Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line: Em seu texto “Quando um sonho desperta Um corpo”,  há um ensinamento em que clareza e beleza se combinam em uma transmissão. Cito abaixo a frase em questão, e peço que nos fale como o analista pode chegar a esse ponto de “precisão” que você disse e que marca a fineza de uma clínica lacaniana:

Se o sonho, para além da sua história, abriga também um núcleo autista de gozo, é então necessário poder especificar na experiência o momento clínico que implica a passagem do campo do Outro do significante para o corpo como Outro. (VENTURA, 2020, p. 10)

Em outras palavras, como podemos situar essa distinção entre o inconsciente “mentiroso” e o inconsciente real na interpretação dos sonhos que ocorrem na prática analítica?

Oscar Ventura: Obrigado por esta pergunta, porque me permite continuar interrogando a função que os sonhos desempenham na prática clínica. E permite também articular diferentes momentos da obra de Freud e do ensino de Lacan sobre a possibilidade que os sonhos oferecem de produzir uma retificação na economia do gozo. Porque, na verdade, o que interessa afinal é como dar conta do poder que alguns sonhos têm de modificar a própria posição do sujeito em relação ao sonho sonhado.

Nem todos os sonhos que se desenrolam durante um tratamento dão essa possibilidade; talvez os mais interessantes sejam aqueles em que se pode localizar uma destituição do analista na transferência. Isto é, se o sonho já implica a transferência, como apontou Freud, se o relato do sonho está dirigido ao Outro. Além disso, podemos colocar desta forma: os sonhos podem permitir uma evaporação do Outro.

Provavelmente, temos o paradigma desse deslocamento do Outro com o sonho da Injeção de Irma, “o sonho dos sonhos”, como Lacan o chama no Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Ali, o que em última instância permanece a céu aberto, para Freud, é um real que se encarna no abismo e no mistério do corpo, um furo que suga toda pretensão de sentido que lhe poderia ser concedida. E isso não deixou de ter consequências para o próprio Freud como sonhador e como analisante. Não só lhe foi revelada aquela zona indecifrável do sonho, limite de qualquer interpretação possível, mas também inaugura aquele espaço insondável, no qual se funda a sexualidade humana, incluindo aquele “continente negro”, como Freud o chamava, para ilustrar o enigmático da sexualidade feminina. A elisão do sentido produzida pelo umbigo do sonho deixa fora de jogo a Bedeutung do falo enquanto tal, e esse movimento dá conta da presença de um gozo que não tem nenhuma escrita no campo das representações, sejam elas imaginárias, sejam simbólicas.

Sempre que nos referimos ao umbigo do sonho, a essa diluição das representações que transcorre no próprio lapso do sonho, pode-se notar, por um lado, a presença do limite de um real que ocorre mais além de qualquer significação, e, por outro, uma resposta do corpo, que de uma forma ou de outra é o único suporte para a experiência de um gozo cuja fixação é inexpugnável, e que dá conta, ao mesmo tempo, tanto da vida que ali pulsa, quanto da morte que também abriga.

O relato de um sonho sob transferência tem, portanto, duas dimensões. Por um lado, a sua estrutura significante, o que o analisante diz sobre ele, o conto que o sonho conta, o cenário que constrói, enigmático por vezes, outras mais claro. É a parte de verdade que o sonho veicula em seu estatuto de inconsciente transferencial, é um conto do Outro e para o Outro. E, nessa direção, a verdade mentirosa, mas necessária, se faz ouvir no nível do uso que o sujeito faz do que para ele foram as formas pelas quais o significante mordeu e debilitou sua satisfação, sempre corroída pelo parasita da palavra e que produz um sintoma, o de cada um. Nesse nível, o que constatamos é que o próprio relato do sonho já é uma interpretação, alimenta um sentido novo que corre o risco de se metonimizar num infinito estéril, a repetição é o obstáculo que retorna continuamente. Nessa conjuntura, os atos do analista visam corroer o aparato da fantasia, coração da máquina interpretativa e da repetição a que submete o sujeito, também solidária com a estrutura da fantasia.

Agora, no relato de um sonho, por outro lado, também podemos encontrar seu ponto de furo, seu abismo, a garganta de Irma, por exemplo. É o ponto no qual o significante se esgota e surge a possibilidade de o corpo responder a esse inominável com seu acontecimento. Encontrar esse momento, o Kairós do sonho, se podemos dizer assim, é a possibilidade que podemos oferecer à transferência para produzir a disjunção necessária entre saber e gozo. É o próprio corpo do analista, colocado a serviço do corte, que pode permitir ao sujeito percorrer esse território onde a ausência de sentido faz ressoar outra coisa, que pode ir um pouco mais além do laço que faz o significante se solidarizar com a ruína da repetição.

A.O.: Ainda nesse mesmo texto você trata de um despertar, ligado a um significante novo, fora do sentido, que produz também um acontecimento de corpo, no caso, uma gargalhada que toma todo o corpo. Parece ser necessário consentir com esse significante novo e seu estatuto de fora do sentido para que esse encontro com algo do real se efetive. Em “Rumo a um significante novo”, Lacan (1977/1998, p. 11) aponta o chiste e a poesia como formas de fazer ressoar o fora do sentido que desperta e, em A terceira, ele diz: “O significante não é a letra. O significante se abre para outros – e a letra é morta, ou, o que de mais vivo há, pois dá acesso ao real.” (LACAN, 1974/2023, p. 57). Seria a partir de um significante novo que se conseguiria vivificar a letra morta do sintoma, tornando-o sinthome? Como você percebe a função do chiste e da poesia numa clínica orientada para o real?

O.V.: Bom, há muitas perguntas na questão, daria para escrever um artigo inteiro, uma investigação… Mas podemos reduzi-las um pouco a questões fundamentais. Vou começar fazendo uma pequena pontuação sobre o sinthoma. Às vezes tendemos a nos precipitar sobre as contribuições fundamentais que Lacan nos deixou em seu último ensino. E é verdade que esse último ensino é fundamental para enfrentar a prática clínica contemporânea. A potência clínica que daí emerge nos permite às vezes captar algumas questões muito rapidamente, por vezes logo no início da experiência, inclusive durante as entrevistas preliminares. Por exemplo, há casos em que podemos vislumbrar a partir do relato, e para além da estrutura clínica, incluindo o diagnóstico, qual é a interpretação que o próprio sujeito tem do seu sintoma, qual é também a interpretação que ele tem do mundo, se o sujeito tem ou não uma fantasia consistente, se a estrutura da fantasia é mais permeável, talvez mais fraca, ou se ele não foi capaz de construir esse aparato de interpretação que é a fantasia. Ou seja, às vezes podemos verificar com certa antecipação qual é a relação que um sujeito estabelece com o real, e qual o tipo de defesas ele articulou para amortecer esse real que o habita.

Mas isso não nos autoriza a um procedimento repentino de orientar a experiência para o imediatismo técnico, se assim posso dizer. É necessário tempo para que um sujeito estabeleça algum tipo de acordo com o impossível, embora à orientação do ato analítico não falte uma orientação para o real em hipótese alguma. Digo isso porque é importante enfatizar, creio, que o último ensino de Lacan não dispensa o primeiro. Posso dizer de outra forma: é necessário que a verdade mentirosa se desdobre, que se produza a construção de um mito individual, que a repetição seja escandida, para decantar, até onde o sujeito consinta, as estratégias que ele concebeu para se defender, para dizê-lo rapidamente, da ausência de relação sexual.

Então, a passagem do sintoma ao sinthoma – quando isso ocorre – se estabelece na medida em que um tratamento se desenrola ao longo do tempo. Além disso, a emergência de um significante novo, mesmo que seja contingente, ainda assim necessita que o sujeito, de alguma forma, esteja decidido a fazer da incerteza um parceiro; é uma condição para que a irrupção da contingência possa escrever-se.

O sinthoma implica uma forma de funcionamento subjetivo, coloca a serviço da vida pelo menos uma parte do gozo que parasita a existência. Seria interessante clinicamente não confundir o sinthoma com a raridade de cada um, com um traço peculiar, mas antes apreender que o sinthoma implica uma lógica borromeana, onde o gozo vai mudando, e é na medida em que um sujeito está advertido da irredutibilidade desse gozo que pode inventar a possibilidade de colocá-lo a serviço de outra coisa, alguma coisa que não seja sempre solidária com o autismo subjetivo que o gozo implica.

Seria necessário, talvez, diferenciar duas dimensões da letra, para esclarecer o que é letra morta e o que não é – e que seria letra viva. E para isso é importante colocar a lupa sobre o deslocamento que Lacan vai progressivamente operando do sujeito ao falasser e do inconsciente a lalíngua.

Por um lado, temos um movimento que está inscrito muito cedo no ensino de Lacan, que é a mortificação do corpo, aquela mordida do significante no vivente de que fala Lacan. Ou seja, a desvitalização que o simbólico imprime sobre o corpo e que se solidariza com a letra morta do sintoma, deixando à deriva o mais de gozar que se aninha no próprio núcleo do sintoma.

Na transferência, a interpretação tem um alcance sobre a letra morta, graças à operação do sentido, à decifração como tal. Essa operação transferencial não se confunde com o aparecimento de um significante novo. Não constitui um arranjo para o funcionamento que o sujeito estabeleceu com o sintoma, o sentido, que é infinito, é o obstáculo aqui.

É necessário ter o conceito de lalíngua como pano de fundo para dar todo o seu alcance a um significante novo, porque aí se trata dessa outra dimensão, de um encontro diferente sobre o corpo, que é logicamente anterior, inaugural, se assim podemos dizer, da relação do sujeito com a vida. Nessa dimensão, não se trata da mordida do significante na carne, mas sim do impacto de lalíngua sobre o corpo, que não imprime uma letra morta, mas um afeto que marca o tom vital de cada um. Imprime uma letra inédita e exclusiva. Um significante novo tem a possibilidade de emergir graças ao equívoco de lalíngua que cada um pode produzir na experiência analítica. E esse significante cai da cadeia, não se liga a nada, nenhum S2 pode ser acoplado a esse S1. E é na exploração desse litoral, entre lalíngua e o corpo, onde um gozo pode ser articulado como uma letra, por minúscula que seja, sempre é insensata, ou seja, fora do sentido. É a partir daí que se pode estabelecer um funcionamento orientado mais pelo afeto que fixou a experiência inaugural de gozo do que pelo significante que tenta captá-lo. Provavelmente assim se pode instalar na subjetividade uma lógica do sinthoma que aspire um pouco mais à relação com a vida do que ao parasitismo da carne assassinada pelo logos.

Por fim, muito brevemente, a função do chiste e da poesia na experiência clínica. Provavelmente, o que mais nos interessa tanto no chiste como na poesia é a sua relação com a ressonância que produzem no corpo. Ou seja, o que podem escrever de esvaziamento, o que já não se pode mais metaforizar ou metonimizar. Do lado do chiste, poderíamos dizer que ele não responde exatamente à mesma lógica das demais formações do inconsciente, há aí possibilidades plurais de invenções de significantes novos que coagulam o sentido, mesmo que efêmero, para dar lugar a um eco no corpo, sem que o recalcamento, digamos assim, funcione como obstáculo. Nesse sentido, talvez fosse lícito dizer, em termos freudianos, que o chiste é uma pequena sublimação, certamente necessária para amenizar a existência. A irrupção do chiste na transferência é sem dúvida um momento privilegiado, pois permite um fechamento, um lapso de evaporação do sentido, anterior à emergência do chiste como tal, detém-se a significação para dar lugar a um breve acontecimento do corpo, o riso, por exemplo, às vezes a gargalhada, enfim, nada mais a dizer, fim da sessão.

No que diz respeito à poesia, digo coisas muito sintéticas. Por um lado, há a poesia que se lê, incluindo aquela que é citada, aquela que pode ser recitada, ou seja, a poesia do Outro, que sem dúvida tem um alcance de significação pessoal, e que também pode inspirar um impedimento do relato anódino da história. Por que não pensar a poesia como uma possibilidade de corroer, de furar o suposto bom senso da gramática, de explodir a pontuação, de favorecer a boa forma da ausência, de fazer emergir o novo com palavras que não cabem mais ao cancelamento de um sentido, seja ele seu, seja coletivo, comum?

Por outro lado, podemos perguntar-nos sobre uma outra dimensão da poesia, aquela que pode destilar a experiência de uma análise, aquela que pode brotar de cada encontro com um real que as palavras nunca chegarão a nomear como tal. Se, como Jacques-Alain Miller nos anuncia com todo o rigor, o mais fundamental da língua é que ela se cria ao falar, então nos resta a possibilidade de fazer esse esforço de poesia que tantas vezes citamos, como uma das possibilidades mais autênticas dos efeitos que um tratamento analítico pode produzir.

A.O.: Por fim, gostaríamos de recuperar um trecho do artigo de nosso colega Ram Mandil – que está publicado nesta edição – no qual ele se refere ao diálogo entre Stephen Dedalus e seus colegas em O retrato do artista quando jovem.[1] Nesse diálogo perturbador para Stephen-Joyce, Mandil (2024, s/p) se interessa em destacar como esse encontro “com a inconsistência do Outro”, “com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da pergunta sobre a resposta correta para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss. E Mandil conclui que essa passagem pode nos ajudar a entender o que seria ler um sintoma. Poderíamos pensar que ela também condensa algo que nos ilumina sobre o que estaria em jogo ao final da experiência psicanalítica?

O.V.: É uma alegria me deparar com o texto do Ram e poder conversar um pouco com ele aqui. Não poderia estar mais do que de acordo  com o recorte que Ram faz do Retrato de um artista quando jovem. Ele é uma orientação para captar mais claramente o que significa ler um sintoma, um sintagma que pareceria ser compreendido facilmente à primeira vista. E, ainda assim, envolve toda uma complexidade.

Ler um sintoma implica, em primeiro lugar, um esforço para nos livrarmos daquilo que convencionalmente chamamos de ler, ou seja, da lógica do sentido implícita na leitura em termos amplos, isto que pensamos compreender quando ouvimos, ou quando lemos em sentido estrito, algum texto, por exemplo. Esperamos sempre que a retroação nos conduza, graças ao ponto capitonê, a uma significação que nos permita continuar deslizando na cadeia significante. Talvez fosse interessante pontuar a diferença que existe entre a cadeia significante e a cadeia borromeana: não vou me demorar nisso, certamente precisaria de muito mais páginas. Mas pode ser uma referência conceitual para poder pensar o deslocamento de uma leitura sujeita às leis da linguagem, sob a lógica da tríade edipiana, para uma tríade RSI, em que a diferença se estabeleceria entre uma interpretação, na qual se escuta o sentido, para uma leitura do fora do sentido.

É fundamental diferenciar escuta e leitura. Se quiséssemos esquematizar isso, reduzi-lo, poderíamos dizer que, do lado da escuta enquanto tal, estamos sempre mais ou menos sujeitos ao território do sentido, enquanto, do lado da leitura, nos encontramos com a letra, com a materialidade da letra, o que implica uma diluição do campo do sentido em favor de uma cifra de gozo. Também podemos pensá-lo a partir do binômio som-sentido, o som como tal implica, em sua materialidade, uma detenção da significação, um basta, já que não é um ponto capitonê, que não permite a extensão da metonímia. E esse ponto de parada está ancorado não no Outro da linguagem, mas no corpo como Outro. Ram Mandil (2024, s/p) explica-o claramente nessa vicissitude de Stephen com seus amigos, quando, destacando o impacto do encontro com o desejo do Outro, ele nos conta como esse encontro “com a inconsistência do Outro, com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da “pergunta sobre a resposta correta” para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss.

Vemos, nessa sequência, como o corpo de Stephen é o local de um acontecimento, em busca da resposta correta, a resposta correta seria aquela que fizesse sentido, com o riso compartilhado, ao qual Stephen não tem acesso. E precisa primeiro desfazer todo o aparato da linguagem, toda a confusão da pergunta sobre se era certo ou não beijar sua mãe, para concluir:

Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! […]” (JOYCE, 1916/1998, p. 18).

Talvez tudo se reduza a esse bift!, a essa sonoridade que pode ter a possibilidade de nos fazer apreender a articulação e, ao mesmo tempo, a disjunção entre o corpo e a palavra.

Ora, a experiência de uma análise não está isenta do fato de que o tratamento do sintoma deve passar pela dialética do desejo e pela própria interpretação que a máquina do inconsciente produz. Passar por aí é o que permite, ao fim e ao cabo, desalojar os impasses da verdade que a decifração nos oferece. É a condição que nos guia para um mais além, onde reside em última instância o trauma fundamental da língua, a fixidez de um gozo irredutível e a opacidade, radicalmente indecifrável, de um real que não tem nem causa nem lei a que se submeter.

E, sim, esse é o território por onde transitam, sempre de forma diferente, os finais da análise.

Responsáveis pela entrevista: Ana Helena Souza, Giselle Moreira, Lilany Pacheco, Maria Rita Guimarães e Patrícia Ribeiro
Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Márcia Mezêncio

Referências
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. (Trabalho original publicado em 1916).
LACAN, J. Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 22, p. 6-15, ago. 1998. (Trabalho original proferido em 1977).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
MANDIL, R. O ato de leitura em psicanálise. Almanaque On-line, n. 32, 2024.
VENTURA, O. Quando um sonho desperta Um corpo. 6 + Um – Papers 06, p. 10-13, 2020. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_006-pt.pdf. Acesso em: 24 nov. 2023.

[1] Depois que ele saiu, Wells veio até Stephen e lhe disse:
Diga-nos uma coisa, Dedalus, você beija sua mãe antes de ir deitar?
Stephen respondeu:
Beijo, sim.
Wells virou-se para os demais camaradas e disse:
Escutem uma coisa, este camarada aqui está dizendo que beija a mãe dele todas as noites antes   de ir deitar.
Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela direção, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:
Não beijo nada.
Wells disse:
Escutem vocês, este camarada aqui está dizendo que não beija a mãe dele antes de ir deitar.
Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu todo seu corpo quente e confuso, de súbito. Qual era a resposta certa para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. […] Fora Wells que o empurrara para dentro da valeta na véspera […] Agir assim era uma coisa má; todos os camaradas tinham dito. E como a água estava fria e escorregadia! […]
O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro […]. Tentava ainda pensar qual seria a resposta certa. Era direito beijar sua mãe, ou não era direito beijar sua mãe? Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! porque as pessoas faziam isso assim com seus rostos.
(JOYCE, 1916/1998, p. 17-18.)



O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação

O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação1

Lilany Pacheco
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

lilanypacheco@gmail.com

 

Resumo: O presente texto aborda o objeto voz e seu estatuto para a psicanálise para pensar as contribuições que ela pode oferecer sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos.

Palavras-chave: objeto voz; racismo; psicanálise.

THE MUTE MICROPHONE AND THE SANDAL-WEARING PSYCHOANALYST: INTERVENTION IN THE PSYCHOANALYSIS AND SEGREGATION RESEARCH GROUP

Abstract: This text addresses the object voice and its status for psychoanalysis in order to consider the contributions it can offer about interpreting cases involving racist discourses and their consequences for black individuals. Additionally, it reflects on how psychoanalysts can further its contributions against racism and its discourses.

Keywords: object voice; racism; psychoanalysis.

Agradeço o convite para estar aqui, hoje, nesta atividade do Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, neste momento de concluir os trabalhos sobre o tema “Racismo e sistema de justiça: como a Psicanálise contribui nesse debate? e, quem sabe, abrir perspectivas para investigações futuras.

Na atividade de abertura das atividades do Ateliê em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito – que girou em torno da seguinte pergunta: “Ser vítima ou réu, na sua relação com o sistema de justiça, faz diferença na forma de tratamento destinada a esses sujeitos?” –, dois aspectos me chamaram a atenção, além daquele já destacado durante o semestre: a fala de Jésus Santiago, de que é preciso furar o discurso do mestre, e duas pontuações do convidado Felipe Mata Machado, procurador do Distrito Federal, uma sobre o não dito e, outra, quando ele se refere às vestes dos juízes, indicando que, em um julgamento, os juízes não podem estar de chinelo. Me recordo de ter pensado: então eles não acreditam no semblante? Em conversas posteriores, Jésus Santiago lembrou que, no escrito sobre a criminologia, Lacan ressalta exatamente o contrário: os profissionais do Direito são ciosos do semblante, levam a sério demais o parecer ser. E eu pensei: o analista pode estar de chinelo!

Outra fala que se transformou para mim em um dizer foi quando alguém mencionou que os policiais agora têm microfone em seus uniformes, acionados enquanto fazem as suas abordagens. Alessandro Pereira dos Santos ponderou que isso não resolve, pois o microfone do preto, ao sofrer as abordagens desiguais, é mudo.

 Ainda sobre o microfone, eu gostaria de trazer uma vinheta, um pequeno trecho de um podcast com Lázaro Ramos ao qual assisti faz tempo e que me veio à lembrança quando Alessandro mencionou o microfone. Lázaro enfatiza que não é por escolha que ele trabalha constantemente para furar o discurso racista:

O racista não quer ver que é racista. Então é preciso gritar, como em Ó pai ó, fazer um filme histórico etc. O racismo é tão complexo que não vai ser uma linguagem só que vai resolver, a variação contempla mais ouvidos. […] Não adoecer. É para sobreviver, senão o racismo vai matar a gente. Diante do discurso racista o sujeito é forçado a se definir por apenas um adjetivo. Ninguém é obrigado a se definir por um único adjetivo. […] Ter o microfone na mão é útil.[2]

Além desse podcast, me ocorreu ainda a excelente entrevista de Viola Davis e Pedro Bial, quando ela esteve no Brasil para lançamento d#_edn1e seu livro autobiográfico que, diga-se de passagem, foi premiado como melhor audiobook. Ao responder a Bial sobre a experiência de fazer o filme A Mulher Rei, ela relata que, ao pisar nas terras africanas onde as filmagens foram feitas, aquele lugar, com aquelas características, fez com que retornasse para ela a voz de uma tia-avó e, para fazer a personagem, ela se apropriou daquela voz, e saiu daí a potência de seu personagem.

É na direção da voz e seu estatuto para a psicanálise que eu tenho pensado sobre quais contribuições a psicanálise pode nos oferecer, ou nos ensinar, sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos, como destacou Sérgio de Mattos em sua intervenção.

Então, o microfone, as múltiplas linguagens, as múltiplas vozes nos lembrando que as pulsões são, no corpo, o eco de um dizer. E, para que isso ressoe, para que isso consoe, é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é, afirmará Lacan (1975-76/2007, p. 19) ao abordar o uso lógico do sinthoma, em seu Seminário 23, e ele o é “Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não se pode tapar, se cerrar, se fechar”. É por esse viés que, no corpo, responde ao que Lacan chamou de voz. Lacan lembra ainda que é embaraçoso, que não há apenas o ouvido, e que o olhar lhe faz uma eminente concorrência. E eu, de minha parte, hoje, quero colocar a voz no páreo.

Ao seguir a pista de Joyce, Lacan pensa que é preciso resolver alguma coisa em relação ao que Jacques Aubert (1976/2007) isola ao comentar Joyce: a função da fonação e como esta se relaciona ao significante. Esse tema perpassa todo o Seminário 23. Para Lacan, o que permanece em suspenso é saber a partir de que momento a significância, ao ser escrita, distingue-se dos simples efeitos de fonação, uma vez que é a fonação que transmite a função própria do nome, do nome próprio. Isso é exemplar nos testemunhos de passe quando neles verificamos, o modo como um sujeito abandona seu nome de gozo e pode pronunciar-se a partir do nome construído como efeito de uma análise. Todos lembramos muito bem do passe de uma colega que o pai a chamava de “mundana”, e ela mostra que a sua análise a fez “cidadã do mundo”.

Mudemos de lugar, sugere Lacan, e isso supõe ou implica que escolhamos falar a língua que efetivamente falamos. Imaginamos que escolhemos, ele ironiza, e o que resolve, no final das contas, é que criamos essa língua. Isso não está reservado às frases que a língua cria. Criamos uma língua à medida em que a todo instante damos sentido, uma “mãozinha”, e sem isso a língua não seria viva: “Ela é viva porque a criamos a cada instante. É por isso que não há inconsciente coletivo. Há apenas inconscientes particulares, na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala” (LACAN, 1975-76/2007, p. 129).

“Cada ato de fala, golpe de força de um inconsciente particular, não é coletivização do inconsciente?”, é a pergunta de Lacan (1975-76/2007, p. 132) nesse ponto do Seminário 23 citado acima. Penso que essa pergunta é fundamental quando nos interessa o modo pelo qual a psicanálise pode pensar e operar no tocante a questões que dizem respeito à coletividade.

Se cada ato de fala é um golpe de força de um inconsciente particular, está completamente claro que cada ato de fala pode esperar ser um dizer. E o dizer chega a isso sobre o qual há teoria, a teoria que é o suporte de toda espécie de revolução, a saber, uma teoria da contradição. Podemos dizer muitas coisas diferentes, cada uma sendo, na ocasião, contraditória. E não é porque há desarrumação contraditória que nada tenha saído daí como constituinte de uma realidade. Ou, como escreveu Jacques Aubert (1976/2007, p. 167) na apresentação do Seminário de Lacan, “uma dimensão da fala, e os tipos de instauração de lugares onde isso fala”.

Caminhei até aqui com Lacan para encontrar o texto de Mônica Campos Silva (2024), escrito para comentar o trabalho primoroso de Alessandro, e também publicado neste número de Almanaque. Considerei que o texto de Mônica ordenou muito bem as atividades do semestre, todas primorosas, como todos nós que acompanhamos as atividades desse semestre pudemos testemunhar. Lembrando ainda da apresentação de Fídias Siqueira e do comentário de Sérgio de Mattos.

Eu já pensava em usar o texto de Marie-Hélène Brousse (2004) sobre a devastação, intitulado “Uma dificuldade na análise das mulheres”, para expor como tenho pensado e tentado articular as contribuições da psicanálise no enfrentamento do discurso racista e de outros discursos segregacionistas que reinam em nossa cultura.

Me chamou atenção que começássemos a beirar a questão da devastação e do feminino, para além da questão das mulheres e do feminismo, que também é discurso, para tratar a segregação, uma vez que a segregação é, primeiramente, segregação do inconsciente e mortificação do sujeito, como escreveu Mônica. Interessa-nos, portanto, pensar a fala e a linguagem que antecedem os discursos lá onde reina o vivo da vida!

Me chama atenção no texto de Brousse a afirmação de que a devastação se articula à maneira singular pela qual a linguagem emergiu para um sujeito, nos confins da inscrição simbólica. E ela acrescenta: as linguagens têm algo em comum, às vezes elas guardam a lembrança de uma primeira linguagem, diferente daquela que o falasser acaba falando, e há aí uma radicalidade, considerando que todo sujeito falou uma primeira linguagem, mesmo que seja no mesmo idioma que todos falam. Essa emergência pode se dar sob a forma de um insulto, no qual o sujeito é convocado a portar um nome cujo conteúdo de propriedade se resume apenas ao ato de proferir. E ela diz mais: ele é apenas o que se nomeia “fulano”, e só o é quando é nomeado, conduzindo o sujeito ao ser de objeto que ele foi para o Outro – negação da falta a ser e intimação a ser um objeto rebotalho.

Nessa linha, Mônica aproxima os efeitos do racismo em um sujeito pelo que Miller diz da devastação como uma pilhagem, um saque, um roubo, que se estende a tudo, sem limites, conduzindo a uma fixidez dada. A invasão de gozo decorrente da abertura do sujeito ao Outro que o devasta tem como efeito a sua queda como um “corpo desfalicizado”. Tomemos como exemplo o que verificamos nas mulheres que são difamadas. No que concerne à devastação causada pelos discursos racistas, basta lembrarmos dos corpos negros estendidos no chão ou de tantas outras formas nas quais o negro resta apenas como um corpo e sua cor, sem que o sujeito e sua diferença possam ser incluídos na linguagem. Como disse Lázaro Ramos, ninguém é ou quer ser definido por um único adjetivo.

Sigo um pouco mais com Mônica (2024, s/p), por sua vez seguindo Miller em “A salvação pelos dejetos”:

Quando o Outro designa o corpo social, se posso dizer, seu gozo, o gozo desse Outro, mantém-se como uma abstração. Um abstrato, uma ficção que se apoia no número, na massa. […] Entretanto, pode ser que o gozo do Outro social ganhe corpo, que o gozo consiga ser identificado no lugar do Outro, que ele não se evapore, que não se torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa. É quando, pode-se dizer, ou subentender, ou ser persuadido de que “o Outro goza de mim”.

Ainda com Mônica (2024, s/p): “É preciso lembrar que o racismo tende a reabsorver a tensão entre o Um e o Outro, com desprezo pela diferença”. Nesse ponto, importa indicar que, quando não há Outro, há o Um que itera e não cessa de escrever o insulto para o negro, ponto sobre o qual o discurso analítico precisa operar e restituir o furo entre o Um e Outro para que, a partir do furo, o negro possa rasurar o nome que o devasta, esvaziar-se do gozo do Outro que o invade e escrever o seu nome próprio.

Como conduzir o que, embora atravesse a lógica civilizatória, se encontra fora da letra?, pergunta Mônica. Ou, como escreveu Laurent (2023, p. 70) em sua apresentação do Seminário A lógica da fantasia, como o saber psicanalítico pode passar ao real? Em A terceira, Lacan (1974/2023, p. 24) esclarece: “O real não é o mundo e não há nenhuma esperança de alcançar o real por meio da representação. […] o real não é universal […]”, e, portanto, para tratá-lo não é possível adotar o “para todos”, como a ciência o faz.

Laurent (2022), em “A interpretação: da escuta ao escrito”, esclarece que, se o significante é causa de gozo, devemos nos perguntar como esse gozo pode escapar ao autoerotismo do corpo e ainda responder à jaculação interpretativa. Laurent lembra da pergunta de Lacan sobre se a psicanálise não é um autismo a dois, ponto que nos interessa bastante no contexto das investigações deste Ateliê, uma vez que precisamos nos entregar a uma tarefa de forçar o autismo, e poderemos fazê-lo pela via de lalíngua, aquela que o sujeito falou antes de falar qualquer idioma, como Brousse abordou. Laurent acrescenta: lalíngua é uma tarefa comum – e podem se valer dela aqueles que descem do salto e usam chinelos, eu diria. O gozo é autoerótico, mas a língua não é um assunto privado. Ela é comum e pode ser usada quando o analista pode fazer outra coisa que não o sentido. Lacan (1972-73/1985) explora, a partir do Seminário 20, os recursos que, em um forçamento poético, podem permitir ao analista fazer ressoar outra coisa que não o sentido, fora das regras da linguagem, algo que evoque o gozo da coisa comum. Isso implica o analista, seu corpo, e um batimento que engendre com sua presença real a substância significante em sua materialidade e as eventualidades a partir das quais o “ser” ganha “existência”, sendo relançado na cadeia significante com um outro nome, um novo significante com poder de voz – uma fonação, um microfone.

 

Fídias e Alessandro e todos que acompanharam as discussões talvez possam situar nos “casos” que apresentaram se, em algum momento, verificaram em suas intervenções algo que operou nessa direção, aproximando-nos dos dizeres de Freud, cada vez mais próximo do último ensino de Lacan, de que somente a palavra pode curar o que ela própria causou.


 

Referências
AUBERT, J. Apresentação no Seminário de Jacques Lacan. In: LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 166-185. (Trabalho original proferido em 1976).
BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise das mulheres: a devastação da relação com a mãe. Latusa: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio), n. 9, p. 203-218, 2004.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LAURENT, É. A interpretação: da escuta ao escritoCorreio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, 2022.
LAURENT, É. Acontecimentos políticos de corpo. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 90, 2023.
SILVA, M. C. Será que o racismo mata? Almanaque On-line, n. 32, 2024.

[1] Texto apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Racismo do IPSM-MG em 25/10/2023, como comentário à apresentação de Mônica Campos nesta mesma data.
[2] Cf.: https://youtu.be/2GYVuoILBo4?si=Las6pr06vJXCV2sD