. Segundo J.-A. Miller (2012, s/p), dever-se-ia pensar “a relação ou a filiação, e, portanto, a diferença entre a falta-a-ser e o furo. Com esse furo Lacan queria, em seu último ensino, definir o próprio simbólico, defini-lo como furo”.

A partir do discurso analítico, podemos orientar o debate sobre a ordem simbólica no século XXI para uma nova dimensão, levando em conta o contraste entre o simbólico como cadeia significante e o simbólico definido em relação ao furo, ao trauma, ao que não cessa de não se escrever.

 


Referências
FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1972, p. 15-116. (Trabalho original publicado em 1905[1901]).
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trabalho estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
MILLER, J.-A. Lire un symptôme. Mental, n. 26, jun. 2011.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne: L’Être et l’Un. Lição de 11 de maio de 2012. (Inédito).

[1] Uma primeira versão deste texto foi apresentada em The Lacanian Compass, 2011-2012, e publicada em La Cause du désir, n. 82, , p. 95-102, 2012-2013.
[2] Para esta reflexões, remeto ao artigo de Éric Laurent  “La ilusion del cientificismo, la angustia de los sábios”, publicado em 21 de agosto de 2011 em Pipol News n. 51. Disponível em: http://www.europsychoanalysis.eu/site/page/es/22/es/pipol_news_51_-_08072011#article-box-140
[3] Sobre esta distinção, remetemos ao artigo de Miller (2011), “Lire un symptôme”.



Uma experiência de sorte

Uma experiência de sorte1

Sérgio de Mattos
Psicanalista, A. E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

E-mail: sergioecmattos@hotmail.com

Resumo: O autor traça a diferença entre o começo de uma análise e a entrada em análise visando, nas entrevistas preliminares, o laço entre analista e analisando. A transferência, portanto, é o que leva o sujeito a amar seu inconsciente e, consequentemente, desejar decifrá-lo. Para que um sujeito possa dar continuidade em uma análise é preciso que o analista provoque, logo de início, que é possível experimentar uma mudança para melhor, que é possível mudar sua sorte, seu destino!

Palavras-chave: análise; entrevistas preliminares; entrada; porta; sorte.

A LUCKY EXPERIENCE

Abstract: The author traces the difference between the start of an analysis and the entry into analysis by looking at the bond between analyst and analysand in the preliminary interviews. The transference, therefore, is what leads the subject to love their unconscious and, consequently, to want to decipher it. In order for a subject to be able to continue with an analysis, the analyst needs to show them, right from the start, that it is possible to experience a change for the better, that it is possible to change their fate, their destiny!

Keywords: analysis; preliminary interviews; entry; door; luck

Estou honrado pelo convite de ser o responsável por esta atividade que é a aula inaugural do IPSM-MG. Agradeço em especial à Lilany e à Diretoria pelo convite.

Esta atividade inaugura o começo dos nossos trabalhos do segundo semestre deste ano. Inaugurar e começar são praticamente sinônimos. Entretanto, a palavra “começar” nos remete a uma continuidade, por isso falamos de começar a analisar-se, e não em inaugurar uma análise. Inauguro, assim, o começo das atividades do Instituto com o assunto que ocupará nossa atenção no X ENAPOL, cujo título é “Começar a analisar-se”. Esse título foi escolhido com cuidado pela sua importância clínica. O começo de uma análise planta as sementes do que poderão vir a ser seus frutos. Nesse percurso também haverá ventos, tempestades, muitas podas, sol, as contingências estarão presentes e nada garante a floração e os frutos. Mas, mesmo sem garantias, um bom começo criará as chances de termos um bom resultado. Esse começo é como uma vela que abrimos para o vento levar nossa embarcação. Se a vela estiver fechada, mesmo que o vento sopre não iremos adiante e nem teremos os meios de dirigir nossa embarcação. Desenho então diante de vocês uma paisagem – duas, a do cultivo e a do barco.

Ambas dependem de um procedimento específico, plantar a semente e abrir as velas e atravessam um limiar, algo que não havia passa a acontecer e a fazer uma diferença: uma começa com um movimento, outra com o rebento da semente. A ideia de ultrapassar um limiar é crucial quando tentamos formular o que é começar a analisar-se. É importante, portanto, diferenciar o começo de uma análise, no sentido mais geral, do termo preciso formulado por Lacan, chamado de entrada em análise. Contudo, devemos nos orientar desde o início no sentido de que o começo, em geral, se dá no interior, ou na perspectiva dessa entrada.

Podemos, assim, para explicitar essa diferença, fazer coincidir o começo dos primeiros encontros com o analista, com o que é chamado de entrevistas preliminares, preliminares à entrada propriamente dita. Elas são “pré”, anteriores a esse limiar que constitui uma entrada na experiencia do inconsciente. É bonito ver essa experiência começar a acontecer, experiência que é muitas vezes para o analisante um pouco assustadora: o que assusta é a percepção de não ser dono de si mesmo. De que ele, seus atos e interpretações do mundo são determinados por forças que ele desconhece e que o dominam sem saber.

É interessante pensar para nosso propósito aqui hoje sobre a palavra entre-vista. Freud chamava esse tempo de “ensaio prévio, tratamento de ensaio”, que visava, além de um possível diagnóstico, justamente ligar o paciente ao seu tratamento. Gosto especialmente da palavra escolhida por Lacan: entrevistas. As propriedades do significante, de produzir várias significações, nos dão com esse termo um alvo preciso, porque entrevista é uma palavra que começa com “entre”, como quando se diz: “entre pela porta!”. Ou: “fique entre isso e aquilo”.

Essa palavra, escolhida para designar esse tempo de começo, tem na língua falada por Lacan, o francês, uma ênfase especial, que é o sentido de manter, sustentar, dar continuidade. Trata-se de sustentar, “entre”. Sustentar mutualmente, “entre-tenir”. Mas a palavra recobre também a ideia da instauração de uma ligação, de um lugar de trocas de palavras e linguagens – um espaço potencial de reunião. Nesse caso, uma entrevista visa, através do laço entre analista e analisando – o qual chamamos de transferência –, incidir na instauração de ligações na estrutura subjetiva do analisando. Ao se endereçar a um destinatário, ao analista, o sujeito pode, nas entrevistas, fazer coexistir em si, ligar, conectar, pôr em cadeia, diversas experiencias esparsas, clivadas, apagadas, desvalorizadas que, pelo endereçamento, pelo poder de evocação das palavras, ressonâncias, padrões, encontra, no endereçamento ao destinatário, um terreno favorável para uma certa “reunião”. Engajados em uma entrevista, existe então a oportunidade de ligar diversas partes de uma vida, de uma história, construindo uma experiencia única, que ganha forma nesse encontro. Em nosso caso, trata-se de, nesse encontro, que se sustente algo que possa fazer justamente acontecer uma análise.

Cabe ao analista ajudar a encontrar, e mesmo a provocar, essa entrada na experiência do inconsciente, dar um empurrãozinho, por meio da sua atenção a significantes importantes que possibilitem essas associações e, claro, por meio de suas interpretações.

Lacan e o limiar

 Quando perguntaram a Lacan, na Universidade de Yale, sobre como acolhia seus pacientes de acordo com sua teoria e prática, ele respondeu: é uma questão de os fazer entrar pela porta. Da análise ser um limiar, de haver uma verdadeira procura deles. Procura do que é que eles se querem ver livres. De um sintoma.

Podemos deduzir daí que há um lugar na fala do paciente ao qual devemos dar máxima atenção. É preciso colocar nossa atenção ao que levou o sujeito a procurar uma análise, cernir esse ponto de sofrimento, de embaraço, o que não anda bem. Não é sem consequências buscarmos saber também o que aconteceu em um determinado momento que levou à decisão para essa procura. Certamente ali haverá elementos que, naquela circunstância específica, evocaram traumas, repetições e algo insuportável que desencadeou o desejo de tratar.

O que leva a buscar uma análise, hoje, é em parte o mesmo de antes: um embaraço, um sofrimento, alguma coisa que nunca vai bem repetidamente, a “pedra no caminho”, como disse o poeta Drummond. Mas, hoje, o que faz sofrer aparece às vezes logo de entrada como um excesso, uma adicção, uma questão sobre uma inadequação do corpo biológico e a identificação ou não com ele. No fundo, também podemos colocar essas questões dentro do problema dos excessos. A sexualidade humana é sempre excessiva em relação à possibilidade de representar seus modos de satisfação.

Lacan e a porta

De volta ao “entre”: para Lacan, no Seminário 2, O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica, a porta é o símbolo por excelência, aquele pelo qual sempre se reconhecerá a passagem de um homem em algum lugar… ao fazer com que se entrecruzem o acesso e a cerca. Lacan (1954-55/1985, p. 377) chama a atenção para a relação entre o acesso e a cerca: uma porta “deve estar aberta [acesso] e depois fechada [cerca], e depois aberta, e depois fechada”.

Um tempo depois, no Seminário 6, Lacan (1958-59/2016, p. 460) retoma sua referência à metáfora da porta, mas introduz, entre o acesso e a cerca, um novo elemento: um lugar entre portas. Tomando como exemplo o caso Richard, tratado por Melaine Klein, ele mostra como esse abre e fecha da porta tem as mesmas características da nossa relação com a cadeia significante e, desse modo, como o comportamento da criança está imerso nessa estrutura desde os primeiros momentos com a analista. Richard responde às intervenções de Klein de modo exemplar: ele vai se pôr entre as duas portas, a porta interna dos consultórios e a porta externa, num espaço escuro. Espanta a Lacan que Klein, que viu tão bem o limite entre o mundo interno, as “trevas interiores”, e o externo, não tenha enxergado o alcance dessa zona intermediária. Zona que não é nem interior, nem exterior, e que se encontra em certas estruturas da aldeia primitiva como zonas baldias, entre a aldeia propriamente dita e a natureza virgem. Zona do no man’s land, onde, nesse caso, o desejo do pequeno sujeito entra em pane tentando pôr-se ao abrigo do desejo do Outro. Podemos ver nessa zona uma antecipação do que vai ser formulado no Seminário 16 como “o lugar do mais ninguém” (LACAN, 1968-69/2008).

O que podem nos ensinar essas passagens sobre o começo de uma análise senão que desde os primeiros encontros é preciso entrar nos jogos dos significantes, ligá-los, torná-los amigos um do outro, para que possam conversar, mas também jogar com essa zona intermediária, essa terra de ninguém? Não será essa a verdadeira terra de uma análise? Esse lugar vazio, fora dos lugares conhecidos, mas que é o suporte de todos os lugares possíveis? É entre os significantes e o buraco, ligados aos embaraços aos sofrimentos do sujeito, que podemos levá-lo a se interessar, a amar seu inconsciente, desejar decifrá-lo, que é o que chamamos de S.s.S?[2]

Esse “entre” é, portanto, muito importante. Se fecharmos demais a porta da cadeia significante, fechando os sentidos, uma análise terá pouca chance de acontecer, podendo inclusive facilmente se transformar em uma psicoterapia. Por outro lado, aberto demais, não haverá chance de que haja um laço entre analisando e analista, inviabilizando a análise.

Psicanálise ou psicoterapia

Nessa altura, cabe notar que toda psicoterapia oferece, de uma maneira ou de outra, um saber pronto, um sentido. No final das contas, o que ela oferta é uma visão do que é um sujeito ou do que é a saúde mental. Em outras palavras, trata-se da oferta de um ideal! Procura-se o desvio da realidade imaginada e, em seguida, a adequação a ela segundo uma visão de mundo. Toda psicoterapia é uma defesa standard contra o real. No começo de uma análise, é muito importante estar atento para que não haja um desvio para a psicoterapia. Respostas terapêuticas precoces certamente fecharão a porta para analisar-se. Na psicanálise, entra-se pela porta do não saber, que de certo modo se reabre a cada sessão. Mas a cada sessão vai-se também construindo um saber singular sobre o sofrimento daquela pessoa, vão se fechando algumas portas que delimitam os problemas, os programas de gozo do ser falante. Abre-se a porta, fecha-se a porta, abre, fecha.

Entramos aqui em um ponto importante do nosso título: “Começar a analisar-se”. O que pode querer dizer nesse título o “se”, do começo? Trata-se de um “si mesmo”? O que se formula nesse “se analisar”?

É preciso aí não perder o fio da meada concernente ao que somos como efeito de saber. E, como efeito de saber, somos cindidos. No fantasma $<> a, é como se fossemos causa de nós mesmos, como se houvesse um si mesmo que dirige o barco da fantasia. Mas, na verdade, isso seria mais próximo da Nau dos Loucos. Nessa perspectiva, já no começo da experiência trata-se (se estivermos diante de uma neurose, é claro) de interrogarmos esse delírio de identidade, essa crença de ser si mesmo. Porque não existe um si mesmo, o que há é um ser dividido, já que um significante não pode repre­sentar a si mesmo. Quando Lacan diz que é preciso definir o significante como aquilo que representa um sujeito para outro significante, isso significa que nin­guém saberá nada dele, exceto o outro significante. E o outro signifi­cante não tem cabeça, é um significante.

Como é que alguma coisa desse sujeito, que é produzido por um significante para se apagar prontamente em outro, pode se constituir e, no fim, fazer-se tomar por um si mesmo, por uma consciência de si, por algo que se satisfaz por ser idêntico a si mesmo? É justamente isso que se trata de examinar logo, porque é justamente aí que há um “entre”, entre os significantes. O sujeito, seja qual for a forma em que se produza em sua presen­ça, não pode reunir-se em seu representante de significante sem que se produza, na identidade, uma perda, propriamente chamada de objeto a.

Quero chamar a atenção de vocês para isso que encontrei no Seminário 16, De um Outro ao outro. Encontrei Lacan deslocar a ênfase dada aos significantes (significante qualquer, significante da transferência…) em 67, na ”Proposição de 9 de outubro”, para o que ele chamou na ocasião de agalma, esse elemento libidinal em jogo na máquina significante e que é, digamos assim, a energia para fazer o algoritmo funcionar. A importância de passagem é deslocar esse elemento libidinal já para o começo dos tratamentos. Na “Proposição”, podemos dizer que nos encontramos com o agalma no final, a partir de Um Outro ao outro, ele está na partida. Ele é, nos diz Lacan, um dos limites em torno dos quais se articula o vínculo da manutenção da referência ao sujeito su­posto saber, como o chamamos na transferência, com esse índice da necessidade repetitiva que decorre daí, que é, logicamente, o objeto pequeno a.

Nesse sentido, qualquer análise começa interrogando esse delírio do eu, delírio de ser idêntico a si mesmo, para conduzir por um caminho no qual o sujeito é um objeto, um resto que se repete incessante entre os significantes, resto de toda tentativa de representação. Salto desesperado em algo de ordem libidinal e que, mesmo ao preço de se apagar, agarra em algo que tem uma fixidez de gozo. Essa dimensão de gozo, localizada em pedaços que chamamos de objeto a, são muito relevantes no momento que vivemos, quando o que encontramos não são sujeitos cheios de palavras e busca de sentido, mas, ao contrário, atolados no gozo e no consumo de todo tipo de objetos ofertados pelo mercado. Jacques Lacan chama o objeto a de “objeto intragável”. Não haveria aí uma boa indicação clínica para esses casos, que parecem estar com o objeto entupindo suas gargantas, impedindo-os de falar? Não seria esse um dos efeitos das condições discursivas regidas hoje pela ciência, enquanto serve ao mercado e a dominância do consumo, que esse objeto esteja, como nunca, atolando o sujeito?

Nessa perspectiva, uma análise segundo Miller começa com um interesse e paixão por objetos brilhantes, que logo se tornam invisíveis, desvanecendo-se, apagando esse fulgor, tornando-se algo duro, como um osso e com o qual nada a mais a fazer – a não ser separar-se dele, digo eu. Tal condensação libidinal cada vez mais compacta é o objeto da construção do fantasma. Se o objeto está desde o princípio, em potência pelo menos, se ele é causa da divisão subjetiva e da pergunta ao Outro sobre o que sou para ele como objeto de valor e de desejo, essa é a verdadeira natureza do laço. A fundamental natureza do laço com o Outro é a do laço entre o sujeito dividido e o objeto a, ou seja, a articulação mesma que constitui o fantasma fundamental de cada um. E então é com isso que dirigimos uma cura.

Do saber ao gozo

Não vou retomar aqui em detalhes a primeira sessão de minha primeira análise (a primeira daquelas duas que me levaram ao final). Já falei bastante sobre isso em meu testemunho (que deve sair publicado na próxima edição da revista Opção Lacaniana). Lembro apenas que, em poucos minutos do encontro com o analista, fui do completo desespero de receber uma “porta na cara” – quando, ao responder sua pergunta sobre o que eu havia produzido de saber em uma análise anterior lhe digo que sabia qual era o desejo de minha mãe, ele vocifera: “se você sabe qual o desejo de sua mãe, uma análise não pode fazer nada por você” – para o oposto: uma porta aberta. O analista, com um pequeno sorriso, me levou até a porta do seu consultório e, com uma mão em meu ombro, marcou a próxima consulta. Lembro ainda que, na noite que precedeu essa sessão, sonhei com a morte de minha mãe, em um cenário de representações que me levou a recordar uma cena traumática infantil, nunca lembrada. Tratava-se de uma cena traumática em que, diante de um episódio de ameaça de autoextermínio de minha mãe, me vejo diante de uma porta fechada, perco os sentidos e apago. É possível ver aí como nesse primeiro encontro com o analista se abriu a dimensão de um gozo mortífero que havia ocupado toda a minha existência. Perturbou fortemente a minha defesa constituída por um saber (“sei tapar o buraco da mãe, digamos assim, vamos entupir logo aquela garganta e a minha também” – fiz, aliás, uma anorexia infantil) e, com essa intervenção, fez cintilar o que eu só pude verificar muitos anos depois, de modo condensado e como “diretor” de minha existência: a presença do objeto nada, como objeto prevalente no meu fantasma, ou seja, do padrão constante de meu laço com o Outro.

 Do tempo e da sorte de analisar-se

Quero terminar com um último assunto. É, digamos assim, uma consideração especial à dimensão inventiva e criadora, a qual, como psicanalistas, estamos convidados a responder mesmo no começo de cada experiência que conduzimos. Como acabou meu tempo, vou trazer as coordenadas principais do assunto.

Uma análise começa com um encontro e continua com encontros até seu final. Lacan gostava de usar a expressão francesa “au petit bonheur, la chance”, para falar desse encontro.  Essa é uma expressão usada quando se faz algo ao acaso, esperando que, com sorte, vá dar certo. O curioso aí, o crucial, o gênio, é que o analista pode ajudar a encontrar a boa sorte, tornar o encontro mais feliz ali e na vida do analisante.

Esse encontro casual, acidental, era o que Lacan (1964/1988) chamava, no Seminário 11, de tiquê, categoria aristotélica para pensar as causas. Há na contingência, sob uma forma ou outra, o fato de que duas coisas se encontram, “alguma coisa faz um encontro; alguma coisa que poderia não ter feito um encontro, faz um encontro; o que é em geral acompanhado de um espanto” (EBERSOLT, 2021, p. 143). No jogo da contingência, nos interessa particularmente como Aristóteles concebia “a contingência que não parecia contingência” (EBERSOLT, 2021, p. 143), ou seja, nos casos em que o encontro parecia ter uma finalidade, imaginava-se ter acontecido aquele encontro contingente por causa de uma finalidade já dada. Como no exemplo em que o credor encontra por acaso seu devedor a tanto tempo buscado, justo quando sai de casa para passear, e não para receber o dinheiro que lhe era devido. Dizemos: é porque tinha que ser! Estava escrito! Mas não estava escrito. Depois é que se escreveu o que estava antes. Quem é o devedor que tomamos como exemplo acima do texto de Aristóteles, no caso de uma análise? Não seria o gozo que nos é devido? Poder gozar um pouco melhor com nosso sintoma? O paciente sai então para passear na paisagem do analista e, ops! O que ele pode encontrar de novo, entre as repetições e impossibilidades?

Na introdução à primeira edição alemã dos Escritos, Lacan (1973/2002) vai dizer: existe a sorte. De fato, é tudo que existe… O ser falante é heureux, é feliz, isso é tudo que lhe resta. É uma referência ao Eclesiastes, tudo passa e depende pouco de nós, “Vaidade das vaidades”, é uma das traduções. Então vamos ser um pouco mais felizes, comer bem, beber, amar, trabalhar com o que se gosta – é mais ou menos isso que propõe um dos grandes textos sapienciais ao qual Lacan recorre de vez em quando. Será que o discurso analítico não poderia deixá-lo um pouco mais feliz (feliz, com um gozo melhorzinho)?

Miller (2021, p. 234) chama essa possibilidade de intervir na sorte da vida de um analisante de contingência lacaniana, através da qual o analista é “Um parceiro que tem a oportunidade de responder – de um outro modo”. Para ele, em uma análise se trata de pôr em jogo a contingência: “Volto a pôr em jogo a boa sorte, salvo que, nessa oportunidade, essa vez, vem de mim e sou eu que devo proporcioná-la”.

 O problema aí é, como já me perguntaram: se se trata de sorte, ou da palavra azar, como é usual utilizar no sentido geral de coisas acidentais, como é possível intervir nisso? É aí que vemos toda a genialidade de Lacan. Lacan se interessa pelo acaso quando ele se transforma em discurso. O que isso quer dizer? Encontrei o melhor esclarecimento desse assunto em um texto de nosso saudoso colega José Attié, sobre Mallarmé, quando ele diz que o acaso que interessa a Lacan é aquele que pode ser interrogado pelo simbólico.

Para ir rapidamente ao assunto, isso quer dizer que, para Lacan, o acaso deve ser restrito à contingência, ou seja, ao acaso enquanto restrito a fatos de linguagem, a rastros que são as pistas, os aluviões que governam o discurso de um ser falante. Em outras palavras, o que Aristóteles sugeria como “a contingência que não parecia contingência”: onde imaginava-se ter acontecido, por causa de uma finalidade já dada, Lacan interpõe a linguagem e a escrita. O que é que estava escrito? As marcas que em cada um de nós são a condição da repetição. Não é, portanto, que o analista possa dominar o acaso, essa é a finalidade da ciência, mas, para nós, o acaso pode ser interrogado a partir da resposta que deu o sujeito a um impacto traumático primordial e de como essa resposta se inscreveu como determinação inconsciente que tem consequências no sofrimento de sua vida.

O analisante, ao submeter-se à regra da associação livre, tenta intencionalmente tanto quanto possível se aproximar de falar ao acaso, e eis que, no meio disso, ele se pega agarrado por significantes que determinam sua vida. O papel do neurótico vai ser o de tentar, por outro lado, abolir todo o acaso, demonstrando, se podemos dizer assim, que sua resposta ao trauma foi a necessária, estava escrito, quer dizer, o reenvio da palavra à escritura, o reenvio daquelas palavras ao lugar desde onde foram escritas como marcas de gozo, enunciação que se apresenta pelo funcionamento do sujeito suposto saber.

Onde entra o analista nessa trama? Laurent (2019) nos mostra que ele guarda desde o começo a referência do efeito S.s.S, como artificio desde onde se revela a potência do “estava escrito” – Maktub –, mas acrescenta o erro de leitura como uma abertura para uma nova chance, uma boa sorte. Como alguém pode dar continuidade em uma análise se não experimenta logo que algo pode mudar para melhor, que o que sempre lhe fez sofrer pode se reescrever de outro modo?

A sorte pode advir quando a enunciação no registro do SsS passa de “estava escrito”, é o destino, para “estava escrito no equívoco”. Isso quer dizer que a contingência lacaniana está no lugar dos equívocos, nesse entre os sentidos. O analista provoca a ocasião de uma nova sorte, quando sua interpretação vai dizer de algum modo, jogando com homofonias, por exemplo, que “você leu mal o que estava escrito”. A interpretação é uma retificação da leitura feita pelo sujeito suposto saber. A interpretação supõe que a palavra já é uma leitura e o sujeito suposto saber não soube ler bem o acontecimento, por isso está sofrendo, tendo tanta má sorte na vida. Essa sensação de maldição que às vezes nos habita é um erro de leitura. Já não é uma sorte termos a psicanálise e os psicanalistas para nos mostrarem isso!

Concluo com uma pequena crônica dessas que hoje em dia viralizam e que, a meu ver, ilustra uma intervenção que provoca a mudança em um destino no meio de uma contingência.

Em uma entrevista, a filha de Zizi Possi, Luiza, também cantora, conta o seguinte: “Eu me casei de manhã e tinha brigado, foi um pau horrível e eu estava arrasada. Cheguei para maquiar arrasada e a primeira pessoa que eu vi foi a Fátima e falei: ‘Ai, briguei’. E ela disse: ‘Menina, você não sabia que dá a maior sorte brigar antes do casamento? Tem que brigar pra tudo acontecer’. E Fátima falou para minha melhor amiga depois: ‘Ainda bem que todo mundo acredita no que eu falo’. Fátima Bernardes mudou meu dia e salvou meu casamento”.[3]

 


Referências
EBERSOLT, S. Contingence et communauté: Kuki Shûzô, philosophe japonais. Paris: Ed: Vrin, 2021.
LACAN, J. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1954-55).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trabalho estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 553-556. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. O Seminário, livro 16:  De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).
LACAN, J. O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2016. (Trabalho original publicado em 1958-59).
LAURENT, É. L’inconscient éclair. Temporalité etethique au CPCT. Colletion Rue Huysmans. Paris, 2019.
MILLER, J.-A. 1,2,3,4, Tomo I. Buenos Aires: Paidós, 2021.

[1] Aula inaugural de abertura do semestre do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, proferida por Sérgio de Mattos em 07 de agosto de 2023.
[2] Pois, para sermos precisos, não é o tanto o que sabe a pessoa de nossos analistas que é o sujeito suposto saber, mas sim essa maquininha, esse algoritmo, que o saber do analista incita a entrar em funcionamento e que cristaliza em torno de buracos, falhas, equívocos, um saber que surge da associação dita livre.
[3] Tendo sido criado um amor pelo inconsciente, como motor de uma análise, amor que produz o ajuntamento de significantes sozinhos, marcas de gozo na vida de cada um, é preciso que o analista salve também esse casamento, com uma sorte que pode ser ao menos um pouco melhor, entre outras coisas.