Adeline, uma garotinha reservada[1]

Adeline, uma garotinha reservada1

Jacqueline Dhéret
Psicanalista, AME da École de la Cause freudienne/AMP

E-mail: jacqueline.dheret@wanadoo.fr

Resumo: Este texto discorre sobre a análise de uma menina de sete anos, cujo pai é transexual, coloca em cena questões que atravessam a nossa época, ligadas ao que se designou como parentalidade. A criança  em seu silêncio  “não sabe como fazer com seu pai”. Ao longo das sessões, junto à analista, ela constrói soluções que a ajudam a suportar seu mal-estar.

 Palavras-chave: criança; pai transexual; parentalidade, silêncio, mal-estar.

ADELINE, A RESERVED LITTLE GIRL

Abstract: This text discusses the analysis of a seven-year-old girl, whose father is transsexual, and raises issues that permeate our time, linked to what is known as parenthood. The child in his silence “does not know what to do with his father”. Throughout the sessions, together with the analyst, she builds solutions that help her cope with her malaise.

 Keywords: child; transsexual father; parenthood; silence; malaise.

A garotinha de sete anos e meio, que recebi durante dois anos e revi novamente quando esteve em Lyon, me contou suas preocupações. Ela “não sabe como fazer” com seu pai.

Ela veio acompanhada pela mãe, que explica a situação insustentável que vem enfrentando

há vários anos. O juiz de família encarregado do divórcio dos pais planeja encaminhar o caso ao juiz da infância, porque o pai de Adeline, que se afirma transexual,vive um relacionamento com um companheiro. O juiz esteve com os pais e está reticente em permitir que a criança  frequente a casa do pai, que está disposto a continuar a ver sua filha. A criança circula entre pai e mãe e permanece calada.

A mãe de Adeline deseja, inquestionavelmente, que o pai da criança, seu ex-marido, exerça seus direitos de visita, e manifesta a sua desaprovação com o fato de que é o companheiro que fica, na maioria das vezes, responsável pelo que chamamos de parentalidade.[2] É principalmente ele que cuida da criança a cada dois finais de semana. A mãe espera que a analista possa lhe dizer o que deve ser feito por sua filha.

Rapidamente eu compreendi que não estamos num impasse de gênero:

o discurso da mãe confirma que o ex-marido, ao se dizer mulher, encontrou uma solução para antigos tormentos. Ele não lida bem com a ambiguidade dos semblantes, não se dá ao trabalho de brincar com as aparências: ele se sabe mulher. Se ele aceitava seu gênero biológico, se ele se acreditou homossexual, agora ele não duvida mais de sua identidade. Depois do nascimento da filha, ele pôde confiar a sua perplexidade e a sua desolação àquela a quem conhecia desde o final da adolescência e com quem se casou. A mãe confirma que eram próximos, “faziam tudo juntos”, até o nascimento de Adeline.

Para a justiça, é um brutal encontro com a dissociação aqui realizada entre diferença sexual e função parental. Um pai legal que subverte as leis da natureza e uma mãe que afirma que um pai, mesmo que tenha se tornado mulher, continua sendo um pai. Lembramos que não ocorreu a ninguém dizer que essa criança teria agora duas mães. O pai de Adeline, que deixou o lar conjugal há vários anos, forma um casal heterossexual estável com seu companheiro, de acordo com o que ele experimenta em seu corpo, a partir de sua imagem.

Essa situação fora da norma não é um efeito da hegemonia da ciência no mundo moderno. O recurso à cirurgia de redesignação sexual, já praticada por volta dos anos 2000, encontrou na época grande relutância. Para o pai de Adeline, os tratamentos hormonais e cirúrgicos, encontrados no exterior, permitiu-lhe combinar a imagem do seu corpo com o que se apresentava para ele, como uma evidência. Supomos que a construção dessa certeza, que não corresponde exatamente à definição psiquiátrica,[3] foi a resposta desse sujeito à impossibilidade de integrar o pênis real, devido à Verwerfung, quando ela fez irrupção na criança (LACAN, 1956-57/1995, p. 429).

Construir um vazio

Adeline está claramente tão feliz quanto preocupada com nossos encontros. A partir de um comum acordo, deixamos de lado o burburinho que agita a justiça e os agentes sociais. Eu também interrompo o gozo voyeurista dos entes próximos que se manifestam pelo telefone: apenas Adeline e sua mãe, que a acompanha, irão atravessar a porta do meu consultório. Suas idas e vindas, a espera da mãe enquanto a filha fala comigo, se encarregam do real insuportável que faz com que os semblantes vacilem: eu respeito Sua mãe convoca as responsabilidades que um pai deve assumir, mas Adeline, na sua forma de aceitar a minha presença e permanecer em silêncio, me indica que ela percebe o quanto o significante “pai” é apenas uma hipótese ligada a um passado. Se ele teve valor de verdade, esse significante não pertence à sua língua íntima. O que resta é que “ela se preocupa com seu pai”.

Essa formulação, complementada por outra, sussurrada – “Não sei como fazer…” –, silenciará o território sonoro dos saberes do Outro (MILLER, 2012). Uma vez aberto no espaço do tratamento o direito à sombra, de que nos fala G. Wajcman (2004) em seu Chroniques du regard et de l’intime, Adeline tomará o gosto pela palavra.

Que reconstrução na lingua ela vai operar?

Estamos além do Édipo, mas a criança não abandona, durante a sessão, a nomeação “meu papai”; um “papai” que ela não pode nomear assim na frente de terceiros, quando eles estão juntos.

É essa vigilância obrigatória que a menina colocará no centro dos nossos encontros e que ela questionará, com um embaraço subjetivo, se esforçando ao longo das sessões em construir pequenas soluções suportáveis.

Tomemos um exemplo: na época do Natal, ela cria uma história em quadrinhos na qual encena a festa, seus preparativos e o ambiente familiar; a refeição acontece na casa dos avós maternos, onde estão seu tio, sua tia e seu primo. Um lugar, ao lado do lugar da mãe, está vazio: “O do papai”. Mas ela o desenha, de pé, perto da poltrona. Ela o contorna com um círculo de onde sai uma flecha que aterrisa no quadrinho seguinte, ao lado de um outro personagem, o de seu companheiro: “É para mostrar que papai não está conosco, que ele passa o Natal com Paul”. Ele está, contudo, presente para sua filha, na reconstrução familiar que ela está realizando e ele é um homem. A flecha o desloca, no quadrinho seguinte, ao lado de Paul. O impossível de representar diz respeito ao ponto em que o pai se vê como uma mulher. A astuciosa construção imaginária de Adeline usa a técnica específica dos quadrinhos para indicar que o ponto de apoio aqui é Paul, com quem é normal que o pai passe o Natal, já que vivem juntos. Uma narrativa se organiza a partir do significante “companheiro”, ao qual a criança soube se ater e  se apropriar e que não é, para ela, sem valor.

Endereçar-se a Paul para se fazer ouvir pelo pai e encontrar a sua voz

 Paul tem menos mérito em cuidar de Adeline nos fins de semana do que em cuidar do “papai”. Nas sessões, a criança vai formulando gradativamente seus medos de ir à casa de seu pai quando Paul não está lá. Estar cara a cara com o pai é difícil, não tanto por causa da aparência física dele, muito próxima a de uma mulher, mas por sua forma de falar, muito loquaz, sobre sua relação com o álcool e sobre suas insônias, que a impedem de dormir. “De manhã, tenho medo de encontrá-lo no sofá diante da televisão”, disse Adeline.

Quando Paul está presente, seu pai se comporta melhor e ela fica mais tranquila porque há “menos de tudo isso”. Ele se dedica a uma comunicação a três que evita o preocupante cara a cara. Por exemplo, ele pode dizer, quando Adeline apresenta um resultado escolar: “Muito bom!”; e, em seguida, dirigindo-se ao pai da criança: “Veja, a pequena se vira muito bem em matemática”. Ele é o conciliador que se encarrega da vida cotidiana. Adeline pode se endereçar a Paul, que transmite suas falas, e essa montagem evita os excessos. Com ele é possível bater papo “com delicadeza” e gentileza. Acima de tudo, ele parece saber fazer com o “papai”

Com o tempo e sem que a analista tenha algo a dizer sobre isso, Adeline dirá à mãe que não é necessário que ela vá com tanta frequência à casa do pai. A análise afrouxou o controle de um significante mestre e a voz de Adeline tornou-se mais firme. Ela conseguirá dizer o que é possível, o que ela não quer por ser muito difícil e o que ela demanda. Por exemplo, ela quer ir à casa do pai se Paul estiver lá, não quer mais ir ao restaurante porque é obrigada a tomar cuidado para não dizer “papai” a seu pai, ela quer fazer outras coisas que tornem complicado o exercício do direito de visita do qual sua mãe não abre mão. A maneira como ela formulará essas coisas junto à mãe irá esvaziar qualquer ímpeto de envolver serviços de proteção infantil e judiciário.

Aos poucos, ela limitará a permanência na casa do pai e não dormirá mais lá de forma sistemática. Quando sua mãe se muda para outra cidade, e antes que o pai e Paul fizessem o mesmo, ela se convida para ir para a casa de uma tia-avó paterna, uma figura civilizada desse ramo da família. “Não muito, mas um pouco com papai”, o que a mãe, o pai e seu companheiro admitirão sem muitos problemas.

O impossível de nomear

 O ponto explosivo diz respeito ao pedido do pai para que a filha o chame pelo seu nome de mulher quando estiverem fora do âmbito familiar, sendo seu desejo implícito de ser chamado de “papai” apenas em determinadas circunstâncias.[4]

Adeline se opõe a esse pedido com uma recusa obstinada, mas informulável. Fora de casa, durante as chamadas telefônicas na semana, ela ignora o pai quando estão em público. Nem um olhar, nem uma palavra! A tal ponto que esse nome feminino, que indica o sexo do qual o pai assumiu a aparência, impõe sua presença nas sessões por não ser jamais pronunciado. Carregado de um excesso de sentido, ele mobiliza a vergonha, tal como um grande segredo. Faz calar e reproduz o Outro ali onde a certeza paterna faz existir A mulher. Está para além das palavras; o risco é de que alguma coisa se feche sobre esse Outro absoluto.

Como alojar este nome na língua, sem abandonar o significante “papai”?

A analista, sensível ao estilo da menina, respeita o silêncio cauteloso com o qual ela envolve as suas afirmações. Adeline tem uma maneira muito íntima de se endereçar a ela, cuidadosa, concentrada e às vezes sussurrando; uma forma de guardar as palavras, de cobri-las de silêncio, até o momento em que ela decide dizê-las, em sua fragilidade. Então, ela pode se apoiar nelas, a voz fica mais firme e a analista diz: “Sim!”.

“Falar aqui me ajuda a refletir”, disse a jovem analisante, ansiosa por inventar sua resposta para a certeza paterna.

A analista optará por intervir o mais próximo possível da língua do sujeito, do seu estilo, a ponto de dizer baixinho: “E Paul então, como ele chama o seu pai?”. Ela responde com confiança, sem qualquer constrangimento.

Colocar Betty e Paul como um casal não é do mesmo registro que colocar o pai sob a vigilância cuidadosa de Paul.

No espaço público, Betty presentifica o horror do corpo materno que Freud (1940[1922]/1996) disse que se manifesta, para além da privação, no acúmulo, na efervescência. Adeline, que está de olho no pai, diz “não” a ele, mas a presença da Coisa provoca uma aniquilação do ser vivo. A montagem que ela encontrou não se sustenta mais: em público, o significante “pai” torna-se impronunciável, e Betty aparece, em sua inquietante estranheza, como a Medusa.

Alojar Betty na língua passa por Paul e essa operação reconstrói um ponto de opacidade sobre o que é ser mulher.

Por que minha mãe me deu um pai como este?

 O desejo, como nos indica J. Lacan, parte do Outro, e essa interrrogação, que supõe para a criança um valor fálico, a faz faltante. Em decorrência da banalização do nome de Betty, Adeline apresentará uma nova questão. Nós não estamos mais no tacere[5] do início; no Outro, algo não pode ser dito, e podemos querer saber.

“Por que minha mãe me deu um pai assim?”
“Um pai assim, como?”, pergunta a analista.
“Sim. Um pai que pensa que é uma dama.”

Observamos o uso de uma linguagem refinada, do significante que coloca um véu sobre A mulher, aquela que, se existisse, permitiria que a relação se inscrevesse. “Papai acredita nisso”, essa é a loucura dele.

A questão desta vez diz respeito ao enigmático desejo da mulher na mãe. Não se trata mais aqui da palavra de amor, nem da esmagadora igualdade da regra, de quem se espera que regule o enigma através do exercício dos direitos parentais. Uma lacuna foi cavada, um vazio, que instalou uma respiração.

Adeline precisou de um tempo para resolver o que era insuportável para ela; ela se afastou um pouco do gozo mortificante, construiu um julgamento em sua língua. Uma língua feita de um prudente respeito pelo delírio do pai e uma pergunta à qual ela responderá com outra avaliação igualmente calculada: “Será que ela se enganou… quando ela se casou com meu pai?”.

Consideremos essa alegação provisória como uma forma de se afastar do significante esplêndido, aquele que diria tudo, para manter aberto o campo do desejo, graças ao apoio dado pela transferência.

Uma mulher pode se enganar. Sim, na análise podemos descobrir que o “eu não quero saber de nada” do gozo do sintoma passa pelos enganos significantes.

O personagem excepcional na família materna é o avô. Um intelectual respeitado e admirado pela filha, a qual, desde a adolescência, formava um casal com o pai de Adeline.

Os semblantes que haviam organizado o casamento os colocavam, ela e ele, protegidos da questão sexual. Estamos, sobretudo, no registro da satisfaçao dessa mulher em ser o ponto de apoio para o outro e com a aceitação de uma quase assexualidade que tinha, no entanto, permitido a chegada da criança.

E, então, um dia, eu amarei alguém…

Na aurora da adolescência, Adeline compartilhou comigo um ponto de sofrimento: quando se é uma jovem, gostamos de contar tudo para as melhores amigas. Ela não pode fazer isso.

“Nem tudo pode ser dito”, pontua a analista, “e é isso que nos permite falar…”. (silêncio)

“Um dia amarei alguém e então terei que descobrir como falar sobre isso.” (silêncio)

“Há crianças que não veem o pai com frequência porque ele está longe. Há também crianças cujo pai está morto e talvez seja difícil falar disso. Eu posso falar um pouco sobre meu papai. Em todas as famílias também se pode ter amigos. Paul e Betty, eles também podem ser amigos da família: escrevemos para eles, convidamos para as grandes ocasiões.”

Essa situação desvela o artifício sobre o qual se funda o casamento: o princípio da imutabilidade, tão caro à justiça, que nos libertava dos dados naturais, repousa sobre um ponto de eternidade. Construído por ficções jurídicas, esse postulado não diz nada sobre os corpos. Na época freudiana, tratava-se de amarrar a questão do nome, da exceção, à interdição do incesto. Hoje percebemos melhor que as leis que pareciam, por um tempo, imutáveis, baseiam-se, de fato,  sobre uma permanência que é construida simbolicamente.

Hoje, trata-se de assegurar a continuidade de outra forma, o que pode ser respondido pelo discurso analítico ao dar crédito à linguagem do sujeito, aos fundamentos ainda que incertos que lhe dão abrigo, na língua comum.

Tradução: Letícia Mello
Revisão: Tereza Facury

Referências
CHAUMONT, O. D’un corps à l’autre. Paris: Robert Laffont, 2013.
FREUD, S. A cabeça de Medusa. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996, p. 289-290. (Trabalho original publicado em 1940[1922]).
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (Trabalho original proferido em 1956-57).
MILLER, J.-A. A criança e o saber. CIEN-Digital, n. 11, jan. 2012.
WAJCMAN. G. Fenêtre: Chroniques du regard et de l´intime. Paris: Verdier, 2004.

[1] Publicado originalmente em: Brochure des textes du colloque de mai: Le désir e la loi. 2013. Disponível em: http://ccbcn.info/xv-conversacion/docs/biblio/BrochureColloqueMai.pdf. Acesso em: 01 jan. 2023.
[2] Em 1990, o termo “parentalidade” foi introduzido no vocabulário comum e tornou-se um termo referencial de ação pública. Permite “repensar” a perturbação das formas de família, mas abre também esse campo aos cognitivos-comportamentais, que agora querem acompanhar nossas vidas. Atualmente, multiplicam-se os ateliês de parentalidade que visam capacitar os pais em dificuldades, o desenvolvimento de competências parentais, etc.
[3] “Transtornos precoces de identidade de gênero”. Outros exemplos clínicos mostram que essa  certeza, assim que toma forma, é interpretada como arcaica, já presente na infância.
[4] Olivia Chaumont (2013, tradução nossa), em seu livro  D’un corps à l’autre, diz, sobre sua filha, que esta, hoje em dia uma adulta, ainda a chama de “pai”. “Para que ela se sinta confortável em público”, acrescenta Olivia, “eu fico em segundo plano”.
[5] Tacere: termo em latim que significa “ficar em silêncio”.



O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo

O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo1

Ana Sanders
Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
anasandersb@gmail.com

Resumo: A contribuição lacaniana sobre a relação entre o sonho, o trauma e o despertar, para além da representação onírica que ele faz surgir, evidencia um importante paradoxo clínico. A leitura de um sonho como acontecimento de corpo, a partir de um caso de uma criança de 8 anos, suscita questões paradigmáticas no sentido de uma clínica em direção ao real.                                                                                

 Palavras-chave: sonho; trauma; acontecimento de corpo; despertar.

 THE DETAIL HISTORIAN: ARTICULATIONS BETWEEN DREAM AND BODY EVENT

 Abstract: The lacanian contribution to take the dimension between dream, trauma and awakening, beyond the dream representation that it arises, is necessary to highlight as an important clinical paradox. The reading of a dream as a bodily event, based on a case of an 8-year-old child, raises paradigmatic questions in the sense of a clinic towards the real, of speaking in the contemporary.

Keywords: dream; trauma; bodily event; awakening.

 

 

 

Sonho e trauma

Em 1936, o filósofo judeu alemão Walter Benjamin (1936/1987), ao localizar o silêncio sintomático dos combatentes que retornaram do campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, elabora sua célebre formulação, em seu ensaio “Experiência e Pobreza”, afirmando que a arte de narrar histórias e de compartilhar experiências estaria em declínio. Diante do excesso vivenciado nas trincheiras, os combatentes voltavam mudos e empobrecidos na capacidade de transmitir, através da fala, algo dessa experiência. Tal experiência já havia sido apontada por Freud ao escrever sobre as neuroses de guerra, em 1918, as quais, diferentemente da lógica da neurose de transferência, corresponderiam a uma neurose traumática. Assim, o excesso de uma vivência pulsional não seria sem consequências para os processos psíquicos, apontando, dessa forma, o fundamento dessa neurose na fixação no acontecimento traumático.

Em 1920, como efeito da clínica com os sujeitos que voltavam da guerra, Freud (1920/2020) retoma os sonhos traumáticos em seu caráter de exceção no que concerne ao pressuposto de que todo sonho seria uma realização de um desejo e estaria, portanto, ligado ao princípio de prazer; o que ele descobre é que existem sonhos que apontam para a compulsão à repetição, ou seja, para a repetição de um desprazer. Isso porque, neles, o trabalho onírico se apresenta sob a característica de reconduzir repetidamente “o doente de volta à situação de seu acidente, no qual ele desperta com um novo susto” (Freud, 1920/2020, p. 73). Sob consequência do excesso para o aparelho psíquico ocorrido na vida em vigília, essa experiência fornece aos sonhos uma marca da repetição, ao impor a experiência traumática sem cessar, inclusive durante o sono, como uma tentativa de uma elaboração simbólica. Esse retorno, essa fixação no trauma, aproxima os sonhos da neurose traumática à dimensão do real proposta por Lacan.

Nesse sentido, há uma leitura decisiva feita por Lacan ao abordar a teoria dos sonhos em Freud que provocou uma reorientação importante para a prática clínica. No Seminário 11, Lacan (1964/1988) retoma o centro incógnito dos sonhos, o umbigo, para dizer de uma hiância essencial em um registro de real no inconsciente, que permite que o sujeito possa emergir como efeito de surpresa. No seu último ensino, Lacan (1973-74) propõe o neologismo “troumatisme” para assinalar que a irrupção do real produz, como efeito, o furo no simbólico, que aponta para o aforismo da relação sexual que não se escreve. Esse furo pode ser precipitado pelos momentos em que as vivências se fragilizam tanto no tecido social, quanto no eixo simbólico-imaginário (ou quando os semblantes que organizam a vida do sujeito se fragilizam diante de vivências de horror). Essa vivência traumática emerge nos sonhos como um a tentativa de dar conta desse real, como marca do impossível na própria linguagem. Assim, o falasser se arranja como pode ao se defender desse furo, ou seja, do real.

Assim, Lacan (1964/1985) se concentra no instante de despertar de um sonho que ocorre a partir de batidas na porta, no momento que esse pequeno ruído chega à consciência – não à percepção –, provocando um despertar. No sonho paradigmático de Freud, “Pai, não vês que estou queimando”, a leitura lacaniana destaca que não é a realidade que desperta, sendo que a prova disso é que o pai continua seu sonho e integra a realidade em sua ficção. Nesse sentido, Miller (1996, p. 105) enfatiza que “o despertar para a realidade é apenas fuga ao encontro com o real, aquilo que se anuncia no sonho quando o sujeito se aproxima, como Freud mesmo o observa, do que ele nada quer saber”. A formulação de Lacan é a de que se desperta para continuar a sonhar quando o sujeito se defronta com um ponto de horror, para continuar a dormir nas próprias fantasias, nas representações e nos discursos que tecem a trama da realidade, permitindo manter a continuidade de seu sonho (KORETZKY, 2023). Assim, na Conferência “A Terceira”, Lacan (1974/2011, p. 25) destaca sua leitura dos sonhos:

É um dos sonhos que tenho; eu tenho o direito, assim como Freud, de dar notícia de meus sonhos a vocês; contrariamente aos de Freud, os meus não são inspirados pelo desejo de dormir; é antes o desejo de despertar que me agita. Mas, enfim, isso é particular.

O historiador do detalhe

Apresento aqui o caso de Matéo, escrito por Carolina Koretsky (2020) e publicado no livro La Conversación Clínica. O acesso ao caso em sua construção sob transferência e o estilo da analista nos permitem levantar questões importantes para a discussão que se segue. A autora se serve da leitura lacaniana para pensar o sonho pela via do despertar, para além da dimensão da representação onírica, o que nos esclarece sobre o que seria uma orientação da clínica pelo real.

Matéo, de 8 anos de idade, foi acompanhado pela psicanalista por três anos. Ele é filho único e vive a maior parte do tempo com a mãe, uma vez que seu pai havia se mudado por razões de trabalho, mantendo sua presença apenas aos finais de semana. Como demanda inicial, seus pais se queixavam do baixo investimento de Matéo em relação ao saber escolar.

Após um episódio importante, a mãe, atravessada por sua angústia, procura análise para Matéo. Nesse contexto da entrevista com a mãe, ficamos sabendo que esta interpela fortemente o filho acerca de seus esquecimentos com as atividades, fazendo-o copiar cinquenta vezes em seu caderno: “não devo esquecer meu dever de casa”. Diante dessa demanda, o menino corre em direção à varanda da casa e fica bastante tempo do lado de fora. A mãe, perplexa, relatou à analista seu medo de que Matéo pulasse dali. Nessa entrevista, o relato dessa cena permite interrogar a mãe acerca de outras questões sobre o filho, inclusive sobre  um traço persecutório de Matéo ligado aos seus colegas de escola, ou sobre a percepção de um olhar “mau” ao dizer que se sentia seguido na rua.

Em suas elaborações, a mãe de Matéo recupera o acontecimento do nascimento do filho. Durante o parto, o bebê estava em risco e foi preciso fazer uma intervenção cirúrgica. Nesse ato, o médico fere o rosto de Matéo com um bisturi. A mãe diz à analista:  “Eu dei a vida a uma criança perfeita e me devolvem uma criança ferida”. Sobre as suas inquietações em relação ao choro incessante da criança, ela associa a dor pela ferida e, por fim, confessa: “Eu o teria jogado pela janela”. Em outra cena, ele, aos 4 anos, olha para a mãe e confronta algo do seu gozo, confronta o desejo materno e o enigma de sua significação: “Você vai me matar?”. A mãe, surpresa, não responde ao filho, deixando um silêncio. Matéo, por sua vez, não encontra o recurso ao sintoma e à fantasia como defesa a esse real. Diante disso, a análise de Matéo se inicia. O primeiro tempo do trabalho de análise com a psicanalista foi escandido em três eixos sintomáticos: a corrida, o “problema de hipersensibilidade” e os “ruídos”.

1) Durante as primeiras entrevistas, Matéo conta, entusiasmado,  detalhes sobre as corridas de atletismo que fazia. No entanto, em seus relatos, denunciava um ponto de sua angústia, já que, para ele, de nada adiantava ser bem colocado se não fosse o primeiro. Nesse sentido, a analista escuta nesses relatos até que ponto sua própria existência era também uma corrida contra um desejo de morte que ele carregava, mas que mantinha afastado enquanto corria, em um circuito incessante, no qual a morte pairava sobre ele. Então, como manejo da analista, a manobra possível se estreitou para afrouxar o vínculo com a exigência mortífera, enquanto era preciso respeitar o valor de solução desse sintoma.

2) Matéo apresentava sua relação difícil com os outros no ambiente da escola. Em seus relatos, era tomado por um sentimento de injustiça diante do que lhe pareciam ofensas e insultos vindos do outro. O nome encontrado pela criança para seu choro incontrolável e para a dor por estar com os outros foi: “problema de hipersensibilidade”. Assim, a analista pode permitir vacilar o Outro, diluindo as significações de suas más intenções.

3) A psicanalista pontua os “ruídos” que a criança localiza terem se iniciado aos 4 anos de idade e que se estruturavam como um fenômeno alucinatório restrito ao adormecer. Esses “ruídos” ocorrem no período em que emerge o silêncio insuportável quanto ao enigma de significação do discurso materno. Como uma solução para apaziguá-lo, ele muda de quarto para um outro mais próximo da rua e passa a dormir devido aos barulhos que abafam os seus “ruídos”. Assim, Matéo, sob transferência, pôde ir encontrando soluções transitórias para aquilo que o invadia.

Já em outro tempo de sua análise, Matéo encontra uma solução diferente da corrida infinita e essa outra solução surge a partir da história das grandes guerras, uma das paixões de seu pai. Matéo passa a colecionar tanques e carros blindados e se interessa por conhecer minuciosamente os seus modelos e seus detalhes. Com interesse destacado pela história, a criança passa a ter uma ligação mais viva com o saber. Em uma sessão, Matéo relata um sonho: “Era um campo de batalha. Eu estava com outros soldados e dei ordem para me executar! Foi estranho! Eu mesmo ordenei minha própria morte. Eu mandei executar minha morte. E então eu morria”.

Seu relato de sonho não produziu uma angústia pavorosa, nem o sono interrompido, mas ele diz que teria mudado a sua vida. Matéo conta que seu sonho lhe serve muito, já que o sentiu no seu próprio corpo. Para a analista, ele diz: “Eu sei o efeito de receber uma bala no corpo. Senti verdadeiramente no meu próprio corpo o que é morrer”. A analista nomeia esse saber como um saber impossível, mas acrescenta que esse sonho o permitiu falar em análise algo sobre esse corpo ferido (como significante da mãe com a ferida no parto e suas consequências para ela). Não se trata, nesse caso, de um saber enciclopédico, como o saber que constrói sobre as guerras, mas um saber que se apoia em um acontecimento de corpo, algo que é experimentado no corpo durante o sonho, do qual ele extrai, de forma discreta, um lugar de exceção.

Sonho como acontecimento de corpo

No caso de Matéo, é possível localizar no sonho os significantes traumáticos de seu nascimento, como as primeiras marcas vivenciadas diretamente no corpo, colocando em questão: o sonho serve para quê? O estatuto do sonho se constitui como uma formação inconsciente, ainda que não lhe seja atribuído um saber enigmático para se decifrar. Matéo faz do sonho uma produção de sua análise e pode se servir de sua função para deslocar o desejo de morte materno em sua elucubração. O sonho dá ao sujeito uma posição de exceção, uma possível solução para a cessão do gozo mortífero. Da pergunta sem resposta – “Você vai me matar?” –, que o suspende em uma posição de assujeitamento, foi possível deslocar para o que surge no sonho. Matéo pode responder à pergunta com um “mate-me”, e, assim, tenta se encarregar disso que chega pelo Outro, tomando um horizonte duplo de morte e renascimento do sujeito.

Koretzky (2020, p. 133) relata que “a criança, objeto metonímico do corpo da mãe, é o útero ferido da mãe, a testa ferida pelo bisturi. Mas no sonho, a bala que ele mesmo encomenda e que o atravessa, o torna mais vivo”. Assim, ao experimentar a morte em seu corpo, o sujeito se posiciona de modo menos mortífero para dizê-lo. As marcas deixadas por lalíngua no corpo aparecem nos sonhos, em todo tipo de tropeço e em diversas formas de dizer, como anuncia Lacan para tomar a dimensão do inconsciente pelo equívoco. Desse modo, o sonho no caso em tela pode se colocar de modo emblemático como um acontecimento de corpo.

O despertar funcionaria como uma borda tópica e temporal entre a cena do sonho e da realidade, operando como um limiar que marca um antes e um depois, para que possa anunciar: “isso aconteceu” (KORETZKY, 2023, p. 56). A formulação de que se desperta para continuar sonhando possibilita tomar o sonho pela fantasia e pela representação, no próprio tecido da realidade. Na psicose, se constata que os limites entre o sonho e a vigília parecem incertos, assim, o despertar não opera separando as cenas do sonho e da realidade, como fuga do despertar para o horror do real. Dessa forma, o sonho se coloca como “isso é tudo”, e não como se tivesse uma outra cena. Na ausência de fantasia, é o delírio que se apresenta, por isso a interpretação delirante que surge pode vir justificar o real encontrado. Como no caso apresentado, o sonho já parece fazer a interpretação em si. Percebe-se, assim, o sonho menos endereçado ao analista, em busca de sentido na interpretação sob transferência, mas sim, ao analista como testemunha.

Ao fazer um uso próprio do interesse do pai pelas grandes guerras, a elaboração de Matéo tem uma função importante que surge no sonho. Desse modo, ele pode dar lugar à consolidação de sua paixão pela história e por um saber que pode ser singular para ele, que ele nomeia “gosto pelo detalhe”. O sonho pode emergir como acontecimento, algo da ordem de uma tiquê, de uma contingência, e não de um automaton, pela repetição.

Como trazido anteriormente, se o sonho corresponde ao desejo de dormir, o caso clínico de Matéo, em cujo sonho os significantes traumáticos são deslocados, também permite que o sujeito possa continuar a “dormir” melhor. Para Matéo, o corpo afetado pelo trauma não é aquele atingido pelo bisturi, mas pela incidência da língua. Se o verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua, o trauma não deve ser apreendido aqui a partir do vivido, nem mesmo do sentido e da história. O significante não se introduz aqui como um elemento simbólico que ordena e negativiza o gozo, mas como uma “potência de desordem” num registro do real.

Desse modo, o caso foi trazido na elaboração deste trabalho para levantar a questão do despertar, proposto no último ensino de Lacan, como um paradoxo para uma orientação clínica em sua dimensão do real e que também permita apontar efeitos importantes para a clínica com crianças.


Referências
 BENJAMIN, W. O narrador. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Trabalho original publicado em 1936).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Trabalho original publicado em 1920).
KORETZKY, C. O despertar. Belo Horizonte: Ed. Autêntica. 2023.
KORETZKY, C. El historiador del detalle. In.: MILLER, J.-A. La conversación clínica. Olivos: Grama Edciones, 2020.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. 1973-1974. (Trabalho inédito).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trabalho estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN. J.  A terceira. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 62, dez. 2011. (Trabalho original publicado em 1974).
MILLER, J.-A. Despertar. In: Matemas I. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG, em 04/10/2023.



Eutanásia: entre demanda e desejo

Eutanásia: entre demanda e desejo1

Araceli Teixidó
Psicanalista, membro da Escuela Lacaniana de Psicoanálisis/AMP

Professora do Instituto do Campo Freudiano da Espanha
Coordenadora da Rede Psicanálise e Medicina
araceliteixido@gmail.com

Resumo: A nova lei de regulamentação da eutanásia na Espanha nos faz trabalhar a diferença entre demanda e desejo, bem como a relevância do ato do profissional ao dar sua resposta. Na prática, a resposta negativa tem sido considerada como objeção de consciência do médico e supõe o fim do relacionamento com o paciente. Este trabalho propõe que possa ser dada uma resposta negativa sem pressupor o fim do relacionamento com o paciente. Discute-se também a aceitação literal das demandas: quando a decisão do paciente é tida como um dado e o trabalho do médico como a verificação dos requisitos para acesso ao procedimento.

Palavras-chave: eutanásia; demanda; desejo; ato; objeção de consciência.

EUTHANASIA: BETWEEN DEMAND AND DESIRE

 Abstract: The new euthanasia regulation law in Spain prompts us to explore the distinction between demand and desire, as well as the relevance of the professional’s actions when giving their response. In practice, a negative response has been considered a conscientious objection by the physician, leading to the termination of the relationship with the patient. This study suggests that a negative response can be given without presupposing the end of the relationship with the patient. The literal acceptance of demands is also discussed: when the patient’s decision is taken as given and the doctor’s work as verifying the requirements for access to the procedure.

 Keywords: euthanasia; demand; desire; act; conscientious objection.

Introdução

 Este texto realiza-se a partir de minhas próprias elaborações, mas não seria possível sem as elaborações de outros que pesquisaram comigo, especialmente psicanalistas da ELP e da AMP, mas também médicos e outros profissionais da área da saúde que caminham conosco neste terreno incerto que é a fronteira entre a psicanálise e a medicina.

A ciência alcançou avanços que levam a vida mais além do que seria desejável, mesmo para vidas que podem não ser desejáveis. Isso abre para a decisão de ter que frear a deriva, parar o processo terapêutico, para não chegar a esses extremos em que prolongar a vida não faz sentido. Isso tem sido trabalhado pelo Estado espanhol há anos e algumas fórmulas foram alcançadas para limitar a violência terapêutica. Essas vias eram legais, porque a morte era causada pela doença, mesmo quando ocorria por recusa do paciente em receber a medicação eficaz. Tanto a eutanásia, quanto o suicídio assistido, eram puníveis. Os casos que foram regulamentados com a nova lei são aqueles em que é solicitada a intervenção de um profissional para poder morrer, sem que o paciente se encontre em estado agonizante ou terminal.

Em todos os casos, compete ao médico a decisão de aceitar ou não a demanda e avaliar se a falta de desejo é decorrente de fatores irreversíveis ou se é transitória. Para isso será necessário conversar com o paciente e decidir. No entanto, tal como foi disposto na Espanha, ao médico é solicitado apenas verificar se os requisitos estão preenchidos ou não. Nesse sentido, alguns profissionais tomam a decisão do paciente como um dado objetivo e, portanto, como uma afirmação incontestável.

A eutanásia diz respeito a um real. O médico, formado para procurar o bem do paciente no sentido de melhorar sua saúde ou ajudá-lo a enfrentar os sofrimentos que a doença ou a própria vida podem acarretar, se depara com uma demanda que sai totalmente do roteiro previsto e, mais ainda, o orienta a um ato que contradiz aquilo para o qual se formou e que orientou sua vocação. Acolher a demanda de receber a morte e ser aquele que terá que executá-la se apresenta como um real, como algo que não se pode antecipar simbólica ou imaginariamente, que pode confrontá-lo com uma experiência singular para a qual sente que não dispõe de recursos.

Historicamente, o suicídio foi rejeitado pela legislação e pela moral. Em diversos países e momentos, cometer suicídio foi condenado moralmente e penalizado legalmente. Por exemplo, um suicida poderia perder o direito a ser enterrado em terra sagrada, seu cadáver não era merecedor de cuidados ou poderia legalmente perder todos os seus bens, isto é, não seriam deixados como herança aos seus descendentes.

Embora essas penas tenham desaparecido do código legal espanhol, não desapareceu a criminalização da assistência ao suicídio. O que a legislação atual dispõe não é da legalização, mas, sim, da descriminalização do auxílio a morrer em determinados casos, que são os que a legislação indica.

Considero que essa legislação constitui, então, um avanço jurídico, mas também ético, ao suprimir o juízo moral a respeito do desejo de acabar com a própria vida. Com essa lei, se reduz o juízo moral, e o dilema ético passaria para as mãos do paciente e de seu médico.

O ato de morrer não pode ser reduzido a um procedimento burocrático. Despojar a demanda de morrer de  um juízo moral não precisa ser sinônimo de simplesmente aceitá-la porque estão preenchidos os requisitos ou porque o profissional sente empatia com o sofrimento do paciente. Aí está um dos espaços fronteiriços que exploraremos hoje. A clínica nos convoca. Por isso, será necessário observar como se considera e se trata a demanda do paciente.

Questões que definem a lei do estado espanhol

 A lei que regulamente e descriminaliza a eutanásia na Espanha, conhecida como Ley Orgánica 3/2021, foi aprovada em março de 2022 e entrou em vigor três meses depois, em junho. A eutanásia é aplicável àquelas situações em que uma pessoa manifesta vontade expressa de pôr fim à sua vida com o objetivo de evitar o “padecimento grave, crônico e incapacitante” provocado por uma “doença grave e incurável”. Um exemplo que está ao alcance de todos é o filme Mar adentro, de Alejandro Amenabar (MAR…, 2004).

Trata-se de um procedimento protocolizado que deixa uma margem de decisão ao profissional, mas que será avaliado, endossado ou não, por outros: na Catalunha, intervêm um médico consultor, e todos os casos passam por um Comitê de Garantia e Avaliação. O procedimento foi desenhado para assegurar um controle anterior à aplicação efetiva da eutanásia.

Finalmente, gostaria de destacar a questão da objeção de consciência. Como sabem, trata-se da possibilidade de não ser convocado a participar nesses casos, em razão das convicções morais contrárias à eutanásia.

 A lei não orienta a clínica nem o ato

A lei não orienta a clínica nem o ato, apenas estabelece o marco legal. Os médicos têm se esforçado em conhecer os aspectos legais, tem havido muita formação nesse âmbito, que certamente tem que ser conhecido e constitui um primeiro véu diante do real, mas sabemos que, se o mantivermos somente nesse nível, a angústia do médico pode ficar escondida sob essas questões.

Em um dos espaços convocados pelo Departamento de Saúde do Governo da Catalunha, chamou-me muito a atenção a pergunta que um médico fez ao professor: “posso me opor em um único caso?”. Perguntei-me o que seria opor-se em um único caso. O professor respondeu-lhe em termos legais. A orientação do Departamento de Saúde indica que existem outros mecanismos para recusar-se a intervir em um único caso sem que seja necessário ser objetor, como o conflito de interesses – isto é, a recusa a atuar por outros motivos, tais como a proximidade pessoal com o paciente –, ou, também, coloca-se como exemplo que o médico possa sentir-se desconfortável se considera que pode haver soluções terapêuticas.[2] Há, ali, uma confusão.

Se dizer “não” implica em ser objetor de consciência e retirar-se do caso, colocado assim implica que se faz necessário responder “sim” a todas as solicitações nas quais estejam preenchidos os requisitos, deixando o médico como mero executor da lei. Nessa operação, a demanda é reduzida a um dado objetivo, fechando o acesso ao desejo e ao possível trabalho da demanda. Essa questão me interessou porque me parece que o “não” nos permite pensar no ato do médico com mais clareza.

Minha tese principal para o trabalho de hoje é que o fato de que não se proponha que o médico possa dizer “não” e continuar vinculado ao paciente elimina a dimensão do ato de sua intervenção. Se dizer “não” significa retirar-se do caso, para que serviria o médico? Por isso, considero de máximo interesse estudar aqueles casos em que o médico efetivamente decide que não deve ser praticada a eutanásia e como ele declina a dar continuidade do tratamento com o paciente.

A objeção de consciência ou o ato de dizer não

 Dizer “sim” é um ato, mas ao apoiar a demanda do sujeito costuma ser mais fácil esquecer-se disso. Dizer “não” também é um ato, mas, ao se opor à demanda do sujeito, coloca-se em jogo com mais força a posição do profissional e a necessidade de administrar aspectos do caso que comprometem no âmbito da relação entre profissional e paciente.

Um dos limites da decisão do médico é o da lei, mas, nesse marco, a decisão lhe corresponde como agente. Estar diante de uma solicitação de eutanásia não deveria significar realizar um procedimento administrativo ou legal, não se pode reduzir a questão a apenas verificar o preenchimento dos requisitos. Foi dado a esse procedimento o nome de Prestação de Auxílio para Morrer, conferindo ao ato um caráter administrativo, como se fosse da mesma natureza a prestação do auxílio financeiro que se dá a uma pessoa desempregada. Suponho que essa denominação está de acordo com a decisão de não julgar moralmente o desejo de querer acabar com a própria vida, ignorando que qualquer outro significante escolhido também se apoiará sobre uma vertente moral, uma moral vazia própria ao capitalismo, que foraclui o gozo e deixa os sujeitos reduzidos a dados, em consonância com a ideologia autonomista. Supõe-se, assim, eliminar também a angústia do médico quando se afirma que o paciente sabe o que diz e o que quer e o médico apenas deve decidir se aceita ou não sua demanda. Felizmente, o real não se elimina, se desloca. A questão é que esse real possa ser recolhido e trabalhado em algum lugar.

O médico que se responsabiliza por seu ato escuta ou procura escutar cada demanda em sua singularidade e avalia com o paciente o pedido, podendo dizer “sim” ou “não”, ou propor outras soluções ao paciente: podem ser oferecidos cuidados paliativos, mas também pode-se adiar a conclusão oferecendo uma nova sessão, tal como os  psicanalistas.

É importante ver como declinam-se as negativas, como se chega a elas. Se o médico considera que não se deve dar continuidade ao pedido, ele irá se retirar do caso? Se ficar, qual sentido terá esse “não”? Tornar-se-á um ato?

Também tenho a impressão, pelas conversas tidas com diversos colegas, de que, quando o médico diz “não” e o paciente o aceita, o caso não entra na consideração de solicitação de eutanásia. Deveriam ser incluídos? Não sei, porque se não é incluído, não se contabiliza, mas, por outro lado, evita-se fixar algo dessa solicitação que certamente não convém fixar. A meu ver, acredito que é especialmente importante trabalhar esses casos, isto é, levá-los em consideração.

Estou prestes a iniciar um pequeno grupo de trabalho sobre esses casos com médicos e enfermeiros que participam do processo de eutanásia em Barcelona. Espero que nos sirva para aprender a partir da experiência.

O ideal da autonomia do sujeito esconde o fracasso da comunicação

 O discurso autonomista choca-se com a psicanálise de orientação lacaniana, pela qual operamos a partir do lugar daquele a quem se dirige a palavra, partindo da premissa de um sujeito não tão autônomo, pois é dependente do corpo e do Outro (FREUD, 1930 [1929]/1986, p. 66-67).

A pergunta é a matéria-prima da psicanálise. Contudo, no delírio autonomista, a palavra não se pensa dependente de um desejo, mas sim que o discurso pertence a cada sujeito e que ele tem o direito a que ninguém o intérprete. Qualquer interferência será vivida como uma intromissão paternalista.

Assim, o discurso fica desvinculado do Outro e ao médico não é dado nenhum poder de interpretar o dito. Perguntar geralmente supõe uma dúvida a respeito do juízo de quem fala, seja este o paciente ou o médico. Por isso, se o paciente disse que sente dor, não é necessário questionar: ou acredita-se nele e atua-se em consequência, prescrevendo uma analgesia, ou bem não se acredita nele e abandona-se ele na suposição de quem mente e “apenas” quer chamar a atenção.

A deriva autonomista impede uma verdadeira conversação e, portanto, impede o acesso ao desejo. Se a dor é recebida como um dado, a respeito do qual o médico dirá “verdadeiro ou falso”, elide-se toda a dimensão do gozo, esquece-se que dor é um nome do gozo e que às vezes une à vida, mesmo que seja de uma maneira ruim, pois há ali nela uma forma de elaboração.

Pensa-se uma divisão entre sofrimento físico e sofrimento psíquico – dividem-se as demandas de eutanásia entre aquelas que correspondem a doenças físicas e as de saúde mental –, sendo o físico o verdadeiro e o psíquico, o duvidoso. Esquece-se que, no ser falante, tal distinção é, em certo sentido, arbitrária. De acordo com a lei, um sofrimento físico ou um diagnóstico concreto não são motivo para aceitar a demanda da eutanásia: deve ser irreversível ou insuportável. Essas dimensões não têm sentido a não ser no domínio do falasser, como gozo. Parece-me muito importante distinguir essa dimensão na demanda de eutanásia. Não se trata do insuportável para qualquer um, mas, sim, do insuportável para um. Nem todos os pacientes com a mesma doença no mesmo estágio demandam a morte. Nunca é a mesma dor. Caso contrário, bastará, como acontece com o profissional que considere que tal sofrimento é insuportável, que aceite a demanda sem mais delongas.

Lembro-me da expressão do médico Marc Broggi (2011, p. 156) a respeito do que acontece quando se recolhe uma demanda em sua literalidade, por estar de acordo com o texto da lei. Ele diz que isso é “abandonar o paciente aos seus direitos”.

As demandas recolhem e encobrem o sofrimento e com elas pede-se uma solução. Por isso, nem sempre são claras, nem sempre são exatamente o que se pretendia dizer, inclusive quando são formuladas com clareza. Por isso é necessário questioná-las, para que possam ser ditas de uma maneira melhor.

Como pontua Hoornaert (2003, p. 96), na realidade a qualificação de insuportável não se baseia apenas na avaliação do indivíduo autônomo, mas está contaminada de paternalismo, tendo em vista que é o médico quem decide sobre o insuportável. Mas quando o médico se limita a verificar os requisitos, supõe-se que, ao dizer “sim”, nada do seu desejo está em jogo, porque a operação da medicina atual tenta eliminar da equação o desejo do médico. Por esse motivo, todo ato que não se limite a considerar exclusivamente o juízo do paciente é habitado por uma sombra de liberticídio (HOORNAERT, 2023, p. 96). Um atentado à liberdade do sujeito.

De fato, poderíamos concordar, pois qual ferramenta tem o médico não analisado para evitar sugestionar o paciente? Os psicanalistas também acreditam que o paciente deve tomar sua decisão não influenciado por nós.

É assim que na medicina as decisões dos pacientes são tidas como dados que entram em um algoritmo, e não como manifestações de dor, de medo, de angústia. Já a psicanálise considera que todos esses afetos influenciam na decisão do paciente e o deixam em uma situação de falta de autonomia e de vulnerabilidade que fazem imprescindível não o deixar sozinho no processo de decidir.

Em decorrência dessa maneira de agir, a decisão de morrer pode ser entendida como a firme decisão de morrer quando o próprio médico tem a convicção de que a dor do paciente é insuportável. A psicanálise considera quão insuportável pode ser para um sujeito, e também para o médico, suportar a dor do outro, especialmente quando se é o destinatário da demanda. A obrigação de viver bem, que determina nossa época, deixa no esquecimento que viver é difícil, que há quem não consiga fazê-lo e que é condenado a não ser mais do que um resto se não lhe for permitido falar bem. A obrigação de viver bem dá as costas à obrigação do bem dizer (LACAN, 1973/2012, p. 558) que promovemos, o que supõe deixar o sujeito sozinho com seu gozo.

Na ideologia autonomista, fazer falar, perguntar, é duvidar da palavra, é duvidar da capacidade do paciente. Paradoxalmente, isso deixa o pacienta à mercê de uma decisão que o exclui. Ao contrário, no discurso do analista, perguntar é devolver ao sujeito sua capacidade de responder e fazer-se responsável por suas palavras.

Dizer não, introduzir a conversação

 Freud (1915/1984, p. 301), com suas palavras “se quiseres suportar a vida, prepara-te para a morte”, nos encoraja a entender que a demanda de receber a morte deve ser considerada pelo real que contém em seu seio.

Leonora Troianovski, colega da ELP, me contou o caso em que uma mulher pedia a eutanásia depois da morte de sua pequena filha em um acidente. A médica disse rapidamente que não procederia essa demanda, mas, ao mesmo tempo, acolheu o real que emergia dessas palavras: a morte de um filho – como viver depois disso? Cada um deverá encontrar seu caminho, em solidão, mas acompanhado de alguém que possa acolher seu sofrimento e suas palavras. Alguém que possa esperar e dar tempo. Até que se produzam ou se reconheçam outras âncoras para a vida.

Da minha parte, assisti a um caso no qual propor a eutanásia como horizonte surgiu como remédio para acalmar o sofrimento de um paciente bem idoso em um momento de perda do controle transitório das funções corporais, à qual sucedeu uma tentativa de suicídio. Contudo, o paciente não pode dialetizar sua experiência naquele momento e passou ao ato suicida. Já no hospital, a escuta o tranquilizou, revelando as dificuldades sofridas, mas também seus laços com a vida. Não proponho sugerir a eutanásia como possibilidade futura como a melhor solução no caso de se chegar a uma situação irreversível, mas foi a que pode ser realizada naquele momento e que tranquilizou o paciente no sentido de dar-lhe um sentimento de controle, que lhe permitia continuar vivendo.

Durante esse trabalho, outro profissional interpretou esse desejo de morrer como uma demanda de morrer e já se disponibilizava a processar a solicitação de eutanásia. Não teve seguimento, mas é uma demonstração do enlouquecimento extremo que às vezes se produz na situação de uma leitura literal da passagem ao ato. Oferecer a eutanásia a uma pessoa suicida não é uma indicação a ser considerada (JOVELET, 2023). Cada vez há mais suicídios entre pessoas idosas, o que nos confronta com questões a respeito da qualidade dos nossos cuidados.

Por outro lado, e em relação à demanda de eutanásia, também deve ser considerado que tal demanda de pedir pela morte e sua aceitação podem introduzir um limite ao sofrimento que permita situar-se novamente na vida (ANSERMET, 2023, p. 91). Não é rara a proposta que alguns pacientes fazem de adiar a realização da eutanásia depois de já ter sido aprovada. Nesse caso, eles mesmo pronunciam o “não”, uma vez que já foi aprovada sua demanda. Saber que é possível ter certo controle sobre o sofrimento ajuda a suportá-lo.

A posição do médico

 Por fim, e no cerne da questão, a clínica da eutanásia também atinge o próprio médico em sua posição ética. Assim, para abordar os aspectos clínicos e éticos, aspectos que dizem respeito à relação entre profissional e paciente, no ano passado propusemos dois espaços na Rede Psicanálise e Medicina,[3] aos quais se juntaram muitos profissionais da saúde. Um primeiro espaço, em junho de 2022, no qual trabalhamos a partir de um texto de referência,[4] e uma jornada, em dezembro de 2022, a partir de uma conversa entre alguns médicos e psicanalistas que introduziram suas reflexões, dúvidas e medos a respeito dos primeiros casos recebidos.[5]

Em um desses espaços, um médico questiona-se a respeito da influência que pode haver  para o paciente se for oferecida a eutanásia como uma das possibilidades diante da situação que o acomete, pois nem todos os pacientes estão informados de que esse benefício existe na carteira de serviços.

Parece-me uma boa questão que deve ser esclarecida, como esclarece-se a incógnita nas equações matemáticas. Na demanda de eutanásia, está em jogo a questão da pergunta pelo desejo do outro. Atualmente, se pensa a vida em termos de utilidade, e muitos pacientes, ao ver chegar a fase final de sua vida, dizem para si e para nós: “não sirvo para nada”. Isso pode ter sido dito também em outras épocas, mas, no contexto atual, o paciente pode ver-se reduzido a não ser mais do que uma despesa, questão que se agrava pela falta de tempo das famílias para estarem ao seu lado.

Portanto, às vezes, o pedido de eutanásia pode ser a verificação do desejo do outro, uma pergunta a respeito sobre se, apesar da dependência, ainda se é amado. Por isso, me parece extremamente importante que não seja considerado objetor quem considera que deve dizer que não autoriza a prática da eutanásia. Não deve se ver obrigado a se retirar do caso, mas deve poder continuar para sustentar seu ato.

Para concluir, da mesma maneira que não consideraríamos o desejo de matar o outro levianamente nem como algo a ser discutido, convém não se colocar inteiramente à disposição diante da demanda de receber a morte. Hoornaet (2023, p. 99) sugere, inclusive, não aprofundar o assunto, pois se trata de uma tendência a ser contida. Ou seja, às vezes não se trata de fazer falar sobre isso, mas sim do contrário, de fazer calar.

Acontece que, na psiquiatria, o diagnóstico de incurabilidade levaria a poder praticar a eutanásia de maneira absolutamente louca. Repensar a psicose como uma posição pessoal, e não como doença, dá outra dimensão ao seu tratamento. Também dá espaço a repensar o papel do psiquiatra que, hoje, em muitos casos, está alinhado com a promessa terapêutica e pode esquecer o papel testemunhal e de acompanhamento que lhe cabe (DEWAMBRECHIES-LA SAGNA, 2018, p. 11).

Da minha parte, e considerando que minha área é a saúde física e não a saúde mental, parece-me importante que o paciente possa sentir sempre que sua demanda é acolhida por aquilo que nela circula do sofrimento, do mal-estar de viver, portanto, do gozo, e que está ligado a uma palavra. Acredito que é o que se obtém das vinhetas aqui apresentadas.

Como sempre, o trabalho que fazemos na intersecção entre a psicanálise e a medicina nos leva a questionar a respeito da função do médico. O impulso a curar tudo leva ao ponto de limite da impotência da medicina equiparada à ciência onipotente e elimina o resto que permitiria continuar trabalhando.

Na ética médica, a reflexão somente deve surgir diante dos casos também nos processos de eutanásia. Como na psicanálise, a revisão do ato deveria ser posterior. Do contrário, sustentaremos que é possível controlar o ato antes, que é possível eliminar o real da morte.

Até aqui chegam as elaborações que consegui articular para trabalhar hoje. É difícil estar à fronteira do processo de atender solicitações de eutanásia, há um real em jogo.

O incalculável está sempre presente, para o profissional, para o paciente e para sua família. Não se pode prever os efeitos que o ato terá sobre si mesmo. E me parece que é aconselhável deixar permanentemente em aberto algo a esse respeito, impedindo que se feche precipitadamente. O trabalho sobre o próprio inconsciente e sobre a clínica dos casos é o caminho.

Tradução: Victoria Carmín Musachi
Revisão: Patrícia Ribeiro

Referências
ANSERMET, F. Une mort prescrite. Mental. Revue International de Psychanalyse, n. 47, p. 89-94, 2023.
BROGGI, M.-A. Per una mort apropiada. Barcelona: Edicions 62, 2011.
DEWAMBRECHIES-LA SAGNA, C. (2018). Les choses qui importen. Em G. Briole, Comment s’orienter dans la clinique (p. 11-12). París: Le Champ Freudien Éditeur.
FREUD, S. De guerra y muerte. Temas de actualidad. In: Obras Completas. Vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 1984, p. 273-303. (Trabalho original publicado em 1915).
FREUD, S. El malestar en la cultura. In: Obras Completas. Vol. XXI. Buenos Aires: Amorrortu, 1986, p. 58-140. (Trabalho original publicado em 1930 [1929]).
HOORNAERT, G. Euthanasie pour souffrance psychique insupportable. Mental – Revue Internationale de Psychanalyse, n. 47, p. 95-103, 2023.
JOVELET, G. Mouirir au XXIe. siècle. Place du suicide et de ses équivalents chez la personne âgée. Mental, n. 47, p. 110-117, 2023.
LACAN, J. Televisión. In: Otros escritos. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 535-572. (Trabalho original proferido em 1973).
 MAR Adentro. Direção de Alejandro Amenábar. Espanha, Itália, França:  20th Century StudiosFine Line Features, 2004.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Medicina, no dia 15/09/2023.
[2] Na única nota de rodapé sobre a objeção de consciência do Comitê de Garantias e Avaliação da Catalunha. Disponível em: https://canalsalut.gencat.cat/ca/professionals/consells-comissions/comissio-garantia-avaluacio-catalunya/parers-posicionament/objeccio-consciencia-pram. Acesso em: 10 set. 2023.
[3] Red Psicoanálisis y Medicina (ICF). Cf.: https://redpsicoanalisisymedicina.org/
[4] Cf.: https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/05/Programa-Al-pie-de-la-letra-2022.pdf
[5] Cf.: https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/10/PROGRAMA-6a-JORNADA-2022.pdf



Diferentes usos da droga

Diferentes usos da droga1

Marcelo Quintão e Silva
Psiquiatra e psicanalista

E-mail: mquintaos@uol.com.br

Resumo: Vivemos numa época marcada pela invasão dos objetos de consumo e, neste artigo, tomamos a toxicomania como seu paradigma. Quando o gozo deixa de ser localizado e se torna onipresente, como uma “metástase”, o que assistimos é um enxame de drogas. O desafio da clínica passa por uma abordagem que possa localizar a droga na história singular de cada sujeito, Um por Um.

Palavras-chave: toxicomania; metástase do gozo; sintoma; gozo onipresente.

DIFFERENT USES OF DRUGS

Abstract: We live in an era marked by the invasion of consumer objects, with drug abbuse taken in this article as a paradigm. When juissance ceases to be localized and becomes omnipresent, like a “metastasis,” what we see is a swarm of drugs. The clinical challenge lies in an approach that can pinpoint the drug within the singular history of each subject, One by One.

Keywords: drug addiction; enjoyment metastasis; symptom; omnipresent enjoyment. 

 

O conceito de toxicomania é uma criação recente e sua importância, seu lugar e seu papel estão em constante evolução, na medida em que se modificam as configurações da subjetividade contemporânea, a cada tempo. Trabalhamos aqui o caso de um paciente atendido na rede pública de BH à luz do trabalho de Fabián Naparstek (2015; 2018), no qual ele nos apresenta, numa articulação com outros conceitos, um percurso histórico e teórico a respeito da presença das drogas em nossa civilização.

Tendo por objeto a singularidade do sujeito, o autor vai localizá-la inserido no contexto do número sem fim de novas drogas que atualmente invadem o mundo, acentuando que existem inúmeras maneiras de cada falasser fazer uso delas. Seu significado para cada um é único e tem uma inserção particularizada em sua vida, passando então a compor sua história, sua singularidade. Essa relação de um sujeito com uma substância pode ser diferente da de outro e diferente também em determinados momentos de sua própria história pessoal.

A história da relação do homem com as substâncias psicoativas é milenar e praticamente universal, marcada por particularidades em cada cultura, tanto no tocante ao uso pessoal quanto a seu valor social, muitas vezes assumindo uma função ritualística e com atribuições especiais para alguns sujeitos dentro do grupo. Já a designação desse uso como “toxicomania” possui em torno de 150 anos, aparecendo nos primeiros registros dos hospitais. Momento crucial na história do consumo das substâncias é aquele em que o uso, sob os efeitos do discurso da ciência, se transforma em toxicomania ou alcoolismo. Esse momento inaugura um novo laço subjetivo com a substância em questão, modo marcado pelo discurso da ciência, que estabelece um laço patológico (NAPARSTEK, 2018).

O primeiro uso extenso e prolongado de opiláceos em ambiente hospitalar ocorreu durante a Guerra Civil norte-americana (1861-1865), por aplicação intravenosa de morfina para acalmar a dor dos feridos, quando foi descrita a “dependência artificial” à morfina. O mesmo ocorreu na guerra franco-prussiana, em 1870. O fato determinante nesse percurso foi a primeira descrição da “síndrome de abstinência”, que trouxe a dependência para o campo da medicina, o que se considera um fato científico. Ao se introduzir, tendo por base o discurso da ciência, os termos “toxicomania” e “adição”, patologizando essa forma de laço com a droga, fica estabelecido um novo campo nosológico (NAPARSTEK, 2018).

Os EUA tomaram uma decisão crucial ao responderem com a “guerra às drogas”, atuando em busca do apoio de outros países para que adotassem a mesma política, tendo por base a ciência enquanto discurso do amo. Vale dizer que o que se iniciava era uma política repressiva contra as drogas, de consequências geopolíticas.

A orientação da Organização Mundial da Saúde por sua vez se baseia na distinção entre as diferentes substâncias pelo maior ou menor risco de abuso ou de dependência e o que está em jogo é o tipo de droga e a quantidade consumida. As drogas se dividem pelo seu poder de induzir dependência, “drogas duras”, ou as de menor potencial, “drogas doces”. Surge então uma série das assim chamadas “drogas malignas”, cuja variedade inicial só cresce desde então.

Portanto, é um nome dado pela ciência, que cria uma patologia, levando ao conceito de um uso único da droga, o uso toxicômano – conceito que não inclui o sujeito. A toxicomania enquanto tal está intimamente ligada a um discurso dominante em uma época bem precisa e nomeia um uso globalizado das drogas.

Para Freud (1930/2020), uma das maneiras de paliar o mal-estar na cultura, além da religião, das artes, e da ciência, é o uso dos narcóticos, o que naquele tempo ocorria como um sintoma isolado, bem diferente do que se passa atualmente. Em nossa época, há um forçamento universal a esse enfrentamento pela via do consumo, uma tendência que propõe uma resposta única e globalizada: trata-se de uma defesa única, de acesso igual para todos contra o mal-estar, na tentativa de apagar todas as diferenças, pela via de um modo de laço subjetivo com a droga em dado momento da história do falasser.

No tempo de Freud os ideais tinham sua primazia, o Nome-do-Pai preponderava. Mas se segue um segundo período, que Jacques-Alain Miller (2011) chama de “a inexistência do outro”, caracterizado como uma “toxicomania generalizada”, um modo supostamente único e globalizado de responder ao mal-estar na civilização.

Hoje vivemos uma tendência de queda na política repressiva e abre-se o debate sobre a legalização. A “guerra às drogas” foi perdida, e está criado um fantástico mercado paralelo, talvez incontrolável. A maconha é legalizada em diversos países, introduzida no mercado integral, passando a ser uma mercadoria a mais no sistema de produção e consumo, com cotação na bolsa e disputada por empresas. Estamos numa nova era no que diz respeito às drogas. Como corolário, há uma pluralização de diferentes substâncias usadas como drogas e o mundo é invadido por um enxame de drogas, tornando ineficazes as antigas classificações e a lista das drogas más, num movimento que tende a se generalizar.

A época repressiva pretendia localizar o gozo maligno do consumo em uma lista restritiva e fora da lei, com o Nome-do-Pai operando nesse sentido. Mas, como se verifica no ensino de Lacan – assinalado por Miller (2011) –, o gozo, que antes era localizado, hoje se encontra disseminado, há uma onipresença do gozo, que está por toda parte, o que foi chamado por Naparstek  (2015) de metástase do gozo.

Novos desafios

Essas transformações implicam em uma nova realidade para o analista, que precisa modificar sua abordagem da clínica. A psicanálise precisa inventar novas formas de lidar com o paciente, o que se torna possível pela orientação do ultimíssimo ensino de Lacan, especialmente na nova abordagem pelo “sintoma”, nesta época da metástase do gozo e do enxame das drogas. Vamos nos orientar pelo direito ao sinthoma, todo homem tem direito a seus sintomas (LACAN, 1975/1997). Aliás, foi graças à importância que Freud reconheceu na reivindicação da histérica que a psicanálise pôde se construir a partir desse direito.

A abordagem orientada para o sujeito não tem como ponto de partida a ideia de que a droga é nociva, mas da ideia de que ela tem uma função determinada dentro de uma conjuntura subjetiva e que convém ter muita prudência para se avaliar antes de intervir. Veremos que no caso das psicoses a que ponto é importante não propor uma abstinência logo de início, já que para certos sujeitos, uma suspensão abrupta do consumo pode resultar no desencadeamento da psicose. (NAPARSTEK, 2018, p. 23)

Miller (2011, p. 36), por sua vez, acentua o direito à singularidade afirmando que: “A psicanálise representa justamente a reivindicação, a rebelião do não como todo mundo e promove o direito a Um sozinho, à diferença do discurso do mestre que faz valer o direito para todos”.

A vida está boa

Na clínica das toxicomanias, nos deparamos diariamente com a dificuldade de fazer falar o sujeito toxicômano, aquele que renunciou ao gozo fálico preferindo a droga como meio de gozo, dispensando o Outro e preferindo o gozo do Um sozinho. Porém, no caso clínico trazido à discussão, essa questão se coloca de outra maneira, uma vez que atualmente o sujeito não está em uso da droga. Ela aparece em sua história pregressa, quando exerceu um papel de grandes repercussões em sua vida. O que sabemos desse uso está no campo de seus efeitos, em seus relatos de fatos já distantes no tempo. Tentaremos localizar algumas questões à luz desse caso.

Trata-se de um homem de meia-idade que nasceu e viveu toda a sua vida até o presente em um contexto que bem se aplica ao que foi descrito no texto de Naparstek (2018). Um mundo invadido pelas drogas, no qual elas permeiam não apenas as relações interpessoais, mas também as relações sociais e formas de exercício de poder. Desde a infância, esteve sempre em algum grau de proximidade com as drogas: seus irmãos, amigos e vizinhos “ganhavam a vida” como aviãozinho – seu primeiro nome nessa vida – e desde cedo ele também já conseguia um ganho razoável vendendo e usando drogas. Aliás, a droga lhe permitiu alcançar um lugar de poder nesse ambiente, mesmo que fosse, segundo as suas palavras, com “muitos pecados”.

Cumpriu uma longa pena de prisão, período em que foi apresentado a uma nova religião, o que lhe custou a ruptura com a parceira, mas lhe abriu caminho para outro casamento e possibilidades de se afirmar socialmente, quando em liberdade. Pela via da religião, conseguiu realizar enlaçamentos e se defender dos excessos das substâncias psicoativas, embora continue vivendo no mesmo ambiente submetido ao regime da guerra às drogas.

Do geral ao particular, do genérico ao singular: há drogas ou uma droga? Mas que droga? Indiferente de sabermos qual foi a substância em questão, como neste caso, o que nos interessa aqui é o singular desse falasser, ou seja, como ela se inseriu em sua vida e a particularidade dos seus efeitos.

Ao se generalizar o diagnóstico de toxicomania, não importa qual seja a direção que é dada pelo discurso da ciência e referendada pela OMS, o que se visa é o objeto, em detrimento do sujeito. A tipificação de um campo nosológico apenas pelo objeto, deixando de fora o sujeito, é uma forma de patologizar a cultura. Esse diagnóstico prêt-à-porter já tem as terapêuticas e remédios “indicados”, o que se agrava com a penalização dessa condição. É mais difícil e custoso para a civilização o trabalho de descriminalizar e despatologizar. É aqui que a psicanálise tem a contribuir, no sentido de trazer de volta para o falasser a singularidade de sua história a partir de seus ditos e de seus atos, de sua fala. Ao recolher de cada um os significantes traumáticos que o mortificam, passamos a promover a vida, de tal modo que esses significantes possam ter um papel vivificante. Trabalho a ser feito sob transferência.

Em seu retorno a Lacan, Miller (2011, p. 36) reafirma o direito à singularidade: “A psicanálise representa justamente a reivindicação, a rebelião do não como todo mundo; a psicanálise promete o direito ao Um sozinho, à diferença do discurso do mestre, que está do lado do direito para todos.

Ao dizer que do lado da invenção devemos fazer um “investimento no sintoma”, isso significa que “todo homem tem direito ao sintoma” (MILLER, 2011, p. 36) com o qual possa fazer laço. É preciso fazer o inventário daquilo que vem do falasser, de seus restos sintomáticos a partir dele mesmo, o que estaria no sentido de reafirmar sua singularidade orientando-nos assim pela via da despatologização, vivificando-o.


Referências
FREUD, S. O mal-estar na cultura. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Cultura, sociedade e religião – O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte. Autêntica, 2020, p. 305-410. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. Joyce, o Sintoma II. Uno por uno, n. 45, 1997. (Trabalho original proferido em 1975).
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. In: Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller (2006-2007) Buenos Aires: Paidós, 2014.
NAPARSTEK, F. A metástase do gozo. Pharmakon, n. 1, 2015. Disponível em: http://pharmakondigital.com/a-metastase-do-gozo1/. Acesso em: 26 nov. 2023.
NAPARSTEK, F. L’essaim actuel des drogues er les métastases de la juissance. Les Cahiers de l’ASREEP-NLS – Conversation du TyA: Les adictions sans substances, n. 2, p. 13-26, 2018.

[1] Texto elaborado a partir do comentário do caso apresentado por Walcymara Medeiros no Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo no dia 03/10/2023.



Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo

Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo1

Mônica Campos Silva
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

monica.camposilva@gmail.com

Resumo: Este texto é um comentário do caso clínico apresentado por Alessandro Pereira Santos no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação. A partir do título da atividade, “Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo”, a autora faz um percurso que se inicia respondendo positivamente ao questionamento apresentado e advertindo que há uma mortificação subjetiva do sujeito por práticas racistas. Ao final, marca a posição radical do psicanalista que aposta nas soluções singulares de cada sujeito que apontam para a vida, fazendo assim um contraponto aos discursos e práticas racistas.

Palavras-chave: racismo; mortificação subjetiva; posição do psicanalista.

DOES RACISM KILL?

IMPLICATIONS OF A CLINIC CROSSED BY RACISM

Abstract: This text is a commentary on the clinical case presented by Alessandro Pereira Santos in the Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação. From the title of the activity, “Does racism kill? Implications of a clinic crossed by racism”, the author follows a path that begins by responding positively to the question presented and warning that there is a subjective mortification of the subject due to racist practices. In the end, it marks the radical position of psychoanalysis that bets on unique solutions for each subject that point to life, thus providing a counterpoint to racist discourses and practices.

Keywords: racism; subjective mortification; position of the psychoanalyst.

 

                    

 Não é possível tomar o sofrimento do negro como algo maciço, homogêneo.

 (Alessandro Pereira dos Santos)

 Queria começar com o título proposto: será que o racismo mata? Sim, mata! Vemos todos os dias. Mas sugiro aqui dizer que, subjetivamente, há a mortificação do sujeito por práticas racistas.

Não ser racista é algo importante, para que não se reproduza indefinidamente a domesticação da qual se provém. Osvald de Andrade (2009, p. 282), ao falar sobre o preconceito, dispara: “os otários se reeducam”. Neste sentido, nos valemos ainda de Neusa Santos Souza (2021), que indica que, no discurso analítico, cada negro em particular vai elaborar suas questões “que lhe dê feições próprias” (SOUZA, 2021). Me parece que é fundamental essa colocação de Neusa, de cada um… isso não retira os efeitos mortíferos, nefastos do racismo, mas, de saída, não elimina o que há de singular e a possível mudança de posição.

Segundo Marie-Hélène Brousse (2004), ao tratar do tema da devastação, tornar-se ou não desejado é um ponto fundador, pois o sujeito busca saber o que orienta o desejo no campo do Outro e calcula seu lugar ali. Nessa interlocução dos discursos, em que o lugar no campo social para as minorias – não quantitativamente dizendo – ganha certa desqualificação, penso ser possível ampliar esse ponto para a questão do racismo. A cada caso, em sentido amplo, várias ações podem ter efeitos e manter a alienação ao discurso racista, criando um campo de segregação.

Do ponto de vista do racismo, aproximo os efeitos deste em um sujeito, pelo que Miller (2015) diz da devastação, como uma pilhagem, um saque, um roubo, que se estende a tudo, sem limites. O caso que Alessandro nos traz aponta os efeitos que se proliferam na vida do sujeito, sua grade de leitura para interpretar o mundo e seu lugar, como modo de responder.

Alessandro nos esclarece que é um analista preto e se pergunta se isso traz efeitos para o caso. Será que essa condição do analista trata de dar por entendido? Ou talvez seja o ponto transferencial o que permite a esse sujeito iniciar sua análise. Mas é importante mesmo estarmos advertidos de que não há afinidade com o inconsciente de outra pessoa, do analisante ao analista. Há uma diferença rigorosa da posição analisante e da posição do analista em uma análise.

Pensando no caso de Alessandro, sabemos que a fantasia, vista como o correspondente e o suporte do desejo, de acordo com Lacan é “uma tela sobre o qual o sujeito é instituído”. E, como comenta Naveau (2011): “é uma tela que fecha ao sujeito o acesso ao real e, inversamente, uma janela que abre, para o sujeito, um ponto de vista sobre o real em questão”, ou seja, ela tem a função de véu ao mesmo tempo que aponta o que está em jogo para o sujeito.

Assim, a fantasia é colocada “como o imaginário aprisionado num certo uso significante” (NAVEAU, 2011) no caso em questão o racismo faz a representação da subjetividade em jogo. A construção da fantasia no tratamento permite a apropriação, pelo sujeito, do objeto que lhe causa o desejo. Me parece que o analista coloca um bom ruído no significante que repete, um equívoco, permitindo que algo do gozo ceda ao desejo. Miller (2015) vai dizer da operação de redução como operação analítica, que se dirige a sua versão pequeno a, uma formalização determinante da escolha do objeto, mas que a análise não está terminada enquanto o sujeito não ceder ao gozo fixado a essa repetição. É preciso localizar, mas que não crie uma sutura. Seria aqui possível pensarmos na vacilação de uma fantasia tão consistente e que me parece ser onde o sujeito se alicerça, se defende? Como manejar? Pois, enquanto a fantasia encobre a realidade insuportável por meio da criação de uma realidade ficcional, a angústia sinaliza algo do Real.

Ao que parece, algo do objeto rasga o quadro da fantasia, que já não funciona para que esse sujeito se relacione com o mundo, o que possibilita uma invasão de gozo. É na análise, sob transferência, que algo pode condescender, algo da fixidez e que comporta um excesso. Encontra-se, assim, uma resposta para o que se experimenta sem mediação, fora do sentido, impossível de suportar.

Deparamo-nos muitas vezes com sujeitos fixados a um modo de responder, sem conseguir dar tratamento ao que excede. Como conduzir o que, embora atravesse a lógica civilizatória, a lei, se encontra fora da letra?

O paciente do caso apresentado por Alessandro adere ao significante “sentimento de indignidade”, dado por um outro. Ele consegue, a partir de uma acusação, deslocar e localizar que seu impasse maior é o racismo e a invisibilidade que experimenta em função dele. Para a psicanálise, a indignação surge quando o singular é rejeitado ou desconhecido e, com isso, algo da “conjuntura íntima do sentimento de vida” (VICENS, 2009) é tocado. Nesta via, a indignação está finamente ligada à dignidade – como o que não se tem em comum com nenhum outro, diferença, singular, inclassificável – e à indignidade – como posição inicial do sujeito em seus laços sintomáticos. Ou seja, a indignação estaria entre a singularidade e a perda dela, que o sujeito terá que tratar.

Diante do caso trazido por Alessandro, proponho pensar a indignação como um afeto que surge quando há um rechaçamento do núcleo do ser, mas que, por outro lado, é sua condição advertida em relação ao Outro, que impulsiona e permite perguntar pela dignidade, ou seja, por sua singularidade perdida, roubada, arrancada. Neste caso, o sujeito diz de sua identificação ao lugar de resto, como negro e homossexual (há um efeito segregatório calcado no social). No caso do racismo, e ao ser agredido verbalmente, no que tange à cor de sua pele, podemos considerar que, se o nada querer saber mantém o sujeito na posição de subordinado ao dito do Outro, o rompimento com essa posição, por sua vez, como responsabilização decidida, faria vacilar a posição vitimada, incluindo o sujeito, o querer saber. Ao “desconfiar” do gozo do outro e se perguntar pelo seu gozo, permitiria reencadear o que saiu da lógica simbólica. E aqui evitar o pior e a busca de uma solução radical.

Poderíamos pensar que existiria uma forma de dar tratamento ao indigno, ao racismo, ou seja, a partir de uma indignação “lúcida” que consentiria com uma recusa do gozo do Outro, com a sua inexistência, viabilizando uma extração de gozo como forma de poder se colocar, engajar, saber de si mesmo, pois a dignidade exige certa recusa de gozo. Isto é, a indignação como rebelar-se, como mudança de posição. De início, o paciente traz a invisibilidade, aliada ao desamparo, à censura e julgamento, propiciando um quadro de angústia, lançando-o na impotência radical.

Para saber do que sofremos, segundo Antoni Vicens (2009), criamos doenças. Essa produção sintomática permitiria melhor localizar, materializar o sofrimento, concernido, entretanto, por sua própria dignidade.

Neste contexto, o encontro com o analista pode causar e inaugurar a autorização do próprio destino pelo sujeito. Isso porque, no caso, ao melhor situar a demanda, diante do impossível de responder, o sujeito pode, então, esvaziá-la e alçá-la a um novo saber. Ao tocar o ponto em que o sujeito cristalizou sua defesa, calando-se, mortificando-se, é possível tratar o ódio de si, a assimilação ao ódio do outro como parte de si… É preciso, então, criar a distância.

Assim, a indignidade, o racismo, a sentença de um Outro e o aprisionamento podem cair, permitindo a diferença, dar à singularidade um lugar. De outra maneira, pode tratar a demanda de reparação que, uma vez depurada, faz aparecer a verdade do sujeito, o Um do gozo, enlaçando de uma boa maneira.

Ao que parece, o sujeito agalmatiza o dejeto e se separa da condição de rebotalho: “eu vou com o que eu tenho”. Na construção de um laço menos mortífero, busca-se realizar uma identificação, sem dúvida, que permita ao sujeito encontrar seu lugar em uma das múltiplas rotinas das quais é feita a organização social e que têm por propriedade estabilizar a relação do significante e do significado, a relação do sujeito com as grandes significações humanas, dando pertencimento. Entretanto, segundo Miller (2010a), não se trata somente de obter uma identificação significante do sujeito, sua inscrição sob um significante mestre: trata-se de desprender do gozo uma parcela que possa constituir objeto, sendo este incialmente objeto de uma narração, de um cenário que pode ter lugar de fantasia.

Aqui, gostaria de trazer alguns pontos do texto de Miller intitulado “A salvação pelos dejetos”, que permite uma leitura do caso. É um artigo que trata de forma preciosa e singular a segregação de cada um.

Miller (2010b) diz que a salvação pelos dejetos é o caminho. É também a maneira de fazer, de se colocar, de se deslizar no mundo, no discurso, no curso do mundo que é discurso. Tudo se passa, segundo Miller (2010b), como se a humanidade tivesse se situado diante dessa escolha: a salvação pelos ideais ou a salvação pelos dejetos. E, como por uma escolha forçada, poder-se-ia dizer que ela tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita: a da salvação pelos dejetos. Podemos pensar assim a questão do racismo, da segregação?

O que é o dejeto? Miller (2010b) nos esclarece que é o que é rejeitado, e especialmente rejeitado ao cabo de uma operação por meio da qual só se retém o ouro, a substância preciosa a que ela leva. É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é in-forme. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa. O dejeto teria o estatuto de dignidade como singular, como o que resta.

Quando o Outro designa o corpo social, se posso dizer, seu gozo, o gozo desse Outro, mantém-se como uma abstração ligada ao ideal. Um abstrato, uma ficção que se apoia no número, na massa. Entretanto, pode ser que o gozo do Outro social ganhe corpo, que o gozo consiga ser identificado no lugar do Outro, que ele não se evapore, que não se torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa. É quando se pode dizer, ou subentender, ou ser persuadido de que “o Outro goza de mim”. Aqui, a meu ver, conseguimos localizar o racismo, em seu pior, para o sujeito.

Para Miller (2010b), o que salva os psicanalistas é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso. De ter tido êxito em sublimar o suficiente sua degradação para elevá-la à dignidade de uma prática, ou seja, de um objeto de troca.

É interessante observar que, em seu caso, Alessandro adota um método de provocação visando suscitar as demandas, suprimindo os obstáculos que se poderia qualificar de imaginários.

Se o discurso do mestre procede exclusivamente pela identificação significante e a identificação reina sem divisão, deparamos com o sujeito de imediato identificado com seu sintoma e tornando-se o exemplar de uma classe, de uma categoria. De sua parte, o analista, convidado a se identificar com a boa vontade do terapeuta, com a sua função terapêutica, introduz o sujeito à experiência psicanalítica, introduzindo o laço social específico que se tece em torno do analista como dejeto, representante do que, do gozo, resta insocializável.

Cada um tem que inventar sua própria solução, seus regimes de experiência. Neste sentido, fazer corte na equivalência estabelecida entre a condição de rebotalho e a de dejeto torna-se a orientação, sendo este último o lugar que porta a diferença e a singularidade, o que cada um pode dizer de seu.

Segundo Lebovits-Quenehen (2020), a psicanálise deve recordar que cada fato é acompanhado pelas pulsões de vida e de morte. A psicanálise trata de buscar soluções que apontam para a possibilidade de vida.

Do lado do analista, é preciso que este assuma, também em ato, a singularidade com que trata seus pacientes. Há várias formas de ser racista quando se pretende fazer da função de analista formas de se defender da singularidade do analisante, como real: querendo seu bem, compreendendo-o, também crendo que sua normalização no curso da análise constituiria um progresso.

É preciso lembrar que o racismo tende a reabsorver a tensão entre o Um e o Outro, com desprezo pela diferença. Algo está em jogo em uma análise, de uma responsabilidade que a realidade impõe ao sujeito quando é praticante, de assumir o risco, sendo necessário orientar-se a partir da singularidade de seus analisantes e da sua própria.

 


Referências
ANDRADE, O. Telefonema. São Paulo: Globo, 2009.
BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise das mulheres: a devastação da relação com a mãe. Latusa – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio), n. 9, p. 203-218, 2004.
CAROZ, G. Conhecer seu ódio. Almanaque on-line, n. 22,  2019. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/conhecer-seu-odio. Acesso em: 14 dez. 2023.
LEBOVITS-QUENEHEN, A. El racismo y el control. Freudiana, garantía y control: cuestiones de escuela, n. 89/90, 2020.
MILLER, J-A. Comment se revolter. La Cause freudienne, n. 75, 2010a.
MILLER, J-A. A Salvação pelos dejetos. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 69, 2010b.
MILLER, J-A. O osso de uma análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2015.
NAVEAU, P. Fantasia, in: Scilicet. A ordem simbólica no século XXI: não é mais o que era. Quais as consequências para o tratamento? Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum, 2011, p.155-157.
SOUZA, N. S. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2021.
VICENS, A. Lacan y la dignidad humana. Conferência 03/2009, Granada. 2009. Disponível em: http://www.icf-granada.net/2012-04-04-08-33-03/audios/99-lacan-y-la-dignidad-humana. Acesso em: 14 dez. 2023.

[1] Texto apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação do IPSM-MG em 25/10/2023.



Elucidações sobre acontecimento de corpo e o sonho do “Historiador do Detalhe”, de Carolina Koretzky

Elucidações sobre acontecimento de corpo e o sonho do “Historiador do Detalhe”, de Carolina Koretzky1

Paula Pimenta
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
paularamos.pimenta@gmail.com

Resumo: O artigo foi escrito como comentário ao texto de Ana Sanders, “O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo”, publicado neste número. Ele se dedica a elucidar o que seria um acontecimento de corpo e a verificar sua presença no sonho trabalhado.

Palavras-chave: acontecimento de corpo; sonho; lalíngua.

ELUCIDATIONS ON BODY EVENT AND THE DREAM OF “THE DETAIL HISTORIAN”, BY CAROLINA KORETZKY

Abstract: The article was written as a commentary on Ana Sanders’ text, “The historian of detail: articulations between dreams and bodily events”, published in this issue. He dedicates himself to elucidating what a bodily event would be and verifying its presence in the worked dream.

Keywords: body event; dream; lalangue.

O caso do “historiador do detalhe”, apresentado por Carolina Koretzky, é precioso para revelar a função do sonho na psicose, ao que se acrescenta o modo como irrompe o chamado “acontecimento de corpo”. Em seu texto “O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo”, Ana Sanders especifica sobre a montagem do sonho, para Freud e para Lacan, e descreve o sonho do pequeno Matéo, de oito anos, que lhe serve para “seguir dormindo, com os olhos bem abertos”.[2]

O presente artigo traz a proposta de elaborar um pequeno comentário suplementar sobre a noção de “acontecimento de corpo”, articulando-o com os efeitos do referido sonho na vida da criança.

Acontecimento de corpo: marca da letra

A concepção de “acontecimento de corpo” surge, na obra de Lacan (1975-76/2007), à época do Seminário 23, “O Sinthoma”, contemporâneo de seu escrito “Joyce, o Sintoma” (LACAN, 1975/2003). No entanto, a articulação entre corpo e gozo veio se constituindo desde o Seminário 20 (LACAN, 1972-73/1985). A partir dessa época, portanto, tem-se uma virada de orientação quanto ao status da interpretação analítica, que visaria o gozo fora do sentido que causou marcas no sujeito.

Em uma intervenção no Congresso da New Lacanian School (NLS), Miller define o acontecimento de corpo como

a percussão de lalíngua no corpo, o próprio encontro material, para o parlêtre, do significante com o corpo. A um só tempo, o acontecimento de corpo – o choque puro da linguagem sobre o corpo – seria um fato inaugural e constituinte do parlêtre e, também, algo a se reiterar sem cessar ao longo da existência, um acontecimento permanente. (BARRETO, 2018, p. 39)

Temos, então, a relação estabelecida entre lalíngua e acontecimento de corpo. Para que este ocorra, todavia, é preciso a inscrição da letra. Lalíngua são os estilhaços do choque da linguagem com o corpo, que comporta gozo, mas não promove um acontecimento de corpo por não demarcar uma borda que contorna um vazio (a zona erógena freudiana), o que incorreria na possibilidade de extração do objeto pulsional que localiza o gozo. O que faz isso é a letra, a marca no corpo de um dos estilhaços de lalíngua (BAYÓN, 2020).

 Lalíngua é o enxame (“essaim”, homófono a S1) de significantes. Não de palavras, mas de S1s, significantes sozinhos, que não se acoplam a nenhum outro em uma estrutura de linguagem que promova sentido. O gozo de lalíngua refere-se à materialidade do som, à substância sonora em que se produzem as homofonias, assonâncias e onomatopeias.

 Lalíngua institui o Um sozinho, sem o Outro, não estando a serviço da comunicação. Trata-se de um gozo anterior ao Outro, o gozo do parlêtre. O “sujeito” se constituirá somente em um segundo tempo lógico, pelo banho de linguagem que vem do campo do Outro. O enxame de S1s de lalíngua não produz sentido e não promove um acontecimento. É preciso que algum desses S1s se diferencie e seja alçado ao status de uma marca, que é a letra.

Se lalíngua é o impacto, a entrada do gozo no corpo, a letra implica uma localização desse gozo – que em lalíngua estava deslocalizado. Lalíngua é o início do gozo, enquanto a letra é sua marca, o recorte de um modo singular de gozo. A letra é marca de gozo e modo de gozo. É esse justamente o passo que permitirá a passagem de lalíngua à linguagem: o recorte de um S1 sintomático como o que escreve, primitivamente, a letra que marca o início da repetição, se articulará em seguida ao S2 no que Lacan chama a elucubração de saber sobre lalíngua. (BAYÓN, 2020, p. 85)

É uma contingência que funda um dos S1s do enxame como letra, por meio do encontro com o Outro.

Tem-se aqui o acontecimento de corpo que se produz no troumatismo: a inscrição da letra e sua borda, que instaura a compulsão à repetição do sintoma e a escritura primitiva do sintoma. Essa inscrição, essa marca que se repete, é um acontecimento de corpo. (BAYÓN, 2020, p. 93)

Há uma sincronia entre a inscrição da letra e o troumatismo. À medida em que ela se escreve, também se inscreve o furo. A letra fura o gozo de lalíngua, esvaziando-o ao extrair o S1 do conjunto indiferenciado de uns, deixando sua marca como cicatriz.

Assim, o Um pode fazer dois, articulando-se com um S2 e compondo uma cadeia. É a partir desse S1 da letra que a linguagem pode advir, concatenando um S2 que se encadeia e promove sentido, compondo a estrutura da linguagem (MILLER, 1998).

O acontecimento de corpo é, portanto, marca no corpo da inscrição desse gozo localizado que é a letra. “A repetição do sintoma é esse algo do que acabo de dizer que primitivamente é escritura” (LACAN,1974-75, aula de 21 de janeiro de 1975). Esse Um que se escreve, por sua função de letra, constitui o necessário do sintoma.

O troumatismo é trauma por ser uma irrupção de gozo que produz um furo no real. Esse furo é a não-relação sexual e se produz como uma borda simbólica que a letra demarca; trata-se da borda do furo no saber, no S2. A letra é a borda mesma; ela “escreve o zero e o Um na contingência do trauma, ou seja, escreve o furo e a borda no mesmo ato”. (BAYÓN, 2020, p. 93).

Então nos perguntamos: por que podemos afirmar que o sonho de Matéo apresenta um acontecimento de corpo?

O sonho de Matéo e a letra como acontecimento de corpo

O relato do sonho feito por Matéo à sua analista, seus comentários posteriores e o efeito apaziguador e localizador do gozo que se sucedeu faz-nos afirmar ter havido ali um acontecimento de corpo.

A criança apresenta um ponto de perplexidade diante do conteúdo do sonho, ao afirmar: “foi estranho! Fui eu mesmo que ordenei minha própria morte” (KORETZKY, 2020, p. 131, tradução nossa). Mas não toma isso como um enigma a ser transformado em uma busca de sentido. Em seu lugar, surge a certeza delirante – “Senti verdadeiramente em meu corpo o que é morrer. […] Conheço o efeito no corpo de receber uma bala” (KORETZKY, 2020, p. 132, tradução nossa) –, a partir de uma condensação de elementos de sua história que promovem uma marca no corpo, localizando algo do gozo. Produz-se uma letra que faz acontecimento de corpo. “A ‘bala’ do sonho é o verbo que se faz carne” (KORETZKY, 2020, p. 133, tradução nossa), o que remete ao estatuto de lalíngua.

É importante observar que, na cronologia do caso, esse sonho-letra surge em um segundo tempo do tratamento, após um trabalho de construção do corpo promovido pela análise.

Com o sonho, surge em Matéo um laço vivo com o saber, um saber (delirante) experimentado no corpo, que se apoia sobre um acontecimento de corpo. Ele sabe o que é morrer por uma ferida no corpo, aqui está a invenção psicótica de um lugar de exceção que institui “um movimento de morte e renascimento do sujeito” (KORETZKY, 2020, p. 132, tradução nossa). Os efeitos perenes testemunhados posteriormente pela criança reforçam nosso entendimento de que foi um acontecimento de corpo que irrompeu no sonho.

Finalizo retomando as palavras de Barreto, já citadas anteriormente, de que o acontecimento de corpo é algo que se reitera “sem cessar ao longo da existência, um acontecimento permanente”. É nessa gradação de acontecimento permanente que vem rearranjar o modo de gozo do sujeito que reconhecemos essa produção onírica especial de Matéo.

 


Referências
BARRETO, F. P. Fenômeno e acontecimento de corpo na clínica da estabilização psicótica. Cythère, Rev. de la Red Univ. Amer., v. 1, ago. p. 34-43, 2018. Disponível em: http://revistacythere.com/wp-content/uploads/2018/08/CYTHERE-1.-PAES-BARRETO-Fen%C3%B4meno-e-acontecimento-de-corpo.pdf. Acesso em: 13 mai. 2021.
BAYÓN, P. A. El autismo, entre lalengua y la letra. Olivos, AR: Grama, 2020.
KORETZKY, C. El historiador del detalle. In: MILLER, J.-A. La conversación clínica del UFORCA. Olivos, AR: Grama, 2020.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 22: RSI. Leçon 21 janvier 1975 établie par J.-A. Miller. Ornicar?, n. 5, 1975, p. 104-110. (Trabalho original proferido em 1974-75).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 560-566. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. Os signos do gozo. Buenos Aires: Paidós, 1998.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG, em 4/10/2023, como comentário ao trabalho de Ana Sanders (publicado acima).
[2] Expressão de Carolina Koretzky, por ocasião da oportuna apresentação do caso realizada no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, em 2/6/2023.



Manuscrito H[1]

Manuscrito H1

Elisa Alvarenga
A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

elisalvarenga@gmail.com

Resumo: O “Manuscrito H”, enviado por Freud a Fliess em 1895, é situado entre os textos em que Freud pensa as psicoses, no plural, entre as neuropsicoses de defesa, no final do século XIX. Freud percebe que o mecanismo das psicoses difere do recalque das neuroses, mas ainda não consegue precisá-lo bem.

 Palavras-chave: neuropsicoses; defesa; recalque.

H MANUSCRIPT

 Abstract: The “H Manuscript”, sent to Fliess by Freud in 1895, is situated among the texts in which Freud talks about psychoses, in plural, among the defense neuropsychoses, at the end of the XIXth century. Freud realizes that psychoses mechanism is different from neuroses repression, but he can’t yet precise it.

 Keywords: neuropsychoses; defense; repression.

 

Introdução

 

Começo com uma pergunta: a psicose é para Freud uma estrutura, no sentido lacaniano do termo? Abordada inicialmente no quadro das “Neuropsicoses de defesa”, a psicose é vista como uma maneira específica de defesa, e como tal distinta da neurose. Freud se interessa num primeiro momento pelas psicoses, no plural, pois ele distingue diversas maneiras de enfrentar realidades penosas, no sentido de representações inconciliáveis com o eu. O mecanismo do recalque já está então no centro do problema.

O “Manuscrito H”, que comentaremos hoje aqui, pertence a esse período inicial, em que Freud vai elaborando sua concepção do aparelho psíquico e resgatando a importância da sexualidade nas neuroses e nas psicoses. Ele desemboca, na virada do século XIX ao século XX, na primeira tópica freudiana (ics-pcs-cs) e na teoria da libido. Vai ser a época dos grandes relatos de casos clínicos e Freud debruça-se então especialmente sobre a paranoia e a esquizofrenia, consideradas em série como maneiras mais ou menos radicais de desviar a libido do mundo exterior. O seu “recalque” distingue-se bem do recalque da neurose.

A segunda tópica (isso-eu-supereu) surge após a introdução da pulsão de morte na teoria da libido e os critérios antes utilizados se revelam insuficientes para diferenciar neuroses e psicoses: a defesa, o destino do afeto, a retração da libido, a relação com a homossexualidade, a relação com a realidade. Freud se interessa pela maneira como os psicóticos se afastam da realidade e pela especificidade do seu “recalque”. A realidade em questão é uma realidade psíquica ou simbólica, a realidade da castração. É a maneira de posicionar-se frente a essa realidade que vai caracterizar o mecanismo em questão na psicose, em oposição ao recalque da neurose. Freud passa então das psicoses, no plural, à psicose, no singular (ALVARENGA, 1992, p. 5).

O conceito de psicose em Lacan, nos anos 50, no Seminário As psicoses e no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, dois anos depois, diz respeito a uma estrutura, irredutível à estrutura neurótica. Vamos percorrer hoje aqui alguns textos freudianos desse período inicial, em torno das neuropsicoses de defesa, de 1895 até 1900, levando em consideração que esse conceito de defesa não perde sua importância, pois ele reaparece ao final da vida de Freud no texto “A divisão do eu no processo de defesa”.

As neuropsicoses de defesa (1894)

 O interesse de Freud pelas psicoses foi provavelmente despertado pelos problemas clínicos colocados pela histeria. Já nos “Estudos sobre a histeria”, publicados em 1895, Freud propõe um modelo de “psicose histérica” como resultado de um fracasso da defesa. Começaremos nosso percurso por uma leitura das “neuropsicoses de defesa”, assunto dos artigos dos anos 1890, assim como dos manuscritos e cartas enviados a Fliess.

Wilhelm Fliess era um médico otorrinolaringologista, correspondente assíduo de Freud nesse período do seu pensamento, e que tinha umas teorias um pouco delirantes sobre as patologias mentais. É considerado como “o analista” de Freud, o qual lhe fazia confidências e submetia a ele seus pensamentos e novas ideias. A correspondência entre os dois pesquisadores tem um papel fundamental na elaboração de alguns conceitos freudianos.

A reticência de Freud em receber pacientes psicóticos em análise não parece tão acentuada no início de sua prática, talvez em função mesmo da inclusão das psicoses entre as neuropsicoses de defesa. Ele falará principalmente da paranoia e dos episódios delirantes agudos. Nesse artigo de 1894, Freud estabelece uma conexão entre neurose e psicose como resultados de mecanismos de defesa ligados a uma divisão da consciência, expressão de uma disposição patológica: uma representação desperta um afeto penoso que a pessoa decide esquecer, mas esse esquecimento fracassa e conduz a uma histeria, a uma obsessão ou a uma psicose alucinatória.

Na neurose, o eu torna a representação fraca retirando-lhe o afeto, quantidade de excitação que, na histeria, é deslocada para o corpo na conversão. Nas obsessões e fobias, a representação é excluída das associações, mas o afeto se liga a outras representações que se tornam obsedantes. Freud introduz então uma “psicose de dominação”: uma jovem que sofre de autoacusações obsessivas perde sua capacidade crítica e seu sentimento de culpa acentua-se de tal forma que ela chega à psicose, sendo curada após alguns meses de tratamento.

Se, nas neuroses, a defesa é efetuada pela separação entre a representação inconciliável e o afeto que lhe corresponde, há

uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem sucedida. Aqui, o eu rejeita (verwirft) a ideia incompatível juntamente com seu afeto e comporta-se como se a ideia jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que o tenha conseguido, o sujeito encontra-se numa psicose, confusão alucinatória. (FREUD, 1894/1976, p. 71)

Além disso,

O conteúdo de uma psicose alucinatória consiste na acentuação da ideia que foi ameaçada pela causa precipitante do desencadeamento da doença. O eu se defendeu da ideia incompatível através da fuga para a psicose. Ele escapa da ideia intolerável; esta, porém, é ligada inseparavelmente a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu alcança esse resultado, ele se destaca, também, parcial ou inteiramente, da realidade. As ideias do sujeito recebem a vividez das alucinações; assim, quando a defesa consegue ser levada a cabo, ele se encontra em um estado de confusão alucinatória. (FREUD, 1894/1976, p. 71)

Dois exemplos:

      1. Mãe que perdeu o bebê: embala um pedaço de tronco em seus braços, como se fosse um bebê.
      2. Mulher que foi abandonada: veste-se para esperar o noivo todos os dias.

A confusão alucinatória não é habitualmente compatível com a histeria ou com as obsessões, mas uma psicose de defesa pode vir interromper episodicamente o curso de uma neurose histérica ou mista. Freud isola os mecanismos, mas admite sua incidência sobre um mesmo sujeito.

A distinção entre os mecanismos da neurose e da psicose é elaborada por Lacan a partir do termo “rejeição” (Verwerfung), já utilizado em 1894. A alucinação, resultado da rejeição da representação, é exatamente o que Lacan vai chamar de retorno no real do que não foi simbolizado pelo sujeito.

Manuscrito H – Paranoia – 24.01.1895

 Freud introduz a paranoia nas neuropsicoses de defesa por uma analogia com a neurose obsessiva, como uma “psicose intelectual”, considerando-a como mais uma forma de defesa, ao lado da histeria, da obsessão e da confusão alucinatória. “Alguém se torna paranoico em relação a coisas que não pode suportar” (FREUD, 1895/2016, p. 15). Mas é preciso uma predisposição específica para isso.

Freud dá como exemplo uma paciente que apresentava delírios de observação e perseguição. Ele crê que ela sofre de uma neurose de caráter sexual, com eventuais acessos de paranoia. Tendo tentado, sem sucesso, suprimir a tendência à paranoia restaurando a lembrança de uma cena de sedução, ele se pergunta sobre o caráter específico de defesa paranoica. A paciente foi assediada por um hóspede e se recusava a se lembrar da cena de assédio e se sentir culpada. Sua culpa retorna de fora no delírio de observação e recriminação.

A doença tentava evitar uma autocensura recalcando-a, mas a recriminação retornava de fora: a paciente era observada e criticada.

O julgamento sobre ela fora desalojado para fora. As pessoas diziam aquilo que normalmente ela teria dito para si mesma ela. […] O julgamento vindo de dentro, ela teria de aceitar. O que vinha de fora, ela podia recusar. Dessa forma o julgamento, a recriminação, era afastado do Eu. A paranoia tem, portanto, o propósito de se defender de uma representação intolerável para o Eu projetando seu conteúdo no mundo exterior. […] Trata-se do abuso de um mecanismo psíquico utilizado com frequência. (FREUD, 1895/2016, p. 17-18)

Para Lacan, seria melhor abandonar o termo “projeção”, pois a projeção na psicose “é o mecanismo que faz voltar de fora o que está preso na Verwerfung, ou seja, o que foi posto fora da simbolização geral que estrutura o sujeito” (LACAN, 1955-56/1985, p. 58).

O próprio Freud coloca em questão tal termo, diferenciando a projeção como mecanismo neurótico de imputar ao outro o que não reconheço em mim – se não gosto de fulano penso que fulano não gosta de mim – do mecanismo da psicose: é incorreto dizer que a sensação suprimida internamente é projetada para o exterior, a verdade é que, pelo contrário, aquilo que foi abolido internamente retorna desde fora (FREUD, 1911/2021).

Freud dá vários exemplos de defesa que levam a um delírio de perseguição e nota que a megalomania consegue eliminar do eu a ideia penosa melhor ainda que a paranoia: “a ideia delirante é mantida com a mesma energia com que o Eu se defende de alguma outra ideia penosamente insuportável. Portanto, eles amam o delírio como a si mesmos” (FREUD, 1895/2016, p. 20). Exemplos:

      1. O paranoico querelante não suporta a ideia de ter feito algo errado e imputa o erro ao Outro: delírio de reivindicação
      2. A nação não suporta a ideia de ter sido vencida: paranoia de massa, delírio de traição. Mais atual, uma massa que não aceita ter perdido uma eleição, delírio de fraude
      3. O alcoólatra não suporta a ideia de ter ficado impotente pela bebida. A culpa é da mulher: delírio de ciúmes
      4. O hipocondríaco não admite que sua doença tem a ver com suas condutas: delírio de envenenamento
      5. O funcionário não admite seu fracasso em ser promovido: delírio de complô e de perseguição
      6. A cozinheira que perdeu seus atrativos: delírio erotômano ou de grandeza

Também no caso Schreber, Freud desenvolve com mais clareza a gramática da paranoia, a partir de três formas de negar a proposição básica “Eu, um homem, amo um homem” (FREUD, 1911/2021, p. 604-606): negar o objeto, o verbo ou o sujeito:

      1. Eu não o amo, eu a amo, porque ela me ama: erotomania
      2. Eu não o amo, eu o odeio, porque ele me persegue: delírio de perseguição
      3. Não sou eu que o amo, é ela que o ama: delírio de ciúmes

Freud compara, então, no quadro da página 21, as formas de defesa da histeria, da obsessão, da confusão alucinatória, da paranoia e da “psicose histérica”. Na histeria, o conteúdo intolerável fica fora da consciência e o afeto é deslocado para o corpo. Na obsessão o afeto é mantido, mas o conteúdo representativo é substituído por outro (deslocado). Na confusão alucinatória, o afeto e o conteúdo são afastados do eu por um desligamento parcial do mundo exterior, com alucinações agradáveis ao eu (ver os dois primeiros exemplos). Na paranoia, ao contrário, o afeto e a ideia intolerável são mantidos, mas projetados no mundo exterior. As alucinações são desagradáveis ao eu, mas apoiam a defesa. Já nas “psicoses histéricas”, o afeto domina a consciência e as alucinações são hostis ao eu. Trata-se da histeria aguda dos “Estudos sobre a histeria”, na qual “o eu está sendo constantemente esmagado pelos produtos da doença” (FREUD, 1895/1974, p. 319). O sentimento de culpa de uma paciente torna-se tão acentuado que ela acredita ser uma criminosa.

Para Lacan, Freud põe em jogo mecanismos de defesa semelhantes para as neuroses e as psicoses, embora seus efeitos sejam fenomenologica e psicopatologicamente distintos. Os diferentes mecanismos deveriam, inversamente, ser deduzidos a partir dos resultados.

Manuscrito K – As neuroses de defesa – 01.01.1896

 Freud retoma um ano depois algumas ideias sobre a paranoia. O “recalque” só se efetua depois que a lembrança já causou desprazer. Não se trata de uma recriminação recalcada, mas de um desprazer pelo qual o outro é considerado responsável, através do mecanismo da projeção. O sintoma primário é a desconfiança em relação aos outros e o paciente não acredita na censura. As vozes representam as autoacusações. As frases são inicialmente deformadas, confusas e ameaçadoras, para depois associar-se à desconfiança. O processo termina, seja pelo que Freud chama de melancolia – impressão de insignificância do eu –, seja pela megalomania.

Freud interessa-se cada vez mais pela especificidade do “recalque” na psicose. Na paranoia, a relação entre o discurso e a lembrança “recalcada” não pode tornar-se consciente e o eu recusa qualquer crença na censura. Freud chama de Unglauben essa descrença na censura, que fará com que tomemos a inocência como um signo da paranoia, enquanto a culpabilidade delirante é um signo da melancolia. Essa questão da crença aparece várias vezes nos escritos de Freud e só vinte anos depois, em “A negação” (1925), ele nos dará as chaves para entender essa “descrença” dos paranoicos. A relação à lembrança que não pode tornar-se consciente indica que se trata aqui de algo distinto de um recalque. Essa recusa na crença parece ser a precursora do mecanismo finalmente isolado como Verwerfung.

Análise de um caso de paranoia crônica (1896)

 Em seus “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa”, Freud apresenta um caso que confirma sua teoria de uma “psicose de defesa”. Trata-se de uma mulher de 32 anos que, seis meses após o nascimento de seu primeiro filho, manifesta os primeiros sinais da doença: ela se fecha em si mesma e torna-se desconfiada: todos fazem tudo para magoá-la, adivinham seus pensamentos e sabem de tudo que se passa em sua casa.

Um dia surge o pensamento de que a observam enquanto se despe, e mais tarde sente seus genitais como “se sente uma mão pesada”. Tem alucinações de mulheres nuas e dos órgãos femininos e masculinos. Vozes desconhecidas começam a importuná-la, comentando suas ações, ameaçando-a e recriminando-a.

Quando começa a análise dessa paciente, Freud pensa que ela se comporta como uma histérica. Porém, os dados inconscientes são, a maior parte do tempo, escutados interiormente ou alucinados como vozes. A origem dos sintomas da paciente estaria no “recalque” das relações que ela tivera com o irmão e as falsas interpretações da paranoia se apoiariam sobre um recalque. As alucinações visuais seriam fragmentos das experiências infantis recalcadas, correspondendo ao retorno do recalcado. Sua vergonha transforma-se em suspeita em relação aos vizinhos e as vozes devem sua origem ao “recalque” de recriminações provocadas por um acontecimento análogo ao traumatismo infantil. Seria característico da paranoia a alusão dissimulada e as formas de linguagem incomuns.

Comparativamente à neurose obsessiva, em que o sujeito desconfia de si mesmo e a censura retorna nas representações obsessivas, na paranoia a censura é “recalcada” pela via da “projeção”: a desconfiança diz respeito aos outros e as censuras retornam nas ideias delirantes. Incapaz de se responsabilizar por seus atos e palavras, o sujeito paranoico atribui a culpa ao Outro, assim como as acusações. A alucinação paranoica sofreria uma deformação na qual uma imagem recente substitui a antiga. Pensamentos em voz alta são deformados e substituídos por outros pensamentos. O eu se adapta a eles por um trabalho delirante de interpretação que acaba por modificá-lo.

Em 1922, Freud acrescenta a esse caso uma nota sobre sua evolução, dando-lhe finalmente o diagnóstico de dementia paranoides, o mesmo conferido a Schreber.

A interpretação dos sonhos (1900)

 No capítulo VII de “A interpretação dos sonhos”, Freud se detém sobre os delírios e as psicoses. Após o paralelo com as neuropsicoses, encontramos aqui um outro, entre os delírios e os sonhos. Freud se interessa pelos delírios dos pacientes confusos, decorrentes de uma censura que não dissimula mais sua ação. Ela apaga tudo que lhe desagrada e torna o resto incoerente. A questão é saber se a supressão operada pela censura no sonho é da mesma ordem que a censura em jogo na psicose.

Freud compara a psicose ao sonho como realização de desejo: o sonho seria um fragmento da vida psíquica infantil que foi suplantado. Na psicose, o sujeito voltaria também a modos de trabalho psíquico antigos e suprimidos (unterdrückten) e encontra-se incapaz de satisfazer suas necessidades em relação ao mundo exterior. Freud nota sua negligência em relação à diferença entre os termos “recalcado” (verdrängt) e “suprimido” (unterdrükt). Ao dizer que a guardiã de nossa saúde mental é a censura entre o inconsciente e o pré-consciente, ele deixa a psicose associada ao mecanismo do recalque.

Finalmente, a diferença que define a psicose em relação ao sonho é estabelecida: neste, os impulsos vindos do inconsciente podem entrar em cena sem colocar o aparelho motor em movimento, ao passo que na psicose há um enfraquecimento da censura crítica ou um reforço patológico das excitações inconscientes que submetem o pré-consciente a seu poder e dominam as palavras e atos do sujeito ou levam à regressão alucinatória durante a vigília. Essa regressão é assim associada à submissão do pré-consciente ao inconsciente, antiga ideia de submissão do eu que será posteriormente desenvolvida em termos de conflito entre o eu e o isso.

Essa invasão pelo inconsciente tem o mesmo modelo que o estado segundo histérico, chamado de “psicose histérica” em 1895. A antiga diferença estabelecida entre os sintomas neuróticos da histeria e a psicose histérica é análoga à oposição entre o sonho e a psicose: os sintomas da neurose histérica são tidos como o resultado da realização de um desejo ao qual se opõe o desejo pré-consciente, como no sonho o pré-consciente impede o acesso à motilidade voluntária. Na psicose não haveria essa oposição do pré-consciente.

Concluindo, nos textos contemporâneos do “Manuscrito H”, sobre a paranoia, Freud considera os tipos de recalque isolados passo a passo como mecanismos de defesa que resultarão na separação entre o recalque (Verdrängung) e a rejeição, ou foraclusão (Verwerfung), isolados plenamente no caso do Homem dos Lobos, como vocês verão mais adiante. No final do século XIX, Freud conserva uma concepção dinâmica dos acontecimentos psíquicos, talvez mais próxima do último Lacan, que exploramos na preparação do próximo Congresso da AMP: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”.


Referências
 ALVARENGA, E. O conceito de psicose em Freud. Belo Horizonte: Ed. Tahl, 1992.
FREUD, S. A psicoterapia da histeria. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 309-363. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Manuscrito H: Paranoia (24.01.1895). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 15-21. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Manuscrito K: As neuroses de defesa (01.01.1896). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016,p. 23-34. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. As neuropsicoses de defesa. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. III, 1976. (Trabalho original publicado em 1894).
FREUD, S. Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa: Análise de um caso de paranoia crônica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 200-211. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. IV, 1972, p. 543-560. (Trabalho original publicado em 1900).
FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (Caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1911).
FREUD, S. A negação. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 305-314. (Trabalho original publicado em 1925).
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1957-58).

[1] Apresentação ocorrida em 12 de setembro de 2023 no interior da programação das 60ª Lições Introdutórias à Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.



Constituição e perda do campo da realidade

Constituição e perda do campo da realidade1

Kátia Mariás
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

katiamariasp@gmail.com

Resumo: O texto aborda a constituição do campo da realidade a partir da extração do objeto a e o modo como se dá a perda da realidade na neurose que, por meio da fantasia, busca reparar a realidade. O texto trata também de como, na psicose, essa subtração do objeto não ocorre, provocando a perda da realidade seguida de uma tentativa de reparação por meio do delírio.

Palavras-chave: constituição da realidade; perda da realidade; neurose; psicose; objeto a.

CONSTITUTION AND LOSS OF THE FIELD OF REALITY

Abstract: The text addresses the constitution of the field of reality by the extraction of object a as well as the way the loss of reality occurs in neurosis which, through fantasy, seeks to repair reality. The text also deals with how, in psychosis, this subtraction of the object does not happen, causing the loss of reality, followed by an attempt to repair it through delusion.

Keywords: constitution of reality; loss of reality; neurosis; psychosis; object a.

 

 

A experiência de satisfação

Para Freud, a condição para que a realidade seja constituída é que algo seja subtraído ao sujeito, funcionando como índice de uma realidade externa. É esse vazio subjetivo que organiza e corrige o mundo interno.

O campo da realidade não é dado a priori, precisa ser construído, pois não depende da percepção do objeto, não diz respeito a nenhuma realidade exterior, mas refere-se ao objeto perdido.

Em 1895, Freud elabora um projeto, conhecido como “Projeto para uma psicologia científica”, através do qual ambiciona apresentar uma psicopatologia nos moldes de uma Naturwissenschaft. Ou seja, constrói um modelo de aparelho psíquico que funciona segundo o modelo do arco reflexo e é constituído por sistemas de neurônios que recebem a quantidade de excitação e descarregam-na, tornando-se vazios novamente. Freud demonstra a função primária do aparelho psíquico, que é a tendência a descarregar toda a excitação que o perturba, negando, dessa forma, seu próprio funcionamento. Mas, como o aparelho deve manter-se funcionando, faz-se necessária a introdução de uma função secundária, expressa no princípio de constância.

Freud apresenta-nos as duas experiências fundamentais capazes de desencadear a constituição da realidade para o sujeito: as experiências de satisfação e de dor. Ambas as experiências são necessidades do organismo e exigem que se realize no meio externo uma “ação específica” para eliminar a excitação. Essa ação só pode ser realizada por um outro que venha a funcionar como força auxiliar do sujeito. É, portanto, a eliminação da tensão decorrente dos estímulos internos que dá lugar à vivência de satisfação. Toda vez que o estado de excitação e a percepção do desprazer reaparecem, a lembrança do objeto de satisfação será reativada em busca da descarga, produzindo, assim a alucinação. O aparelho psíquico não distingue entre o que é percebido e o que é lembrado. Tanto o objeto temido quanto o objeto desejado são apresentados como percebidos, e não lembrados, ou seja, são alucinados.

Como o princípio de prazer não é capaz de distinguir o objeto real do objeto alucinado, é necessário um princípio de correção que confira ao aparelho psíquico uma eficiência mínima, que será dada pelo princípio de realidade.

A perda da realidade

 O que temos em “Neurose e psicose” (Freud, 1924/2016a)? Que a neurose seria um conflito entre o Eu e o Isso e, a psicose, um conflito entre o Eu e o mundo exterior. Ou seja, tanto a neurose como a psicose se originam do conflito entre o Eu com as várias instâncias que o controlam, embora haja um fracasso na função do Eu que se esforça em conciliar as exigências dessas instâncias. A questão é saber como o Eu consegue sair ileso desse conflito.

Vale lembrar que “Além do princípio do prazer”, “O problema econômico do masoquismo” e “O eu e o isso” já haviam sido escritos, o que fez com que Freud pudesse avançar na diferenciação entre neurose e psicose a partir do conflito entre Eu, Isso e Supereu. Podemos observar que o Eu dividido, ao tentar reconciliar as várias exigências feitas a ele, sacrifica uma parte da realidade em graus diferentes. Freud termina o texto “Neurose e psicose”, assim, perguntando sobre o mecanismo análogo ao recalcamento que leva o Eu a se desligar do mundo exterior, na psicose.

Em “A perda da realidade na neurose e na psicose” (Freud, 1924/2016b), escrito poucas semanas depois da conclusão de “Neurose e Psicose”, ele avança em relação a esse último, uma vez que ele está tentando extrair consequências para a nosografia psicanalítica, baseada no conflito e na divisão do Eu.

A perda, ou afrouxamento da realidade, na neurose se dá a partir de um recalcamento fracassado da pulsão. Quando o fator desencadeador de uma neurose é conhecido, o sujeito se afasta da experiência traumática e a relega à amnésia. Por qual caminho a neurose procura resolver o conflito? Recalcando a exigência pulsional, desvalorizando-a. Freud nos fornece o exemplo da paciente que, apaixonada por seu cunhado, fica abalada com a seguinte ideia no leito de morte da irmã: “agora ele está livre e pode se casar com você”. Essa cena é imediatamente esquecida e, com isso, é acionado o processo de regressão que leva aos sofrimentos histéricos. A moça recalca a exigência pulsional, que é o amor pelo cunhado. Haveria uma obediência inicial e uma posterior tentativa de fuga. A neurose não recusa a realidade, apenas não quer saber nada sobre ela; uma parte da realidade é evitada por uma espécie de fuga. Na neurose, a ênfase recai sobre o segundo tempo – o fracasso do recalcamento. Ela se contenta, via de regra, em evitar a parte correspondente da realidade e proteger-se do encontro com ela.

Na psicose, há dois passos: primeiramente, o Eu é arrancado da realidade; no segundo passo, procura reparar o prejuízo e restabelecer a relação com a realidade às custas do Isso. Há, nesse segundo passo, o caráter de reparação, que também procura compensar a perda de realidade, mas através da criação de uma nova realidade, que não apresenta mais o mesmo embate da realidade abandonada.

No caso trazido por Freud, a reação psicótica teria sido recusar a realidade do fato da morte da irmã. Haveria, aqui, uma fuga inicial seguida de uma fase ativa de reestruturação através do delírio, por exemplo.

A psicose a recusa e procura substituí-la. A tarefa da psicose é procurar percepções que correspondam à nova realidade pela via da alucinação. Aqui, a ênfase incide integralmente no primeiro passo – fuga da realidade –, que é patológico e pode levar ao adoecimento.

O segundo passo na neurose e na psicose sustenta-se nas mesmas tendências; em ambos os casos, ele serve à ânsia por poder do Isso, que não se deixa intimidar pela realidade. As duas são a expressão da rebelião do Isso contra o mundo exterior, seu desprazer ou sua incapacidade para se adequar à necessidade real.

Neurose e psicose se distinguem muito mais entre si na primeira reação introdutória do que na tentativa de reparação. Freud insiste, de várias formas, em esclarecer que o segundo tempo em ambas as estruturas são parecidos, uma vez que o fracasso está colocado nas duas formas clínicas.

A diferença crucial entre neurose e psicose é enfraquecida pelo fato de que na neurose não faltam tentativas de substituir a realidade indesejada por uma mais de acordo com o desejo. Isso é possível graças à existência de um mundo de fantasia. É desse mundo de fantasia que a neurose retira material para novas formações de desejo. Na psicose, o mundo da fantasia desempenha o mesmo papel, configurando o reservatório de onde se recolhem a matéria e o protótipo para a construção da nova realidade.

O fantástico novo mundo da psicose quer se alojar no lugar da realidade exterior. O da neurose se apoia em uma parte da realidade, assim como a brincadeira da criança, e lhe empresta um significado especial e um sentido secreto, que chamamos simbólico. Lacan nos ajuda a compreender esse trecho ao afirmar que a realidade não é homônima de realidade exterior. No momento em que desencadeia sua neurose, o sujeito elide, escotomiza, uma parte de sua realidade psíquica, ou, se podemos dizer, seu id. Essa parte é esquecida, mas continua a fazer-se ouvir. Mas como? De uma forma simbólica. É como se o sujeito colocasse um armazém à parte na realidade, conservando recursos para uso da construção do mundo exterior. O sujeito tenta fazer ressurgir a realidade elidida, num determinado momento, emprestando-lhe uma significação particular, um sentido secreto, que chamamos simbólico. É na medida em que a realidade não é plenamente rearticulada de maneira simbólica no mundo exterior que há, no sujeito, fuga parcial da realidade, incapacidade de enfrentar essa parte da realidade, secretamente conservada (LACAN, 1955-56/1985, p. 56).

Quando Freud compara o conflito neurótico ao conflito psicótico, em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, ele está afirmando que existe crise ou conflito quando há oposição entre a exigência pulsional e a consideração da realidade pelo sujeito. Se, na neurose, o conflito se dá pelo retorno da exigência pulsional à qual o sujeito renunciou em favor da realidade, na psicose o conflito ocorre quando se impõe, para o sujeito, a parte da realidade recusada em benefício da pulsão. Isso quer dizer que o conflito se apresenta quando é exigida do sujeito psicótico uma consideração parcial da realidade que ele recusa.

Freud (1924/2016b, p. 284) conclui seu texto afirmando que, para ambas, neurose e psicose, conta não apenas a questão da perda de realidade, mas também a de uma substituição da realidade.

Vemos que Freud abordou a psicose pela perda da realidade, já Lacan, ao diferenciar a neurose da psicose no que diz respeito às perturbações que elas produzem nas relações do sujeito com a realidade, se ocupa menos dessa perda se interessando pela própria constituição do campo da realidade. No caso do psicótico, a relação profundamente pervertida com a realidade se chama delírio. É, portanto, com a realidade exterior que, em certo momento, houve buraco, ruptura, dilaceração, hiância. A própria realidade é, em primeiro lugar, provida de um buraco, que o mundo fantástico virá em seguida cumular.

O “não” e o campo da realidade

 As elaborações de Freud apresentadas no “Projeto…” tornam-se mais claras quando lidas com o auxílio de um outro texto, curto, mas de igual densidade: “A negação” (Freud, 1925/2016), publicado 30 anos depois do “Projeto…”. Nesse trabalho, Freud apresenta as operações primordiais que definem a constituição do sujeito e, consequentemente, seu campo de realidade. Ele mantém a hipótese de que “algo” deve ser expulso, deve estar fora, deve estar perdido, para que essa perda seja incluída, seja aceita pelo sujeito e possa ser, enfim, negada. O esforço a ser feito para assimilar essa operação deve se dar num tempo lógico, mítico e não cronológico.

O principal objetivo do teste de realidade não é encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas, sim, reencontrá-lo. Assim, uma precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que os objetos que outrora traziam satisfação real tenham sido perdidos. A condição da prova de realidade é o objeto perdido: ela exige e força a representação a veicular uma falta – a perda do objeto corresponde à abertura do sistema fechado e à ascensão ao mundo da significação. É o processo de nascimento do sujeito e da sua realidade. Trata-se de pôr à prova o exterior pelo interior, da constituição da realidade do sujeito na redescoberta do objeto. O objeto é reencontrado numa busca, uma vez que não se encontra jamais o mesmo objeto. Ante a impossibilidade de apropriação do objeto, o sujeito se vale da fantasia.

Nesse texto, Freud apresenta a dupla operação primordial – Bejahung e Ausstossung, afirmação e expulsão –, fundamental para a articulação dos mecanismos psíquicos de negação, a saber, a Verneinung, para a perversão, a Verdrangung, para a neurose e a Verwerfung, para a psicose.

Freud conclui que é pela via do “não” que se pode dizer o “sim”. O “não” é o certificado de origem, é a marca fundamental e distintiva do sujeito. O termo Verwerfung, introduzido no texto “A negação”, será traduzido por Lacan como foraclusão e definitivamente isolado como sendo a operação presente nas psicoses.

Jacques-Alain Miller (1996, p. 51) retoma a nota que Lacan (1957-58/1998, p. 559-560) acrescentou em 1966 a “De uma questão preliminar a todo tratamento da psicose”, citando uma fórmula de difícil entendimento: “o campo da realidade se sustenta apenas pela extração do objeto a que, entretanto, lhe enquadra”. Ele desenvolve essa frase articulando a dimensão libidinal das psicoses ao objeto a, ou seja, a realidade está condicionada ao distanciamento, à extração desse objeto, e é exatamente porque é extraído que ele dá à realidade seu enquadramento: o do furo. O furo é o quadro-realidade, a moldura é o enquadre. O sujeito, como sujeito barrado, é esse furo, falta-a-ser.

 

A janela da fantasia só é constituída sob a condição de que o objeto a seja extraído. É por isso que falamos que a fantasia é enquadramento e, também, tela. O termo “tela”, ao mesmo tempo em que faz obstáculo ao olhar, dissimulando-o, também permite que uma imagem se forme. Há ainda a fantasia-cena, ou seja, é no enquadramento dessa janela, sobre essa tela, que a realidade toma sua significação para nós.

Na psicose, a “morte do sujeito” é o que responde à não-extração do objeto a.

Tomemos a função de ver: para que o olho exerça sua função de ver, ele não pode se ver, ou seja, é preciso que ele seja desinvestido libidinalmente para que possa libidinizar o objeto que é visto por ele. A visão do campo da realidade esconde o olhar. Na psicose, o que ocorre é que o olhar se torna visível precisamente porque, como objeto a, ele não se encontra extraído do campo da realidade. O que se produz, portanto, quando o objeto a não é extraído, é o transporte do olhar para esse ponto no infinito, e é isso que o torna visível. A experiência da psicose prova que a não-extração do objeto é correlata da multiplicação das vozes e da multiplicação dos olhares (MILLER, 1996).

Lacan é exemplar com o caso “Eu venho do salsicheiro”. A paciente, ao murmurar “Eu venho do salsicheiro”, escuta como resposta: “Porca”.  O sujeito não recebe sua mensagem de maneira invertida, como o neurótico, mas recebe sua própria mensagem vinda de fora, vinda do real.

Na neurose, o pai é tomado como aquele que agencia a castração. Nesse sentido, pode-se afirmar que a castração é o certificado de que ali teve origem o sujeito. A castração é a expulsão, a renúncia pulsional à qual o sujeito se submete, permitindo a afirmação de um campo de significantes, chamados, por Lacan, de primordiais.

Como já dito, Freud nos ensina que é a partir do “não” que se pode dizer o “sim”. Ou melhor, é porque o sujeito aceita a castração que o seu mundo da realidade se constitui. Com a castração, abre-se uma brecha, uma lacuna que divide o sujeito, inserindo-o no campo do desejo, da promessa de um reencontro com o objeto que outrora lhe trouxe satisfação. É essencialmente o significante do Nome-do-pai que se trata de ser transmitido na neurose.

a psicose, no entanto, não é isso que acontece. A catástrofe na psicose é exatamente porque o pai não foi capaz de transmitir o seu nome, deixando o sujeito “largado”, à deriva. A passagem ao ato pode, muitas vezes, ser um tipo de extração forçada, uma vez que o que temos na psicose é a não-extração do objeto a. A presença do objeto a no real – olhar ou a voz – deve ser apreendida em um movimento de retorno.

O que Freud propõe é que a satisfação libidinal seja subtraída ao sujeito para que seu organismo funcione. Um objeto tem, necessariamente, que estar fora para que a realidade seja constituída. Em primeiro lugar, a realidade se constitui como desinvestida pela libido e, em segundo lugar, essa realidade só se constitui como realidade se ela é furada. Um pedaço da realidade lhe foi arrancado e é este pedaço da realidade que a libido investe. Deve haver uma perda subjetiva para que o mundo interno seja organizado, caso contrário, o sujeito “cairá sob o golpe da Verwerfung”. A Verwerfung é a ausência absoluta da operação de subtração, é a consequência psíquica da não-operação Bejahung-Ausstossung, deixando o sujeito fora do universo simbólico, preso do lado de fora, foracluído, preso no mundo da psicose. A importância dessa operação, constitutiva do campo da realidade de um sujeito, é o certificado de que, naquele sujeito, houve a transmissão de um pai.


 

Referências
 FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1990, p. 387-401. (Trabalho original publicado em 1950[1895])
 FREUD, S. Neurose e psicose. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016a, p. 271-278. (Trabalho original publicado em 1924).
 FREUD, S. A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016b, p. 279-286. (Trabalho original publicado em 1924).
FREUD, S. A negação. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 305-314. (Trabalho original publicado em 1925).
 LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
 LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1957-58).
 MILLER, J-A. Mostrado em Prémontré. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

 

[1] Texto apresentado em Lições Introdutórias à Psicanálise, atividade da diretoria de Ensino do IPSM-MG, em 17/10/2023.



Contradições em um caso clínico

Contradições em um caso clínico1

Lucia Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

delimaebp@gmail.com

Resumo: A autora comenta o ensaio clínico de Freud sobre um caso de paranoia, publicado em 1915, ressaltando as modificações conceituais decorrentes dessa pesquisa que abrangem a clínica do sujeito, a fantasia fundamental, a pulsão e fixação. Nesse relato clínico, Freud extrai consequências da contradição entre a teoria que advém de sua pesquisa decorrente do ato de dar a palavra ao paciente.

Palavras-chave: paranoia; fantasia fundamental, pulsão; fixação.

CONTRADITIONS IN A CLINICAL CASE

Abstract: The author comments on Freud’s clinical essay on a case of paranoia, published in 1915, highlighting the conceptual changes resulting from this research covering the subject’s clinic, fundamental fantasy, drive and fixation. In this clinical account, Freud draws consequences from the contradiction between the theory derived from his research and the act of giving the patient a voice.

Key words: paranoia; fundamental fantasy; drive; fixation.

 

Comentar o ensaio clínico de 1915 intitulado “Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica” provoca surpresa desde seu título, acarreta indagações diversas sobre o tema da paranoia, conduz às conexões, releituras com outros textos e tanto amplia quanto demonstra o trabalho de Freud seguindo as implicações do sujeito como categoria operatória na trama dos elementos que constituem sua história.

O caso clínico

Um advogado amigo de Freud o procura com solicitação de parecer  sobre o diagnóstico de uma jovem de 30 anos,  atendendo  ainda o pedido de proteção que esta lhe fizera diante das perseguições de um homem. Ela relata em ocasiões diferentes as experiências vividas com um funcionário do instituto onde trabalhava, um homem atraente por quem se sentia interessada, mas que estava impedido de casamento por razões externas. Aceita o convite de encontro na casa onde ele residia e, depois de muita insistência, vai visitá-lo. Até então, ela não havia procurado ligações com homens, vivendo sozinha com sua mãe.

Algumas ocorrências durante os dois momentos amorosos com esse homem atraente promovem, progressivamente, a transformação do candidato a namorado em perseguidor. Na primeira, no meio de uma cena de amor, vivida tão somente através de abraços e beijos, ela se assusta com um barulho repentino, pancada ou clique vindo da escrivaninha e pergunta ao namorado qual origem do ruído acidental. Na segunda, quando deixa a casa, passa por dois homens na escada, que ao vê-la, murmuraram alguma coisa entre si. Um deles carregava um objeto embrulhado que parecia uma caixa. Ela começa a pensar que se tratava de um aparelho fotográfico e que os homens  haviam registrado escondido seu encontro.

O namorado, quando inquirido pessoalmente e através de cartas, não oferece respostas convincentes, pelo contrário, lamenta que uma relação de início tão bonita tenha sido destruída  por esta “infeliz ideia doentia”. Ela procura o advogado, conta sua experiência e mostra-lhe as cartas na tentativa de justificar, comprovar seu depoimento.

Freud acrescenta mais duas interpretações produzidas pela jovem, quando esta surpreende o namorado conversando em voz baixa com a chefe do serviço, senhora de cabelos brancos, “como sua mãe” , que até então lhe tratara com carinho. A suspeita se intensifica mais uma vez na certeza de que o homem e a senhora mantinham relações e, nessa ocasião, ele relata a aventura amorosa ocorrida anteriormente. Os protestos veementes  sobre o que chamou de insinuações absurdas, principalmente com respeito à traição mencionada, não conseguiram atenuar as interpretações delirantes da jovem.

Freud inicia sua pesquisa examinada na condição de caso clínico, considerando a natureza da demanda dirigida pelo advogado e confessando de sua parte haver outro interesse além do diagnóstico. Solicita a presença da jovem e acolhe não apenas a queixa, mas o depoimento do reiterado abuso sofrido e praticado por um homem que, em diferentes situações do encontro amoroso, convoca espectadores desconhecidos  para registrarem sua cena. Esse homem pretendia envergonhá-la e as fotos, se reveladas, iriam obrigá-la a deixar seu emprego. Ela foi induzida a uma ligação amorosa, mas o perseguidor original, entretanto, será apenas revelado através da leitura de uma  aparente contradição.

Questões teóricas

Uma breve resenha dos textos de Freud sobre a paranoia, desde o “Manuscrito  H”,  demonstra a interessante progressão na pesquisa psicanalítica derivada da experiência clínica, construção cuidadosa, nem sempre linear, um trabalho ao mesmo tempo rigoroso e sutil decididamente marcado pela incompletude e indagações inovadoras.

No “Manuscrito H”, de 1895, Freud situa a paranoia, ao lado da loucura obsessiva, como psicose intelectual, diferenciada em parte, da paranoia crônica, modo patológico de defesa diante de uma representação intolerável para o Eu, projetando seu conteúdo no mundo exterior, válido para todos os tipos de paranoia: querelante, de grandeza, de ciúme, de perseguição. A ideia delirante é uma cópia ou o oposto da representação rechaçada e a referência a si mesmo sempre tenta provar que a projeção está correta.

Freud examina, no “Manuscrito K”,  de 1896, a partir de casos clínicos, a noção de vivência primária, diferenciada da neurose obsessiva. Nesta, o sintoma primário que se forma, a desconfiança, é decorrente do mecanismo da recusa e consequente projeção da crença na recriminação. A lacuna no psíquico é elemento interessante encontrado nessa época e desenvolvido em pesquisas posteriores.

O  encontro de Freud com a autobiografia de Schreber, publicada anteriormente  em 1903, resultou nas “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia”, de 1911, no qual assinala que o delírio político-teológico, impregnado nesse caso da ideia de eternidade e o Deus de Schreber com o qual o paciente iria criar uma nova raça de homens, é associado aos fenômenos de linguagem, entre os quais se destacam os fenômenos de código e mensagem, além das alucinações. A partir desse caso clínico produz investigações substanciais para a chamada “doença da mentalidade”.

Freud considerava que o delírio paranoico era resposta e gênese do conflito  homossexual, além de apresentar várias formas de defesas localizadas em Schreber nas frases: “eu, um homem, amo ele, um homem”; o amor invertido em ódio, porque o perseguidor, uma pessoa amada ou seu representante, torna-se o autor que justifica, no delírio, o ódio: “eu não o amo, eu o odeio, porque ele me persegue”.

O retraimento libidinal malsucedido do narcisismo na paranoia encontrará apoio na realidade, e a pesquisa desse caso fundamentará, três anos depois, um desenvolvimento mais preciso do conceito de narcisismo.

“Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica”, publicado  após a vastidão de seu trabalho sobre Schreber, em um primeiro momento retoma a questão da luta do sujeito contra a intensidade de suas tendências  homossexuais que remetem a uma escolha narcísica do objeto. O perseguido, do mesmo sexo, é representante de alguém que foi amado no passado pelo perseguidor, e sobre ele recai o  conjunto das interpretações e certezas delirantes. “Freud nos adverte  que as análises dos paranoicos nos ensinam que o delírio se presta a um remendo colocado onde havia surgido uma fissura, uma reparação na relação do eu com o mundo exterior”, resultando em defesa bem sucedida, portanto a psicose (CAMPOS, 2022, p. 31).

No caso da jovem paranoica apresentado por Freud, ao mesmo tempo em que ela tenta se libertar das ligações com a imagem primordial da própria mãe através do recurso do delírio paranoico, acusa o namorado de ser suspeito, opondo-se aos argumentos formulados por ele, além de buscar em um advogado apoio para seus delírios  aferrando-se à crença de seus julgamentos, embora o perseguidor original resida na “instância de cuja influência ela quer escapar”, ou seja, a mãe. Realiza a dupla lógica gramatical proposta por Freud, negação e projeção, presentes na paranoia.

O que parece estranho, comenta Freud, é que a jovem consiga defender-se do amor pelo homem com ajuda do delírio  paranoico, embora considere que fantasias e sintomas  comportam deslocamentos e substituições.  Esse achado se contrapõe às suas hipóteses anteriores da prevalência da paranoia nos homens e, como argumento, evoca no plano das fantasias as observações sexuais dos pais feitas pelas crianças, no complexo parental, e constata que os sintomas embora substitutos não conseguem encerrar os conflitos.

A luta sintomática, portanto, é prolongada por novos componentes, e o próprio sintoma sucumbe, torna-se objeto dessa luta opondo-se à mudança. A pesquisa conduzida através desses novos componentes implicará em vários remanejamentos conceituais, tais como inconsciente, pulsão, repetição.

Na redação final do  último parágrafo do texto, Freud sugere que, na própria experiência clínica, através do exercício de escuta e leitura do caso, reside tanto a contradição  quanto o argumento, que se serve dessa contradição para promover novas investigações. Seria a pesquisa o ponto de interesse para além do diagnóstico, vislumbrado e confessado inicialmente por Freud? A nota final dos tradutores desse texto informa que a contradição, nesse caso, é apenas aparente, e a argumentação freudiana se mantém sustentando uma construção original.

Freud verifica a presença de uma inércia psíquica, encontrada também na neurose, que se opõe às mudanças. Essa inércia representa um dos fatores que participam da fixidez e repetição sintomáticas.

Se rastrearmos o ponto de partida dessa inércia especial ela se revela como expressão de enodamentos de pulsões – estabelecidos muito cedo e difíceis de desatar –, com impressões e com os objetos nelas existentes, através de cujos enodamentos  se deteve a continuidade  do desenvolvimento desses componentes pulsionais. (FREUD, 1915/2022, p. 95)

O salto nas argumentações freudianas é imenso a partir desse parágrafo. Até então, a identificação ao objeto amoroso primordial justificava em parte as construções delirantes, como em Schreber, mas a fixação do sintoma apresenta na clínica outros elementos que resistem às mudanças, o principal deles, na esfera pulsional, diz respeito aos modos de satisfação, presentes no jogo entre  vida e morte.

Para melhor cernir a importância dessa questão, buscamos provisoriamente dois pontos de orientação.

O primeiro ponto de orientação, mais imediato, mas difícil de determinar, supostamente pode ser localizado no texto “Além do princípio do prazer”, de 1920 – mais especificamente no posfácio de Marco Antônio Coutinho Jorge (2021) à edição brasileira desse texto pela Autêntica, que se serve da leitura das construções lacanianas, contribuindo assim para o aclaramento de algumas questões relativas ao caso clínico:

      1. O narcisismo é etapa decisiva, necessária, mas insuficiente, na constituição do sujeito, implicado na estrutura psicótica na forma positiva, no caso da paranoia, e na forma negativa, na esquizofrenia. Freud evidencia o narcisismo diretamente ligado à pulsão sexual, mas manifesto em sua dupla vertente – vida e morte. O mito de Narciso veicula essa dupla vertente pulsional, visto que a presença do amor e da morte são marcantes tanto na ficção quanto na realidade.
      2. A repetição comparece na clínica em dois tempos: em 1914, vinculada à pulsão sexual, à fantasia e ao princípio do prazer; e, em 1920, a repetição mostra sua face oculta, a pulsão de morte, o real impossível de ser simbolizado, para além, portanto, do princípio do prazer.
      3. A fantasia, passível de ser definida como associação entre inconsciente e pulsão de morte, sexualiza a pulsão de morte e localiza o gozo ilimitado e mortífero.
      4. Nas psicoses, entretanto, a foraclusão impede a operação do recalque originário e a instauração da fantasia fundamental. O delírio é o que vem tentar suprir a falta, no caso o vazio de registro, marca qualquer para produzir localização do gozo no sujeito psicótico.
      5. Freud concluirá, em “Neurose e psicose” e em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, que há perda da realidade, remendo ou invenção, criação de um mudo novo, correlativos à onipresença tanto da fantasia, quanto da interpretação, nas duas estruturas. A diferença entre essas interpretações dependerá dos recursos subjetivos de cada um.

A segunda orientação advém das diferenças, anunciadas em 1915 por Freud, entre fantasia e fantasia fundamental. Diferentes das fantasias consideradas como formações do inconsciente, as fantasias primordiais encontradas em todas as crianças – que incluem, além da “observação” da relação sexual dos pais, a sedução, castração –, fazem parte do que Freud considerou como recalque primário, inacessível à lembrança, suporte do longo trabalho das construções em análise.

Neste ensaio, a importância do conceito de fantasia fundamental e sua função compensatória na psicose, desenvolvido  por outros pesquisadores,  é mencionado pela primeira vez, e o  caso clínico apresentado confirma o quanto a fantasia é realizada na psicose e imaginarizada na neurose. As investigações mais recentes apresentadas pela clínica das compensações na psicose através da fixidez e repetição das imagens indeléveis informa: “Por não ter podido construir uma fantasia fundamental que venha responder ao enigma do desejo do Outro, o sujeito psicótico se encontra em uma relação de íntima proximidade com um Outro que se apresenta como gozador” (MALEVAL, 2020, p. 199, tradução nossa).

Feitas essas considerações, voltemos ao caso clínico. A vida aparentemente pacífica de uma jovem de 30 anos é perturbada pela demanda amorosa. Quando o corpo dessa jovem é solicitado na resposta à demanda amorosa, e na impossibilidade de encontrar palavras ou atos para cernir essa experiência, surge a cascata de interpretações decididamente marcadas pela certeza. A fixidez de seus julgamentos não dá margem para a dúvida: as intenções do Outro são más. O enigma ou o vazio proposto pela relação sexual encontra sua resposta absoluta fazendo equivaler imaginariamente realidade e fantasia.

A partir de um simples caso clínico, com elementos colhidos em poucas entrevistas, Freud constrói pontes que franqueiam a leitura de uma experiência inédita e permitem que a psicanálise ilumine detalhes despercebidos na passagem das identificações para o circuito pulsional e seus modos misteriosos de satisfação.

O enorme trabalho de investigação que marcou sua incidência sobre o narcisismo e as identificações, até permitir acesso  ao silêncio pulsional, requereu muitos anos de pesquisa de Freud, retomados por Lacan e Miller, que, no campo freudiano, fazem da contradição fonte renovada de trabalho.

As transformações subjetivas e seu elemento invariante, que nesse ensaio clínico Freud nomeou como fixação, ou inércia especial, se repete na história singular e na clínica em geral, decorre da experiência ímpar, em torno de um vazio, lugar da criação de algo sempre novo… ainda.


Referências
 CAMPOS, S. de. Investigação lacaniana das psicoses: As psicoses extraordinárias. Vol. 1. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
FREUD, S. Manuscrito H: Paranoia (24.01.1895). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Trabalho original publicado em 1895).
 FREUD, S. Manuscrito K: As neuroses de defesa (01.01.1896). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. (Trabalho original publicado em 1920).
FREUD, S. Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, psicose e perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1915).
JORGE, M. A. C. Posfácio – Incidências clínicas: o terceiro  passo de Freud. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
MALEVAL, J. C. Coordenadas para la psicosis ordinária. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2020.

 

[1] Texto apresentado em Lições Introdutórias à Psicanálise, atividade da diretoria de Ensino do IPSM-MG, em 05/12/2023.



Neurose e psicose: um início de compreensão

Neurose e psicose: um início de compreensão1

Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, Membro Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

lucianasbl@gmail.com

Resumo: O presente texto visa fazer um apanhado teórico do texto de Freud intitulado “Neurose e psicose”, publicado em 1924. Diante da questão sobre qual seria o mecanismo de defesa da psicose, a autora discorre sobre o conceito de foraclusão em Lacan.

Palavras-chave: neurose; psicose; foraclusão.

NEUROSIS AND PSYCHOSIS: A BEGINNING OF UNDERSTANDING

Abstract: The present text aims to make an overview of Freud’s text “Neurosis and psychosis”, published in 1924. Faced with the question of what the defense mechanism of psychosis would be, the author discusses the concept of foreclosure in Lacan.

Keywords: neurosis; psychosis; foreclosure.

 

 

No pequeno texto “Neurose e psicose”, escrito e publicado por Freud em 1924, há, pela primeira vez, a ocorrência do termo “psicose” em um título. Vê-se também a separação entre duas entidades clínicas: neurose e psicose. Vale lembrar que as concepções tratadas aqui são fruto dos avanços do psicanalista em sua elaboração da segunda tópica e, especialmente, depois de “O eu e o isso”, publicado no ano anterior.

A diferença entre neurose e psicose será pensada em termos do conflito entre as novas instâncias psíquicas, ou seja, entre o Eu, o Isso e o Super-Eu. Em poucas palavras, “a neurose é o resultado de um conflito entre o Eu e seu Isso, ao passo que a psicose é o resultado análogo de uma perturbação semelhante nas relações entre o Eu e o mundo exterior” (FREUD, 1924/2022, p. 271).

Para Freud, as neuroses de transferência se originam da seguinte forma:

O mais curioso é que o “Eu, ao fazer essa operação de recalcamento, está obedecendo as leis do Super-Eu, que, por sua vez, tem origem nas influências do mundo real exterior e que no Super-Eu encontraram sua representação” (FREUD, 1924/2022, p. 272). O fato é que

O Eu tomou partido dessas forças, que suas exigências são nele mais fortes do que as exigências pulsionais do Isso e que o Eu é a força que promove o recalcamento contra aquela parte do Isso e o fortifica através de um contrainvestimento da resistência. A serviço do Super-Eu e da realidade, o Eu entrou em conflito com o Isso; eis o estado de coisas em todas as neuroses de transferência. (FREUD, 1924/2022, p. 272)

Vê-se, dessa forma, que o Eu se torna refém tanto das forças do Isso, quanto das do Super-Eu. O aparelho psíquico não suporta o desprazer e faz o que pode para evitá-lo, por isso essa “dança”, para que sua economia se mantenha estável.

No caso da psicose, Freud considera ser fácil mencionar exemplos de mecanismos de defesa que apontam para a perturbação das relações entre Eu e mundo exterior. Cita um exemplo grave, a amência de Meynert, que se caracteriza por uma aguda confusão alucinatória, na qual o mundo exterior não é percebido, ou sua percepção permanece totalmente ineficaz.

Na “normalidade”, o mundo exterior governa o Eu de duas maneiras: “primeiro, através de percepções atuais e sempre renováveis; segundo, através do repertório de percepções antigas que, como ‘mundo interior’, configuram um patrimônio e um componente do Eu” (FREUD, 1924/2022, p. 273). Já na amência, a aceitação de novas percepções é recusada, o mundo interior tem sua significação retirada e o Eu cria para si um novo mundo exterior e interior.

Em outras formas de psicose, como nas esquizofrenias, percebe-se um embotamento afetivo e uma perda de toda participação no mundo exterior. Em relação à gênese das formações delirantes, a hipótese é que sejam uma tentativa de remendo colocado onde originariamente havia surgido uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior.

Então, na amência, o mundo exterior é completamente abolido, e, nas outras formas de psicose, o sujeito se embota afetivamente e há perda da participação do mundo. Portanto, verifica-se a gravidade da primeira forma.

Freud propõe que a etiologia para o início de uma psiconeurose, ou psicose, continue sendo o impedimento:

Freud afirma que o Super-Eu introduz uma complicação, que é a unificação em si tanto do Isso quanto do mundo exterior, tornando-se, de certa forma, um modelo ideal daquilo a que visa todo o anseio do Eu, ou seja, a reconciliação com suas diversas dependências.

Continuando seu raciocínio, o psicanalista acredita haver afecções que têm por base um conflito entre o Eu e o Super-Eu. Em relação a esse conflito específico, ele afirma ser o caso da melancolia o melhor exemplo dessas “psiconeuroses narcísicas” (FREUD, 1924/2022, p. 275), distinguindo-a, assim, das outras formas de psicoses.

Ele conclui, nesse momento, que a “neurose de transferência corresponde ao conflito entre o Eu e o Isso; a neurose narcísica, a um conflito entre o Eu e o Super-Eu; a psicose, a um conflito entre o Eu e o mundo exterior” (FREUD, 1924/2022, p. 275).

No entanto, mesmo diante da informação de que tanto a neurose, quanto a psicose, se originam do conflito entre o Eu com as várias instâncias que o controlam, a questão de como saber como o Eu consegue sair ileso desse conflito – que estão sempre presentes – é algo a ser discutido.

Ao final de seu texto, Freud coloca uma questão importante: qual seria o mecanismo análogo ao do recalcamento, pelo qual o Eu se desliga do mundo exterior, na psicose?

A foraclusão

Lacan, no primeiro tempo de seu ensino, desenvolverá a ideia da foraclusão (Verwerfung) como o mecanismo específico da psicose. A Verwerfung como um mecanismo de defesa fora utilizada por Freud em seus escritos a fim de demarcar a ação de uma barreira, de uma rejeição ou uma abolição. Mas Lacan (1956/1985, p. 174), no Seminário 3, lhe dá uma noção mais radical:

De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da paranoia. Trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo significante.

Na passagem, percebe-se a clara diferença entre Verwerfung e Verdrangung (recalque). Na Verdrangung, mecanismo clássico da neurose, há chance de o sujeito ter acesso aos conteúdos recalcados através do retorno do recalcado, como os sintomas, sonhos, lapsos. Já na Verwerfung, isso é impossível, pois há uma “exclusão de um dentro primitivo” tornando o que foi suprimido completamente inacessível.

No final desse Seminário sobre as psicoses, Lacan adotará o termo em francês forclusion, em vez de verwerfung: “Não torno a voltar à noção da Verwerfung de que parti, e para a qual, tudo bem refletido, proponho que vocês adotem definitivamente esta tradução que creio ser melhor – a foraclusão” (LACAN, 1956/1985, p. 360).  Sabe-se que o psicanalista toma de empréstimo a foraclusão do vocabulário jurídico, que se refere a um processo acabado legalmente, prescrito. Ou seja, nesse primeiro tempo de seu ensino, ele se apropria desse termo para mostrar a inexistência do Nome-do-Pai na psicose e como esse significante fica fora do simbólico.

Percebe-se que, na primeira clínica de Lacan, baseada na foraclusão, há um acento naquilo que falta ao psicótico, pois falta-lhe o Nome-do-Pai como o que lhe permitiria significantizar o gozo do seu corpo e o gozo do corpo do Outro.

Como entender a foraclusão do Nome-do-Pai? Para isso é necessário compreender a noção da metáfora paterna.

A fórmula da metáfora paterna deriva da noção de metáfora, em que um significante substitui um outro criando um efeito de significação. No caso da metáfora paterna não se trata de um significante qualquer, mas de um especial, o do Nome-do-Pai, que deve atuar sobre outro significante, o do Desejo da Mãe.

O Desejo da Mãe é sempre uma incógnita, pois ninguém sabe o que a mãe quer e um filho nunca estará à altura do que ela quer. Consequentemente, isso se torna um X, um enigma que cada sujeito tentará dar uma significação. O que acontece na psicose é que o Nome-do-Pai falta e não opera sobre o Desejo da Mãe – que poderia produzir a significação fálica. O Desejo permanece uma incógnita, deixando o sujeito sem condições de responder como falo, pois o Nome-do-Pai não está inscrito no campo do Outro, pois foi foracluído.

Por essa razão, o psicótico não consegue responder usando a significação fálica. A psicose seria, portanto, a consequência da foraclusão do Nome-do-Pai e da ausência da significação fálica, levando Lacan a afirmar que o que é foracluído no simbólico reaparece no real.

José

José é um senhor de 70 anos que trabalhou a vida toda em uma grande instituição no campo do transporte. Veio de uma família simples do interior e, com seu ofício, se destacou no seio familiar no quesito financeiro. Começou a trabalhar muito jovem e, mesmo depois de sua aposentadoria, continuou ativo no sindicato daquela empresa. A função desse sindicato é auxiliar os trabalhadores em relação a problemas jurídicos que tenham com a empresa, além de esclarecer seus direitos e deveres. José teve cargo na diretoria dessa instituição por longo período e sua chapa saía vitoriosa por mais de 20 anos nas eleições.

Pode-se dizer que o trabalho e a função no sindicato lhe deram uma sustentação fálica nesse longo tempo. Entretanto, e sem que suspeitasse, sua chapa perdeu as eleições, forçando-o a se aposentar definitivamente.

Poucos meses depois dessa derrota, José entrou em um estado alucinatório e delirante. Acreditava que seu apartamento fosse desmoronar, além de ouvir gritos de pessoas pedindo socorro no elevador. Ou seja, uma catástrofe acontecia ao seu redor. José chegou a tentar se jogar da janela de seu apartamento ao ouvir vozes alucinadas dizendo que o perigo se aproximava. Não conseguia sair da cama e permanecia com olhar estuporado.  Depois que sua família conseguiu levá-lo para tratamento, José conseguiu se estabilizar e está aparentemente sem alucinações. No entanto, encontra-se incapaz de retomar a “vivacidade” dos tempos de antes do desencadeamento.

Esse caso ilustra bem como um sujeito, ao se deparar com a ausência da significação fálica – no caso de José, ao se ver destituído do posto que lhe dava isso de forma imaginária –, responde com o desencadeamento psicótico. Ou seja, como afirmava Lacan em sua primeira clínica, o que foi foracluído no simbólico, retorna no real.


Referências
FREUD, S. Neurose e psicose. In: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 271-278. (Trabalho original publicado em 1924).
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).

 

[1] Texto apresentado em Lições Introdutórias à Psicanálise, atividade da diretoria de Ensino do IPSM-MG, em 08/08/2023.