Expediente Almanaque On-line – Agosto/2024 – Nº 33

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Revista Almanaque On-line é uma publicação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG.

Periodicidade: Semestral

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Almanaque On-line – Agosto/2024 – Nº 33

O único e o específico na experiência analítica

 ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO
ISSN 1982-5617

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Expediente da revista Almanaque 
Revista Almanaque On-line é uma publicação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG.
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A anorexia: corpos não aprisionados pelo discurso

Sandra Maria Espinha Oliveira
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
sandra_espinha@uol.com.br

Introdução

A anorexia, por se constituir como um sintoma fora do discurso, desvela o que se encontra no cerne da estrutura do sintoma como um gozo irredutível ao significante. Ela responde ao modelo de sintoma introduzido no último ensino de Lacan como um modo de gozo, um significante sozinho, uma letra, que fixa o gozo e não entra na estrutura da metáfora, abstendo-se de passar pelo Outro.

Aprendemos com Freud e Lacan que a entrada no discurso se dá ao preço de uma perda de gozo. No Seminário 10, para definir a operação primordial que permite a constituição do sujeito dividido, Lacan opõe à noção de traço, que transforma o corpo em significante, a noção de corte, que separa um resto que é gozo, um resto-órgão: o objeto a elaborado como uma extração corporal, à qual ele vai reduzir a dialética da causa. É a libra de carne, “pedaço carnal arrancado de nós mesmos” (LACAN, 1962-63/2005, p. 237), que é aprisionada na dialética significante e fica irrecuperável para sempre. Em torno do vazio deixado por essa perda estrutura-se o funcionamento pulsional. Sem essa cessão libidinal do objeto, “o gozo que o sujeito experimenta permanece inserido no corpo, ele luta para entrar em um laço social, para encontrar um lugar na lógica de um discurso” (COSENZA, 2024, p.63).

Os impasses nesse processo de cessão do objeto a como condição de entrada no discurso e no seu funcionamento simbólico foram analisados por Laurent e Miller (2005), à luz do último ensino de Lacan, a partir das mutações operadas no discurso do mestre tradicional pelo discurso capitalista, no qual o empuxe ao gozo sem limites tornou-se um imperativo que impregna o laço social e revela, em seu avesso, o declínio da função paterna.

Com a fórmula I < a, Miller e Laurent escrevem esse declínio do Ideal e definem o gozo contemporâneo como um gozo autístico, sem Outro, fora da lei da castração simbólica. Os sintomas contemporâneos são soluções alternativas ao sintoma freudiano em resposta a uma falha no processo de inscrição simbólica do gozo ou à sua impossibilidade, estando mais próximos da elaboração lacaniana do sinthoma e de sua concepção do inconsciente real, que fundam a clínica psicanalítica em torno do gozo que escapa ao significante.

 

Lacan escreve a mutação operada pelo discurso do capitalista sobre o discurso do mestre antigo e o apresenta como um pseudodiscurso que recusa a castração e prescinde do laço social, deixando de lado as coisas do amor. O mais singular do sujeito, seu mais-de-gozar, encarna-se nos objetos de consumo, que assumem a prevalência sobre suas referências identificatórias, apagam sua divisão e o deixam à deriva. Os efeitos de estrago produzidos revelam-se nas patologias do excesso nas quais, ao se tentar restituir o gozo ao corpo, o que se assiste é à sua ruína.

Lacan aborda o vínculo devastador do sujeito anoréxico com seu corpo a partir de uma “recusa do Outro” e por uma economia de gozo sem perdas que gira em torno do objeto nada (COSENZA, 2018, p. 22). Incluída entre as novas formas de sintoma, também chamados sintomas sociais ou patologias do excesso (COSENZA, 2024, p. 14), a anorexia aponta para a necessidade de se retomar a clínica psicanalítica a partir do real do gozo que se encontra no cerne do sintoma concebido como modo de gozo singular do sujeito.

A anorexia como fracasso da sintomatização da puberdade nas formas neuróticas

Os relatos dos casos das formas neuróticas da anorexia, que têm seu início na puberdade, isolam os fatores estruturais antecedentes à escolha da solução anoréxica como defesa frente aos impasses que uma jovem pode encontrar para se instalar numa posição sexuada como mulher e na dialética do desejo entre os sexos, decidindo-se pelo isolamento autístico do gozo assexuado que esse sintoma oferece. Entre o caminho da adolescência como sintomatização da puberdade, que supõe a passagem pela castração e pela perda de gozo, o caminho escolhido pode ser o da recusa do Outro como resposta ao estrago constituído pela relação com um desejo absoluto encarnado pelo Outro materno.

O sujeito se apresenta sem recursos diante de uma demanda esmagadora, ilimitada, desse Outro parental, que Lacan descreve como aquele que confunde seus cuidados com o dom de seu amor. Em suas primeiras elaborações, Lacan concebe a anorexia como a encarnação radical da irredutibilidade do desejo ao registro da necessidade e aborda a recusa anoréxica do alimento como uma demanda ao Outro de um signo de amor, um signo de sua própria falta.

Frente às dificuldades para separar-se de seu Outro absoluto, o sujeito encontra na solução anoréxica um tratamento do corpo constituído por uma disciplina radical destinada a exercer um domínio sobre si mesmo que acaba por se estender sobre o Outro. Trata-se de uma ação típica da posição anoréxica de controlar o Outro e de angustiá-lo, tornando-se para este “um objeto impossível de alimentar” (LA SAGNA, 2006, p. 67). A complacência perfeccionista do sujeito anoréxico em relação aos ideais parentais, que implica um “sim” indiscriminado à demanda do Outro tomada como uma ordem a ser executada, é acompanhada por um “não”, igualmente indiscriminado, da recusa anoréxica.

A anorexia se configura como uma tentativa de resposta a uma relação insustentável com o Outro, sobretudo com o Outro materno, uma tentativa imaginária de separação através da recusa do alimento, que por não funcionar como uma separação simbólica, acaba por reafirmar a onipotência desse Outro. A mãe se mantém como um Outro não castrado, onipresente, do qual é impossível se separar para que o sujeito faça a experiência de sua própria falta como irredutível ao campo do desejo materno. Na anorexia impera uma lei superegóica absoluta, sem desejo, ou como um “desejo puro” sem Outro, que se transforma em vontade absoluta de autodominação e em pulsão de morte (COSENZA, 2018, p. 130).

Em suas últimas elaborações, Lacan (1973-74 apud COSENZA, 2018, p. 130) muda a maneira de conceptualizar a relação da anoréxica com o saber ao realçar a tese de que “no cerne da relação do sujeito com o saber inconsciente não haveria desejo, mas horror ao saber” (COSENZA, 2018, p. 134). Ele acentua a recusa do saber inconsciente como o que causa horror ao sujeito anoréxico, que pode se deixar morrer para não encontrá-lo. O saber que absorve a anoréxica é um saber dessubjetivado, ancorado no regime alimentar que sustenta sua solução patológica e a deixa imobilizada e não dividida, servindo para encobrir o encontro com o horror ao saber ligado à estrutura do inconsciente como furo no real, sem garantia (COSENZA, 2018, p. 134).

A anoréxica faz com o Outro o mesmo que ela faz com o alimento, ou seja, ela o recusa. Seu discurso estereotipado em torno da alimentação eclipsa sua subjetividade e a afasta do laço social. A recusa do Outro tem como efeito o fechamento do inconsciente e se traduz por um saber congelado e vazio. A solução anoréxica tende a eliminar o intervalo entre os significantes de maneira holofrástica para excluir o enigma do campo do saber e ali colocar uma certeza absoluta, fora do significante, uma petrificação do gozo representada pelo nada (COSENZA, 2018, p. 313-314).

A recusa anoréxica coloca em jogo uma manobra de separação que não se produz a partir da assunção da alienação constitutiva do sujeito no campo do Outro, mas vai contra ela.  Para descrever essa pseudosseparação, que se manifesta no afastamento do sujeito do laço social, Domenico Cosenza destaca que a anoréxica sonha com uma separação sem perdas, uma separação imaginária que não coloca em questão a economia real do gozo que aprisiona o sujeito nas malhas do Outro e não passa pela castração simbólica (COSENZA, 2018, p. 192).

Em “Complexos familiares”, Lacan (1938/2003) localiza uma “recusa do desmame” na base da anorexia, associando o declínio da imago paterna a patologias ligadas a uma separação malsucedida do objeto materno caracterizada pela busca de um gozo pleno e nostálgico que reconstituísse a experiência primária de reencontro com a imago materna. Mais tarde, ele formulará que a anoréxica “come nada”, como uma prática que, pela recusa do alimento, produz um gozo afirmativo autodestrutivo. Não se trata, aqui, do mais-de-gozar que caracteriza a satisfação discursiva do neurótico, que é uma satisfação parcial ligada a uma perda. O gozo do nada na anorexia é um gozo ilimitado, sem perda, gozo do Um sem Outro, fora da significação fálica. O sujeito anoréxico se recusa a aceitar a perda de gozo causada pela inscrição simbólica de seu corpo no campo do Outro. Ao fazer da castração uma privação, a anoréxica positiva o gozo perdido no desmame (SORIA, 2016, p. 29). O gozo fica encapsulado no corpo e fora do discurso.

Na anorexia, a recusa do gozo recupera-se libidinalmente como gozo da recusa, como uma satisfação presente na autodestruição, na presentificação da pulsão de morte no corpo. A recusa é o modo de gozo específico da anorexia. O objeto nada funciona como defesa contra o gozo invasivo do Outro, mas também como causa de não-desejo, causa de um gozo sem limites que devasta o corpo e o faz conviver com a morte.

Para Lacan, o privilégio da imagem do corpo próprio supõe uma falta. A imagem é um véu que cobre o vazio introduzido pela castração e não se sustenta sem uma carga libidinal por ela regularizada (MILLER, 2008, p. 21). Quando o gozo pulsional não está regulado pela castração, como na anorexia, ele surge na imagem como um excesso e perturba a percepção do corpo próprio, provocando sua dismorfopercepção, tratando-se de um gozo que, no caso das mulheres, vai além de sua medida fálica. Quando a mascarada fálica como um modo de tratar o feminino — como uma forma de fazer um ser com o nada — falha, estamos no campo do não-todo do gozo feminino. Se o fálico não drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher (LACAN, 1958/1998, p. 739), se ela não sofre da ameaça da castração, ela pode construir seu ser despojando-se do ter (LAURENT, 1999). É desde essa posição feminina que se pode fazer uma relação entre o nada essencial da feminilidade e o dar a ver “nada do corpo” para a anoréxica, o que não significa ausência de véu, mas a presença do véu do horror. Ao contrário da mascarada fálica, que suscita o desejo, o véu do horror recusa o desejo e remete à encarnação da morte no corpo, que convoca a satisfação da pulsão escópica. A tentativa de negativizar o gozo pela via do imaginário falha e o excesso que surge na imagem é signo de um real não delimitado pelo significante.

É esse excesso de gozo retido no corpo que a anoréxica trata com o controle rígido de seu peso e que lhe retorna como culpa e horror. O temor de ganhar peso e a alegria de ser magra revela o caráter egossintônico do sintoma anoréxico, que remete ao fracasso da equação corpo = falo, à qual responde a falicização da magreza nas formas anoréxicas de tipo histérico.

No último Lacan, a ampliação do conceito do inconsciente como real abre a possibilidade para intervenções do analista sobre esse real, sem que elas levem necessariamente à abertura de sua dimensão simbólica, embora a aposta de que o sintoma se dialetize esteja sempre presente. Nessa dimensão do inconsciente como S1 sozinho, a operação do analista é uma operação sobre a defesa, orientada pelo real, e não pelo recalque, abrindo-se, por essa via, a possiblidade de distintos usos do psicanalista (EIDELBERG; SHEJTMAN; SORIA, 2004, p. 44).

Nessa perspectiva, o analista deve se colocar na posição de um objeto que se deixa manobrar pela transferência, sem que esta seja uma operação passiva. Ele deve evitar o fracasso que constitui o deciframento do sentido frente a um sintoma reduzido ao sem sentido do gozo. Suas intervenções, orientadas pelo real do gozo, devem visar a introdução de uma surpresa interna ao próprio discurso do sujeito, com o fim de fazer vacilar as certezas que alimentam o gozo do sintoma e separar o sujeito do lugar de objeto do gozo do Outro. É através da experiência analítica, sob transferência e sob os efeitos de escanção das intervenções do analista, que, tratando-se de uma estrutura neurótica, pode-se restituir à palavra o seu poder de isolar, na história significante do sujeito, os núcleos de sem sentido em torno dos quais o sintoma anoréxico se estruturou.

No que se refere ao real em jogo no sintoma, o manejo da transferência, tanto com o sujeito, quanto com seus pais, visa produzir efeitos analíticos identificáveis por uma cessão do gozo ao poder alienante da fala. O encontro com o real da angústia, que pode ativar uma demanda analítica no sujeito e sintomatizar a angústia dos pais (COSENZA, 2018, p. 350), deve, no entanto, ser calculado com delicadeza.

A anorexia na estrutura psicótica de tipo melancólico

Nas formas psicóticas da anorexia, a recusa do Outro pode conjugar-se com um Outro que recusa. “Ser a recusa do Outro” pode tornar-se o programa pulsional do sujeito, revelando-se em passagens ao ato autodestrutivas e em operações de desligamento do Outro que o deixam à deriva. Na falta de que o desejo da mãe seja metaforizado pelo Nome-do-Pai, o sujeito pode encontrar, no ponto devastador de sua relação com o Outro materno, seu ser de dejeto.

Se o mito freudiano do pai primevo dá conta da passagem do pai vivo ao pai morto, significante, a presença real do alimento na solução anoréxica pode ser um índice de que o pai não se tornou um significante para o sujeito. Ele pode se identificar com o objeto perdido em uma posição melancolizada, quando o amor pelo objeto se refugia no eu e o ódio entra em ação sobre esse objeto, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento (FREUD, 1917/2010 apud FERREIRA, 2014, p. 124). Frente à foraclusão do Nome-do-Pai e a consequente não extração corporal do objeto, que se manifestam na mortificação extrema do corpo e na fragmentação estrutural da imagem, a solução anoréxica pode ser lida como uma identificação com o pai primevo como detentor de um gozo ilimitado, como formulado por Freud (1914-15/2000).

O “comer nada” torna-se uma operação de nada ceder ao Outro para reter na boca o gozo primário não incorporado pela estrutura significante, em uma regressão nostálgica em direção à fusão com esse primeiro objeto mítico de satisfação que é a mãe como Das Ding e “fator de morte” (LACAN, 1938/2003, p. 41).

As referências ao estranhamento que causa o olhar-se no espelho, em que o sujeito encontra sempre uma distorção, revelam o retorno, na imagem, da retenção no corpo do objeto não extraído do corpo do Outro. O que se presentifica na imagem é o eu sem seu revestimento narcísico e identificado ao objeto, é o próprio olhar do sujeito como objeto não separado do olhar de seu Outro primordial, que encarna em seu corpo a ferocidade sem limites do supereu. Há sempre algo em excesso a ser eliminado do corpo e que visa destruir o elemento estranho, Unheimlich, da imagem corporal (COSENZA, 2024, p. 184-185), mortificando-a. É o gozo da vida que retorna ali aonde o recurso à imagem não é suficiente para aprisioná-lo. O real inominável de seu ser de dejeto retorna no espelho e pode ser nomeado através de autoinjúrias.

O amor ao pai transforma-se em um ódio de intensidade desmedida, acompanhado por sentimentos de rancor e vingança. A perda do lugar de onde o sujeito se via como amado retorna como puro ódio voltado contra si mesmo, que pode forcluir o amor. O sujeito se identifica com o furo deixado pela ausência do pai e passa a dirigir contra si mesmo o ódio àquele que o abandonou, encarnando o supereu que trata sadicamente o sujeito como um objeto (FREUD, 1917/2010). Quando o eu perde o revestimento narcísico, i(a), que um S1 lhe fornecia como suplência, evidencia-se o seu estatuo de objeto a como dejeto, como buraco no simbólico, equivalente à forclusão do Nome-do-Pai, buraco por onde se esvai a libido corporal. O que surge é esta dor profunda, uma tristeza profunda, que torna a vida vazia e sem sentido. A sombra do objeto recai sobre o eu (FREUD, 1917/2010).

Destaca-se, nas formas anoréxicas ligadas a uma estrutura psicótica de tipo melancólico, a posição da analista, que, pela permanência de sua presença, não deixa cair o sujeito e o coloca ao abrigo de seu empuxo autodestrutivo. O analista não deve recuar frente à gravidade do sintoma e não responde a esta pela angústia nem pela indiferença, mas manejando a transferência de forma a evitar se instalar no lugar desse Outro cruel que maltrata o sujeito, favorecendo a abertura de caminhos para outros pontos de estabilização paralelos a um sintoma alimentar de dimensões mais reduzidas.

Conclusão

Um amor que não contempla a dimensão da falta produz uma distorção radical da relação da mulher com o não-todo do gozo feminino que pode, então, transformar-se no sem limites do gozo anoréxico. No último Lacan, o não-todo do gozo feminino será generalizado pela afirmação de que não-todo real do gozo do falasser se resolve pelo Nome-do-Pai. Para além da sexuação edípica, Lacan propõe uma sexuação fundada sobre o real da estrutura, ali onde “não há Nome-do-Pai, a menos que cada sujeito o coloque no lugar” (SKRIABINE, 2006, p. 58, tradução nossa) através da lei particular que cada um encontra em seu sinthoma.

O Nome-do-Pai como sinthoma vai mais além do pai freudiano e define-se como função de nomeação, que não é comunicação, nem laço com o Outro, mas laço entre o sentido e o real. Como sinthoma, ele é uma invenção que faz manterem juntos, para cada sujeito, um por um, os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário, e permite fazer consistir uma realidade sem existência, na qual se desenvolve o laço social no campo dos discursos (SKRIABINE, 2006). Fazer consistir uma realidade que não tem nenhuma existência intrínseca, uma vez que ela não é senão um véu tecido de imaginário e de simbólico que recobre o real, é necessário para que o ser falante se proteja do real insuportável que se esquiva do significante e da imagem (SKRIABINE, 2006). À essa generalização da forclusão do Nome-do-Pai, introduzida pelo gozo feminino, vai corresponder uma clínica orientada pelo real e pela singularidade do gozo sinthomático.

A recusa anoréxica pode encobrir uma estrutura clínica e dificultar o estabelecimento de um diagnóstico estrutural, que só pode ser feito sob transferência e pode exigir um longo tempo de tratamento. Ela não é redutível a uma estrutura, mas existe como formas singulares de anorexia nas diferentes estruturas clínicas, exercendo “funções diferenciadas para o sujeito em relação às exigências específicas que a estrutura comporta para ele” (COSENZA, 2018, p. 169).

 

1. Texto apresentado na 29a Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG em 29 de junho de 2024. As referências aos casos clínicos foram extraídas do presente texto aqui publicado. Nossos agradecimentos à autora pelo desafio de uma nova escrita.

Referências
COSENZA, D. A recusa na anorexia. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2018.
COSENZA, D. Clínica do excesso: derivas pulsionais e soluções sintomáticas na psicopatologia contemporânea. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2024.
EIDELBERG, A.; SHEJTMAN, F.; SORIA, N. La manobra de la transferencia y los usos del psicoanalista en anorexias y bulimias. In: EIDELBERG, A. et al. Cómo tratan los psicoanalistas las anorexias y bulimias? Buenos Aires: De Bucle, 2004.
FERREIRA, M. de F. A dor moral na melancolia. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
FREUD, S. Neuroses de transferência: uma síntese. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2000. (Trabalho original redigido em 1914-1915).
FREUD, S. Luto e Melancolia. In: Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, Vol. 12, 2010, p. 128-144. (Trabalho original publicado em 1917).
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. 1973-74. (Trabalho inédito).
LACAN, J. Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 734-745. (Trabalho original publicado em 1958).
LACAN, J. Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1938).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LAURENT, E. Posições femininas do ser. Buenos Aires: Tres Haches, 1999.
LA SAGNA, C. D. L’anorexie vraie de la jeune fille. La Cause freudienne, n. 63, jun. 2006.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
MILLER, J.-A. imagem do corpo em psicanálise. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 52, p. 17-27, set. 2008.
SORIA, N. Acerca de la anorexia melancólica. In: Psicoanalisis de la anorexia y la Bulimia. Buenos Aires: Del Bucle, 2016.
SKRIABINE, P. La clinique différentielle du symptôme.  Quarto – Revue de psychanalyse, n. 86: L’invention sinthomatique, p. 58-64, abr. 2006.



O que é a psicose ordinária?

Fabiana Peralva Lima
Psicóloga da rede de
Saúde Mental de Belo Horizonte e Betim
faperalvalima@gmail.com

Jacques-Alain Miller, propõe em 1998 uma nova forma de pensar a clínica das psicoses. Do binarismo neurose/psicose, pelo qual Freud e o estruturalismo da primeira clínica lacaniana se guiavam, Miller avança trazendo outras orientações com o auxílio das elaborações da segunda clínica de Lacan que, na perspectiva da lógica borromeana, respalda a ideia da constituição da realidade psíquica a partir das amarrações dos registros Real, Simbólico e Imaginário.

Se antes o diagnóstico estrutural possuía definições e contornos bem delimitados sob a referência do Nome-do-Pai enquanto ausência ou presença desse significante fundamental, na segunda clínica lacaniana esses contornos já não são tão precisos e a pluralização dos Nomes-do-Pai tornou-se uma importante baliza na orientação do tratamento.

Conversações clínicas pautadas em casos que apresentavam, para o analista, dificuldades e limitações na definição diagnóstica apontavam para algo novo na clínica psicanalítica. Casos em que não se reconheciam sinais claros de uma neurose e nem tampouco sinais positivos e evidentes de psicose, como alucinações e delírios, faziam ruído à época. Foram três valiosos encontros na França cujas elaborações culminaram na definição do termo “psicose ordinária”, em oposição às psicoses extraordinárias e clássicas nas suas apresentações.

Em 1996, Miller proporcionou o Conciliábulo de Angers sobre o tema “Enigma e Surpresas nas Psicoses”. Em 1997, na Conversação de Arcachon, o debate sobre os casos raros e inclassificáveis e, em 1998, lança, na Convenção de Antibes, o conceito de psicose ordinária, uma construção teórica a partir da prática clínica.

Diferentemente das categorias clássicas determinadas nos manuais de psiquiatria, o termo “psicose ordinária” não pretende ser uma nova categoria nosológica rígida e bem definida. Além disso, exige uma escuta atenta do analista para os sinais e indícios discretos que se manifestam de forma insidiosa e gradativa. É a clínica da tonalidade, dos detalhes, das invenções e da singularidade (MILLER, 2012, p. 422). Novas formas de desencadeamento, novos fenômenos corporais e novas formas de transferências são também identificadas, impactando um novo olhar sobre a direção do tratamento. A atenção aos arranjos singulares do sujeito como defesa contra a desordem do Real e do gozo tornam-se mais relevantes.

Miller (2012), em seu texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, informa que não criou um conceito e nem um novo diagnóstico, mas sim uma noção, um significante dentro do campo vasto das psicoses, com possibilidade de construção no transcorrer dos tempos. Além disso, adverte sobre o cuidado e o perigo para que o termo não se torne “um asilo para ignorância” (MILLER, 2012, p 412-413): “Inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno deste significante (MILLER, 2012, p. 401).

Sérgio de Campos (2022) em seu livro Investigações lacanianas das psicoses: As psicoses ordinárias, relata que a psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão até que se defina o tipo clínico da psicose em questão. Considera que não se trata rigidamente de uma psicose não desencadeada e nem de uma pré-psicose. A utilidade clínica em reconhecer um caso de psicose ordinária seria identificar e preservar as amarrações do sujeito que evitaram o desencadeamento da doença no sentido mais positivo do termo.

E quando suspeitar de um caso de psicose ordinária? Miller elabora alguns indícios no que se refere a relação do sujeito no campo social, corporal e subjetivo.

Lacan (1955-56/1998, p. 565) evoca, no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, a célebre frase sobre “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”, e Miller (2012) se utiliza dela para caracterizar um indício presente na psicose ordinária. E acrescenta: “A desordem se situa na maneira como vocês experimentam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu corpo e no modo de se relacionarem com as próprias ideias” (MILLER, 2012, p. 411).

A afinidade de um estado melancólico às psicoses ordinárias no sentido do sentimento de vida do sujeito é tratada no texto “A junção íntima do sentimento de vida”, de Sophie Marret-Maleval. Ela cita autores como Miller e Jean-Claude Maleval e considera o estado pré-melancólico como uma “bússola diagnóstica preciosa da psicose ordinária” (MARRET-MALEVAL, 2017, p. 4), uma vez que também se manifestam sob índices discretos e podem, através da superidentificação a uma norma social, indicar uma forma de suplência de uma psicose ordinária, evitando o desencadeamento psicótico.

Miller traz a ideia de uma tripla externalidade. A externalidade social se refere à relação do sujeito com sua realidade social. Quando essa identificação social é negativa, há um desenquadre em sua função social por um desligamento gradativo e progressivo em relação ao Outro social. Nota-se um empobrecimento dos laços sociais e afetivos, ocasionando um prejuízo das trocas simbólicas com o mundo. O sujeito não consegue se estabelecer satisfatoriamente no trabalho, nas relações com a família e com amigos. Há também casos de identificação social positiva, ou superidentificação, quando há um investimento rígido e intenso em sua posição social, por exemplo, um trabalho, apropriando-se de uma identificação imaginária como forma de suplência.

Na externalidade corporal, nota-se um estranhamento em relação ao corpo, o Outro corporal. Em algum momento, algo do corpo se desfaz, torna-se alheio e faz-se necessário que o sujeito recorra a artifícios, grampos para apropriar-se do próprio corpo. Os sintomas e as nomeações podem ser suporte na construção de um corpo.

A externalidade subjetiva evoca uma experiência de vazio, de um estado melancólico, de uma identificação real com o objeto enquanto dejeto. Há grande dificuldade de subjetivar a existência e significantizar o gozo.

A perspectiva das novas formas de desencadeamentos, de conversão e de transferência são também orientadores na identificação e direção do tratamento na psicose ordinária, sob os nomes de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferência.

Os desencadeamentos clássicos se dão de forma abrupta a partir do encontro com Um pai, cujo efeito, em função da foraclusão do significante do Nome-do-Pai que inscreve a castração simbólica, é a impossibilidade de responder provocando um furo. Com isso, irrompem os fenômenos psicóticos, como as alucinações auditivas, as produções delirantes e os fenômenos de linguagem. Lacan (1955-56/1998, p. 584), em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, destaca:

Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito.

É a falta do Nome-do-pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabiliza na metáfora delirante. […]

É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’.

A noção de neodesencadeamento propõe um avanço na maneira de interpretar o desencadeamento que está mais associada ao desligamento do sujeito com o Outro proveniente do desenodamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário. Os novos desencadeamentos não apontam para o surgimento de sintomas produtivos, mas de fenômenos sutis, discretos, plurais e dispersos. Conforme afirma Sérgio de Campos (2022, p. 143), “emergem como descarrilamentos íntimos, desconexões entre o eu, o corpo e a pulsão”. Trata-se de desencadeamentos mais referidos à ausência da significação fálica, sendo esta o significante do sexo e da vida.

A partir do conceito de conversão como um sintoma inscrito no corpo com caráter decifrável, Miller (2012) cria a noção de neoconversão para caracterizar os fenômenos corporais em cena nas psicoses ordinárias. A neoconversão inscreve o gozo no corpo impossível de significar, portanto indecifrável e não articulado a um saber, provocando um sentimento de vacuidade. Diante disso, é necessário que o sujeito encontre saídas para constituir um corpo através de próteses que podem ser objetos, tatuagens, dimorfismos corporais, sintomas e outros.

As neotransferências são novas formas de pensar a relação entre o analista e o paciente no contexto da segunda clínica lacaniana. Se, no conceito de transferência, no que tange às neuroses, o analista é um suposto saber do inconsciente, e, nas psicoses, o saber está do lado do sujeito psicótico, na neotransferência é proposto uma posição diferente do analista, uma transferência apoiada em lalíngua. Lalíngua é o furo e a raiz da linguagem, lugar esvaziado do sentido e aquém da articulação simbólica. Trata-se de um traumatismo resultante do encontro com a linguagem. Desta forma, é necessário que o analista aprenda a ler essa língua indecifrável do sujeito e se habilite em saber fazer com o que é exposto. Da sua posição de nada saber através de um vínculo frouxo com o paciente, o analista tem a função de limitar o gozo invasivo do Outro, descompletando-o, além de favorecer a amarração dos três registros.

E, por fim, é importante destacar a relação da contemporaneidade com a psicose ordinária. Na sociedade hipermoderna, em decorrência do enfraquecimento do Nome-do-Pai, testemunhamos a falência dos ideais e de um significante-mestre na sua função organizadora. Se, antes, a existência da função mítica do Pai, enquanto exceção à castração, propiciava a consistência de um conjunto de todos sujeitos castrados, hoje vivemos a era da multiplicidade, das variadas formas de gozo e do enxame de significantes-mestre, levando à necessidade de avanços nas elaborações teóricas. Sob a perspectiva topológica borromeana, talvez possamos inferir sobre uma invasão do Imaginário sobre o Simbólico devido a uma inconsistência de referenciais simbólicos na modernidade. A pluralização dos Nomes-do-Pai vem como um novo paradigma e é nesse contexto que surge o termo psicose ordinária. Diante disso, os casos se apresentam de forma ordinária levando a considerar os indícios singulares dos sintomas e dos modos de gozo, além da multiplicidade de suplências que funcionam como se fossem um Nome-do-Pai.


Referências
CAMPOS, S. de. Investigação lacaniana das psicoses: As psicoses ordinárias. Vol. 2. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1955-56).
MARRET-MALEVAL, S. A junção íntima do sentimento de vida. Opção Lacaniana online nova série, ano 8, n. 23, jul. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/A_juncao_intima_do_sentimento_de_vida.pdf. Acesso em: 09 jun. 2024.
MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. In: BATISTA, M. do C. D.; LAIA, S. (Orgs.). A psicose ordinária: A Convenção de Antibes. Tradução de José Luiz Gaglianoni et al. Belo Horizonte: Scriptum Livros/Escola Brasileira de Psicanálise, 2012, p. 399-428.



Editorial Almanaque#33

Maria Rita Guimarães

 

Se Machado de Assis se ocupou, em 1890, segundo dizem, de escrever uma linda ficção sobre a invenção dos almanaques, na qual lhes dá o estatuto de “oficina da vida”, parece ser que essa estranha palavra, cuja etimologia ainda é discutida, evoca um movimento. Ou vários, simultâneos e/ou sucessivos, ao longo do Tempo, personagem lindamente escolhido por Machado de Assis em seu conto e escrito dessa maneira, com a letra T maiúscula. Outro exemplo de movimento, acompanhado de almanaque, tomamos de Wassily Kandinsky (1912/2013, p. 22), quando este escreve para Paul Westheim:

amadureceu em mim o desejo de compilar um livro (uma espécie de almanaque), em que artistas exclusivos deveriam contribuir como autores. […] A separação daninha de uma arte da outra, de “arte” em relação à arte popular, à arte infantil, à “etnográfica”, às sólidas paredes erigidas em meio às coisas que a meus olhos estavam intimamente relacionadas – tudo isso tirou de mim a paz.

Almanaque, a publicação on-line do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, neste seu número 33 homenageia Kandinsky, veste-se com a capa do livro ao qual fez referência como desejo, ainda como um projeto: Almanaque “O cavaleiro Azul”. Foi um projeto fulgurante, faísca apagada pela primeira guerra mundial dois anos após seu primeiro número, mas suficiente para incendiar, no movimento de renovação, a história da arte moderna até nosso tempo.

A revista Almanaque, em seu surgimento, tal como falou Simone Souto na conversa mantida conosco, possibilitou o movimento de espalhar pela cidade, pelas instituições existentes em Belo Horizonte naqueles idos, um forte laço: a psicanálise lacaniana e o Instituto, recém-criado. O compromisso com esse movimento mantém-se até nossos dias. Uma memória que faz a ligação do passado a um farol que ilumina o futuro. Você certamente se interessará em conhecer esse passado em Encontros.

A partir do número 33, a revista Almanaque estará muito circulante. Cada um de seus leitores a terá na palma da mão, tal como o antigo tabloide de cartas enigmáticas estampadas, que era impresso e perambulava pela cidade!

Traz uma versão descarregável: você poderá baixá-la e levá-la no celular, exatamente onde a guardou, para leitura posterior. Mas estamos confiantes de que você também a visitará no site https://institutopsicanalise-mg.com.br/publicacoes/almanaque, seu lugar de referência. Outra novidade é que, na versão PDF, suas páginas estão numeradas.

Uma revista sem índice propõe uma novidade? Não sabemos; mas, isso sabemos, é que desejamos que você a percorra, que se sinta encorajado a examiná-la. E – quem sabe? – , num outro momento poderá até nos dizer algo sobre a revista, até mesmo se a falta de índice “fez falta”.

Também importa assinalar que, entre o tempo de trabalho no IPSM-MG e seus efeitos, a publicação trará, a cada número, um conteúdo que revisitará o tema pesquisado na Seção Clínica e nas demais atividades já realizadas, focando a luz em pontos obscuros. Neste número, no ritmo dessa proposta, um título orientará a leitura dos textos que já apresentam o que se extraiu do semestre anterior: o único e o específico na experiência analítica.

Três colegas foram convidados e aceitaram nos dar a mão no e em Trilhamentos, do que sugere e provoca o título. Já exploramos, pesquisamos e vivenciamos os termos que o compõem?

Maria Wilma Faria inicialmente toma a trilha da sinonímia, buscando nos informar qual acepção da palavra, afinal, pode corresponder ao “específico” de que falamos no campo da experiência analítica. Encaminha a questão examinando-a entre o primeiro e último ensinos de Lacan, fundamentando a necessidade clínica de “saber que um caso nunca realiza o seu tipo”.

Frederico Feu, sem conhecer o texto de Maria Wilma, começa seu escrito dialogando com ele, explorando a distinção entre o caso clínico e o tipo clínico. Logo, lança-nos a proposição seguinte:

Gostaria de propor, no âmbito de nossa discussão no IPSM-MG, que a distinção entre o “único’” e o “específico” não recobre inteiramente aquela entre o caso único e o tipo clínico, especialmente se remetemos o “único” ao “Um”, marca de gozo original do falasser.

Para conhecer a argumentação formulada pelo autor a respeito de sua proposição, aceite o convite que ele nos faz e recolha o esclarecedor ensinamento que o texto nos traz.

Sérgio de Castro concentra-se no termo “Único”. Apoia-se no que foi escrito por Jacques-Alain Miller na contracapa Seminário 19 para nos trazer à reflexão a relação do Único ao Um-dividualismo moderno:

Se, por um lado podemos, ao Um-dividualismo, localizá-lo na rigidez autorreferida dos identitarismos atuais, por outro, podemos constatar que basta que se inicie uma análise para se verificar que há uma dimensão do Outro em cada um que faz voar pelos ares tal aprisionamento.

Em relação ao único e específico, o que nos aporta o texto “A histeria rígida: a existência da neurose hoje”? Esse rigoroso trabalho de Simone Souto, apresentado na Aula Inaugural do IPSM-MG e na abertura da atividades da EBP-MG em março de 2024, ajuda-nos a buscar os elementos à pergunta levantada, assim como nos traz pontos fundamentais ao estudo do tema proposto para a 27ª Jornada da EBP-MG … e as neuroses continuam existindo. Leitura imprescindível, a autora nos traça um percurso desde a histérica freudiana até a histérica de hoje. E o que se pode dizer da histérica de nosso tempo? Nas palavras de Simone Souto:

por mais que a histérica hoje apresente o sintoma sustentado no falo como significante do gozo impossível de negativizar, ela não deixa de demonstrar que o que lhe é dado como gozo é sempre aquele que não deveria ser, é sempre um gozo que não convém se comparado ao único gozo que conviria: aquele relativo à relação sexual que ela visa a atingir. Sendo assim, ela se recusa a ser o sintoma de outro corpo, do corpo de um homem, ou seja, aquilo de que ele goza. Portanto, em seu sintoma, ela goza do significante como Um-sozinho, como um corpo que se goza, mas se recusa a fazer passar esse gozo por um outro, colocá-lo à prova na relação com o parceiro.

Ainda na rubrica Encontros, atualiza-se um antigo tema, melhor dizer, um antigo debate, através de uma pergunta, já tornada clássica, feita por Silvia Tendlarz, colega da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) – a quem renovamos nossos agradecimentos pela autorização para a publicação, aqui, desta entrevista – a Éric Laurent: “O senhor encontra alguma especificidade na análise com crianças?”. A resposta vem, esclarecedora e orientadora, no sentido clínico: “Claro, a especificidade está na divisão entre o sintoma e o fantasma”.

Outro dado que surpreende é a observação – conhecida, porém pouco comentada – de Laurent:

Isso faz com que no movimento psicanalítico existam tensões entre aqueles que praticam análise com crianças e aqueles que não praticam. Muitas vezes essa separação encobre a diferença de sexos: são as mulheres aquelas que se ocupam das crianças, e os homens não. Há poucos homens que se ocupam disso – embora dependa dos países. Essa oposição é falsa e pode produzir dentro da sociedade de psicanálise a realização da diferença entre os sexos.

O que se conversou poderia se acompanhar por uma interrogação. Efetivamente, perguntar pelo que, na Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, realizada a cada semestre, se trabalhou, debateu e foi transmitido através dos casos clínicos, é assunto que toca a comunidade analítica. O texto aqui publicado nesta rubrica dá provas disso. Sem os casos clínicos – retirados em razão da confidencialidade –, podemos acompanhar o desenvolvimento teórico realizado por Sandra Espinha, sobre “A anorexia: corpos não aprisionados pelo discurso”, texto que é, aliás, uma ótima referência para a preparação ao próximo XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, a se realizar em novembro deste ano.

Por fim, De uma nova geração comparece no Almanaque trazendo uma pergunta:  O que é a psicose ordinária? A pergunta de Fabiana Peralva Lima justifica-se com o seguinte parágrafo:

Conversações clínicas pautadas em casos que apresentavam, para o analista, dificuldades e limitações na definição diagnóstica apontavam para algo novo na clínica psicanalítica. Casos em que não se reconheciam sinais claros de uma neurose e nem tampouco sinais positivos e evidentes de psicose, como alucinações e delírios, faziam ruído à época. Foram três valiosos encontros na França cujas elaborações culminaram na definição do termo “psicose ordinária”, em oposição às psicoses extraordinárias e clássicas nas suas apresentações.

Deixamos o convite: vamos à leitura deste Almanaque 33?


Referências
ASSIS, J. M. M. de. Como se inventaram os almanaques. In: Obra completa. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. (Texto originalmente publicado em 1890).
KANDINSKY, W.; MARC, F. (Eds.). Almanaque “O cavaleiro Azul” (Der Blaue Reiter). Organização de Jorge Schwartz; tradução de Flávia Bancher. São Paulo: Editora Edusp / Museu Lasar Segall, 2013. (Texto originalmente publicado em 1912).



A histeria rígida: a existência da neurose hoje

Simone Souto

Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ssouto.bhe@terra.com.br

O que vou trazer para vocês hoje são apenas alguns elementos que, espero, nos ajudem a aproximarmos um pouco mais desta noção de Lacan, um tanto enigmática, que é a histeria rígida, e que foi mencionada por ele, pelo menos até onde pude investigar, apenas uma única vez, no Seminário 23.

A histeria hoje

Nos primórdios da psicanálise, em um mundo ainda ordenado pelos ideais, o sintoma histérico se apresentava como um sentido a ser decifrado. Esse sentido tinha como modelo o Édipo estruturado a partir da referência ao pai. Assim, a histérica, no tempo de Freud, tinha um pai que lhe assegurava um sentido pelo qual era possível abordar a satisfação, assim como o incômodo que lhe afetava o corpo. Em outras palavras, o gozo do sintoma era apreendido pela via do sentido. Constatamos essa prevalência do pai nos sintomas histéricos em todos os casos conduzidos por Freud. Podemos referi-la à época, mas podemos também nos indagar, como o fez Lacan (1969-70/1998, p. 94) no Seminário 17, pelo desejo de Freud, pelo que o fez substituir o saber que recolheu da boca das histéricas (a propósito do poder das palavras e da determinação significante sobre o corpo), pelo mito do complexo de Édipo. Segundo Lacan (1969-70/1998, p. 94), “o que Freud tentou preservar com o complexo de Édipo foi a ideia de um pai todo amor” e que “a experiência da histérica […] deveria tê-lo guiado melhor que o complexo de Édipo”. Então, seguindo Lacan (1972-73/1985, p. 36), podemos supor que, desde Freud, a histeria nos ensina algo sobre o sintoma que não passa pelo pai, algo que teria sido encoberto pela importância dada por Freud ao complexo de Édipo. Trata-se do significante como causa de gozo.

Segundo Laurent (2012), o que está em questão em nossa época é o amor ao pai como eixo em torno do qual gira a constituição do sintoma histérico. As histéricas já não acreditam mais no pai como detentor de um sentido capaz de resolver o enigma do gozo. A impotência do pai tornou-se evidente e a histérica já não se presta mais a fazer existir o pai ideal sustentando-o através de seu amor (BROUSSE, 2013). Assim, para abordar a histeria hoje seria preciso considerá-la como uma estrutura neurótica cujo sintoma pode não se sustentar no amor ao pai, nem seria tecido na trama edípica. Nesse contexto, a histeria se apresentaria, portanto, desvestida de sentido: se a histérica freudiana nos ensinou que o sintoma comportava um sentido sexual, a histérica de hoje nos convoca à constatação de que o sintoma, em última instância, não tem sentido algum e se reduz à pura repetição de um gozo. Entretanto, como veremos a seguir, será preciso distinguir essa forma de apresentação do sintoma histérico tanto das psicoses, quanto da posição feminina e do sinthoma como produto do final de uma análise.

Na nossa prática hoje, “é cada vez mais constante encontrarmos  casos clínicos de neurose nos quais o amor ao pai ou a busca de identificação do lado da metáfora paterna não conseguem sustentar-se claramente, mas que de fato não são casos de psicose”. Assim, com relação à distinção entre a histeria hoje e a psicose podemos considerar que, mesmo tendo perdido o pai, ou seja, o recurso para resolver o gozo pelo sentido, a histérica atualmente não deixaria de portar, em seu corpo, a marca da castração, isto é, o falo, mas não mais em sua vertente de significação, como resultado da metáfora paterna, e, sim, como  significante do gozo. Nesse contexto, como nos demonstra Miller (2011), a função do significante passaria a ser a de aparelhar o gozo, dar-lhe substância, materialidade. O sintoma histérico hoje se sustentaria muito mais na materialidade do significante do que em sua produção de sentido.

Essa forma de aparelhamento do gozo que não passa pelo sentido parece constituir-se em uma marca do nosso tempo, observável não só na clínica da histeria. Se a histérica não se dedica mais a sustentar o pai, o psicótico, também, diferente do que fez Schreber, já não tem tanta necessidade de inventar o pai a partir do sentido, isto é, da metáfora delirante. A psicose, hoje, em certos casos, inventa outras coisas, mais ordinárias, no lugar do pai. Assim, em nossos dias, não é que o modelo edipiano deixa de ser uma referência, o que acontece é que esse modelo, ele é abalado, deixa de ser a único, a referência universal.

Dora: uma histérica freudiana e seu avesso

De acordo com Laurent (2012, s/p), “após o Seminário sobre Joyce, Lacan propõe uma série de releitura dos Estudos sobre a histeria, mas pelo avesso”. Como vimos, quanto ao sintoma histérico, Freud teria feito um percurso passando do significante ao pai. Para precisarmos o que o sintoma histérico presentifica em seu cerne, proponho a vocês retomarmos o caso Dora guiados por essa proposta de Lacan, isto é, lendo-o pelo avesso, fazendo o percurso inverso ao de Freud, isto é, do pai ao significante como causa de gozo. Se, por um lado, é evidente, na condução de Freud, certo recobrimento do sintoma pela primazia dada ao pai, por outro lado, ele nos deixa todas as pistas para fazermos o caminho de volta. Nesse sentido, o caso Dora é privilegiado, uma vez que, conforme sublinha Lacan (1951/1998, p. 225), por se tratar de uma histérica, “em parte alguma […] é mais baixo o limiar […] entre o discurso analítico e a palavra do sintoma”.

Dentre os sintomas apresentados por Dora – dispneia, enxaqueca, depressão… –, Freud dará particular atenção à afonia e à tosse nervosa. Esses sintomas encontram sua significação a partir da complexa trama que envolve Dora, o pai, o Sr. K. e a Sra. K. O pai e a Sra. K. são amantes, e Dora, mesmo revoltada, se coloca como cúmplice, protetora dessa relação, ficando, concomitantemente, exposta às propostas amorosas do Sr. K.

Freud pôde fazer surgir, no percurso dessa análise, uma ligação entre a tosse nervosa de Dora e o caso de amor do pai com a Sra. K., do qual ela tanto se ocupava. A oportunidade para essa ligação aparece com o significante “ein vermongender Mann”, que em alemão significa “um homem de posses”, com o qual Dora se refere ao pai e que Freud interpreta em seu sentido inverso: “ein unvermongender Mann”, “homem sem recursos, impotente”. Como Dora poderia continuar sustentando que existia um caso de amor entre a Sra. K. e seu pai ao mesmo tempo que admitia a impotência deste último? A resposta de Dora coloca em cena o sexo oral como um recurso pelo qual um homem impotente poderia sustentar a relação com uma mulher. Freud irá deduzir, então, que Dora havia criado uma fantasia sexual inconsciente (sugar o pênis), expressada através da afonia e da tosse. Como nos esclarece Laurent (2012, s/p), com esse sintoma, Dora se identifica com o gozo do pai: “ela coloca sua própria boca nessa participação do gozo do pai”.

No entanto, Freud nos dá elementos para supor que a prevalência do gozo oral nos sintomas de Dora remonta a origens ainda mais remotas que não passariam necessariamente pelo pai. Trata-se de uma cena que teria proporcionado “a condição prévia”, “somática”, para a fantasia de Dora: “ela chupava o polegar esquerdo sentada em um canto do assoalho ao mesmo tempo que puxava com a mão direita o lóbulo da orelha do irmão que estava sentado quieto ao seu lado” (FREUD, 1905[1901]/1996, p. 49). Lacan (1951/1998, p. 220) situa, nessa cena, “a matriz imaginária na qual vieram confluir todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida – verdadeira ilustração da teoria, ainda por surgir em Freud, da compulsão à repetição”. Portanto, essa cena presentifica a via pela qual o gozo vem marcar o corpo de Dora, ou seja, o acontecimento através do qual, para ela, o gozo toma consistência e se fixa, um S1, sozinho, um traço que se repete e não se sustenta em sentido algum.

O próprio Freud (1905[1901]/1996, p. 50) faz menção, no contexto no qual aborda essa lembrança de Dora, ao “traço conservador” que asseguraria que um sintoma, uma vez formado, possa ser retido mesmo que o pensamento inconsciente ao qual ele deu expressão tenha perdido seu significado, uma “unidade constituída pela matéria que deu margem às várias fantasias”.  Com a fantasia de sugar o pênis, Dora constrói uma versão paterna para o gozo oral experimentado na infância, ou seja, cria uma significação do gozo baseada em seu amor pelo pai impotente, um sentido que vem recobrir o traço sem sentido do gozo, esse avesso do sintoma, esse osso, essa matéria na qual, em última instância, o sintoma se sustentaria em sua existência. Retornaremos a isso mais adiante.

A histeria lacaniana: uma forma real de apresentação do sintoma

No Seminário 23, Lacan (1975-76/2007) faz menção a uma forma de apresentação da histeria na peça O retrato de Dora, longamente comentada por Laurent (2012).Trata-se de uma peça de Hélène de Cixous (1976/1986) que estava sendo encenada na época em que Lacan pronunciava o Seminário 23. Hélène Cixous foi ensaísta, poeta e crítica literária influenciada por Lacan. Foi, também, a responsável pela introdução da obra de Clarisse Lispector na França e em outros países. Nessa peça, observa Lacan, a histeria aparece incompleta e, por isso, reduzida a um estado que ele chamou de material. O que a faz incompleta é a falta do elemento que a tornaria passível de ser compreendida, ou seja, falta o elemento que introduziria a significação.

Em Freud, o sintoma de Dora é acompanhado de uma significação sexual, baseada em uma versão do pai como impotente. É esse elemento que torna o sintoma interpretável, conferindo-lhe um sentido. Assim, desde Freud, ou mesmo antes dele, o sintoma histérico está sempre acompanhado de um intérprete, de um elemento que lhe confere uma significação. No entanto, em sua peça, Cixous apresenta Dora sem esse elemento interpretante (LAURENT, 2012), faz surgir uma histeria sem parceiro, sem sentido. Podemos dizer então que, na falta desse elemento, o sintoma histérico apareceria em sua prevalência libidinal, desvestido de sentido, reduzido à sua materialidade, ou seja, ao traço que fixa o gozo no corpo. Podemos aproximar esse traço do que foi destacado por Freud com relação à cena de Dora com o irmão, um traço que asseguraria a conservação de um sintoma mesmo que ele tenha perdido seu significado. Quanto a isso, vale lembrar as elaborações de Lacan sobre a identificação no Seminário 24, comentadas por Laurent e a partir das quais nos parece possível concluir que a  identificação histérica – tanto com relação à sua vertente de participação no gozo do outro, que Freud exemplifica como fundamento da epidemia histérica (caso do pensionato), quanto em sua vertente de amor ao pai – se sustentaria, no fim das contas,  na identificação que Lacan (1977) chamou de neutra, a identificação a um  traço particular, a um traço qualquer que seria apenas o mesmo. Logo, “a histeria em seu estado material” parece ter a ver com o que, em última instância, para além ou aquém do sentido edípico, toda histeria poderia ser reduzida. Conforme esclarece Laurent (2012, s/p), “o material, no fundo, é o sintoma como tal, separado do sentido”. O sintoma histérico, assim apresentado, sustentar-se-ia apenas do Um-sozinho, do significante em sua materialidade como substância gozante (MILLER, 2011).

Essa forma de sustentação da histeria a partir do Um, Lacan qualificou de rígida, uma histeria que se sustentaria sem o apoio do pai como instrumento através do qual o gozo poderia ser resolvido pelo sentido (MILLER, 2007, p. 238). Lacan (1975-76/2007, p. 103) é levado, então, a articular uma cadeia borromeana “rígida” na qual o simbólico, o imaginário e o real se conjugam, mantendo-se unidos sem a necessidade do Nome-do-Pai como uma rodinha suplementar (LAURENT, 2012). Ele chama a atenção para o fato de que, nessa maneira de apresentar a cadeia, “o importante é o real” (MILLER, 2007, p. 238), é o fato de que o real não se restringe unicamente a uma das rodinhas de barbante, pois a cadeia inteira constitui o real do nó. Partindo dessa observação de Lacan, parece-nos possível afirmar que a histeria rígida evidencia a vertente real do sintoma, o sintoma apresentado, realizado, assim como a peça de Cixous, de um modo real.

Esse modo real nos remete ao sintoma histérico não mais em sua plasticidade, fruto de sua inserção nas significações, mas como iteração do mesmo, do Um-sozinho que não se liga a nada. Portanto, a nosso ver, o que Lacan apresenta como histeria rígida não seria uma histeria sem sintoma, mas uma histeria na qual o sintoma não se sustentaria na significação produzida pelo Nome-do-Pai. Lacan (1975-76/2007, p. 102) nota que aquela que faz o papel de Dora na peça não deixa de mostrar suas manias, suas virtudes de histérica. Isso quer dizer que o sintoma está lá, porém sem sentido, em sua vertente real. Tratar-se-ia da histeria como um elemento estrutural, da histeria apresentada a partir do que, em última instância, constitui o substrato, o osso, o cerne de toda histeria e mesmo de todo sintoma neurótico.

Nesse contexto, nos ocorreu pensar se, com a cadeia rígida, não poderíamos situar outra maneira de apresentar o que Lacan (1951/1998) chamou, em “Intervenção sobre a transferência”, de “matriz imaginária”, referindo-se à já citada cena de Dora com o irmão, ou, ainda, se essa matriz imaginária não seria da ordem de uma Prägung, termo utilizado por Freud e comentado por Lacan no Seminário 1. Freud faz menção a esse termo referindo-se à cena primaria no caso do Homem dos Lobos (quando ele vê uma cena entre os pais de uma cópula a tergo) e que me parece servir, também, para a cena de Dora com o irmão. Trata-se, segundo Lacan, de uma efração imaginária, de uma cunhagem, de uma marca a partir de uma experiencia de gozo estritamente limitada ao domínio do imaginário, pois situa-se em um inconsciente ainda não recalcado, algo que ainda não teria sido integrado ao sistema verbalizado do sujeito, algo que não atingiu a verbalização e nem mesmo a significação. Conforme nos explica Lacan, o trauma no que ele tem ação de recalque, intervém só depois. Entre a cunhagem e o recalque simbólico, nos diz ele, há apenas uma diferença, essencial a meu ver: é que, naquele momento da Prägung, ninguém está lá para dar a palavra àquele que é afetado pela Prägung  – trata-se, portanto, de um acontecimento sem Outro, sem simbólico e que certamente nos abre algumas questões sobre a função do imaginário e mesmo de uma certa prevalência deste na apreensão do real e da importância de o considerarmos de forma renovada na condução do tratamento, como nos elucida Miller em sua leitura do ultimíssimo Lacan.

Desta maneira, se no início de seu ensino Lacan faz prevalecer o imaginário como matriz, como imagem condensadora do gozo a partir da qual o sintoma é gerado, no Seminário 23, com relação à cadeia rígida, ele dará destaque à aparência suportada pelo nó entre o simbólico, o imaginário e o real (aparência nodal). Nas palavras de Lacan (1975-76/2007, p. 107), “essa aparência nodal, essa forma de nó, se posso dizer assim, é o que dá segurança ao real. Direi, portanto, nesse caso, que o que testemunha o real é uma falácia, posto que falei de aparência”.

O falo como testemunho do real

Constata-se, dessa forma, uma mudança de perspectiva com relação à histeria nos tempos de Freud e que observamos cada vez mais em nossa prática: a histérica de hoje não precisa mais, para gozar, de sustentar o pai através de seu sintoma, criando um sentido, porque, para gozar, ela se sustenta no significante. Essa constatação nos leva a uma questão que Laurent (2012) situa como crucial e que, segundo ele, permite a Lacan, no Seminário 23, reformular a histeria tomando-a, como vimos, por seu avesso: diz respeito ao novo lugar que Lacan dá ao falo, não mais como resultado da metáfora paterna, testemunho dos efeitos de significação, mas como um semblante que dá testemunho do real. Segundo Laurent (2012, s/p), o falo, nessa nova posição, estaria “fora da metáfora paterna”, ou seja, separado de toda significação edípica. Aqui, não estamos mais no contexto no qual “ali onde isso fala, isso goza”; o que se situa em primeiro plano é a constatação de que “isso goza, ali onde isso não fala”, “isso goza, ali onde isso não faz sentido” (MILLER, 2011).Trata-se do falo, como já o designava Lacan (1960-61/1992, p. 234) no Seminário 8, em sua “presença real”, “um símbolo inominável”, “cuja emergência faria estancar todo reenvio que se tem lugar na cadeia dos signos”. Como tal, o falo é o significante do gozo do Um que, conforme nos indica Miller (2001, p. 23), é impossível de negativizar, é o significante como suporte material do gozo, ao qual Lacan (1975-76/2007, p. 119) confere uma “phunção de fonação” que “acaba sendo substitutiva do macho, dito homem”. Podemos nos referir, aqui, à afirmação de Freud de que a libido é sempre masculina, e também à tese de Miller (2011) segundo a qual, para o falasser, o gozo não é sem o significante. Assim, o falo é o que permanece, no corpo, como resíduo condensador de um gozo incurável, sustentação do gozo do Um, desse pouco de gozo que resta ao falasser face a seu encontro traumático com a inexistência da relação sexual e de um gozo absoluto que lhe conviria. Sendo assim, o falo, fora da metáfora paterna, é presença real de um gozo e, ao mesmo tempo, marca da castração que não está referida à falta paterna, mas, sim, ao furo da inexistência da relação sexual. Trata-se do “real marcado pela falácia” (LACAN, 1975-76/2007, p. 112).  É desde esse lugar que o falo pode aparecer como passível de verificar que o furo da inexistência da relação sexual é real.

A recusa do não-todo

A partir daí, parece-nos possível afirmar que a histérica de hoje nos mostra a via do significante sem o pai, isto é, sem que o poder do significante, como causa de gozo, fique recoberto, como vimos no caso Dora, pela impotência paterna. Dessa forma, o sintoma sustenta-se, em sua existência, no falo, conforme explicitado acima, como significante do gozo, separado do sentido, fora da metáfora paterna. Trata-se, literalmente, do falo em sua materialidade, como um significante que dá corpo ao gozo, que faz do sintoma um acontecimento de corpo a partir do qual podemos constatar o efeito maior do significante: o furo. Segundo Miller (2010-11, s/p), “esse furo vem precisamente no lugar da função edipiana do interdito e de todas as significações aferentes”. É, portanto, uma ancoragem real, um traço que se repete e não diz nada a ninguém, mas presentifica uma forma de satisfação, um gozo enigmático que pode precipitar o sujeito até a análise. Assim, encontramos na histeria hoje uma fala analisante que se apoia mais na vertente do significante como produção de gozo do que em seu efeito de significação, e sintomas que se apresentam prevalentemente em sua vertente real e libidinal como, por exemplo, os acontecimentos de corpo, as compulsões, algumas formas de apresentação da homossexualidade feminina, as devastações amorosas, etc.

No entanto, por mais que a histérica hoje apresente o sintoma sustentado no falo como significante do gozo impossível de negativizar, ela não deixa de demonstrar que o que lhe é dado como gozo é sempre aquele que não deveria ser, é sempre um gozo que não convém se comparado ao único gozo que conviria: aquele relativo à relação sexual que ela visa a atingir. Sendo assim, ela se recusa a ser o sintoma de outro corpo, do corpo de um homem, ou seja, aquilo de que ele goza. Portanto, em seu sintoma, ela goza do significante como Um-sozinho, como um corpo que se goza, mas se recusa a fazer passar esse gozo por um outro, colocá-lo à prova na relação com o parceiro. Sua recusa, em outras palavras, é a de servir-se do falo, ou seja, de seu próprio corpo, para verificar o real da inexistência da relação sexual. Ela se aprisiona na lógica do gozo do Um para continuar mantendo, em seu horizonte, o Outro absoluto, A Mulher como depositária de uma feminilidade que se situaria toda fora do falo e da qual ela se sente privada.

Parece-nos, então, que o sintoma histérico, em nossos dias, mesmo não estando mais encoberto pelo amor ao pai, permanece como uma forma de defesa com relação ao real de um gozo não-todo e, por isso, diferentemente da posição feminina, em perfeita consonância com os tempos atuais marcado por um individualismo de massa (LAURENT, 2013, p. 36). É justamente na medida em que, em seu sintoma, a histérica recusa a servir-se do falo para verificar o real, que podemos distinguir o que Lacan chamou de histeria rígida, ou seja, a forma real de apresentação do sintoma histérico, do sinthoma tal qual ele se apresenta no final de uma análise, referido ao não-todo. Portanto, é a recusa do feminino que hoje, a nosso ver, nos permite dizer que se trata de uma histeria, mesmo quando não dispomos mais de um sentido para compreendê-la.

 


REFERÊNCIAS:
BROUSSE, M.-H. A histeria e as histéricas de Freud a Lacan. [Entrevista concedida a] NODVS (Boletim Virtual da Seção Clínica de Barcelona). 2013. Disponível em: https://www.radiolacan.com/pt/podcast/entrevista-a-marie-helene-brousse-por-nodvs-boletim-virtual-da-secao-clinica-de-barcelona/4. Acesso em: 01 março 2024.
CIXOUS, H. Portrait de Dora. Paris: Editions des femmmes, 1986. (Trabalho original publicado em 1976).
FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1996, p. 15-116. (Trabalho original publicado em 1905[1901]).
LACAN, J. L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Lição de 16 de setembro de 1976. Ornicar?, n. 12-13, p. 5-9, 1977.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada; revisão de Romildo do Rêgo Bastos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original publicado em 1960-61).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 214-225. (Trabalho original proferido em 1951).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. In: Argumento do VI ENAPOL: Falar com o corpo – A crise das normas e a agitação do real. 2012. Disponível em: https://enapol.com/vi/pt/portfolio-items/falar-com-seu-sintoma-falar-com-seu-corpo/?portfolioCats=15. Acesso em: 01 março 2024.
LAURENT, É. Le sujet de La science et La distinction feminine. La Cause du Désir, n. 84, 2013.
MILLER, J.-A. Psychanalyse pure, psychanalyse appliqué et psychothérapie. La Cause Freudienne, n. 48, 2001.
MILLER, J.-A. Nota passo a passo. In: LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MILLER, J.-A. Curso de orientação lacaniana. L´être et l`Un. Aula XIII. 2010-2011. (Trabalho inédito).
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011.

 




O único e o específico na experiência analítica

Maria Wilma S. de Faria
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretora da Seção Clínica do IPSM-MG

A psicanálise, diferentemente de outros campos de saber, traz em seu arcabouço uma especificidade, na medida em que não trabalha com categorias e não se ocupa de generalizações, uma vez que o real da experiência analítica é o que se tem em vista. Orientamo-nos pela prática analítica, na qual se visa o caso a caso, e isso aponta para o fato de que o conhecimento em psicanálise é construído de maneira única frente a uma impossibilidade de enquadramento, de totalização ou de generalização. Cada sujeito deve se apresentar ao longo do tratamento com o seu sintoma, sua forma singular e única de lidar com o real impossível de suportar.

Pensando o específico na experiência analítica, é interessante perguntarmos: quais são os significados dessa palavra? Segundo o Dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001), o específico é: “próprio de uma espécie; peculiar; destinado ou pertencente exclusivamente a um indivíduo ou a um caso, uma situação; especial; exclusivo; próprio; inerente”. Tal definição cai como uma luva, na medida em que, na especificidade, encontramos aquilo que é da ordem também de uma unicidade, o mais próprio de cada falasser, algo que poderíamos localizar como sendo o sinthoma. Para Miller (2013, p. 133), “o sinthoma é o singular em cada indivíduo”. “O singular ‘como tal’, não se parece com nada: ele ex-siste à semelhança, ou seja, ele está fora do que é comum” (MILLER, 2009, p. 35).

Se o singular de cada falasser nos aproxima dos últimos tempos do ensino de Lacan, podemos também nos servir da particularidade, uma vez que esta abraça as categorias e as estruturas clínicas presentes no primeiro tempo de seu ensino. Não se trata de rejeitar os tipos clínicos que herdamos de Freud, de Lacan e da clínica psiquiátrica clássica, mas de saber que um caso nunca realiza o seu tipo: “Que os tipos clínicos decorrem da estrutura, eis o que já se pode escrever, embora não sem flutuação” (LACAN, 1973/2003, p. 554). O Homem dos Ratos, enquanto caso paradigmático, serve como modelo para ilustrar a neurose obsessiva; porém, nem todos obsessivos são como Ernst Lanzer. Cada obsessivo opera de acordo com seu gozo de maneira única, em que pese o fato de que, como falasser, ele esteja também em articulação com o particular e com o universal dessa categoria. Assim, “os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).

A clínica psicanalítica preconiza o Um-sozinho que habita cada ser falante em sua redução e dimensão de real. Se a loucura passa a ser generalizada e está posta a cada ser falante, a psicanálise de orientação lacaniana nos convida ao rigor, no sentido de sustentar o estabelecimento de um diagnóstico diferencial do qual não se pode abrir mão. A construção do diagnóstico diferencial é fundamental na condução de um tratamento, é a bússola orientadora para o manejo de um caso perante as especiais maneiras dos sujeitos se estruturarem psiquicamente, de saberem fazer com seu sintoma e de se inscreverem no laço social. Há, além disto, desse tratamento possível do único e específico em cada sujeito, algo que insiste em não se inscrever e que resta como irredutível. Fazer desse resto uma invenção é o que cabe a cada ser falante, independentemente de sua estrutura. Assim, valer a prática da psicanálise é um princípio ético.

A prática psicanalítica de orientação lacaniana tem também como específico fazer existir o sujeito! Procuramos localizar, em cada caso, o “divino detalhe”, a forma de funcionar do falasser. Interessa à psicanálise o para além das multiplicações contemporâneas de tipos clínicos que proliferam por todos os lados – anoréxicos, bulímicos, toxicômanos, hiperativos, deprimidos. Tais apresentações sintomáticas são compatíveis com a nossa época, pelas quais o discurso da ciência, com seu pragmatismo de adaptações, prescrições e intervenções, busca reduzir o corpo ao organismo, desconhecendo, assim, sua dimensão pulsional e de gozo.

“O que Lacan chama de sinthoma é, por excelência, o conceito singular, cuja extensão é tão somente o indivíduo” (MILLER, 2009, p. 38)”. Assim, não é possível comparar ninguém a não ser a si mesmo, de tal sorte que a singularidade de cada caso compreende o que é incompreensível e incomparável. O instante de ver está relacionado ao singular do caso; assim, desde a primeira entrevista, a forma como se localiza o nome de gozo do falasser tem a ver com esse instante de ver, com como cada analista “encarna” (MILLER, 2009, p. 40) sua presença e faz do encontro um acontecimento de corpo.

O discurso do analista, portanto, diferentemente dos outros discursos, é o único que exclui a dominação, uma vez que, em seu lado superior esquerdo, há um elemento que é “causa de desejo”: ali o analista se faz semblante e o saber se encontra apenas enquanto suposto. O discurso analítico nada tem de universal, não é para todos, e sim “para o Um-sozinho” (MILLER, 2022).

É também único da psicanálise de orientação lacaniana, enquanto ética, o não recuar, o não retroceder do ato analítico, da arte da escuta, de “seguir” o falasser em suas pequenas grandes invenções, do desafio do analista se oferecer como objeto, sempre resto e causa, para que uma transferência opere, permitindo um endereçamento. Enfim, é uma arte, e trata-se de, “do ponto de vista singular, fazer reinar um deixar ser: deixar ser aquele que se entrega a você (analista), deixá-lo ser na sua singularidade” (MILLER, 2009, p. 36).


Referências
HOUAISS, A.; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 553-556. (Trabalho original publicado em 1973).
MILLER, J-A. O inconsciente e o sinthoma. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 55, 2009.
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J.-A. Todo mundo é louco – AMP 2024. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 85, p. 8-18, dez. 2022.



Entrevista com Éric Laurent: Crianças em análise1

Éric Laurent
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
Membro da ECF, EBP, EOL, NEL, NLS
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ericlaurent@lacanzan.net

Silvia Tendlarz: O senhor vê alguma diferença entre a análise de crianças e a análise de adultos?

É. Laurent: Em princípio eu diria que não há diferença entre a análise de crianças e de adultos, mas, por outra parte, sim, há diferença entre crianças e adultos. Houve uma tendência, desde o aparecimento da análise de crianças nos anos 20, em Viena – tanto no grupo de Anna Freud, quanto no grupo de Melanie Klein –, de separá-las da análise de adultos, com o argumento de que o desenvolvimento e do manejo da palavra no adulto e na criança concretizavam essa diferença. O desenvolvimento da análise do jogo ou a difusão da técnica da análise dos desenhos – os desenhos foram mais utilizados por Anna Freud e o jogo por Melanie Klein – propuseram algo como uma técnica nova que necessitaria de praticantes especializados. Isso faz com que no movimento psicanalítico existam tensões entre aqueles que praticam análise com crianças e aqueles que não praticam. Muitas vezes essa separação encobre a diferença de sexos: são as mulheres aquelas que se ocupam das crianças, e os homens não. Há poucos homens que se ocupam disso – embora dependa dos países. Essa oposição é falsa e pode produzir dentro da sociedade de psicanálise a realização da diferença entre os sexos. Não há diferença entre a análise de crianças e adultos pois, qualquer que seja a idade, o sujeito desde o início está estruturado da mesma maneira. Isso significa que o manejo da língua não tem nada a ver com a estruturação do sujeito como estruturado pelo significante. Na concepção lacaniana, o fato de que a criança fale, fale muito pouco ou fale de maneira fragmentada, não a impede de estar situada na linguagem como tal. Ainda que haja um dizer sem palavras da criança, este está estruturado como um dizer. É precisamente porque Lacan situa de maneira radical o sujeito na linguagem o que permite abordar a criança da mesma maneira. O desenvolvimento da aprendizagem da língua não significa uma melhor localização na língua. A posição radical de Lacan de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem permite considerar que, fale ou não, o sujeito está completamente definido por sua localização. Em segundo lugar, durante muito tempo algo que se esqueceu do ensino de Lacan é que nem tudo é o inconsciente na experiência da psicanálise. Desde Freud, por um lado, está o inconsciente, e, por outro lado, está o Isso (que não está estruturado como uma linguagem). Em “O outro Lacan”, J.-A. Miller enfatiza sobre esse aspecto que não foi muito bem-visto durante anos, todo esse aspecto de examinar o Isso e da localização correta da pulsão durante a análise, que foi uma preocupação constante em Lacan e que foi tomada de distintas maneiras segundo a época de seu ensino até a formulação do objeto a. Isso tem muita importância para a criança. Devemos distinguir de maneira correta a posição da criança. A diferença entre a criança e o adulto é que a criança tem pais que a apresentam ao analista, e que esses pais não estão mortos para ela. A criança manifesta com seus sintomas a verdade do que é o discurso familiar sobre ela (discurso de idealizações, o que se espera dela, em que lugar está exatamente). Esse discurso sobre ela não é o essencial, o essencial é a verdade, o ponto de gozo que há em tudo isso. Em seu sintoma, manifesta a articulação entre o pai e a mãe, o que foi o desejo que produziu essa criança. A criança é produto ou é dejeto de um desejo. Lacan dizia que a maneira pela qual o psicanalista pode intervir mais facilmente é quando há essa manifestação sintomática na criança. O protótipo disso é a fobia. Os casos mais interessantes publicados foram sempre casos de fobia: o caso do Pequeno Hans, o caso de Richard de Melanie Klein, o caso de Piggle de Winnicott. Os casos mais desfavoráveis são quando a criança não é sintoma da família, mas quando ela se apresenta como o objeto do fantasma da mãe. Nisso há que se distinguir o fantasma e o sintoma como registros distintos da experiência. No sintoma o que predomina é a fixação de uma metáfora, o gozo que há em palavras congeladas, em ditos que desempenham um papel no destino da criança, ou, como dizia Freud, o sintoma organizado pelo núcleo superegóico. Mas quando a criança é o objeto do fantasma da mãe, o que predomina é um gozo que não se articula à cadeia significante, um gozo que resiste à interpretação analítica como tal. É muito mais difícil conseguir modificar a posição da criança e permitir que ela se coloque de outra maneira no discurso da família. Esses são os casos de psicose, de autismo. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que do lado do sujeito como tal, relacionado à presença do Outro da palavra que já está no mundo quando se nasce, a criança está na mesma posição que o adulto. Mas, em relação ao objeto da pulsão, ao Isso e ao gozo, há diferenças entre a criança e o adulto.

Silvia Tendlarz: O senhor acredita que também nas crianças acontece a neurose de transferência?

É. Laurent: Sim. As crianças têm transferência. Esse foi o debate entre Anna Freud e Melanie Klein, e foi Melanie Klein quem o abordou de uma maneira satisfatória dizendo que a transferência da criança e do adulto são iguais, e que devem ser tratadas da mesma maneira. Em termos lacanianos, há na criança a possibilidade do Sujeito Suposto Saber. Qualquer pessoa que recebe uma criança em análise vê muito bem como a criança situa algo do saber no lugar do analista, o que permite a transferência. Sujeito Suposto Saber do que foi dito anteriormente para essa criança em análise e mesmo antes que essa criança iniciasse a análise. O analista é a testemunha de que em algum lugar há um suposto saber de tudo o que foi dito. Nesse sentido, existe a estrutura da transferência nas crianças.

Silvia Tendlarz: O senhor encontra alguma especificidade na análise com crianças?

É. Laurent: Claro, a especificidade está na divisão entre o sintoma e o fantasma.  O caso em que a mãe se articula ao pai produzindo o sintoma como clara articulação do desejo da mãe em relação à posição do pai, ao Nome-do-Pai, é diferente de quando essa articulação não ocorre e o desejo da mãe fica articulado ao gozo da mãe sem essa mediação. Situar bem essas coisas é uma particularidade da análise das crianças. Também há outra particularidade que é o fato daquele que conduz o tratamento deixar-se cegar pela questão do desenvolvimento. Um adulto está supostamente desenvolvido, o que é uma suposição. O fato de que a criança esteja se desenvolvendo, que haja processos de maturação, dá a ilusão de que a estrutura não está constituída, que será constituída. Ainda que seja verdade que a criança experimenta seu corpo, os objetos de seu corpo que pode entregar ao outro, objeto oral, anal – que são os mais conhecidos –, o olhar e a voz, não podemos pensar que tudo se explicaria por uma fase do desenvolvimento. Essa tentação sempre foi um perigo: reduzir a posição do analista, as dificuldades da análise das crianças, ao ponto de vista do desenvolvimento. Há um ponto de vista lacaniano do desenvolvimento da criança que é a localização própria do corpo, da articulação do sujeito com seu corpo próprio.

Silvia Tendlarz: E quanto ao final de análise?

Laurent: Como lhe disse anteriormente, há os finais de análise de crianças de fato e os finais de análise que devem ocorrer. Há grande quantidade de casos em que se vai ao analista de crianças para obter um alívio do sintoma, o que pode se reduzir a um deslocamento do sintoma. Mas deslocar o ponto de vista do que era insuportável já não é tão ruim. O que seria um final de análise da criança não estaria do lado do sintoma, mas do lado do fantasma. Há poucas análises de criança que podemos considerar como terminadas; nem a análise do Pequeno Hans, nem a de Piggle, nem a de Richard são análises terminadas. Creio que é algo que há que se produzir. Contudo, há um paradoxo: poderíamos falar de análise terminada depois do encontro com o que é o gozo sexual como tal; o paradoxo seria de que, neste momento, uma criança deixa de se definir como criança. No momento no qual se poderia verificar que há uma análise terminada, é o momento em que a criança desaparece e o que há é o que se chama adulto, alguém que se enfrenta com o gozo sexual como tal.

Tradução: Beatriz Espírito Santo

Revisão: Maria Rita Guimarães


1 Nossos sinceros agradecimentos a Silvia Elena Tendlarz pela autorização para publicação desta entrevista em Almanaque n. 33. A entrevista encontra-se publicada no blog da autora, disponível em: https://www.silviaelenatendlarz.com/entrevista-a-eric-laurent/.



Memória – O surgimento do Almanaque do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais

Almanaque 33 manteve uma descontraída conversa com Simone Souto, uma das criadoras da revista Almanaque para o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental. Quisemos saber, assim de improviso – o que vale dizer, sem recursos à pesquisa e a arquivos, sem preocupação com a exatidão –, o que lhe evocavam as perguntas que seguem.

Almanaque 33: Como nasceu a revista Almanaque do IPSM-MG?

Simone Souto: Eu era diretora de publicação, se não me engano, e parece-me que foi na diretoria do Barreto.

Almanaque 33: Francisco Paes Barreto.

Simone Souto: Isso mesmo. O Instituto tinha acabado de ser criado, havia pouco tempo de funcionamento e me lembro de que a gente queria uma publicação que se configurasse como um veículo, rápido, alguma coisa bem simples, capaz de divulgar um pouco o que acontecia no Instituto, principalmente nos Núcleos de Investigação e Pesquisa. Assim, acho que, no primeiro número, todos os artigos tinham a ver com os Núcleos. A inspiração para fazer o Almanaque e lhe dar esse nome veio daquelas publicações antigas, lançadas e divulgadas por farmácias e que existiram até no início do século XX. Por isso, o layout, as letras e as ilustrações, tudo teve a ver com aqueles antigos almanaques de farmácia.

Almanaque 33: Então, o trabalho de pesquisa que houve foi inspirado por eles e acabou sendo muito precioso. Foi muito trabalhoso?

Simone Souto: Sim, nos servimos inclusive das cartas enigmáticas que também eram publicadas nos almanaques e faziam sucesso na época. Havia aquele almanaque do Biotônico Fontoura e ainda outro, referente a um óleo de bacalhau e do qual me esqueci o nome…

Almanaque 33: Óleo de rícino, é isso mesmo! Podemos pesquisar a respeito.

Simone Souto: Com relação à tiragem, ela era grande, 1.500 exemplares, porque nosso objetivo era fazer um pouco de panfletagem, distribuir o Almanaque por toda a cidade. Afinal, era um momento de o Instituto se fazer presente na cidade! Também foi um momento em que o Instituto já tinha presença muito forte nas instituições de Saúde Mental porque havia muito colegas da Saúde Mental que frequentavam bastante as atividades do Instituto. Logo, queríamos que o Almanaque pudesse retratar um pouco isso, assim como ajudar a consolidar a presença do Instituto na cidade.

Almanaque 33: O Almanaque tinha mesmo esse estilo tabloide … No ano 2000, já estava no ano 3 de publicação. É mesmo admirável o tamanho da tiragem. Era uma aposta muito grande naquela época.

Simone Souto: Sim, ele foi feito naquele formato, como um panfleto, com poucas páginas, e cada um de uma cor: branco, amarelo, verde… Nós o distribuíamos por todo canto e para todo o mundo.

Almanaque 33: Vimos um vermelho, um vermelho meio rosa, magenta. Verificamos que estão cadastrados na Biblioteca, na sede do Instituto.

Simone Souto: Também existiram os Papéis, que não tinham nada a ver com o Almanaque. Os Papéis foram a criação de uma outra publicação.

Almanaque 33: Não substituiu o Almanaque, portanto.

Simone Souto: Não, acho que não. Foram outra publicação. Os Papéis formaram outra linha de publicação e eram, inclusive, temáticos. Eu me lembro de um que foi sobre psicose, e que seguiam as temáticas investigadas nos Núcleos do Instituto. Continham textos mais extensos e densos enquanto que, no Almanaque, os textos eram mais leves e curtos.

Almanaque 33: Eram publicações dirigidas a públicos distintos. O Almanaque visava um universo maior, não é? Em um de seus números, por exemplo, pode-se ler um texto sobre a psicose na rede, escrito por você. Também há um sobre o corpo e a medicina, a psicanálise com crianças, sempre orientados pela psicanálise. São temas absolutamente da maior atualidade e seguem ainda como temas de pesquisa no IPSM-MG.

Simone Souto: Sim, procurávamos fazer um para cada Núcleo, para mostrar o que cada Núcleo investigava, pois o Instituto era mesmo uma novidade.

Almanaque 33: Sim, e as instituições também estavam acolhendo de braços abertos a relação da Saúde Mental e da psicanálise, quer dizer, a Saúde Mental orientada pela psicanálise. Você faria uma relação entre esse movimento de panfletagem da psicanálise, via a publicação Almanaque, a entrada do Instituto na cidade, a nossa presença nas instituições e o efeito de certa efervescência da psicanálise na cidade, naquela época?

Simone Souto: Sim. Eu acho que surtiu bom efeito, porque já naquela época o Instituto cresceu, não só em número de participantes, como em sua relação com várias instituições e, também, com relação à sua presença na cidade, foi um retorno interessante. A gente via as pessoas com o Almanaque nas mãos. Então, nessa época que não existia o online, a gente se valeu de uma grande distribuição do que era escrito e impresso. Essa estratégia teve boas consequências: grande interesse pelo Instituto; algum tempo depois, criamos o Curso de Psicanálise… Tenho a impressão de que esse Curso do Instituto foi criado pouco depois do início da difusão do Almanaque e, a partir daí, essa publicação passou também a promover esse Curso que despertou ainda mais o interesse das pessoas pelo que a psicanálise tem a dizer. Abordávamos muitas vezes assuntos sobre os quais as pessoas, em geral, achavam que a psicanálise não teria nada para dizer, mas que eram os temas muito discutidos naquela época, no âmbito da Saúde Mental, da Educação, etc. Com isso, foi possível trazer mais pessoas ao Instituto e que não tinham, a princípio, uma relação muito estrita com a psicanálise, permitindo-nos escutá-las.

Almanaque 33: Escutando o que você nos conta, ressalta-nos o incrível dessa ideia, porque ela captou ou lançou no ar daqueles tempos da psicanálise na cidade, e de uma forma alegre. Alegre e rigorosa, por apresentar toda uma pesquisa veiculada em uma publicação popular como os antigos almanaques eram.

Simone Souto: Sim, foi assim mesmo – ter uma publicação e um alcance mais popular, mas sem renunciar ao rigor da psicanálise.

Almanaque 33: Sim. E, além do mais, essa grande ideia foi a baixo custo, porque, pelo aspecto, pelo papel, pelo tipo de impressão, pode-se pensar que isso permitiu a grande tiragem, alcançando 1500 pessoas a cada edição! Foi mesmo uma brilhante e inovadora ideia, que frutifica até nossos dias. Agradecemos-lhe muitíssimo sua generosidade de nos falar sobre as raízes da publicação Almanaque.




O único e o específico na experiência analítica

Frederico Feu de Carvalho
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
fredericofeu@uol.com.br

O “único” e o “específico” podem ser tomados como duas maneiras de nos referirmos à singularidade do sujeito na experiência analítica.

Nos acostumamos, desde Freud, a fazer a distinção entre o caso único e o tipo clínico. Trata-se de distinção clínica que expressa a posição ética do psicanalista: o sujeito não se reduz à categoria diagnóstica que especifica o seu tipo clínico e, mesmo que ele possa ser comparado a outros sujeitos do mesmo tipo, orientando a direção do tratamento do seu caso, a resposta subjetiva ao realismo da estrutura é o que condiciona, em última instância, a singularidade da interpretação.

Gostaria de propor, no âmbito de nossa discussão no IPSM-MG, que a distinção entre o “único” e o “específico” não recobre inteiramente aquela entre o caso único e o tipo clínico, especialmente se remetemos o “único” ao “Um”, marca de gozo original do falasser. Nessa acepção, o “Um” converge com a perspectiva do sinthoma no último ensino de Lacan, tomado como unidade clínica fundamental. Como unidade clínica fundamental, o sinthoma supera clivagens precedentes, entre elas a clivagem entre o caso único e o tipo clínico, na medida em que a perspectiva do sinthoma demarca o ponto de inflexão clínico entre a estrutura, entendida como a articulação dos elementos em que se joga a partida entre o caso único e o tipo clínico, e os elementos tomados em si mesmos, fora da articulação e do sentido.

A prática da psicanálise ganha então uma outra ênfase. Trata-se de reconduzir a trama de destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora de articulação, quer dizer, fora do sentido e, porque absolutamente separados, podemos dizê-los absolutos. Trata-se de reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente (MILLER, 2008, p. 57-58)

A unicidade do falasser seria, portanto, um ponto fora da articulação dos elementos. Ela ex-siste em relação ao caso clínico, com o qual não se confunde. Não se refere, portanto, à máxima segundo a qual cada caso é um caso. A distinção lógica entre o específico e o único pode ser então formulada nesses termos: o específico corresponde à resposta ficcional e estruturada dada por um sujeito à sua marca única; seja ao inscrever-se no universal de um tipo clínico, seja ao excetuar-se dele como singularidade, o específico, como o particular de um sujeito, só existe por ser predicável. O Um, por sua vez, traz consigo uma dificuldade de escrita e de interpretação. Sua maneira de existir fora do universal é uma maneira radical, por não ser predicável, permanecendo à distância de qualquer referência linguística. Como, então, pode-se afirmar a existência de algo do qual nada se pode predicar? Se, por outro lado, afirmamos sua existência, a despeito de ser impredicável, o que pode vir a suportar sua escrita? Proponho que a resposta lacaniana a essa questão é o sinthoma: a maneira específica como cada falasser amarrou o seu Um ao real, ao simbólico e ao imaginário para fazer disso um nó.


Referências

MILLER, J.-A. Curso de orientação lacaniana III. Lição V, 2008. (Trabalho inédito).