A clínica no era do real

A clínica no era do real1

Esthela Solano-Suárez
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause freudienne/AMP

solano-suarez@orange.fr

Resumo: A prática clínica tem seu lugar na lacuna entre o dito e o dizer, no qual se privilegia o caso a caso e o particular sob transferência. Ao se orientar por uma defesa contra um real sem lei, produzido por uma desordem a partir do discurso da ciência e do discurso capitalista, o fazer clínico acontece a partir da leitura do singular de cada falasser. A psicanálise, numa clínica orientada pelo real, é capaz de transmitir algo de novo que se verifica no entusiasmo do analista praticante.

Palavras-chave: real; inconsciente; sintoma; transferência.

THE CLINIC IN THE REAL MOMENT

Abstract: Clinical practice takes place between what is said and what is being said, and every single case and what is particular to it gets privileged over under transference. Clinical practice takes place guided by a defense against a lawless real, produced by a disorder from the discourse of science and that of capitalism, and from the reading of the singular part of each parlêtre. In a clinic guided by the real, psychoanalysis is able to transmit something new that can be seen in the excitement of the practicing analyst.

Keywords: real; unconscious; symptom; transference.

A clínica psicanalítica não é uma clínica do comportamento, nem de seus transtornos. Ela não se confunde com uma visada educativa que se declina segundo os critérios em conformidade com uma “norma”. Ela não se limita a um puro formalismo prático, que quer explicar aquilo que se faz ou que não se faz (LACAN, 1955/1998, p. 326). A clínica psicanalítica não se encontra em nenhum outro lugar a não ser “no que se diz em uma análise” (LACAN, 1977, p. 7, tradução nossa). Não é, portanto, uma clínica do fazer, mas uma clínica na qual o dito se renova não por uma realidade factual, mas por sua relação com o dizer.

Freud, ao dar a palavra às histéricas, levou a sério seus ditos, revelando uma verdade que só pode se meio-dizer através das formações do inconsciente. Uma verdade variável, recalcada, inconfessável, afirmada em sua denegação, jorrando no desvio de um lapsus, de um Witz, de um tropeço, de um deslize, e testemunhando por seus efeitos a dimensão na qual se cumpre para o sujeito uma secreta satisfação do gozo. Assim, a descoberta freudiana inaugura o espaço inédito de um dizer que “se infere da lógica que toma como fonte o dito do inconsciente” (LACAN, 1972/2003, p. 453).

Na disjunção entre o dito e o dizer repousa o espaço da clínica analítica. Essa disjunção convoca a distância entre o que é da ordem do meio-dizer da verdade e do real do gozo que ex-siste ao dito.

A abordagem de Freud responde à topologia da banda de Moëbiu, em que o relato do caso e a invenção do conceito seguem um traçado que percorre uma só borda. Certamente isso comporta a exigência da formalização, mas esta se enlaça à experiência e se infere de uma leitura dos ditos do analisante. Escutemos Freud a esse respeito:

Via de regra, contudo, a controvérsia teórica é infrutífera. Tão logo o analista começa a desviar-se do material com o qual deveria contar, corre o risco de intoxicar-se com as próprias afirmações e, no final, de apoiar opiniões que qualquer observação poderia contradizer. (FREUD, 1918[1914]/1996, p. 59)

Essa observação de Freud defende que o campo da clínica psicanalítica se subordina ao mais particular do sujeito. É um convite para que a teoria analítica seja posta em questão na análise de cada caso.

Uma clínica sob transferência

Se a clínica freudiana incorpora elementos da psiquiatria clássica, principalmente a distinção dos tipos de sintomas, longe de ser uma clínica mecanicista, ela pretende compreender, a partir de um trabalho de decifração, tanto a função do sintoma quanto suas vias de formação. Ora, se se verifica que há tipos de sintomas identificáveis e diferenciados, isso não quer dizer, no entanto, que os sintomas do mesmo tipo têm o mesmo sentido. Permanecendo fiel à observação de Freud, Lacan (1973/2003, p. 554) considera que: “Os sujeitos de um tipo, portanto, não tem utilidade para os outros do mesmo tipo”. Assim, observa ele, o discurso de um sujeito obsessivo não se encontrará esclarecido a partir do que é dito por um outro obsessivo. Essa clínica do particular nos abre a via de uma formação suscetível de nos incentivar a saber ignorar o que nós sabemos (LACAN, 1955/1998, p. 355).

Ora, o dito do analisante inclui a presença do analista, que não somente o autoriza, mas constitui seu endereçamento. A experiência da palavra, assim acordada, só se desenvolve “ao preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto saber” (LACAN, 1967/2003, p. 254). A transferência como pivô da experiência analítica comporta a suposição de um sujeito do saber “supostamente presente, dos significantes que estão no inconsciente” (LACAN, 1967/2003, p. 254). Desse modo, a clínica psicanalítica é uma Clínica-Sob-Transferência (MILLER, 1984, p. 142, tradução nossa). Nessas condições, o laço estabelecido entre os dois parceiros da experiência, o analisante e o analista, responde à estrutura inédita do discurso analítico. No discurso analítico, o saber vem em posição de verdade. O analisante não terá outro saber a não ser os efeitos de verdade produzidos por seu trabalho.

O sujeito suposto saber é uma função relativa à articulação significante. Ela introduz a suposição daquilo que quer dizer o sintoma. Essa função suporta a crença no sintoma como formação linguageira suscetível de dar um sentido, um Sinn. Uma tal pressuposição de sentido está a trabalho pelo simples fato de que o sintoma é comunicado ao analista. Ela é primeira, e presta contas das condições de possibilidade da experiência: “No começo da psicanálise está a transferência. Ela ali está graças àquele que chamaremos, no despontar desta formulação: o psicanalisante” (LACAN, 1967/2003, p. 252).

Jacques-Alain Miller (2010, p. 148) demonstra a dupla articulação da transferência em ação no texto da “Proposição de 9 de outubro…”, de Lacan. De fato, se a relação analítica institui o sujeito suposto saber relativo aos efeitos de sentido próprios à articulação significante – der Sinn –, em seguida virá nesse lugar a Bedeutung enquanto “referencial ainda latente” (LACAN, 1967/2003, p. 254). J.-A. Miller argumenta que se trata aqui da função do analista enquanto objeto libidinal, isto é, enquanto objeto a, referente ainda latente quando se produzem os primeiros fenômenos de interpretação (MILLER, 2006/2007, p. 149, tradução nossa). A função da transferência articula assim a vertente semântica e a vertente libidinal. Em consequência, podemos conceber o alcance da definição da transferência dada por Lacan, que, por um lado, faz apelo ao sujeito suposto saber e, por outro, caracteriza a transferência como sendo “a atuação da realidade do inconsciente”, especificando em seguida que “a realidade do inconsciente é a realidade sexual” (LACAN, 1964/1988, p. 143).

Através de suas formações, o inconsciente interpreta a realidade sexual. Isso permite opor-se aos efeitos de sentido das formações do inconsciente – lapsus, atos falhos e sonhos – nos quais se revela “o estatuto fugidio do ser” (MILLER, 2011, s/p) na fulgurância de um efeito de verdade contingente, surpreendente e imprevisível, feito de furo que ex-siste aos ditos, presentificando o real do sexual.

Se os falasseres – os seres que não detêm seu ser senão pela palavra – testemunham uma relação com o sexo singularmente sintomática, barrada pela inibição e habitada pelo afeto da angústia, isso se inscreve como consequência daquilo que do sexual “não cessa de não se escrever” (LACAN, 1972-73/1985, p. 49), a título de relação sexual. Essa impossibilidade “é um furo do saber no real”, em consequência, “não há no dizer da existência relação sexual” (LACAN,1972-73/ 1985, p. 49).

 O real e a clínica

 A clínica psicanalítica é uma clínica que se orienta pelo real. Se o real foi definido por Lacan como sem lei e fora de sentido, o real em jogo na psicanálise não é o real da ciência. O real é um pedaço, não um universo, é um caroço, não um todo. Ele é suscetível de ser isolado como o fora-de-sentido do gozo do sintoma, uma vez que este foi despido de seu aparelho de ficções fantasmáticas, a título de “verdade mentirosa” (LACAN, 1976/2003, p. 569).

É o que os testemunhos dos AE informam a partir da construção do percurso de sua experiência de análise e da redução desta a um caroço. Por esse viés, a clínica do passe é uma transmissão daquilo que é o mais singular do sujeito enquanto resto irredutível, no sentido em que se revela ex-sistir “um pobre real que se apaga como um puro encontro com lalangue e seus efeitos de gozo sobre o corpo” (MILLER, 2014, p. 30).

Ao constatar que até hoje “nossos casos clínicos são construções lógicas de uma clínica sob transferência”, J.-A. Miller (2014, p. 31) nos propõe então, como programa de trabalho, em face da desordem no real introduzida pelas consequências do discurso da ciência e do discurso capitalista no século XXI, seguir o caminho de uma clínica psicanalítica orientada pela “defesa contra o real sem lei e fora de sentido” (MILLER, 2014, p. 31).

Um vasto programa que este número de Revue La cause du Désir[2] coloca na ordem do dia sob o tema do “entusiasmo pela clínica” (“l’engouemant pour la clinique”). Com efeito, se o termo provém de “empanturrar-se”, usado no século XVII no sentido de “sufocar ao obstruir a garganta”, sabemos que não é nesse sentido que vamos nos orientar, enchendo o sintoma de sentido. É, antes, uma questão de “privar o sintoma de sentido” (MILLER, 2011, s/p) e passar da escuta do sentido para a leitura do sem sentido, visando assim a opacidade do real. Talvez o entusiasmo tomado no sentido metafórico atribuído ao termo desde o século XVII, no sentido de “estar cheio de, estar repleto de”, seja um afeto correlato, não dos efeitos de sentido, mas aos efeitos de furo no qual o real ex-siste.

Se o real não cessa de não se escrever, ele não se encontra na exatidão da rotina, nem do padrão. É o caminho da contingência e da invenção que ele convoca. Em cada caso, se desenrola uma reinvenção da psicanálise suscetível de nos transmitir algo de novo, do entusiasmo pela clínica.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Rodrigo Almeida

Referências
FREUD, S. História de uma neurose infantil. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1917).
LACAN, J. Ouverture de la Section Clínique. Ornicar?, n. 9, 1977.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Variantes do tratamento-padrão. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 323-364. (Trabalho original publicado em 1955).
LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 248-264. (Trabalho original publicado em 1967).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1972).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 553-556. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.567-569. (Trabalho original publicado em 1976).
MILLER, J.-A. CST – Clinique Sous Transfert. Ornicar?, n. 29, 1984.
MILLER, J.-A. Lo real del inconciente. In:  Conferencias Porteñas: desde Lacan. Buenos Aires: Paidos, 2010.
MILLER, J.-A. Ler um sintoma. AMP Blog, ago. 2011. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html. Acesso em: 01 ago. 2023.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
SOLANO-SUÁREZ, E. La clinique à l’heure du réel. La Cause du Désir, n. 82, p. 21-24. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2012-3-page-21.htm. Acesso em: 28 out. 2023.

[1] Texto originalmente publicado em 2012 na revista La Cause Du Désir.
[2] Cf. Nota 1.




O ato de leitura em psicanálise

O ato de leitura em psicanálise1

Ram Mandil
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

mandil.bhe@terra.com.br

Resumo: O autor parte da constatação de que vivemos na era da gestão como modelo da ação, como cálculo de proveitos e codificação das escolhas, em nome do bem-estar individual ou coletivo. Nesse sentido, ele destaca a importância de colocar o ato analítico em perspectiva, em um tempo no qual se busca tamponar os encontros, cada vez mais frequentes, com a inconsistência do Outro. E esclarece que é a partir do discurso analítico que podemos orientar o debate sobre a ordem simbólica no século XXI em uma nova dimensão, levando em conta o contraste entre o simbólico como cadeia significante e o simbólico definido em relação ao furo, ao trauma, ao que não cessa de não se escrever.

Palavras-chave: ato analítico; ordem simbólica; cadeia signficante; furo.

THE ACT OF READING IN PSYCHOANALYSIS

Abstract: The author starts from the observation that we live in the era of management as a model of action, as a calculation of profits and codification of choices, in the name of individual or collective well-being. In this sense, he highlights the importance of putting the analytical act into perspective, at a time when we seek to buffer the increasingly frequent encounters with the inconsistency of the Other. And it clarifies that it is from the analytical discourse that we can guide the debate on the symbolic order in the 21st century in a new dimension, taking into account the contrast between the symbolic as a signifying chain and the symbolic defined in relation to the hole, the trauma, the that never ceases to be written.

Keywords: analytical act; symbolic order; signifying chain; hole.

 O que pode ser o ato analítico na época dos protocolos e das diretrizes terapêuticas, em que a ação ideal consiste em reduzir, ao mínimo, toda possibilidade de imprevisto? Como observa Éric Laurent, trata-se de um ”ideal de ação calculada”, na medida em que um ato é concebido como assimilável ao raciocínio, como a conclusão lógica das suas premissas.[2] Ele nos lembra que vivemos a era da gestão como modelo da ação, como cálculo de proveitos e codificação das escolhas, em nome do bem-estar individual ou coletivo. Nesse sentido, é importante colocar o ato analítico em perspectiva, numa época em que se busca tamponar os encontros, cada vez mais frequentes, com a inconsistência do Outro. Assim, podemos dizer que há uma foraclusão do ato em muitos domínios de nossa cultura que envolvem a tomada de decisões, quando se manifesta uma descontinuidade entre o ato e suas premissas.

 O ato analítico e o ato de leitura do sintoma

No que diz respeito ao ato de leitura em psicanálise, na perspectiva do ato analítico, vamos nos referir a uma passagem do caso Dora, mais precisamente à maneira como Freud trata um de seus numerosos sintomas: sua tosse persistente, sua tussis nervosa.

De início, Freud observa que sua tussis, frequentemente acompanhada de um sintoma de afonia, estava diretamente associada à presença ou ausência do homem para qual ela dirigia seu amor naquele momento. Ele ressalta que os episódios de tosse coincidiam com os deslocamentos que o Sr. K. devia fazer. No entanto, ele sugere que ela precisava encontrar um meio para dissimular a coincidência entre seus acessos de tosse e a ausência do homem que ela amava em segredo. De toda maneira, segundo Freud (1905[1901]/1972, p. 37), é preciso ler na periodicidade das crises de tosse “um traço de seu significado original”. Logo em seguida, Freud abre uma discussão sobre a causa dos sintomas histéricos. Devemos considerá-los como sintomas “somáticos” ou como sintomas “psíquicos”? Mesmo sob a perspectiva do somático, Freud indaga-se em que medida eles são influenciados pelo “pensamento”.  Pode-se colocar isso em perspectiva com as recentes elaborações de Jacques-Alain Miller (2011, p. 56-57), especialmente em relação à diferença que ele estabelece entre um “fenômeno de corpo” e um “acontecimento de corpo”. Deve-se tomar um acontecimento de corpo como um efeito do impacto do significante, o que implica um desarranjo ou um desvio do que se imaginaria ser “o gozo natural do corpo vivo”. Dito de outro modo, deve-se considerar um acontecimento de corpo, no sentido do sintoma, como um efeito da ação do significante, “que opera fora do sentido”. É desta ação do significante que se produz uma metáfora, ponto de partida para a metonímia do gozo, na qual se veicula a dialética da significação.

Nesse sentido, vale a pena trazer aqui extrato do texto de Freud (1905[1901]/1972, p. 44):

Tanto quanto posso ver, todo sintoma histérico […] não pode se produzir sem uma certa complacência somática que se manifesta por um processo normal ou patológico num ou sobre um órgão do corpo. Esse processo só se produz uma vez – e a capacidade de repetir-se é uma das características de um sintoma histérico – a menos que tenha uma importância, um significado psíquico. O sintoma histérico não tem esse significado, em si, mas tem o significado que se lhe empresta, soldado a ele, por assim dizer; e em todos os casos o significado pode ser diferente, segundo a natureza dos pensamentos recalcados que estejam lutando por expressão.

Examinemos uma das interpretações que Freud faz da tosse de Dora. Pode-se dizer que ele toma, de início, esse sintoma do lado da metonímia: como suas queixas contra seu pai persistiam ao mesmo tempo que seus acessos de tosse, Freud (1905[1901]/1972, p. 44) escreve que foi “levado a pensar que esse sintoma podia ter uma significação em relação ao seu pai”. Por outro lado, Freud (1905[1901]/1972, p. 44) vai atrair nossa atenção para o aspecto metafórico do sintoma, sua relação com o gozo sexual, o sintoma como substituto de um prazer sexual: “o sintoma significa a representação – a realização – de uma fantasia de conteúdo sexual”.

Lembremos, aqui, a vinheta bem conhecida na qual Freud encontra outra ocasião para interpretar a tosse de Dora. Ele sublinha a insistência de Dora ao dizer que a Sra. K. não estava apaixonada por seu pai, mas que apenas estava com ele porque ele era “ein vermögender Mann” (um homem de posses, rico). Aqui é importante seguir, de perto, o texto de Freud (1905[1901]/1972, p. 45):

Certos pormenores da maneira como ela se expressou – particularidades que omito aqui, como a maioria das outras partes puramente técnicas do trabalho da análise – levaram-me a perceber atrás desta frase o seu sentido oposto oculto, ou seja, que seu pai era um homem sem recursos. [O que em alemão – “ein unvermögender Mann” – significa também um homem impotente, no sentido sexual do termo.]

O que parece importante não é a emergência de uma significação escondida, mas a revelação de uma contradição com um valor de significante da falta no Outro. Freud apresenta a contradição a Dora: como ela pode insistir, ao mesmo tempo, numa ligação sexual entre seu pai e a Sra. K. e a impotência de seu pai? Pode-se ver aqui que a falta no Outro aponta para um impasse na relação sexual. É notável como, naquele momento, o fantasma de Dora vem justamente tapar esse furo, ao dizer a Freud que existem muitos outros meios de obter prazer sexual. Nesse momento ela confessa pensar no sexo oral.

Duas dimensões do sintoma se fazem aí presentes: a que é apreendida pelo sentido e a que permanece opaca a toda significação. Pode-se dizer que o gozo apreendido pelo sentido é o que está enquadrado no fantasma. No caso de Dora, Freud (1905[1901]/1972, p. 45) faz esta observação:

A conclusão era inevitável no sentido de que, com sua tosse espasmódica que, como de hábito, se reportava por seu estímulo excitante a uma cócega na garganta, ela pintava para si mesma uma cena de satisfação sexual per os entre as duas pessoas cujo caso amoroso ocupava tão incessantemente sua mente.

Ainda que Freud reconheça no desaparecimento do sintoma, logo após essa interpretação, uma confirmação de sua tese segundo a qual o sintoma desaparece uma vez sua significação revelada, ele também deixa margem para um aspecto do sintoma que permanece fora do alcance do sentido. Para Freud, um sintoma não pode ser completamente elucidado pelo sujeito, e é justo aí que reside sua eficácia como sintoma. Aliás, como esse sintoma da tosse de Dora sempre se mostrou intermitente, Freud encontra aí uma possível explicação de seu desaparecimento. Mas, de fato, ele não parece duvidar que sua dissolução decorre desta interpretação.

Vamos nos referir agora à relação que Freud estabelece entre o sintoma de tosse de Dora e o seu corpo. Além de ser uma forma de identificação com seu pai, pelos espasmos e pelos mucos – dois elementos de conotação sexual –, pode-se reconhecer nessa tosse, tal como Freud a analisa, aquilo que J.-A. Miller identifica como sendo os dois níveis de gozo: o gozo do corpo vivo, na sua dimensão autoerótica, e o gozo marcado pelo significante. Freud (1905[1901]/1972, p. 80) dá uma boa imagem da relação entre os dois: primeiramente, ele descreve a dimensão autoerótica do sintoma de Dora como a presença, em sua garganta, “de uma irritação real e orgânica”, que funcionava, diz ele, como “o grão de areia ao redor do qual a ostra forma sua pérola”. Depois, ele precisa: “Esta irritação era suscetível de fixação, pois dizia respeito a uma parte do corpo que, em Dora, conservara acentuadamente sua importância como zona erógena” (FREUD, 1905[1901]/1972, p. 80). Essa irritação convinha para a expressão de todos seus diferentes estados de excitação libidinal. Em torno do grão de areia contingencial observa-se a formação de um gozo que conflui com o sentido, de um gozo situado na relação com o Outro, seja a tosse de Dora entendida como signo da identificação com seu pai, seja como representação de sua relação com o Sr. K., ou, bem, a tosse como representação-realização de uma relação sexual fantasmática através de sua identificação com a Sra. K.

Podemos concluir que a leitura do sintoma de Dora pode ser feita em duas dimensões: ou se lê nele a expressão de uma polifonia de sentido, ou orienta-se a leitura para separá-lo de todas suas significações. Nessa perspectiva, pode-se dizer, valendo-me aqui da metáfora freudiana, que a leitura de um sintoma consiste no esforço para ler o grão de areia no interior da pérola, o grão de areia em torno do qual a pérola se formou.

A metáfora do grão de areia não deixa de evocar aqui uma outra metáfora, a que Lacan criou sobre a letra como “litoral”. Um litoral enquanto diferente de uma fronteira, na medida em que ele articula dois lados heterogêneos, como a terra e o mar. Dito de outro modo, a letra tanto como elemento simbólico, quanto um receptáculo do gozo, aspecto que se torna mais evidente quando ela não está comprometida com o sentido.

 Ler um sintoma, ler o inconsciente

Interroguemos, agora, a relação entre “ler um sintoma” e “ler o inconsciente”. Em “Ler um sintoma”, J.-A. Miller insiste sobre a diferença entre os dois: o sintoma, em sua relação com o real, se apresenta como fixação, como o que está sempre no mesmo lugar, enquanto se percebe o inconsciente a partir de fenômenos fugazes, como os sonhos, o lapso, os atos falhos, etc.[3]

Lembremos aqui algumas das ideias de Jacques Lacan sobre a leitura no discurso psicanalítico, especialmente a última passagem da lição do Seminário 20, Mais, ainda: “A função do escrito”. Sabemos que, nessa passagem do Seminário, ele tem a escrita de James Joyce em mente. Lacan compara o ato de leitura em psicanálise ao esforço que devemos fazer para ler Finnegans Wake. Só podemos ler uma formação do inconsciente ou um lapso, do mesmo modo como é exigida a leitura de Finnegans Wake, como um número infinito de leituras possíveis. Não se pode lê-los, senão como mau-lidos ou de maneira oblíqua.

“O de que se trata no discurso analítico é sempre isto – ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa”, dirá Lacan (1972-73/1985, p. 52). De certa maneira, é o que se pode inferir do ato de leitura que Freud fez do sintoma de tosse de Dora. O que se diz, como significante, podia ter uma multiplicidade de sentidos. Logo, isso não tem uma significação particular, o que indica, de certo modo, a presença do lugar vazio da significação.

No entanto, na mesma lição, Lacan introduz uma nova dimensão ao ato de ler o inconsciente: a dimensão do ler-se. Ele produz uma alegoria da observação das abelhas e dos pássaros: por exemplo, se vemos um grupo de pássaros voar baixo, dizemos que uma tempestade se aproxima. Em certa medida, pode-se comparar esta leitura com a leitura do inconsciente, pela vertente do sentido. Mas o que Lacan quer saber é se se pode considerar que os pássaros fazem também esta leitura de sua maneira especial de voar, como estando em relação com a tempestade. Segundo ele, esta é a verdadeira questão da leitura do inconsciente. Como já observou J.-A. Miller, a questão é saber se nós podemos considerar o próprio inconsciente como um leitor, como um intérprete. Donde a questão de como ler o inconsciente, visto ser ele um leitor de si mesmo.

Lacan nos faz observar que, no discurso analítico, supomos que o sujeito do inconsciente é um sujeito que sabe ler. Pode-se supor não apenas que ele sabe ler, mas que ele pode também aprender a ler. No entanto, essa lição conclui de forma enigmática, quando ele afirma que aquilo que o sujeito do inconsciente pode aprender a ler não tem nada a ver “com o que vocês possam escrever a respeito” (LACAN, 1972-73/1985, p. 52). Uma das interpretações possíveis desta frase é que aquilo que o inconsciente pode verdadeiramente aprender a ler, ao longo de uma experiência analítica, é alguma coisa que não pode se escrever. O que não pode se escrever, e sabemos disso através do próprio Lacan é, de fato, a relação (rapport) sexual entre os falasseres (parlêtres).

 O escrito para não se ler

Uma semana antes desta lição sobre a função da escrita no discurso analítico, Lacan havia redigido um Posfácio ao livro 11 do seu Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Nesse Posfácio, há nova referência a James Joyce, como aquele que introduziu a dimensão da escrita como não sendo destinada à leitura: “um escrito como para não se ler” (LACAN, 1964/1985, p. 263).

Há aqui um contraponto que deve ser levado em consideração. No fim da lição sobre a função do escrito do Seminário 20, Lacan indica uma leitura disso que não pode ser escrito. No entanto, devemos levar em conta que o que não pode ser escrito – a relação sexual como impossível – deixa uma marca, um traço que abre para a dimensão da letra. Lacan o havia assinalado quando introduziu o matema S(Ⱥ), o significante da falta no Outro. Nós podemos inferir que este significante pode ser considerado como uma letra, uma letra a ser lida como “um grão de areia”, e não como um significante a espera de uma significação.

Gostaria de me referir aqui a uma passagem de Um retrato do artista quando jovem, de James Joyce, na qual se percebe como a letra vem em primeiro plano a cada vez que o sujeito se vê confrontado com a inconsistência do Outro.

Numa passagem dessa obra encontra-se o seguinte diálogo entre o jovem Stephen Dedalus – “James Joyce tentando decifrar seus enigmas”, segundo Lacan – e Wells, seu colega de classe:

Depois que ele saiu, Wells veio até Stephen e lhe disse:

“Diga-nos uma coisa, Dedalus, você beija sua mãe antes de ir deitar?”

Stephen respondeu:

“Beijo, sim.”

Wells virou-se para os demais camaradas e disse:

“Escutem uma coisa, este camarada aqui está dizendo que beija a mãe dele todas as noites antes de ir deitar.”

Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela direção, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:

“Não beijo nada.”

Wells disse:

“Escutem vocês, este camarada aqui está dizendo que não beija a mãe dele antes de ir deitar.”

Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu todo seu corpo quente e confuso, de súbito. Qual era a resposta certa para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. […] Fora Wells que o empurrara para dentro da valeta na véspera […] Agir assim era uma coisa má; todos os camaradas tinham dito. E como a água estava fria e escorregadia! […]

O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro; […] Tentava ainda pensar qual seria a resposta certa. Era direito beijar sua mãe, ou não era direito beijar sua mãe? Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umideciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! por que as pessoas faziam isso assim com seus rostos? (JOYCE, 1998, p. 17-18)

Nessa passagem, gostaria de chamar a atenção para o fato de Stephen estar aqui confrontado com a inconsistência do Outro, ou melhor, com o enigma da falta no Outro. Qual é a resposta certa? O que o Outro quer de mim? É interessante notar que esse fragmento é seguido de certos acontecimentos de corpo: ele sente seu corpo quente e confuso. Depois ele se lembra do momento em que foi jogado no fosso, o corpo todo coberto com um lodo frio. Mas o que chama a atenção é que Stephen passa da interrogação sobre a resposta certa para um questionamento sobre a própria palavra beijar – kiss. Ele não se interessa tanto pelo sentido da palavra kiss, mas principalmente por uma suposta relação entre essa palavra e o corpo, entre essa palavra e o gesto que lhe corresponde. O parágrafo termina com Stephen associando as letras dessa palavra com a materialidade do som. Kiss, ao final, é a escrita do som que vem da boca. É também o meio que ele encontra para cifrar, condensar o gozo no qual fora jogado através do enigma insolúvel produzido pelo colega. Pode ser que esta passagem nos ajude a compreender o que é o ato de ler um sintoma, se o tomamos como “o encontro material entre um significante e o corpo, o próprio choque da linguagem sobre o corpo” (MILLER, 2011. p. 58).

Dois pontos podem enriquecer o debate sobre o ato de leitura em psicanálise. De um lado, acompanhando as elaborações de J.-A. Miller sobre o estatuto do inconsciente, é bastante útil a distinção que ele faz entre “o inconsciente real” e “o inconsciente transferencial”. Essa distinção dá um duplo estatuto ao inconsciente, ou mais, ela permite conceber o inconsciente como um Janus. Nesse sentido, poder-se-ia tomar o inconsciente real como um enxame de S1 (essaim) ou como letras que funcionariam como receptáculos para o gozo fora do sentido. Nosso interesse pela leitura do inconsciente deveria ser contrabalançada pelo que vem da leitura do sintoma. Se existe uma parte do sintoma que responde à leitura do inconsciente, o que está em questão é a possibilidade de ler, no sintoma, o que resta e o que se repete, produzindo um gozo fora do sentido para o sujeito.

O segundo ponto está implicado na oposição entre o sujeito considerado como “falta-a-ser” e o sujeito considerado como um furo. Segundo J.-A. Miller (2012, s/p), dever-se-ia pensar “a relação ou a filiação, e, portanto, a diferença entre a falta-a-ser e o furo. Com esse furo Lacan queria, em seu último ensino, definir o próprio simbólico, defini-lo como furo”.

A partir do discurso analítico, podemos orientar o debate sobre a ordem simbólica no século XXI para uma nova dimensão, levando em conta o contraste entre o simbólico como cadeia significante e o simbólico definido em relação ao furo, ao trauma, ao que não cessa de não se escrever.

 


Referências
FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1972, p. 15-116. (Trabalho original publicado em 1905[1901]).
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trabalho estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
MILLER, J.-A. Lire un symptôme. Mental, n. 26, jun. 2011.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne: L’Être et l’Un. Lição de 11 de maio de 2012. (Inédito).

[1] Uma primeira versão deste texto foi apresentada em The Lacanian Compass, 2011-2012, e publicada em La Cause du désir, n. 82, , p. 95-102, 2012-2013.
[2] Para esta reflexões, remeto ao artigo de Éric Laurent  “La ilusion del cientificismo, la angustia de los sábios”, publicado em 21 de agosto de 2011 em Pipol News n. 51. Disponível em: http://www.europsychoanalysis.eu/site/page/es/22/es/pipol_news_51_-_08072011#article-box-140
[3] Sobre esta distinção, remetemos ao artigo de Miller (2011), “Lire un symptôme”.



Uma experiência de sorte

Uma experiência de sorte1

Sérgio de Mattos
Psicanalista, A. E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

E-mail: sergioecmattos@hotmail.com

Resumo: O autor traça a diferença entre o começo de uma análise e a entrada em análise visando, nas entrevistas preliminares, o laço entre analista e analisando. A transferência, portanto, é o que leva o sujeito a amar seu inconsciente e, consequentemente, desejar decifrá-lo. Para que um sujeito possa dar continuidade em uma análise é preciso que o analista provoque, logo de início, que é possível experimentar uma mudança para melhor, que é possível mudar sua sorte, seu destino!

Palavras-chave: análise; entrevistas preliminares; entrada; porta; sorte.

A LUCKY EXPERIENCE

Abstract: The author traces the difference between the start of an analysis and the entry into analysis by looking at the bond between analyst and analysand in the preliminary interviews. The transference, therefore, is what leads the subject to love their unconscious and, consequently, to want to decipher it. In order for a subject to be able to continue with an analysis, the analyst needs to show them, right from the start, that it is possible to experience a change for the better, that it is possible to change their fate, their destiny!

Keywords: analysis; preliminary interviews; entry; door; luck

Estou honrado pelo convite de ser o responsável por esta atividade que é a aula inaugural do IPSM-MG. Agradeço em especial à Lilany e à Diretoria pelo convite.

Esta atividade inaugura o começo dos nossos trabalhos do segundo semestre deste ano. Inaugurar e começar são praticamente sinônimos. Entretanto, a palavra “começar” nos remete a uma continuidade, por isso falamos de começar a analisar-se, e não em inaugurar uma análise. Inauguro, assim, o começo das atividades do Instituto com o assunto que ocupará nossa atenção no X ENAPOL, cujo título é “Começar a analisar-se”. Esse título foi escolhido com cuidado pela sua importância clínica. O começo de uma análise planta as sementes do que poderão vir a ser seus frutos. Nesse percurso também haverá ventos, tempestades, muitas podas, sol, as contingências estarão presentes e nada garante a floração e os frutos. Mas, mesmo sem garantias, um bom começo criará as chances de termos um bom resultado. Esse começo é como uma vela que abrimos para o vento levar nossa embarcação. Se a vela estiver fechada, mesmo que o vento sopre não iremos adiante e nem teremos os meios de dirigir nossa embarcação. Desenho então diante de vocês uma paisagem – duas, a do cultivo e a do barco.

Ambas dependem de um procedimento específico, plantar a semente e abrir as velas e atravessam um limiar, algo que não havia passa a acontecer e a fazer uma diferença: uma começa com um movimento, outra com o rebento da semente. A ideia de ultrapassar um limiar é crucial quando tentamos formular o que é começar a analisar-se. É importante, portanto, diferenciar o começo de uma análise, no sentido mais geral, do termo preciso formulado por Lacan, chamado de entrada em análise. Contudo, devemos nos orientar desde o início no sentido de que o começo, em geral, se dá no interior, ou na perspectiva dessa entrada.

Podemos, assim, para explicitar essa diferença, fazer coincidir o começo dos primeiros encontros com o analista, com o que é chamado de entrevistas preliminares, preliminares à entrada propriamente dita. Elas são “pré”, anteriores a esse limiar que constitui uma entrada na experiencia do inconsciente. É bonito ver essa experiência começar a acontecer, experiência que é muitas vezes para o analisante um pouco assustadora: o que assusta é a percepção de não ser dono de si mesmo. De que ele, seus atos e interpretações do mundo são determinados por forças que ele desconhece e que o dominam sem saber.

É interessante pensar para nosso propósito aqui hoje sobre a palavra entre-vista. Freud chamava esse tempo de “ensaio prévio, tratamento de ensaio”, que visava, além de um possível diagnóstico, justamente ligar o paciente ao seu tratamento. Gosto especialmente da palavra escolhida por Lacan: entrevistas. As propriedades do significante, de produzir várias significações, nos dão com esse termo um alvo preciso, porque entrevista é uma palavra que começa com “entre”, como quando se diz: “entre pela porta!”. Ou: “fique entre isso e aquilo”.

Essa palavra, escolhida para designar esse tempo de começo, tem na língua falada por Lacan, o francês, uma ênfase especial, que é o sentido de manter, sustentar, dar continuidade. Trata-se de sustentar, “entre”. Sustentar mutualmente, “entre-tenir”. Mas a palavra recobre também a ideia da instauração de uma ligação, de um lugar de trocas de palavras e linguagens – um espaço potencial de reunião. Nesse caso, uma entrevista visa, através do laço entre analista e analisando – o qual chamamos de transferência –, incidir na instauração de ligações na estrutura subjetiva do analisando. Ao se endereçar a um destinatário, ao analista, o sujeito pode, nas entrevistas, fazer coexistir em si, ligar, conectar, pôr em cadeia, diversas experiencias esparsas, clivadas, apagadas, desvalorizadas que, pelo endereçamento, pelo poder de evocação das palavras, ressonâncias, padrões, encontra, no endereçamento ao destinatário, um terreno favorável para uma certa “reunião”. Engajados em uma entrevista, existe então a oportunidade de ligar diversas partes de uma vida, de uma história, construindo uma experiencia única, que ganha forma nesse encontro. Em nosso caso, trata-se de, nesse encontro, que se sustente algo que possa fazer justamente acontecer uma análise.

Cabe ao analista ajudar a encontrar, e mesmo a provocar, essa entrada na experiência do inconsciente, dar um empurrãozinho, por meio da sua atenção a significantes importantes que possibilitem essas associações e, claro, por meio de suas interpretações.

Lacan e o limiar

 Quando perguntaram a Lacan, na Universidade de Yale, sobre como acolhia seus pacientes de acordo com sua teoria e prática, ele respondeu: é uma questão de os fazer entrar pela porta. Da análise ser um limiar, de haver uma verdadeira procura deles. Procura do que é que eles se querem ver livres. De um sintoma.

Podemos deduzir daí que há um lugar na fala do paciente ao qual devemos dar máxima atenção. É preciso colocar nossa atenção ao que levou o sujeito a procurar uma análise, cernir esse ponto de sofrimento, de embaraço, o que não anda bem. Não é sem consequências buscarmos saber também o que aconteceu em um determinado momento que levou à decisão para essa procura. Certamente ali haverá elementos que, naquela circunstância específica, evocaram traumas, repetições e algo insuportável que desencadeou o desejo de tratar.

O que leva a buscar uma análise, hoje, é em parte o mesmo de antes: um embaraço, um sofrimento, alguma coisa que nunca vai bem repetidamente, a “pedra no caminho”, como disse o poeta Drummond. Mas, hoje, o que faz sofrer aparece às vezes logo de entrada como um excesso, uma adicção, uma questão sobre uma inadequação do corpo biológico e a identificação ou não com ele. No fundo, também podemos colocar essas questões dentro do problema dos excessos. A sexualidade humana é sempre excessiva em relação à possibilidade de representar seus modos de satisfação.

Lacan e a porta

De volta ao “entre”: para Lacan, no Seminário 2, O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica, a porta é o símbolo por excelência, aquele pelo qual sempre se reconhecerá a passagem de um homem em algum lugar… ao fazer com que se entrecruzem o acesso e a cerca. Lacan (1954-55/1985, p. 377) chama a atenção para a relação entre o acesso e a cerca: uma porta “deve estar aberta [acesso] e depois fechada [cerca], e depois aberta, e depois fechada”.

Um tempo depois, no Seminário 6, Lacan (1958-59/2016, p. 460) retoma sua referência à metáfora da porta, mas introduz, entre o acesso e a cerca, um novo elemento: um lugar entre portas. Tomando como exemplo o caso Richard, tratado por Melaine Klein, ele mostra como esse abre e fecha da porta tem as mesmas características da nossa relação com a cadeia significante e, desse modo, como o comportamento da criança está imerso nessa estrutura desde os primeiros momentos com a analista. Richard responde às intervenções de Klein de modo exemplar: ele vai se pôr entre as duas portas, a porta interna dos consultórios e a porta externa, num espaço escuro. Espanta a Lacan que Klein, que viu tão bem o limite entre o mundo interno, as “trevas interiores”, e o externo, não tenha enxergado o alcance dessa zona intermediária. Zona que não é nem interior, nem exterior, e que se encontra em certas estruturas da aldeia primitiva como zonas baldias, entre a aldeia propriamente dita e a natureza virgem. Zona do no man’s land, onde, nesse caso, o desejo do pequeno sujeito entra em pane tentando pôr-se ao abrigo do desejo do Outro. Podemos ver nessa zona uma antecipação do que vai ser formulado no Seminário 16 como “o lugar do mais ninguém” (LACAN, 1968-69/2008).

O que podem nos ensinar essas passagens sobre o começo de uma análise senão que desde os primeiros encontros é preciso entrar nos jogos dos significantes, ligá-los, torná-los amigos um do outro, para que possam conversar, mas também jogar com essa zona intermediária, essa terra de ninguém? Não será essa a verdadeira terra de uma análise? Esse lugar vazio, fora dos lugares conhecidos, mas que é o suporte de todos os lugares possíveis? É entre os significantes e o buraco, ligados aos embaraços aos sofrimentos do sujeito, que podemos levá-lo a se interessar, a amar seu inconsciente, desejar decifrá-lo, que é o que chamamos de S.s.S?[2]

Esse “entre” é, portanto, muito importante. Se fecharmos demais a porta da cadeia significante, fechando os sentidos, uma análise terá pouca chance de acontecer, podendo inclusive facilmente se transformar em uma psicoterapia. Por outro lado, aberto demais, não haverá chance de que haja um laço entre analisando e analista, inviabilizando a análise.

Psicanálise ou psicoterapia

Nessa altura, cabe notar que toda psicoterapia oferece, de uma maneira ou de outra, um saber pronto, um sentido. No final das contas, o que ela oferta é uma visão do que é um sujeito ou do que é a saúde mental. Em outras palavras, trata-se da oferta de um ideal! Procura-se o desvio da realidade imaginada e, em seguida, a adequação a ela segundo uma visão de mundo. Toda psicoterapia é uma defesa standard contra o real. No começo de uma análise, é muito importante estar atento para que não haja um desvio para a psicoterapia. Respostas terapêuticas precoces certamente fecharão a porta para analisar-se. Na psicanálise, entra-se pela porta do não saber, que de certo modo se reabre a cada sessão. Mas a cada sessão vai-se também construindo um saber singular sobre o sofrimento daquela pessoa, vão se fechando algumas portas que delimitam os problemas, os programas de gozo do ser falante. Abre-se a porta, fecha-se a porta, abre, fecha.

Entramos aqui em um ponto importante do nosso título: “Começar a analisar-se”. O que pode querer dizer nesse título o “se”, do começo? Trata-se de um “si mesmo”? O que se formula nesse “se analisar”?

É preciso aí não perder o fio da meada concernente ao que somos como efeito de saber. E, como efeito de saber, somos cindidos. No fantasma $<> a, é como se fossemos causa de nós mesmos, como se houvesse um si mesmo que dirige o barco da fantasia. Mas, na verdade, isso seria mais próximo da Nau dos Loucos. Nessa perspectiva, já no começo da experiência trata-se (se estivermos diante de uma neurose, é claro) de interrogarmos esse delírio de identidade, essa crença de ser si mesmo. Porque não existe um si mesmo, o que há é um ser dividido, já que um significante não pode repre­sentar a si mesmo. Quando Lacan diz que é preciso definir o significante como aquilo que representa um sujeito para outro significante, isso significa que nin­guém saberá nada dele, exceto o outro significante. E o outro signifi­cante não tem cabeça, é um significante.

Como é que alguma coisa desse sujeito, que é produzido por um significante para se apagar prontamente em outro, pode se constituir e, no fim, fazer-se tomar por um si mesmo, por uma consciência de si, por algo que se satisfaz por ser idêntico a si mesmo? É justamente isso que se trata de examinar logo, porque é justamente aí que há um “entre”, entre os significantes. O sujeito, seja qual for a forma em que se produza em sua presen­ça, não pode reunir-se em seu representante de significante sem que se produza, na identidade, uma perda, propriamente chamada de objeto a.

Quero chamar a atenção de vocês para isso que encontrei no Seminário 16, De um Outro ao outro. Encontrei Lacan deslocar a ênfase dada aos significantes (significante qualquer, significante da transferência…) em 67, na ”Proposição de 9 de outubro”, para o que ele chamou na ocasião de agalma, esse elemento libidinal em jogo na máquina significante e que é, digamos assim, a energia para fazer o algoritmo funcionar. A importância de passagem é deslocar esse elemento libidinal já para o começo dos tratamentos. Na “Proposição”, podemos dizer que nos encontramos com o agalma no final, a partir de Um Outro ao outro, ele está na partida. Ele é, nos diz Lacan, um dos limites em torno dos quais se articula o vínculo da manutenção da referência ao sujeito su­posto saber, como o chamamos na transferência, com esse índice da necessidade repetitiva que decorre daí, que é, logicamente, o objeto pequeno a.

Nesse sentido, qualquer análise começa interrogando esse delírio do eu, delírio de ser idêntico a si mesmo, para conduzir por um caminho no qual o sujeito é um objeto, um resto que se repete incessante entre os significantes, resto de toda tentativa de representação. Salto desesperado em algo de ordem libidinal e que, mesmo ao preço de se apagar, agarra em algo que tem uma fixidez de gozo. Essa dimensão de gozo, localizada em pedaços que chamamos de objeto a, são muito relevantes no momento que vivemos, quando o que encontramos não são sujeitos cheios de palavras e busca de sentido, mas, ao contrário, atolados no gozo e no consumo de todo tipo de objetos ofertados pelo mercado. Jacques Lacan chama o objeto a de “objeto intragável”. Não haveria aí uma boa indicação clínica para esses casos, que parecem estar com o objeto entupindo suas gargantas, impedindo-os de falar? Não seria esse um dos efeitos das condições discursivas regidas hoje pela ciência, enquanto serve ao mercado e a dominância do consumo, que esse objeto esteja, como nunca, atolando o sujeito?

Nessa perspectiva, uma análise segundo Miller começa com um interesse e paixão por objetos brilhantes, que logo se tornam invisíveis, desvanecendo-se, apagando esse fulgor, tornando-se algo duro, como um osso e com o qual nada a mais a fazer – a não ser separar-se dele, digo eu. Tal condensação libidinal cada vez mais compacta é o objeto da construção do fantasma. Se o objeto está desde o princípio, em potência pelo menos, se ele é causa da divisão subjetiva e da pergunta ao Outro sobre o que sou para ele como objeto de valor e de desejo, essa é a verdadeira natureza do laço. A fundamental natureza do laço com o Outro é a do laço entre o sujeito dividido e o objeto a, ou seja, a articulação mesma que constitui o fantasma fundamental de cada um. E então é com isso que dirigimos uma cura.

Do saber ao gozo

Não vou retomar aqui em detalhes a primeira sessão de minha primeira análise (a primeira daquelas duas que me levaram ao final). Já falei bastante sobre isso em meu testemunho (que deve sair publicado na próxima edição da revista Opção Lacaniana). Lembro apenas que, em poucos minutos do encontro com o analista, fui do completo desespero de receber uma “porta na cara” – quando, ao responder sua pergunta sobre o que eu havia produzido de saber em uma análise anterior lhe digo que sabia qual era o desejo de minha mãe, ele vocifera: “se você sabe qual o desejo de sua mãe, uma análise não pode fazer nada por você” – para o oposto: uma porta aberta. O analista, com um pequeno sorriso, me levou até a porta do seu consultório e, com uma mão em meu ombro, marcou a próxima consulta. Lembro ainda que, na noite que precedeu essa sessão, sonhei com a morte de minha mãe, em um cenário de representações que me levou a recordar uma cena traumática infantil, nunca lembrada. Tratava-se de uma cena traumática em que, diante de um episódio de ameaça de autoextermínio de minha mãe, me vejo diante de uma porta fechada, perco os sentidos e apago. É possível ver aí como nesse primeiro encontro com o analista se abriu a dimensão de um gozo mortífero que havia ocupado toda a minha existência. Perturbou fortemente a minha defesa constituída por um saber (“sei tapar o buraco da mãe, digamos assim, vamos entupir logo aquela garganta e a minha também” – fiz, aliás, uma anorexia infantil) e, com essa intervenção, fez cintilar o que eu só pude verificar muitos anos depois, de modo condensado e como “diretor” de minha existência: a presença do objeto nada, como objeto prevalente no meu fantasma, ou seja, do padrão constante de meu laço com o Outro.

 Do tempo e da sorte de analisar-se

Quero terminar com um último assunto. É, digamos assim, uma consideração especial à dimensão inventiva e criadora, a qual, como psicanalistas, estamos convidados a responder mesmo no começo de cada experiência que conduzimos. Como acabou meu tempo, vou trazer as coordenadas principais do assunto.

Uma análise começa com um encontro e continua com encontros até seu final. Lacan gostava de usar a expressão francesa “au petit bonheur, la chance”, para falar desse encontro.  Essa é uma expressão usada quando se faz algo ao acaso, esperando que, com sorte, vá dar certo. O curioso aí, o crucial, o gênio, é que o analista pode ajudar a encontrar a boa sorte, tornar o encontro mais feliz ali e na vida do analisante.

Esse encontro casual, acidental, era o que Lacan (1964/1988) chamava, no Seminário 11, de tiquê, categoria aristotélica para pensar as causas. Há na contingência, sob uma forma ou outra, o fato de que duas coisas se encontram, “alguma coisa faz um encontro; alguma coisa que poderia não ter feito um encontro, faz um encontro; o que é em geral acompanhado de um espanto” (EBERSOLT, 2021, p. 143). No jogo da contingência, nos interessa particularmente como Aristóteles concebia “a contingência que não parecia contingência” (EBERSOLT, 2021, p. 143), ou seja, nos casos em que o encontro parecia ter uma finalidade, imaginava-se ter acontecido aquele encontro contingente por causa de uma finalidade já dada. Como no exemplo em que o credor encontra por acaso seu devedor a tanto tempo buscado, justo quando sai de casa para passear, e não para receber o dinheiro que lhe era devido. Dizemos: é porque tinha que ser! Estava escrito! Mas não estava escrito. Depois é que se escreveu o que estava antes. Quem é o devedor que tomamos como exemplo acima do texto de Aristóteles, no caso de uma análise? Não seria o gozo que nos é devido? Poder gozar um pouco melhor com nosso sintoma? O paciente sai então para passear na paisagem do analista e, ops! O que ele pode encontrar de novo, entre as repetições e impossibilidades?

Na introdução à primeira edição alemã dos Escritos, Lacan (1973/2002) vai dizer: existe a sorte. De fato, é tudo que existe… O ser falante é heureux, é feliz, isso é tudo que lhe resta. É uma referência ao Eclesiastes, tudo passa e depende pouco de nós, “Vaidade das vaidades”, é uma das traduções. Então vamos ser um pouco mais felizes, comer bem, beber, amar, trabalhar com o que se gosta – é mais ou menos isso que propõe um dos grandes textos sapienciais ao qual Lacan recorre de vez em quando. Será que o discurso analítico não poderia deixá-lo um pouco mais feliz (feliz, com um gozo melhorzinho)?

Miller (2021, p. 234) chama essa possibilidade de intervir na sorte da vida de um analisante de contingência lacaniana, através da qual o analista é “Um parceiro que tem a oportunidade de responder – de um outro modo”. Para ele, em uma análise se trata de pôr em jogo a contingência: “Volto a pôr em jogo a boa sorte, salvo que, nessa oportunidade, essa vez, vem de mim e sou eu que devo proporcioná-la”.

 O problema aí é, como já me perguntaram: se se trata de sorte, ou da palavra azar, como é usual utilizar no sentido geral de coisas acidentais, como é possível intervir nisso? É aí que vemos toda a genialidade de Lacan. Lacan se interessa pelo acaso quando ele se transforma em discurso. O que isso quer dizer? Encontrei o melhor esclarecimento desse assunto em um texto de nosso saudoso colega José Attié, sobre Mallarmé, quando ele diz que o acaso que interessa a Lacan é aquele que pode ser interrogado pelo simbólico.

Para ir rapidamente ao assunto, isso quer dizer que, para Lacan, o acaso deve ser restrito à contingência, ou seja, ao acaso enquanto restrito a fatos de linguagem, a rastros que são as pistas, os aluviões que governam o discurso de um ser falante. Em outras palavras, o que Aristóteles sugeria como “a contingência que não parecia contingência”: onde imaginava-se ter acontecido, por causa de uma finalidade já dada, Lacan interpõe a linguagem e a escrita. O que é que estava escrito? As marcas que em cada um de nós são a condição da repetição. Não é, portanto, que o analista possa dominar o acaso, essa é a finalidade da ciência, mas, para nós, o acaso pode ser interrogado a partir da resposta que deu o sujeito a um impacto traumático primordial e de como essa resposta se inscreveu como determinação inconsciente que tem consequências no sofrimento de sua vida.

O analisante, ao submeter-se à regra da associação livre, tenta intencionalmente tanto quanto possível se aproximar de falar ao acaso, e eis que, no meio disso, ele se pega agarrado por significantes que determinam sua vida. O papel do neurótico vai ser o de tentar, por outro lado, abolir todo o acaso, demonstrando, se podemos dizer assim, que sua resposta ao trauma foi a necessária, estava escrito, quer dizer, o reenvio da palavra à escritura, o reenvio daquelas palavras ao lugar desde onde foram escritas como marcas de gozo, enunciação que se apresenta pelo funcionamento do sujeito suposto saber.

Onde entra o analista nessa trama? Laurent (2019) nos mostra que ele guarda desde o começo a referência do efeito S.s.S, como artificio desde onde se revela a potência do “estava escrito” – Maktub –, mas acrescenta o erro de leitura como uma abertura para uma nova chance, uma boa sorte. Como alguém pode dar continuidade em uma análise se não experimenta logo que algo pode mudar para melhor, que o que sempre lhe fez sofrer pode se reescrever de outro modo?

A sorte pode advir quando a enunciação no registro do SsS passa de “estava escrito”, é o destino, para “estava escrito no equívoco”. Isso quer dizer que a contingência lacaniana está no lugar dos equívocos, nesse entre os sentidos. O analista provoca a ocasião de uma nova sorte, quando sua interpretação vai dizer de algum modo, jogando com homofonias, por exemplo, que “você leu mal o que estava escrito”. A interpretação é uma retificação da leitura feita pelo sujeito suposto saber. A interpretação supõe que a palavra já é uma leitura e o sujeito suposto saber não soube ler bem o acontecimento, por isso está sofrendo, tendo tanta má sorte na vida. Essa sensação de maldição que às vezes nos habita é um erro de leitura. Já não é uma sorte termos a psicanálise e os psicanalistas para nos mostrarem isso!

Concluo com uma pequena crônica dessas que hoje em dia viralizam e que, a meu ver, ilustra uma intervenção que provoca a mudança em um destino no meio de uma contingência.

Em uma entrevista, a filha de Zizi Possi, Luiza, também cantora, conta o seguinte: “Eu me casei de manhã e tinha brigado, foi um pau horrível e eu estava arrasada. Cheguei para maquiar arrasada e a primeira pessoa que eu vi foi a Fátima e falei: ‘Ai, briguei’. E ela disse: ‘Menina, você não sabia que dá a maior sorte brigar antes do casamento? Tem que brigar pra tudo acontecer’. E Fátima falou para minha melhor amiga depois: ‘Ainda bem que todo mundo acredita no que eu falo’. Fátima Bernardes mudou meu dia e salvou meu casamento”.[3]

 


Referências
EBERSOLT, S. Contingence et communauté: Kuki Shûzô, philosophe japonais. Paris: Ed: Vrin, 2021.
LACAN, J. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1954-55).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trabalho estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 553-556. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. O Seminário, livro 16:  De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).
LACAN, J. O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2016. (Trabalho original publicado em 1958-59).
LAURENT, É. L’inconscient éclair. Temporalité etethique au CPCT. Colletion Rue Huysmans. Paris, 2019.
MILLER, J.-A. 1,2,3,4, Tomo I. Buenos Aires: Paidós, 2021.

[1] Aula inaugural de abertura do semestre do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, proferida por Sérgio de Mattos em 07 de agosto de 2023.
[2] Pois, para sermos precisos, não é o tanto o que sabe a pessoa de nossos analistas que é o sujeito suposto saber, mas sim essa maquininha, esse algoritmo, que o saber do analista incita a entrar em funcionamento e que cristaliza em torno de buracos, falhas, equívocos, um saber que surge da associação dita livre.
[3] Tendo sido criado um amor pelo inconsciente, como motor de uma análise, amor que produz o ajuntamento de significantes sozinhos, marcas de gozo na vida de cada um, é preciso que o analista salve também esse casamento, com uma sorte que pode ser ao menos um pouco melhor, entre outras coisas.



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Porque Instituto de Psicanálise e Saúde Mental

ANTONIO BENETI

A saúde mental tem se constituído em um campo no qual o analista teria que intervir, a partir de sua ética, e frequentar, como um imperativo ético da orientação lacaniana — sobretudo nestes tempos de globalização e discurso da ciência. Não se trata mais da questão colocada há algumas décadas, a de trabalhar nas instituições de saúde mental para ir ao encontro da clínica da psicose, em um “não-recuo diante da psicose”, nem pela questão da clínica psicanalítica com crianças. Estamos em um outro tempo. Devemos ter clareza sobre nossa posição e participação a partir de diretrizes que essa orientação nos permite traçar. No Brasil, tivemos o tempo da difusão do ensino de Lacan, de estabelecimento de uma clínica lacaniana, da criação da Escola e, agora, da criação dos Institutos e de uma inserção dos analistas lacanianos no campo da saúde mental.

Então, desde que esta está excluída dos antecedentes do analista na sua formação prévia universitária, vamos nos deter no tempo do analista em formação e de sua participação nesse campo como “analista praticante”.

Alguns textos a que pudemos ter acesso, tais como “O analista cidadão” (LAURENT) e “Saúde mental e ordem pública” (MILLER), além de nosso próprio percurso nesse campo, nos dão, aqui, a orientação lacaniana e nossa posição.

Esses dois textos nos trazem com clareza a definição, a partir da psicanálise, do campo da saúde mental e da posição do analista de hoje, lacaniano, com relação à sua participação.

Com Miller, encontramos a definição da saúde mental como ordem pública. O desenvolvimento que encontramos dessa conceituação em seu texto, a partir de nossa leitura, se inicia com a noção de responsabilidade e o sujeito resposta, sujeito de pleno direito. O psicanalista, desde que não seja um trabalhador da saúde mental, não pode prometer, dar nem garantir a saúde mental definida como ordem pública. À ordem pública interessa saber, desses trabalhadores, quais indivíduos podem circular livremente pelo espaço do social e quais não podem se responsabilizar por seus atos nesse espaço, tendo de ser definidos como sujeitos de não-pleno direito a partir de seu comportamento.

A psicanálise se endereça aos doentes mentais, em que há um sujeito de pleno direito, já nos colocando a primeira questão sobre o lugar e a função do analista na instituição de saúde mental, quando nos lembramos da “moral lacaniana” proposta por J-A.Miller, que afirma “tem um sujeito no doente” sem definir, aí, se o sujeito em questão seria de pleno direito ou não.

Mais adiante, no texto, encontramos a saúde mental como uma perturbação estrutural do físico, do mental e do social. Teríamos, aí, um retorno ao doente como um ser biopsicosocial? Não, desde que, como analistas, teríamos que pensar essa tríade considerando-a corpo-sujeito do inconsciente, Outro do social, da cultura. Miller, com Lacan, colocará o mental como um órgão que se interpõe entre a realidade e o real: um “guia de vida”, dizendo que o mental está em nós desde o início e ressaltando que o inconsciente não é o mental. O texto termina afirmando a saúde como o “silêncio dos órgãos” e que a psicanálise tem uma grande eficácia para colocar em desordem o mental e o físico, desde que o inconsciente, campo de ação do analista, se difira radicalmente do mental como psique.

Essa última afirmação nos coloca a questão de sabermos qual é a função do analista nesse campo do mental: colocá-lo em desordem? Se a psicanálise tem essa eficácia, teríamos uma posição contrária à ordem social e não haveria razão alguma para o Estado, através dos gestores de Saúde nos serviços públicos, abrir as portas para os analistas ou suportá-los no seu espaço quando sua presença fosse detectada.

No outro texto, “analista-cidadão” é o significante que ordena a posição contemporânea do analista no campo da saúde mental sob orientação lacaniana, no mundo globalizado movido pelos discursos da ciência e do capitalismo, nestes tempos de declínio do pai, dos ideais que comandavam o sujeito na sua relação com o Outro da cultura. O que nos traz Éric Laurent?

Houve uma época em que o analista, como “máquina de desidentificação”, exceção em relação a todos os outros cidadãos, construiu um ideal de marginalização social da psicanálise — um ideal de analista concebido como o marginal, o inútil, que não serve para nada — somente para uma posição de denúncia de todos os que servem para algo. O analista vazio, desprovido das identificações, apagado, morto. Quase como um toxicômano da psicanálise, diríamos nós, a se sustentar num gozo cínico, ou numa posição cínica, a exemplo do toxicômano em sua relação de oposição ao discurso capitalista. O analista contemporâneo deve intervir nos sintomas de seu tempo saindo da posição do analista especialista da desidentificação para a posição do analista-cidadão, o que implica o trabalho conjunto com outros cidadãos, profissionais conectados ao campo da saúde mental, numa posição de “ajuda” à civilização com respeito à articulação entre o universal das normas e o singular, o “menos-um” das particularidades do sujeito.

O analista, mais além das paixões narcisistas da diferença, tem que ajudar, porém com outros, sem pensar que é o único nessa posição. Não há lugar para analistas independentes ou “autistas”. No nosso mundo contemporâneo, os analistas são os únicos que escutam e, portanto, devem saber transmitir a particularidade, o “menos-um” de cada cura, o caso-a-caso. Torna-se, então, necessário pedir, trabalhar, lutar por uma rede assistencial sustentada pelo matema da clínica (U-1). Consideramos ainda que, no mundo de hoje, só resta, diante da queda dos ideais, o debate democrático, do qual o analista deve participar ativamente, sempre a partir de sua ética.

A cultura mudou com a globalização. Devemos participar dos comitês de ética e das equipes multidisciplinares, no campo da saúde mental, bem como nos posicionar no campo da cultura e das opiniões, refutando, por sua vez, as críticas à psicanálise demonstrando a experiência e enfrentando o fantasma das avaliações, eficácias e estatísticas, sobretudo nos serviços públicos de saúde mental, sempre considerando que a ciência modifica os ideais.

Trata-se de demonstrar que a boa lei, a boa regra, será sempre furada pelo real, pela falta no campo do Outro. É necessário também não perder tempo com a questão da distinção entre psicanálise e psicoterapia: a psicoterapia não tem consistência teórica nem prática. Se as instituições se referem aos analistas como psicoterapeutas, que se aceite isso e se trabalhe como analistas. A questão é trabalhar no sentido de instalar a transferência e manejá-la utilizando os efeitos terapêuticos dessa instalação com a interpretação. A psicoterapia, de qualquer forma, é uma maneira de se manter a dimensão subjetiva no campo da saúde mental.

Temos de se fazer reconhecer a validade do discurso analítico tanto no nível teórico quanto no prático. O teórico, nós o reservamos à Escola, na validação dos efeitos de uma análise no nível do passe, dando-os a conhecer aos nossos interlocutores. Há um segundo modo, o da validade terapêutica dos tratamentos que se praticam nas instituições, fazendo os seus seguimentos. No nível dos Institutos, com seus convênios com as universidades e outras instituições, fazemos valorizar e reconhecer essa formação com a distribuição dos diplomas, divulgando e introduzindo nossos próprios programas. Some-se a esses três níveis as alianças que devemos fazer contra a segregação, o discurso da exclusão. É assim que, em Minas Gerais, participamos das iniciativas culturais, como o Fórum de Saúde Mental. Uma verdadeira frente de reflexão contra o discurso da exclusão e seus estragos, sem perder tempo em pelejas contra psiquiatras, psicoterapeutas, trabalhadores da saúde mental, entre outros. No nível do diagnóstico, sabemos da simplificação da clínica que o modelo bioquímico contemporâneo do discurso da ciência promove. É necessário, contudo, operarmos sempre com os cinco níveis freudianos: as três neuroses e as duas psicoses.

Num último ponto, temos a interlocução com as indústrias farmacêuticas e as companhias de seguros, os sistemas de saúde.

Afinal, temos aí um manual do analista combatente? Talvez, mas pensamos que não. Trata-se, na verdade, dos princípios éticos que determinam nossa posição, regram e orientam nossa ação no campo da saúde mental, como analistas-cidadãos em contraposição ao analista vazio, marginal, restrito a uma encarnação da máquina de desidentificação.

É a partir dessa orientação que, em Minas Gerais, fundamos o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, a partir de um desejo da Escola, para ser um “aguilhão da Escola”, referenciado a ela. Nesse sentido, ele poderia se chamar tão somente Instituto de Psicanálise de Minas Gerais. Nota-se que o significante “saúde mental” vem atrelado ao significante “psicanálise” já para marcar uma posição e sua própria transmissão. Éric Laurent, em seu texto “Concepciones de la cura en psicoanalisis”, lembra-nos que

Não há um âmbito da extensão da clínica no qual Lacan não tenha estimulado seus discípulos a investigar, mantendo o diálogo com os praticantes nesses campos, estimulando seus descobrimentos e impulsionando-os a apresentarem os seus resultados de modo sistemático, chegando a mostrar a coerência dessa investigação de fronteiras com o núcleo mais sólido da experiência freudiana e os ensaios que dela podem deduzir-se no tocante à direção da cura em intensão (LAURENT, 1981).

Por ocasião da fundação do Instituto, consideramos que tínhamos diante de nós um campo privilegiado para a psicanálise em extensão, no que tangia à clínica: o campo da saúde mental, com a inserção de vários psicanalistas e psicanalistas em formação vinculados à Escola nas instituições públicas e privadas, para adultos e crianças.

Por outro lado, sabendo da clínica desenvolvida nessas instituições, pensamos que, nesse campo, teríamos a possibilidade do encontro e da investigação dos casos clínicos marcados pelos sintomas contemporâneos, marcados pelo que aprendemos, por meio do ensino de Lacan, a chamar de suplências. Ou seja, o encontro e a investigação dos casos chamados inclassificáveis, que compõem o cenário do que chamamos “segunda clínica de Lacan”.

Acrescentemos a isso a questão da aplicação mesma do discurso analítico não restrito ao consultório dos analistas, não o segregando em relação aos outros discursos, mas colocando nesse campo a possibilidade de enfrentamento do discurso da ciência nestes tempos de globalização, em que a clínica poderia se restringir a um universal que exclui a particularidade do caso-a-caso, do um-a-um.




O Instituto e a Escola

FRANCISCO PAES BARRETO 

Por que o binário Escola e Instituto? Existe, entre os dois, uma oposição diferencial, constituinte. Para situá-la, farei um breve retrospecto. No Ato de Fundação da Escola (1964), Lacan concebeu três seções: a Seção de Psicanálise Pura, que se encarregaria da doutrina da psicanálise pura e de sua práxis como formação (psicanálise didática), bem como da supervisão (controle); a Seção de Psicanálise Aplicada, que se encarregaria da articulação da psicanálise com projetos de tratamentos, tais como os da área médica e psiquiátrica; e a Seção de Recenseamento do Campo Freudiano, na qual estariam compreendidas três subseções: comentário do movimento psicanalítico, articulações com ciências afins (conexões) e ética da psicanálise, ou seja, a práxis de sua teoria. Nesse momento, Lacan priorizou o “trabalho”: introduziu o cartel como o órgão de base, falou de “transferência de trabalho” e de “trabalhadores decididos”.

Pouco depois, na Proposição de 9 de outubro de 1967, a distinção entre hierarquia e gradus foi apresentada como a solução do problema da garantia na sociedade psicanalítica. O essencial é que ela produz a disjunção da função Analista Membro da Escola (AME) e da função Analista da Escola (AE): o AME como analista reconhecido ao olhar do corpo social e o AE como analista resultante do passe, ou seja, aquele que conseguiu dar provas de seu final de análise. AME e AE são, ainda, como frisa Miller, títulos que respondem a duas lógicas distintas: o AME, assim como o cartel, está na lógica do “todo”, e o AE, assim como o passe, na lógica do “não-todo”.

Outras iniciativas merecem ser aqui lembradas. A fundação, por Lacan, do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris-VIII (1968) e a anexação, por Miller, com o apoio de Lacan, da Seção Clínica (1977), tendo por objetivo um ensino que pudesse corresponder a uma definição lacaniana da clínica e estabelecer conexões, comportando entrevistas, cursos e uma prática de apresentação de enfermos. A criação, por Lacan, da Fundação do Campo Freudiano (1979), abre um espaço diferente daquele da instituição analítica e daquele da universidade para a difusão da psicanálise. Por fim, a fundação, por Miller, do Instituto do Campo Freudiano (1987), se presta a desenvolver a tarefa de ensino e investigação da psicanálise, levando-a a outros países.

Uma das maneiras de ordenar essa evolução é privilegiando os significantes “Escola” e “Instituto”.

A Escola mantém como objetivo o que Lacan havia proposto para a Seção de Psicanálise Pura. Contando com dois dispositivos fundamentais, por meio do cartel, ela procura responder à pergunta “o que é a psicanálise?” e, por meio do passe, procura responder à outra pergunta, “o que é um analista?”. A Escola é a instituição psicanalítica propriamente dita. Entretanto, como observa Miller, o discurso analítico, com a suposição de saber que o suporta, tende a fechar-se sobre si mesmo, autodestruindo-se quando não confrontado com outro discurso. A contraposição do Instituto é importante para que o saber exposto faça barra. Serviria, conforme propõe Lacan, para “estimular sua Escola, servir-lhe de aguilhão”. Instituição parauniversitária, o Instituto abrange as duas outras seções inicialmente previstas no Ato de Fundação: a Seção de Psicanálise Aplicada e a Seção de Recenseamento do Campo Freudiano.

Entre Escola e Instituto deve haver tanto intervalo como articulação. A oposição entre eles estabelece certa tensão entre saber suposto e saber exposto, entre trabalho de transferência e transferência de trabalho, entre particular e matema, entre psicanálise em intensão e psicanálise em extensão, sem que se possa restringir cada um desses aspectos a um ou a outro. Como propõe Bernardino Horne, na Escola, a intensão aponta para a extensão, e, no Instituto, a extensão aponta para a intensão.

Segundo uma formulação de Germán García, que tem se revelado fecunda, “da cidade dos analistas se encarrega a Escola; ao Instituto interessa os analistas na cidade”.




O que é o Instituto?

JÉSUS SANTIAGO

O que se impõe como princípio de orientação para a clínica psicanalítica se impõe também para a política lacaniana da psicanálise. Se não há clínica sem ética, o mesmo acontece com a política que visa a se constituir como o horizonte que organiza e gere a vida institucional de uma comunidade de analistas. Logo, não há uma política lacaniana sem ética. E isso serve para todos aqueles grupos ou instituições que tentam se inspirar na prática institucional exercida por Jacques Lacan durante sua longa trajetória de analista. E qual é a ética que orienta uma política lacaniana para o discurso analítico?

Em artigo publicado no último número da revista La Cause freudienne[1], J.-A. Miller avança a ideia de que uma tal ética deveria ser pensada segundo a antinomia entre duas perspectivas distintas: de um lado, a “ética da boa intenção”, que não é freudiana e que, sendo uma ética da boa-fé, é incompatível com o campo freudiano. De outro lado, a “ética das consequências”, que sempre se julga pelo ato e, mesmo, por meio do estatuto do ato, por seu valor e por suas consequências. Não há dúvida de que essas duas perspectivas éticas sempre estão presentes como princípio para os que se dispõem a governar e dirigir as iniciativas de uma comunidade de analistas.

Evidentemente, essas éticas aparecem como tendências, se efetivam de forma excludente no próprio modo de gestão das questões que concernem às atividades cotidianas da instituição psicanalítica: a formação, o recrutamento, a autorização, a garantia, a produção, etc. Em outros termos, tenta-se governar com a ética da boa intenção, em que prevalece o culto aos belos princípios do que seria uma instituição, que, supostamente, responderia pelos fundamentos da psicanálise. É possível constatar que uma tal orientação permanece, no essencial, inoperante, porque se mostra prisioneira dos limites da figura da “bela-alma”, que, no fundo, é impotente para lidar com a complexidade da situação na qual estamos todos envolvidos.

Ora, a “ética das consequências” busca se fiar na dimensão política de um ato que, ao assumir as tarefas de direção, procura, necessariamente, incluir o Outro. Essa inclusão do Outro quer dizer que, se a questão dos princípios e fundamentos do conceito de Escola importa muito, é preciso, entretanto, dar sequência ao momento lógico do ato, pelo qual se pode instaurar algo novo no real de uma comunidade de analistas. É só observar o que, nos últimos anos, temos feito com relação ao discurso analítico: mais do que belos discursos sobre a instituição ideal, temos, na verdade, dado provas de uma ação que visa a injetar novos elementos nesse real.

Num primeiro momento, foram as Jornadas Clínicas e a ideia de que o analista deve se despojar de sua enfatuação, dando testemunho daquilo que ele faz em sua prática clínica. E, nesse mesmo tempo, instituímos entre nós a prática de produção, proposta por Lacan, dos cartéis. No momento seguinte, assumimos a empreitada de dissolver os grupos e pôr em questão a lógica dos chefes e líderes e passamos à fundação da Escola. E, o que não poderia ser diferente, quase imediatamente criamos o passe de entrada como uma forma de reconhecer que a autorização do analista passa, necessariamente, por sua própria experiência de análise, e que uma Escola deve saber acolhê-la. Exatamente neste momento, estamos às voltas com o ato de consecução do Instituto e de sua Seção Clínica.

A proposta do Instituto surge nos rastros da insistência de Jacques Lacan em criar um Departamento de Psicanálise no contexto do ambiente universitário, no final da década de 60. Isso desaguou no que todos conhecem como Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris-VIII. Em 1975, ele realiza uma espécie de refundação e renovação desse Departamento e, em 1976, cria os cursos e respectivos diplomas do DEA (um equivalente ao nosso mestrado) e do doutorado. Em 1977, surge a Seção Clínica. O próprio Miller afirma que, se ele inventou o “Instituto foi para prosseguir, na França e em outros lugares, esta via que não é outra senão a de Lacan”[2]. E a pergunta que emerge, a partir daí, é a seguinte: se já se tem a Escola de Lacan, por que seria necessário criar o Instituto? Qual é a dialética que se instaura entre o ato de fundação, que promoveu uma iniciativa institucional e outra? Trata-se, simplesmente, de espaços institucionais geográficos distintos?

Claro que não! Na verdade, estamos diante de duas lógicas de funcionamento que se justificam por princípios essencialmente distintos. E o ponto de partida dessa distinção é o fato de que o discurso analítico tende, invencivelmente, ele mesmo, a se destruir. A tese da autofagia própria do discurso analítico se justifica em função de que é o saber suposto que alimenta e sustenta a psicanálise, e que é esse mesmo saber que, por dentro, o corrói. Essa forma específica do saber analítico, que está na base da experiência analítica, é o que anima a existência da Escola e o que permite ter como seu sustentáculo básico o dispositivo do passe. O passe existe apenas porque a experiência analítica secreta essa forma de saber, cuja lógica é aquela da ressonância do saber que se transmite pela via do trabalho de transferência. O saber suposto é o que se motiva e se produz por intermédio da transferência e, como modo de saber, ele está genuinamente ancorado na experiência analítica.

Se o funcionamento da Escola se funda e se orienta pelo saber suposto e pela experiência do passe, o Instituto, por sua vez, se baseia no saber exposto e naquilo que, no domínio da psicanálise, lhe é característico, isto é, o matema. O Instituto é, portanto, o lugar em que predomina o saber exposto, o único capaz de colocar limite ao processo inexorável de autofagia do saber suposto, próprio do discurso analítico. É por isso mesmo que se diz que o Instituto é o aguilhão da Escola. Ele é o aguilhão da Escola à medida que, ao empunhar e priorizar a lógica da argumentação, em detrimento daquela da ressonância, ele estimula, por excelência, a transferência de trabalho — transferência que apenas pode se personificar na demonstração própria do saber exposto. Nessa distinção entre o passe e o matema, saber suposto e saber exposto, entre a lógica da ressonância e a da argumentação, transmissão e demonstração, o Instituto assume suas feições de algo que permanecerá para sempre como atópico. “Enquanto que a Escola se particulariza, esposando os contornos de cada cidade, região, país, o Instituto, em qualquer lugar que exista, tenta ser o mesmo, tal como o matema”[3].


 

[1] MILLER, J.-A. “L’acte entre intention et consequence”. In: La Cause freudienne, Politique lacanienne, nº 42.
[2] MILLER, J.-A. “Ouverture de la surprise à l’énigme”. In: IRMA-Le Conciliabule d’ Angers: Effets de surprise dans les psychoses. Paris: Agalma, 1997, p. 13.
[3] Ibid.