Almanaque On-line – Julho/2025 – Nº 35
O Infantil
NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO
ISSN 1982-5617
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Excerto 1: O carro e o tempo parado
Homem adulto, profissional bem-sucedido, relata dificuldade recorrente em desfrutar experiências prazerosas: festas, viagens, museus, paisagens. Sempre algo estraga: a ansiedade, o medo constante de assaltos, roubos, violências. Na Itália ou França, teme pickpockets; no Brasil, bandidos armados; nos Estados Unidos, terroristas. Vive em estado de alerta. Depois se arrepende. “Não curti, de novo”.
Durante uma sessão, recorda uma cena infantil: o pai estaciona o carro, deixa o filho sozinho por alguns minutos com a promessa de voltar logo. O menino observa da janela quando dois homens arrombam o veículo e levam um objeto do banco da frente. Ninguém se fere. Mas alguma coisa se quebra.
Ao narrar a lembrança, diz que “nada mais o emociona”. Nem a Torre Eiffel, nem o Coliseu, nem o Pão de açúcar. O analista interrompe:
– Nada?
– Me emociono com carro – responde ele, quase sem pensar.
– Que carro?
– Como assim, que carro? Sei lá. Qualquer carro, especialmente se for raro!
– Como aquele em que seu pai te esqueceu?
Ele consente e se levanta do divã.
Excerto 2: O desejo escondido
Mulher jovem, em análise, queixa-se de vergonha excessiva: dificuldade de falar em público, de se colocar profissionalmente, apesar da boa formação acadêmica, de expressar o que quer – seja em situações triviais, seja em relações íntimas. Usa metáforas corporais: diz que “prefere sumir”, “virar parede”, “ser transparente”.
Depois de um sonho de ser impedida de entrar num Colégio só para meninas, lembra cenas da infância. Pequena, gostava de se esconder – debaixo da cama, atrás da cortina – para observar a mãe se vestir. A lembrança é vívida: a mãe de costas, tirando a blusa, o sutiã no chão, os sapatos de salto. Ela, escondida, assistia em silêncio. Nunca foi descoberta. Nunca se revelou. Via tudo por essa janela, esse enquadre.
Já adulta, repete a cena. Agora, são os parceiros que estão “do outro lado da cortina”: homens casados, ocupados, distantes, impossíveis. Relações em que o desejo nunca se realiza à luz do dia, mas apenas como espreita. O escondido virou regra. O objeto se divide entre a face da causa de desejo e a opacidade do gozo.
O tempo freudiano
Uma das coisas mais incríveis da psicanálise é sua teoria do tempo. O inconsciente é atemporal, e mesmo assim feito de camadas, ruínas e traços, em constante movimento. O passado muda rápido demais, e às vezes isso nos dá uma certa vertigem. Mas tem também aqueles buracos negros que insistem em nos atrair sempre para as mesmas armadilhas. Não é isso o inconsciente – ou pelo menos não são essas suas condições?
E tem ainda a transitoriedade. Acho difícil que alguém conteste que “Transitoriedade” não seja um dos mais belos textos de Freud, se não o mais belo. “Vergänglichkeit” designa aquilo que é fugaz, efêmero, que não dura. Uma boa pergunta seria se o infantil é transitório ou não? Se sim, em que consiste a transitoriedade do infantil, que, ao mesmo tempo, insiste em repetir? A fruição do belo contém uma promessa de felicidade, mas, ao mesmo tempo, a certeza de que o objeto de deleite desmancha no ar. O tempo é circular, lembra Freud. Mas serão os ciclos da natureza e suas estações? Ou as elipses do sujeito gravitando em torno do objeto que o divide, enquanto ele próprio também se divide?
Freud passeia com “um amigo taciturno” e “um jovem poeta”, já famoso àquela altura. De curiosidade a gente não morre, né? É claro que descobriram que um era Lou Andreas-Salomé (curiosamente disfarçada de homem) e, o outro, Rainer Maria Rilke. A “florescente paisagem de verão” remetia às Dolomitas, paisagem alpina do norte da Itália. O verão em questão seria o de agosto de 1913, pouco antes da eclosão da Grande Guerra. Pelo relato de Freud, escrito uns anos mais tarde, podemos imaginar uma caminhada lenta e meditativa, observando as paisagens paradisíacas das montanhas, em meio a flores e cogumelos. Rilke reclama: essa beleza vai acabar em breve, tão logo chegue o inverno. Ele é jovem, tem cerca de 36 anos; Freud, perto de completar 60, retruca: mas a beleza está exatamente no fato dessa fugacidade, dessa transitoriedade. A beleza é rara e dura pouco. Salomé, aos 50 anos, prefere ficar em silêncio. O silêncio de Lou é uma espécie de grito? Àquela altura, Lou era ex-amante, mas eterna musa do poeta, ao mesmo tempo em que era psicanalista e escritora, e fascinava Freud, como havia fascinado Nietzsche outrora. Taciturna e melancólica? Tem certeza, Dr. Freud? Não é o que a biografia dela sugere.
Mas é provável que essa caminhada só tenha ocorrido na imaginação de Freud, e na nossa desde então. É verdade que os três haviam se encontrado, no último Congresso de Psicanálise antes da eclosão da Guerra, ao sopé da montanha. Mas suspeito que a conversa tenha ocorrido no salão do hotel, no intervalo entre as mesas e conferências, entre xícaras de café ou chá, biscoitos amanteigados, bolo de chocolate com geleia de damasco… e charutos. Tudo isso tem cheiro de infância… meio proustiana demais, talvez…
O que importa é que a resposta de Freud à revolta do poeta diante da transitoriedade da natureza é uma aula sobre as relações entre a libido e o luto. Mais do que isso: pouco se nota que Freud estende sua teoria do luto, que se aplicaria não apenas à perda de objetos como pessoas ou coisas, mas a fases da vida. Quem atende pacientes idosos, sabe muito bem que parte do tratamento analítico tem a ver com a perda, com um trabalho de luto: do corpo que não funciona mais como antes, dos sonhos que não se concretizaram, dos amores perdidos e também dos encontrados. Mas também dos desejos que, ao se realizarem, levam à ruína. Os exemplos não são poucos. Parece que o infantil emerge como mais clareza quanto mais o corpo decai. Voltam os apelidos, as cenas, traumáticas, mas também as opacas cenas de gozo.
O infantil como insistência
O infantil, para Freud, não é um tempo perdido. É um tempo em suspenso – fora do tempo, como o inconsciente onde ele se aloja, ou que o desaloja. Essa temporalidade específica é formulada em diversos registros. Em “O mal-estar na cultura”, Freud recorre à metáfora arqueológica de Roma como cidade onde as ruínas de todas as épocas coexistem: nada desaparece, tudo sobrevive em camadas superpostas. No ensaio “Sobre a transitoriedade”, diante da angústia provocada pela efemeridade, ele propõe que a perda não anula o valor; ao contrário, é a condição para que o passado atue. O tempo, na economia do inconsciente, não opera por sucessão, mas por simultaneidade. É o tempo de Roma, feito de camadas e ruínas, mas será também o tempo de Baltimore, feito de um horizonte mais plano. O inconsciente que aloja é Roma, o que desaloja é Baltimore. A criança freudiana não é figura da inocência, mas da intensidade: corpo polimorfo, disposição bissexual, inconsciente como resposta ao enigma da não relação entre os sexos. O infantil não é natureza, nem cultura. É entre dois. Não é uma fase superada. Na verdade, nem exatamente perdida, mas deslocada. Freud não diz apenas que fomos crianças – ele afirma que continuamos sendo. Quem dera fosse a criança idealizada dos poetas aquela que nos espreita nas brechas da memória. Voltar à criança que fomos e que perdemos? Nada mais longe de Freud. Não há esperança, nem temor, como lembra Lacan em algum lugar. Infantil não é a criança. É o que escutamos diariamente.
Nos dois excertos clínicos apresentados, o infantil não aparece como lembrança, mas como operador. No primeiro caso, a cena do pai que abandona momentaneamente o filho no carro, onde ocorre um assalto, não desaparece com o tempo: ela fixa um afeto – o medo – e uma posição subjetiva – a de quem está sempre quase sendo roubado. Ou que rouba? Ao mesmo tempo, o fascínio desloca-se para o objeto carro. Não se trata pura e simplesmente de gosto automotivo – trata-se da única forma de reencontrar o objeto da cena traumática.
No segundo caso, não se trata de trauma. O esconderijo infantil – debaixo da cama, atrás da cortina – não foi abandonado: foi atualizado. Ele itera, mais do que repete. A paciente itera a posição de espectadora envergonhada, engavetando o próprio desejo, cada vez mais invisível, quer dizer, à luz do dia. Namora homens inacessíveis, não por acaso, mas por estrutura iterativa. A vergonha, nesse ponto, não é um obstáculo contingente, mas o signo de uma economia de gozo marcada pelo recuo e pela espreita. Não apenas o brilho da perda, mas o opaco do gozo.
Ambos os casos demonstram que o infantil não é o que passou, mas o que insiste. Freud localiza aí o cerne do sintoma, a cifra do gozo. As chamadas “teorias sexuais infantis” são um exemplo radical disso: não são erros infantis, mas construções duráveis, cuja persistência molda o modo adulto de desejar. O inconsciente é, também, uma teoria sexual infantil. Ou toda teoria é infantil? Como escreveu em 1908, a teoria sexual infantil persiste como matriz de julgamento para todas as experiências futuras. A criança que fomos permanece viva na forma como amamos, tememos, olhamos, nos calamos.
Assim, toda análise é, em alguma medida, a análise do infantil. Não da infância biográfica, mas de seus restos vivos: cenas fixadas, posições gozadas, roteiros inconscientes repetidos, séries iterativas. O infantil não é o começo, mas o núcleo que resiste ao tempo. E que, por isso, só pode ser lido como se lê uma ruína: camada por camada, num presente que se arqueologiza a cada fala. Ou na superfície do labirinto em linha reta.
Inicialmente, com a finalidade de abordar a Seção Clínica, é necessário realizar um preâmbulo com o intuito de tecer algumas considerações sobre a diferença entre o Instituto do Campo Freudiano e a Escola de Psicanálise. Por mais que já sejam conhecidas as diferenças pelos colegas mais experientes, é necessário demarcar as distinções entre o Instituto e a Escola, já que endereço este texto aos jovens analistas.
Inicialmente, no “Ato de Fundação”, Lacan (1964/2003, p. 237-238) divide a Escola em Seção de Psicanálise Pura, Seção de Psicanálise Aplicada e Seção de Recenciamento do Campo Freudiano, que têm a finalidade de cuidar das publicações, de articular a psicanálise com as ciências afins e zelar pela práxis de sua teoria.
Na “Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista na Escola”, Lacan (1967/2003, p. 249) aprimorou os estatutos, separando a hierarquia e o gradus. Em relação à hierarquia, propôs o princípio da permutação para a Escola e, com fins de responder a pergunta sobre o que é o analista, inventou o dispositivo do Passe, referido ao título de Analista da Escola (AE), e a Garantia, para aquele reconhecido como um analista que comprovou sua capacidade, o qual foi designado de Analista Membro da Escola (AME). Com esses dois dispositivos – Passe e Garantia – Lacan passou a operar como Diógenes: se este, com sua lanterna, estava à procura de um homem, Lacan, com seus dispositivos, estava em busca de um analista (MILLER, 2023a, p. 227).
Mas, se existe a Escola, para que Lacan cogitou o Instituto? Pode-se dizer que são duas instâncias com lógicas de funcionamento separadas. Grosso modo, se, por um lado, e na medida em que não há uma identidade sobre o que é um analista, no fundo a pergunta que sustenta a Escola é: o que é o analista?, por outro, como existem distorções da psicanálise pelas outras instituições analíticas, e uma diluição da psicanálise em razão de sua apropriação por diversas correntes de psicoterapias, a pergunta que engendra o Instituto é: o que é a psicanálise?
Então, com o intuito de responder a pergunta sobre o que é a psicanálise, Lacan fundou o Campo Freudiano e o estabeleceu como uma instância “para-universitária”, constituindo-o mediante um conjunto de Institutos que funcionam totalmente independentes da Escola. O Instituto e a Escola têm suas próprias consistências, constituições, funções, finalidades e tarefas, de sorte que não existem ambiguidades entre ambos.
O Campo Freudiano detém a missão, formulada por Lacan em 1974, de contribuir para a formação científica dos psicanalistas e de todos os trabalhadores da saúde mental. É interessante destacar a preocupação de Lacan em estender o conhecimento psicanalítico aos trabalhadores da saúde mental (MILLER, 2023b, p. 62). Embora totalmente independentes do ponto de vista legal em relação à Escola, muitos são os membros da Escola que ensinam nos Institutos do Campo Freudiano. Entretanto, a psicanálise não é ensinada a partir da posição do mestre ou do discurso universitário, mas apenas a partir da posição do ensinante, que evoca a condição de analisante (MILLER, 2023b, p. 174). Nessa medida, apenas se ensina a psicanálise a partir de sua própria falta, na posição de sujeito dividido (LACAN, 1970/2003, p. 305). Tal ensino da psicanálise, ademais, não pode ser transmitido de um sujeito a outro, senão pelos caminhos de uma transferência de trabalho (MILLER, 2000, p. 157).
O Campo Freudiano abriga uma série de publicações concernentes aos textos de Lacan e aos principais autores da psicanálise de orientação lacaniana. Portanto, o Campo Freudiano não se define como um corpo institucional fechado, mas sim como um espaço aberto, inconsistente e não-todo, que se dedica ao ensino, à transmissão e à difusão da psicanálise mediante permanente discussão, interlocução e articulação com outros campos do saber. Além disso, é sob os auspícios da Fundação do Campo Freudiano que se realizam uma série de encontros nacionais e internacionais que visam discutir, de maneira pormenorizada, a clínica psicanalítica sob o viés do caso clínico (MILLER, 2023b, p. 62).
Lacan se converteu em diretor científico do Departamento de Psicanálise em 1974, instituiu a Seção Clínica no departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes-Saint Denis) em 1977, criou a Fundação do Campo Freudiano em 1979 e a Escola da Causa Freudiana em 1981. Até o momento de sua morte, ele então presidia essas três instâncias (MILLER, 2023b, p. 63). A Seção Clínica criada por Lacan em 1974, no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, passou a fazer parte do Campo Freudiano, na época de sua fundação.
Enfim, a Seção Clínica é um conceito central na teoria e na prática lacanianas e tem a finalidade de articular a experiência da clínica analítica com o ensino e a transmissão da psicanálise, em uma relação distinta dos modelos convencionais das Universidades. Diferente da estrutura convencional do modelo universitário, ela foi pensada por Lacan (1973/2003, p. 518) a partir de sua crítica às formas tradicionais da formação do analista, instituídas pela IPA, que, ironicamente, a renomeava como Sociedade de Ajuda Mútua Contra o Discurso Analítico (SAMCDA).
Os Institutos de Psicanálise no Brasil ligados ao Campo Freudiano funcionam de maneiras bem distintas. Não entraremos em consideração sobre os demais Institutos, mas apenas sobre o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG). Fundado em 1997, desde então sua diretoria é regida pelo princípio da permutação a cada quatro anos. O IPSMG se divide em: Diretoria de Ensino, que se ocupa das Lições Introdutórias à Psicanálise e do Curso de Psicanálise; Seção Clínica, que é constituída pelos Núcleos de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças, Psicanálise e Direito, Psicanálise e Medicina, Psicanálise e Psicose, Psicanálise e Saúde Mental, Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, além do Ateliê de Psicanálise e Segregação; e Diretoria de Publicação, que cuida das mídias digitais e da publicação da revista Almanaque On-line e da coleção …com Lacan.
A psicanálise aplicada ao sintoma, aplicada à terapêutica, à pesquisa e à investigação e desenvolvida na Seção Clínica se baseia no seguinte tripé: a “Apresentação de pacientes”, hoje renomeada de “Entrevistas clínicas”, as discussões de casos clínicos e os seminários teóricos. Esse tripé tem o objetivo de colocar em evidência a experiência prática do analista, o manejo da condução do caso, assim como a direção do tratamento, particularmente de casos paradigmáticos e difíceis.
Ademais, a Seção Clínica promove semestralmente uma Conversação Clínica com a finalidade de cogitar, ampliar, aprofundar e fundamentar o debate dos temas relevantes gerados pelo saber extraído das apresentações teóricas e clínicas dos Núcleos de Pesquisa e Investigação sob a perspectiva do mundo contemporâneo.
Portanto, a Seção Clínica não é apenas um espaço do saber exposto para os analistas transmitirem suas experiências, mas, particularmente, a porta de entrada dos mais jovens que se interessam pela psicanálise e encontram nos Núcleos de Pesquisa e Investigação um terreno fértil de interface com outras áreas afins. Assim, a Seção Clínica não se constitui como mais um curso de psicanálise, como os demais. É um espaço vivo de trabalho, de debate, de interlocução e de transmissão da psicanálise. Portanto, a Seção Clínica é o ponto de convergência da busca de respostas na tentativa de elucidação do gozo que se manifesta na repetição sintomática dos casos clínicos, de esmiuçar os impasses da transferência, de despertar a capacidade reflexiva para colocar em questão o conhecimento standard e do desejo de saber.
A teoria da prática enquanto prática é distinta da teoria. Portanto, a psicanálise é uma prática que leva em conta o inconsciente, e não uma teoria do inconsciente. A psicanálise é essencialmente uma prática e sua transmissão apenas funciona como um saber fazer aí com sua presença, visto que se trata de um saber fazer da experiência analítica em sua transmissão e na formação do analista (MILLER, 2008, p. 19).
À guisa de conclusão, a formação do analista é composta pela tríade de uma experiência de análise pessoal, do controle da prática clínica com supervisões regulares e frequentes e pelo estudo da teoria psicanalítica. Portanto, pode-se dizer que a Seção Clínica tem uma boa parcela de influência na formação analítica no que concerne à experiência, ao ensino e à transmissão da psicanálise. Vale destacar que a análise pessoal, o controle da prática e o ensino da psicanálise se articulam em um nó, permanecendo assim enlaçados de maneira borromeana.
Sob essa perspectiva, é possível que a análise pessoal esteja concernida ao real como índice de saber fazer com o gozo pelo trabalho analítico; o controle da prática analítica esteja referido ao plano imaginário, já que ela visa desbastar os efeitos imaginários da contratransferência e orientar a direção do tratamento dos casos supervisionados; e, por último, a teoria psicanalítica estaria referida ao registro do simbólico, pois lida com as estratégias de transmissão e de ensino da psicanálise.
Maria Wilma Faria, psicanalista e membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), é diretora da Seção Clínica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG).
Almanaque On-line interessou-se em lhe perguntar o que é uma Seção Clínica, como ela funciona e quais são os princípios da psicanálise lacaniana que a regem.
Almanaque 35: Comecemos com a pergunta de Lacan, formulada em 1977 em seu texto “Abertura da Seção Clínica de Paris”: “O que é a clínica psicanalítica? Não é complicado. Tem uma base – é o que se fala em uma psicanálise”.
Como podemos extrair as consequências dessa pergunta no funcionamento da Seção Clínica da qual se ocupa?
Maria Wilma: Essa afirmação de Lacan aparentemente parece simples, mas porta uma complexidade. Talvez pudéssemos cotejar a resposta com o que ele desenvolve adiante, na “Abertura da Seção Clínica de Paris”, e que está relacionado ao dizer, ao divã, à associação (que não é tão livre assim), enfim: “é do inconsciente que se trata” (LACAN, 1977/2001, p. 6). Nessa época do final de seu ensino, Lacan estava questionando o inconsciente e o designa – em seu Seminário 24, que estava proferindo à época e que tem em seu título a palavra l’une-bévue – como “equívoco”. O inconsciente também é visto como um tropeço, “o espaço de um lapso” (LACAN, 1976/2003, p. 567). Ou seja, o inconsciente é real. Então, nessa alocução de Lacan (1977/2001, p. 8), logo após uma pergunta que lhe foi dirigida, ele apresenta uma definição que nos é muito cara: “a clínica é o real enquanto ele é impossível de suportar”.
Esse assunto nos interessa na Seção Clínica do Instituto, pois lidamos sempre, nos diversos espaços de investigação e pesquisa dos Núcleos, com o ponto de não sentido, com aquilo impossível de ser dito, que está na raiz da linguagem mesma. Poderíamos pensar o real como impossível porque há sempre algo que escapa ao significante, que não cessa de não se escrever. O real, enquanto impossível de suportar e que se apresenta na contingência, é aquele que leva o falasser, com sua dor e com seu corpo, a procurar uma análise, ou mesmo uma instituição. Cabe ao analista, a partir de sua presença e de seu desejo, se orientar pelo real do gozo, fazendo dele o princípio do ato analítico.
Lacan (1977/2001, p. 9) termina ainda dizendo que “A clínica psicanalítica deve consistir não somente em interrogar a análise, mas em interrogar os analistas, a fim de que eles deem conta do que a prática deles tem de acaso, o que justifica que Freud tenha existido”.
Almanaque 35: J.-A. Miller, na abertura da Seção Clínica de Tel-Aviv, em 1996, responde à própria pergunta – O que é uma Seção Clínica? – do seguinte modo: “Ela é feita de seus professores, do seu saber, das suas boas disposições pedagógicas. Ela não é nada sem aqueles que chamamos não de estudantes, mas participantes, para indicar o papel ativo que lhes é dado”.
A partir dessa afirmação, como você avalia a estrutura da Seção Clínica do IPSM-MG?
Maria Wilma: A estrutura da Seção Clínica se apoia nas Conversações Clínicas, na retomada das Entrevistas Clínicas em instituições com as quais o IPSM-MG mantem parceria e convênio, nos seminários teóricos e apresentações de casos clínicos que os Núcleos de Investigação em Psicanálise desenvolvem. Acolhe, assim, todos aqueles interessados em se aproximar da psicanálise de orientação lacaniana.
Penso que poderíamos seguir de mãos dadas com Miller, quando ele diz, na mencionada abertura em Tel-Aviv, que, para além dos professores, dos participantes ativos da Seção Clínica, dos amigos, psiquiatras, colegas de outras instituições, é preciso apreender a Seção Clínica como um conceito que passa por uma experiência, algo que não se dá somente pelo ensino na orientação lacaniana, mas pela experiência mesma do tratamento psicanalítico. Entra aqui em jogo também a formação do psicanalista, aquela necessária, interminável, apoiada no tripé de supervisão, análise e estudos teóricos, e sustentada pelo desejo. Com isso, pode-se deparar, no trabalho desenvolvido pela Seção Clínica, com um saber que não se totaliza, pulsante, dinâmico, questionador e que se renova no movimento que a clínica que visa o real evidencia. Um trabalho que repousa no “reconhecimento de um não-saber irredutível – S(A/) – que é o próprio inconsciente, o ímpeto para prosseguir um trabalho de elaboração orientado pelo desejo de uma invenção do saber” (MILLER, 2020, s. p., tradução nossa). De tal forma que temos na Seção Clínica o constante esforço de “Como fazer para ensinar o que não se ensina?” (MILLER, 2013, p. 9), e, para isso, conta-se com a experiência de cada participante que ali se endereça com seu ponto de não saber.
Almanaque 35: Poderia nos falar sobre como você avalia a relação da Seção Clínica do Instituto com a cidade?
Maria Wilma: A Seção Clínica se faz presente na cidade de uma forma muito viva. Aqui podemos recorrer ao que Lacan (1967/2003, p. 251) chama, em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967”, de “psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo”, na medida em que cada um que frequenta os Núcleos de Direito, Medicina, Criança, Toxicomania e Alcoolismo, Saúde Mental, Psicose e o Ateliê de Segregação traz sua experiência, apresenta casos e dialoga com outros discursos nos espaços da cidade onde a psicanálise se faz presente, lidando com seus impasses. E esse ponto é fundamental para a própria existência da psicanálise, uma vez que é um desafio, nesses tempos que correm, fazer valer o discurso analítico.
“Já aprendemos de numerosas observações incontestáveis a idade precoce em que as crianças sabem como utilizar-se de símbolos.”
(FREUD, 1920/1984, p. 319)
Daniel Roy[1]
Membro da École de la Cause Freudienne (ECF)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: danielroy@wanadoo.fr
Você pode procurá-lo com dedal – e procurá-lo com cuidado;
Você pode caçá-lo com garfos e esperança;
Você pode ameaçar sua vida com uma ação de ferrovia;
Você pode encantá-lo com sorrisos e sabão.
(CARROLL, 1876/2017)
A ficção é hoje reconhecida por ser, por excelência, o modo discursivo sob o qual se inscrevem os filhotes de homem assim que eles se põem a parlêtrer[2] o melhor possível. Durante muito tempo, esse traço serviu para segregá-los em um mundo da infância celebrado como mundo no qual o imaginário reina como mestre, desprezando realidades da vida. Mas há aqui um deal[3] que, sob aparências humanistas, esconde uma ordem de ferro que exige da criança que ela se identifique a uma criança e que, assim, dê consistência a um Outro que se preza por lhe garantir proteção.
A infância: território ou litoral?
Lá onde a infância é considerada como zona de proteção da criança, estaremos lidando com ficções de fronteira e de território, de ataque e de defesa, de polícia e de ladrão. Será lícito caçar aí os estereótipos, denominação em voga para designar as identificações ideais que o discurso oferece às crianças do tempo para lhes confeccionar uniformes prêt-à-porter ou lhes oferecer “fantasias excêntricas”, com as quais elas podem se vestir para suportar ou enganar a demanda do Outro. Diante da Mini Miss de sete anos e do jihadista de quatorze, quem pode ainda pensar a infância fora do alcance dos significantes-mestres? O paradoxo é maciço: quanto mais a criança é designada pelo seu eu-sou-uma-criança, mais as identificações que ela colhe ameaçam entrar em funcionamento como verdade de seu ser.
Há um outro modo de considerar a infância. Nós o obtivemos primeiramente de Freud, que situou, no limiar da infância, um abismo que ele nomeou “amnésia infantil”, uma zona de esquecimento, portanto, ou mesmo de não reconhecimento fundamental, Unerkannt (MILLER, 2007, p. 237, Nota 7). Em seguida, Lacan faz aparecer, como luz rasante, essa zona litoral, onde não falamos ainda e onde somos falados, de onde se deduz que a criança é por excelência o falasser, por ser o primeiro a habitar essa zona litoral que é a infância, com a carga para ele de ser também o primeiro a poder tomar literalmente esse real – de ser ao mesmo tempo falado e falante. À sua disposição, entre função da linguagem e campo da palavra, lalíngua se oferece a ele para infiltrar cada ficção com seus fluxos e refluxos, para criar aí erosões e depósitos aluviais, para povoá-los com quimeras diversas, Pocket Monsters menos enquadrados do que os ditos Pokémons,[4] que não hesitam em reciclar as significações mais uniformizantes. Nessa zona litoral, o estatuto do sujeito muda, pelo “fato de ele se apoiar num céu constelado, e não apenas no traço unário, para sua identificação fundamental” (LACAN, 1971/2003, p. 24) – constelação que constituem as configurações significantes, singulares e contingentes, que se realizam na lalíngua. O uso das ficções não se mede aí pelas verdades que elas conteriam, mas pelo fato de que nelas se declina uma varité do gozo (LACAN, 1977/1998), tal como ela se repete e, portanto, se perde ao longo de seus relatos.
P’titom[5]: um nome novo para a criança
Tiramos proveito do último ensino de Lacan para liberar a criança dos ideais da infância e, para marcar essa ruptura, podemos nos aproveitar de um nome – p’titom – que vem sob a pena de Lacan, durante sua conferência sobre Joyce de junho de 1975, e que nos permite correlacionar a criança e suas ficções não mais ao verde paraíso dos amores infantis, mas ao sintoma. A frase é a seguinte: “Ptom, Pt’homenzim, Pt’homendebem ainda vive, na língua que se crê obrigada, entre outras línguas, a ptomar a coisa coincidente” (LACAN, 1975-76/2007, p. 158).[6] Graças a essa frase, Lacan pode definir o sintoma estritamente como “coincidência” – “pois é o que isso quer dizer” – e ao mesmo tempo fazer ressoar a coincidência fonética do ptom com o p’titom, a criança, que se revela então ela mesma como “coisa coincidente”, como sintoma portanto, junta e disjunta do símbolo que ela é na civilização.
Coloquemos então que, para o p’titom do século XXI, filha ou filho de lom,[7] as ficções são o modo mesmo graças ao qual se enodam gozo e significante, sintoma e símbolo: desse encontro, desse choque, elas são o cristal. Elas são “manipulações linguageiras”, jogo da criança com a linguagem, assim como jogo da língua com “o vivente que fala” e que ela “traumatiza” desde antes de sua vinda ao mundo. Isso já se lê sob a pena de Freud, com a leitura que Lacan propõe a respeito do sonho de sua filha Anna e do jogo de seu neto, o jogo do Fort-Da.
Assim, o sonho da pequena Anna,[8] com a idade de dezoito meses, já tem estrutura de ficção, recolhendo significantes – “Anna Freud, molangos, molangos silvestes, omelete pudim!” (FREUD, 1900/1996, p. 164)[9] – ao mesmo tempo furados pela demanda do Outro (pois estão sustentados por uma proibição enunciada na véspera pelas pessoas que estavam com ela) e carregados de gozo. Quanto ao jogo do Fort-Da, ele permite à criança, aparelhada com um simples carretel, material que é “alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele”, saltar “as fronteiras de seu domínio” e começar “a encantação” (LACAN, 1964/1988, p. 63). Um passo a mais e é com a mesma encantação – Fort-Da – que a criança se fará desaparecer, dando aqui testemunho daquilo que está em jogo nessa primeira manipulação linguageira: esse objeto, o carretel, “é aí que devemos designar o sujeito” (LACAN, 1964/1988, p. 63).
Mas a prática dos jogos eletrônicos pelas crianças de hoje, prática que ocasionalmente preocupa pais e especialistas da infância, não tem a mesma estrutura disso que reconhecemos como primeiras ficções: é uma conexão aparelhada e repetitiva a um dispositivo que se revela especialmente contaminado pelos significantes do Outro (níveis, combates contra os boss[10], pontos de vista[11], etc.) – um flerte permanente com diversas zonas proibidas? Associá-los não é abolir suas diferenças: o sonho é recolhido por Freud como algo já escrito pela jovem sonhadora; o jogo do Fort-Da é uma invenção do menininho diante de uma situação complexa, a saída de sua mãe. Por outro lado, um jogo eletrônico é uma ficção pré-fabricada com significantes do discurso corrente e com imagens que formam uma casca, ou um bando[12]: um bando de imagens que faz agalma, ou o bando das imagens que raptam os significantes para fazê-los servir a diversos usos traficados. Mas não é esse o duplo uso das imagens no falasser? Há aqui um vasto mercado de ficções à disposição do p’titom, mercado que se apresenta sob o modo do “pacote ilimitado”, que é o Graal da juventude moderna. Questões surgem: como incluir aí o “eu”? Não é aí onde a máquina me aparelha que o “eu” está? Não sou “eu” o servo do gozo da máquina, máquina que exige meu apetite, meu olhar, minhas trocas, e exige que eu abandone minha voz para obedecer à sua voz? De certa forma, é cada criança de hoje que deve responder a essas questões, e cabe aos analistas garantir que não seja em vão acompanhá-las diante dessas questões. São, portanto, das crianças em análise que podemos esperar que nos conduzam ao centro desse “grande mercado de ficções”, para verificar com elas se encontram aí algum recurso de semblante e/ou se elas ficam à deriva ao querer ganhar vidas ilimitadas onde nada se perde.
P’titom em análise
Nos propomos a examinar essas duas modalidades de funcionamento das ficções para uma criança em análise: as ficções como produções que seguem o deslocamento do desejo, posto em movimento pelo encontro do sujeito com as diversas modalidades de falta; as ficções como fixações, “fixões”, de um gozar em excesso que promove eclosão, trauma, fora de sentido e que trazem as marcas dessa ruptura. “Ilustração e prova”, portanto: ilustração de que há “sujeito enfim em questão” nos ditos da criança, ilustração que pode valer ocasionalmente para seus próximos, mas, em primeiro lugar, para ele mesmo; e prova da presença de um real ineliminável, inassimilável, do qual a criança não se protege, ao contrário do que desejam os adultos.
É para nós a ocasião de nos liberarmos de preconceitos que manteriam a criança afastada do “dado” sexual com o qual os adultos lidam. De certa forma, as crianças não teriam as cartas nas mãos, devido à sua imaturidade sexual, imaturidade que se ergueria com a vinda da puberdade, desencadeando a dita crise da adolescência. Mas seria esse realmente o caso? Não seria necessário considerar, ao contrário, que a menor ficção da criança é uma teoria sexual, uma teoria que se edifica sobre o “impasse sexual” e traz sua marca? Numerosas indicações de Freud e de Lacan nos colocam nessa via, desde os chistes ditos ingênuos levantados por Freud até a análise desenvolvida que Lacan faz da observação da fobia do pequeno Hans em seu Seminário 4, A relação de objeto.
Há aqui dois aspectos distintos. Por um lado, há a inclusão do encontro possível, ou mesmo provável, da criança com “um primeiro gozar”, com uma Coisa que não se inscreve nas coordenadas simbólicas ou imaginárias prévias ou em vias de se elaborar, alguma Coisa que acontece, mas perante a qual nem o sujeito, nem o Outro, podem responder “presente”. Por outro lado, há o fato de que a criança recebe do Outro o saber, que é com os significantes do Outro – “de um certo tipo de mãe e de um certo tipo de pai”[13] – que ela entra no universo dos semblantes. Assim, por um lado, esses significantes trazem a marca do desejo do Outro, mas igualmente o traço de que eles foram forjados em um mundo onde os semblantes do sexo estão de alguma forma “em atividade”. É o que demonstra Lacan em seu Seminário, …ou pior, quando precisa que os significantes “menino” e “menina”, com os quais as crianças se distinguem, lhes vêm da distinção homem-mulher, que se edifica no encontro entre os sexos, com os impasses de gozo que esse encontro comporta. Os significantes se revelam, então, como que contaminados pelo gozo, tornando vã toda tentativa de manter as crianças em estado de inferioridade, seja ela cognitiva, seja psicológica ou biológica.
Digamos então que, se elas têm as cartas na mão, elas têm tempo livre para estabelecer as regras do jogo, para tentar as diversas permutações possíveis e para deixar as próprias cartas jogarem entre si. São essas as ficções da infância, essas duas modalidades reunidas em uma dupla hélice a cada vez singular, duas modalidades que vamos examinar de modo artificialmente distinto sob os nomes de “ficções de tipo Hans” e “ficções de tipo Alice”.
Mas, antes, vamos esclarecer que elas só podem se distinguir assim a partir da experiência analítica, onde encontram sua lógica na intervenção do psicanalista e na direção do tratamento que ele escolhe. Vemos assim Lacan, durante sua elaboração a respeito do pequeno Hans, lembrar por várias vezes que o pai intervém demais, com muita frequência, e que conviria deixar a palavra do menino ir até seu fim. Há por trás dessa observação toda a concepção da transferência como elaboração do sujeito-suposto-saber, concepção que Jacques-Alain Miller recolheu em sua fórmula “o inconsciente intérprete”, e encontramos frequentemente, no relato dos tratamentos de crianças, essa atmosfera interpretativa particular que é acompanhada de uma proliferação ficcional, onde podemos certamente situar o sujeito-suposto-saber na figura de um Outro “bom ouvinte” que traria assim sua garantia de verdade subjetiva às construções da criança. Ora, não é disso que se trata, mas, como indica Freud, de uma parte de verdade pulsional contida no que ele nomeia “teorias sexuais infantis”, e é como impostor que aparecerá toda figura que pretenderia ter autoridade, mesmo que simbólica, sobre a parte de gozo obscuro que aflige todo falasser. Há uma dificuldade que não é específica do tratamento com crianças, mas que aí se instala ainda mais insidiosamente quando o praticante permanece preso a uma dimensão oracular da fala da criança. A partir disso, a decifração das formações do inconsciente isola os nós de significação de onde o sentido se esquiva, como demonstra o comentário de Lacan sobre o pequeno Hans.
É, portanto, sob outra perspectiva que essa fuga do sentido pode ser acolhida, uma perspectiva “ao avesso”, onde ela é definida positivamente como fora de sentido, joui-sens,[14] perspectiva com a qual o analista se autoriza para cortar no vivo do discurso e fazer sobressair o osso de gozo que aí se corrói: para dar conta disso, contaremos com as múltiplas rupturas com as quais Alice é confrontada no País da Maravilhas, por onde ela se aventurou, e isso graças à “Homenagem a Lewis Carroll” pronunciada por Lacan (1966/2015) em 1966.
Ficções de tipo Hans
Lacan dá as coordenadas dessas ficções, enquanto elas são “pequenos mitos” elaborados por Hans a partir de um certo número limitado de elementos significantes, que se permutam à medida que se estabelece uma conversação contínua entre ele e seu pai a respeito de “sua bobagem”,[15] uma fobia de cavalos que se desencadeia aos quatro anos e nove meses de idade. Lacan extrai desse sintoma as duas significações polarizantes, “morder” e “cair”, que se enodam em um primeiro tempo no significante fóbico cavalo e se cristalizam no sintoma fóbico, e que posteriormente vão ser suportados pelas ficções e fantasmas sucessivos. Essas duas significações são, no fundo, os pontos de apoio encontrados por Hans no momento em que um abismo se abre sob seus passos, abismo duplo, Cila e Caríbdis: o nascimento de sua irmãzinha introduziu um elemento difícil de se encaixar no jogo de engodo fálico entre ele e sua mãe; a entrada em jogo do pênis real também não consegue se inscrever na lógica imaginária precedente. Lacan (1956-57/1995, p. 300) insiste em situar essa elaboração ficcional como “tentativa de articular a solução de um problema”, a passagem “de um certo modo de explicação da relação-com-o mundo do sujeito […] para outro modo” necessitado “pela aparição de elementos diferentes, novos, que vêm contradizer a primeira formulação”. E precisa que essa novidade exige “uma passagem que é, como tal, impossível, que é um impasse. Isso é o que dá sua estrutura ao mito” (LACAN, 1956-57/1995, p. 300).
A função desse tipo de ficção é assim claramente definida por Lacan (1957/1998, p. 524): elas permitem explorar “todas as formas possíveis de impossibilidades encontradas no equacionamento significante da solução”… até encontrar a saída singular. Para Hans, ela é localizada por Jacques-Alain Miller (1994, p. 16, tradução nossa) como a transformação “iluminante, […] que preside à conversação da mordida em desmontagem da banheira”. Ela permite ao jovem menino se extrair da angústia central de ser levado com ela, graças à operação do serralheiro que desenrosca a banheira para fazer dela um lugar do seu tamanho.
Notemos com Lacan que a eficácia dessa saída, que está bem distante de uma resolução ideal do complexo de Édipo, repousa em duas manipulações linguageiras que estão em ação nessa “lógica de borracha”.[16] Em primeiro lugar o chiste, que dá também a essa grande conversação sua tonalidade alegre, e isso por causa do próprio Hans, de seu estilo, dirá Lacan (1956-57/1995, p. 301): “jogar com o non-sens fundamental de todo uso do sentido”, eis a possibilidade da qual não se priva Hans diante das perguntas ou sugestões um pouco insistentes demais do pai.
Mas, por outro lado, há, de modo muito preciso, um jogo das palavras tomado ao pé da letra, que vai se revelar incluído ao mesmo tempo na fobia e em sua solução. Hans se apoia aqui, e isso não é insignificante, em seu livro de imagens, no momento em que expõe a seu pai uma de suas teorias sobre a presença de sua irmã Anna. Na página da esquerda, uma cegonha sobre uma chaminé, representada por um paralelepípedo vermelho: eis aí a caixa de bebês, onde a cegonha os esconde, e que Hans faz equivaler a outras caixas, aos carros de entrega; na outra página, ao lado, um cavalo que está sendo ferrado. Vai-se demonstrar que essas duas páginas operaram para Hans como dois quadros de uma mini história em quadrinhos, na qual estariam condensadas as matrizes significantes de onde partem as séries associativas que informam as ficções da criança: a caixa onde nascem – geboren – as crianças se liga, assim, à banheira na qual intervém o serralheiro que fura a barriga de Hans com sua furadeira – Bohrer.[17] O cavalo que é ferrado – beschlagen – será o mesmo cavalo que será chicoteado – geschlagen – em uma das pequenas fantasias da criança.
Aqui já é uma ficção “tipo Alice” que entra em função: jogo de palavras e jogo de letras dão as mãos e vêm perfurar as fantasias da criança, nutridas pela busca de sentido do pai.
Ficções de tipo Alice
Certamente, Alice é uma criatura de ficção, não é ela que é a produtora de pequenos mitos como Hans. Mas, precisamente por isso, ela nos permite mais facilmente modificar nosso ângulo de visão. Vimos, de fato, como para Hans o jogo literal e sonoro das palavras se alojava no centro mesmo de seu sintoma, e depois de suas ficções-fantasmas. Nessa perspectiva, a exploração do sentido do sintoma esbarra na causa do sintoma, admiravelmente identificado por Freud no blábláblá de Hans: ele pegou a “bobagem” no dia em que as crianças não paravam de dizer wegen dem Pferd (“por causa do cavalo”) – expressão estritamente homófona a Wägen (dem Pferd, ou “veículos de tração animal”) em sua pronúncia vienense: “a pequena palavra wegen [‘por causa de’] foi o meio que favoreceu a fobia estender-se desde Wagen [‘veículos’], ou Wägen [que se pronuncia exatamente como ‘wegen’]” (FREUD, 1909/1996, p. 59, Nota 1). Nesse ponto preciso, Lacan (1956-57/1995, p. 324) indica que “A hiância da situação de Hans é inteiramente ligada a esta transferência de peso gramatical”. É esse método que Lewis Carroll vai usar desmedidamente em suas ficções “Alice”, método a respeito do qual Lacan (1966/2004, p. 8) observa esse “traço, a ressaltar que o jogo de palavras em Carroll é sempre inequívoco”. Essa salutar malícia com que ele qualifica o efeito produzido não se deve ao fato de que nada se acrescenta aos significantes além de sua dupla materialidade literal e sonora? Não é essa materialidade tomada na palavra que permite a Lacan (1966/2004, p. 8) ver nessa obra uma primeira amarração dos “três registros – o simbólico, o imaginário e o real – […] jogando em estado puro com sua relação mais simples”?
Essa relação é definida assim por Lacan em sua homenagem a Lewis Carroll[18]: há imagens com as quais o autor faz “puro jogo de combinações”, isto é, ele as faz entrar em uma combinatória de tipo simbólico, o que não deixa de produzir “efeito de vertigem”.
Esse efeito é obtido pelo procedimento que consiste em tomar todos os “corpos” presentes na sua dimensão de imagem em duas dimensões e, ao mesmo tempo, em sua dimensão física de três dimensões, permitindo assim introduzir “todos os tipos de dimensões virtuais” tornadas sensíveis pelas distorções produzidas por ações em 3D efetuadas por imagens em 2D, deslocamentos 2D sobre corpos 3D, encontros das imagens e dos corpos na dimensão virtual recém-criada. Seria necessário igualmente situar uma quarta dimensão, a do tempo, que vem aparecer no texto com as diversas acelerações, as desacelerações, e mais fundamentalmente nas rupturas de fase na narração, que parecem responder a uma lógica “catastrófica” ligada a nenhum sentido e a nenhuma causa. Enfim, são precisamente essas dimensões virtuais que perfuram a realidade sensível e “fornecem acesso à realidade […] a mais garantida, aquela do impossível que se torna de repente familiar”. Diremos que Lacan define aqui um real produto estrito de uma ficção, sem passar pelo mito – ficção que enoda então R, S e I, sem que um dos registros se destine a dominar os outros, a “gerenciá-los”, a “dominá-los”.
Nossos modernos jogos virtuais têm tudo para invejar as ficções de “tipo Alice”, que conseguem, com uma maior economia de meios, esses efeitos contrastantes que Lacan (1966/2004, p. 7) aponta: “sem que nos sirvamos de qualquer distúrbio, a obra de Carroll produz um mal-estar que decorre de um júbilo singular”. Certamente, esses jogos não se privam de se servir de certos transtornos, caroços de fantasmas, mas esse mal-estar do qual decorre um gozo bem singular, não é isso que os adultos, educadores e pais, têm tanta dificuldade em suportar no que nos arriscamos a nomear algumas vezes como “vício de jogos eletrônicos”. Os criadores de jogos eletrônicos não são Lewis Carroll, mas são artistas que fazem obras. Que elas estejam infiltradas pelos significantes-mestres do discurso corrente não contraria sua função de sublimação: toda a força do objeto de arte, em todas as épocas, está em se servir dos semblantes para capturar o espectador em sua errância e fazer sobressair seu valor de gozo.
Com a obra de Lewis Carroll, Lacan (1966/2004, p. 12) dá a ideia de um registro épico esvaziado do idílio que nele se exprime, quando se acrescenta a ele a ideologia, de um registro épico a ser situado em correlação com “o épico da era científica”. Esse épico repousa em “uma dialética materializada”, tal como, precisa Lacan, “a técnica assegura sua prevalência”, se apoiando na história em quadrinho, anunciada pelos “desenhos com os quais Lewis Carroll estava tão empenhado”. E, portanto, esse tipo de ficção “épica” nos interessa especialmente, porque interessa às crianças de hoje, que encontram nela recursos outros para além dos “contos, mitos e lendas”, onde gostaríamos de localizar p’titom, e porque ela interessa aos artistas que encontram na técnica, muito mais prevalente hoje, novos meios para materializar dialeticamente a “rede mais pura de nossa condição de ser: o simbólico, o imaginário e o real”.
Inútil, aponta Lacan (1966/2004, p. 10), querer indexar esse poder das palavras com as quais Alice faz “ilustração e prova […] de uma suposta articulação infantil, ou mesmo primitiva”. O “coração da terra” que Alice explora “não abriga nenhuma caverna” e o país das maravilhas, o para-além do espelho, o casal angustiante de Sílvia e Bruno evadidos das terras de alhures que escaparam do país do além, não são nem mitos, nem mito […]. Nem o texto nem o enredo fazem apelo a nenhuma ressonância de significações que chamamos de profundas. Não evocamos aí nem gênese, nem tragédia, nem destino. (LACAN, 1966/2004, p. 10)
Não encontramos nessas afirmações o eco invertido das lamentações dos adultos sobre o empobrecimento das imaginações infantis na época dos jogos eletrônicos, esquecidos que estão de que seus assuntos cotidianos, tanto quanto os telejornais, saciam as mesmas crianças com tragédias sem nome, com destinos fulgurantes e com quedas irrevogáveis, com dialéticas de vida e de morte literalmente des-materializadas.
Bricolagens
Uma psicanálise pode permitir a uma criança – p’titom do século XXI – fazer de seu sintoma ficção, isto é, que ela se deixe morder por ele e que ela leve em conta o que cai dele. Como? Drenando o sentido que se liga a ele, para fazer surgir dele o osso da coincidência, do encontro contingente que veio bagunçar sua vida, seu corpo, seu pensamento, lá onde era esperada, aguardada, temida, a intervenção de algum símbolo que tornaria legítimo o desejo em sua lei. O pequeno Hans permanece aqui sempre como nosso guia, mas não sem Alice. Hans, convidado pela cegonha sobre sua caixa de bebês e pelo cavalo que é ferrado no país das maravilhas e do outro lado do espelho, descobre aí um mundo tão estranho quanto o colégio de Hogwarts, teatro das aventuras do jovem e ágil Harry Potter: uma mãe, fonte até então inesgotável de riquezas, que agora se afasta sempre que ele tenta se aproximar dela; um pai que não pode nem se aborrecer, nem se ferir – então que uso fazer dele?; um professor que fala com Deus e gosta de tudo o que ele diz, uma vez que está escrito; uma irmãzinha montada em um cordeiro; uma cegonha com chapéu e bengala; duas girafas, uma grita e a outra se encolhe; crianças imaginárias; calcinhas femininas; um serralheiro que muda a banheira e sua grande furadeira; um serralheiro que desparafusa e torna a parafusar, mas não tudo… Todo um “mobiliário instintual” (LACAN, 1956-57/1995, p. 409) que faz o que quer e com o qual p’titom tenta fazer bricolagens: por que então seria necessário que ele tivesse a última palavra?
Os sintomas são nossas ficções e é com essa lógica que um psicanalista pode se formar para permitir às crianças do século fazerem uso dela com a mesma destreza, com a mesma alegria que elas demonstram em seus jogos aparelhados com a modernidade técnica. Assim, elas poderão, explorando os territórios de seus mitos e o litoral de lalíngua, obter de passagem uma certa margem de liberdade, ou de manobra, junto aos objetos do século, pelo simples fato de dispor de objetos de maior valor, por terem sido isolados, estimados, apreciados, pela exaustão de suas ficções, e daqui em diante disponíveis para jogos de “dialética materializada” com seus parceiros no jogo da vida.
No meio desta palavra que ele tentava dizer,
No meio de sua alegria e de seu riso loucos,
De repente, muito devagar, ele tinha desaparecido,
Pois o Snark, veja você, era um Boojum.
(CARROLL, 1876/2017)
Desde Freud, a criança é um sujeito que aloja um inconsciente. Dizemos que há inconsciente desde que haja discurso do Outro. O bebê, desde seu nascimento, é tomado na fala do Outro. Sua dependência em relação aos pais é dupla: é vital nos primeiros anos de vida, pois, como diz Lacan (1949/1998, p. 429), o bebê vem ao mundo em uma “prematuração do nascimento”. Sua sobrevivência depende inteiramente dos cuidados do Outro. Essa dependência total não deve ser subestimada. Ela funda elementos cruciais que se inscreverão no destino da criança.
Isso fala
Em latim, chama-se infans aquele que não fala, aquele que é dependente do Outro, que ainda não adquiriu a linguagem. O infantil refere-se justamente a esse estatuto singular do sujeito. A criança que não fala era aquela cuja palavra não tinha estatuto jurídico reconhecido. Não faz muito tempo que a fala da criança passou a ser escutada, levada em conta e protegida por direitos – aqueles estabelecidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989, que regulamenta essas questões. Sua palavra conta enquanto sujeito – não a advir, mas enquanto sujeito falante. Isso se conecta com o fato de que, para a psicanálise, mesmo aquele que não fala, não deixa de ser um corpo falante. Lacan destacou com precisão que a criança é falada pelo Outro muito antes de vir ao mundo. E essa palavra, ao mesmo tempo em que é recebida do Outro, a aprisiona. O fato de ser tomada pela linguagem antes mesmo de seu nascimento levanta questões fundamentais: O que é o sujeito do inconsciente? Ele existe antes do nascimento? O que é o nascimento senão essa captura pela linguagem do infans concebido por um par de falasseres? Sua “prematuridade” não o impede de ter acesso ao que lhe é dito, mesmo que não o compreenda. É isso que Freud chamou de inconsciente, um lugar de onde isso fala, sem que o sujeito saiba. Lacan (1954/1998, p. 381) o formalizou em seu aforismo “o inconsciente é o discurso do Outro”, que indica que o Outro precede o sujeito e que o inconsciente é seu resultado. “De seu encontro com a linguagem, o sujeito sai esmagado, soterrado sob o significante que o oprime […]. Eis o entre-dois, recalcado, deslizante, ek-sistente, sujeito barrado e que se barra”, escreve Jacques-Alain Miller (2013, p. 10). Esse encontro faz um trauma. É tanto aquele que remete ao fato de que “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, como fala Lacan (1975-76/2007, p. 18) ao teorizar o fim da análise, quanto aquele que provoca o fato de o autista não falar. O fato dele não falar não significa que ele não escute. Aliás, Lacan (1975/1998) surpreendeu seu público em 1975 ao afirmar que autistas são “sobretudo verbosos”. Isso indica que o autista, assim como o infans que ainda não fala, está capturado pela linguagem. A diferença reside no fato de que a criança, ao ouvir os significantes invadindo seu corpo, os utilizará para fazer apelo ao Outro e demandar sua presença. O autista, por sua vez, não faz apelo ao Outro. O homem “é prisioneiro da linguagem, e seu estatuto primordial é o de ser objeto. Causa do desejo de seus pais, se tiver sorte. Se não tiver, resto de seus gozos” (MILLER, 2013, p. 11). Causa do desejo de um lado, resto de seus gozos de outro, “A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia” (LACAN, 1969/2003, p. 370). Ela é o objeto a que não conseguiu agarrar-se a um S1 que o representaria na cadeia significante. Ela permanece fora da cadeia.
Isso goza
O infantil caracteriza tanto a neurose, quanto a psicose. Encontramos o traço do infantil em ambas as estruturas. Da mesma forma, a perversão – considerando a predisposição da criança à perversão polimorfa descrita por Freud (1905/2020, p. 70) – revela a precocidade do gozo sexual na criança. O que se nomeia “infantil” não designa a criança como pessoa, mas seu conceito enquanto aquilo que concerne ao real do sintoma na experiência analítica. A sexualidade é esse real descoberto por Freud. O escândalo que essa descoberta provocou – e continua a provocar – relaciona-se com o impossível do qual ele faz sintoma. É um impossível mesmo que hoje em dia se apreenda a sexualidade infantil pelo trauma do abuso. Se a sexualidade infantil não é mais negada, ela tende hoje a ser estigmatizada como abusiva quando manifesta nos atos dos adultos (incesto, violação) ou nas interações entre crianças (carícias precoces). Esses abusos, hoje reconhecidos pela justiça, não devem ocultar a existência de uma sexualidade infantil que é estrutural. A criança descobre a sexualidade primeiro em seu próprio corpo, antes de se interessar pelo corpo do outro. Para Freud, o traumatismo é sexual. No início de sua prática com as histéricas, Freud se surpreendeu ao identificar que os primeiros sintomas que organizam a neurose do adulto se situam na primeira infância. Ele descobre o vínculo primordial entre sintoma histérico e trauma infantil. A infância é marcada por cenas que deixaram traços indeléveis. O recalque é o mecanismo que permite uma preservação desses conteúdos de gozo, que são as cenas traumáticas. É nessa articulação que se situa a junção entre os tempos da infância e da vida adulta. Não há continuidade temporal, mas, ao contrário, uma descontinuidade, que revela que o sintoma do adulto se constrói simultaneamente a partir da neurose infantil e através da contingência dos eventos vividos pelo sujeito. O recalque serve para protegê-lo, mas ele é também o guardião do traço traumático. Nesse sentido, a cena sexual é sempre um acontecimento que guarda a excitação experimentada durante o ato. Rememorá-la significa recuperar uma parte do gozo que se produziu nela e que serviu para a construção do sintoma.
Se, para Dora, o trauma gira em torno da chamada “cena do lago”, para o Homem dos Lobos trata-se de uma lembrança que deixará marcas indeléveis, as quais Freud utiliza para interrogar o conceito de castração. A criança nem sempre permanece no adulto – fórmula que não quer dizer muita coisa –, mas aquilo que persiste e permanece ativo da infância ressoa no sintoma de um corpo falante. O que dizer, por exemplo, do sintoma de Dora de chupar o dedo, que marca a fixação em um gozo oral que decorre do autoerotismo (sugar o polegar), mas que também envolvia a ação de puxar a orelha de seu irmão, sentado tranquilamente ao seu lado? Freud (1905[1901]/2020) observa que “trata-se de um modo completo de satisfação de si mesmo através da sucção”. O polegar, por um lado, e a orelha do irmão, por outro, constituem um gozo oral cuja manifestação é ilustrada em seu sintoma de afonia e posteriormente no de tosse. Lacan (1951/1998, p. 356) identifica essa cena como “a matriz imaginária em que vieram desaguar todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida” – no que diz respeito às relações entre homem e mulher. Evidencia-se, assim, o indício de uma escolha de objeto determinante, desde que ela pôde recuperar essa primeira lembrança em sua análise.
O infantil escreve a importância daquilo que permaneceu fora de sentido para o sujeito e que ressurge na análise do adulto como um acontecimento de gozo. O infantil é um nome do real na experiência analítica.
Desde seus primeiros tratamentos, Freud estimulava seus pacientes a verbalizarem seus pensamentos e lembranças, sem nenhuma censura, na tentativa de não deixar escapar nada. Essa “regra de ouro”, nomeada mais tarde de associação livre, tinha como alvo aproximar-se dos conteúdos recalcados. Freud percebe que, ao falar, dizemos mais do que pensamos dizer, pois revelamos, pelo material manifesto, o conteúdo latente inconsciente. Ou seja, desde os primórdios da psicanálise, ele procura encontrar a causa dos sintomas das histéricas, através da fala. Miller (2025, p. 127) afirma que “Freud começou seu caminho na busca da causa, e não na busca do sentido”, busca que segue determinante até os dias atuais. Mas como nos guiar nesse caminho para que a fala não prolifere como uma “erva daninha” (MILLER, 1998, p. 40)? Pois sabemos que há na linguagem um poder de ampliação no registro do sentido, do som, que faz com que tudo que se diz seja passível de interrogar: o que isso quer dizer? Ou seja, se tomada por esse viés, a fala pode prosseguir infinitamente, a “palavra bebe o sentido; ela se deleita nesse sentido como a terra demasiado seca, e jamais saciada” (MILLER, 1998, p. 40).
Miller (2019 p. 149) propõe que, para encontrar a causalidade do sintoma, deve-se distinguir, no “estatuto do trauma”, o “vivido como”, do lado da diacronia – da história, de uma ferida que ocorreu antes e do sentido – e o que resta enigmático e é puro furo, do lado da sincronia. E para isso faz-se necessária a presença do analista, encarnando o lugar de SSS, que capte a causalidade desse acontecimento passado.
Tomar o trauma pelo viés da sincronia, do trouma, é abordagem de Lacan, a partir de sua leitura de Freud que culmina com a fórmula “não há relação sexual”. Isso implica que a relação do sujeito com a sexualidade será sempre traumática e a linguagem será uma forma de “se virar” com esse troumatismo, marca do encontro da linguagem com o corpo. Volto a afirmar que isso não se faz sem a presença do analista.
Uma análise visa exatamente resgatar os efeitos desse trouma no discurso do falasser, via interpretação. A escolha do tema do XII ENAPOL vai nessa direção, conforme ressalta Fernanda Otoni (2025, s.p.): “vamos ‘falar com a criança’, porque não se faz outra coisa numa análise do que fazer falar a criança” – ou seja, falar com isso que faz furo no encontro entre lalíngua e o corpo: o trauma.
Essa ênfase no “fator infantil”[1] como causalidade do sintoma, Freud (1913/1996, p. 218) a descreve da seguinte forma:
sabemos quão extraordinariamente importantes são as impressões da infância e, especialmente, as da primeira infância, para todo o curso subsequente da vida de um homem. Neste ponto, deparamo-nos com um paradoxo psicológico, que não existe apenas na concepção psicanalítica, a saber, que são precisamente essas impressões da maior importância que não são preservadas na memória dos anos posteriores. A psicanálise soube estabelecer de maneira mais evidente esse caráter de modelo indelével dos primeiros acontecimentos, justamente para a vida sexual. Nós sempre voltamos aos nossos primeiros amores, essa é a pura e simples verdade.
O que é indelével, inefável, o que é atingido pelo buraco da memória, é, portanto, o mais marcante. É uma memória que se forma pela ausência, inscrita como um lugar reservado.
O termo lalíngua é introduzido por Lacan para situar precisamente essas marcas de gozo que escapam a articulação significante, que apontam para uma positividade ineliminável. Portadora de um investimento libidinal próprio de cada um, lalíngua se situa na junção mais íntima entre gozo e significante. Absolutamente particular, ela beira o inexprimível e é antes de tudo resultado de um caldo de mal-entendido familiar, que funciona a partir de sua própria norma, o que faz com que seja em torno dela que se articulam os nossos pontos de inserção e de exclusão na comunidade humana: “É com lalangue e contra ela que nós nos inscrevemos no mundo” (FARI, 2023, p. 144).
Falar com a criança visa atualizar o traumatismo de lalíngua, já que, ao querer saber mais, o analista funda um discurso apoiado nas singularidades linguageiras de cada parlêtre. Busca-se transferir para o significante o que é incompatível com ele, até o osso, o resto. Ou seja, nas voltas do significante em torno desse furo, o que resta do sujeito é seu status de objeto a, revelando-se, nesse momento, que ele não foi outra coisa senão o que o Outro desejou, isto é, que foi o produto do desejo do Outro.
No início da experiência analítica, o analisante fala a partir da crença no sujeito suposto saber, do qual o analista é suporte, via transferência. Se o paciente se presta a dizer tudo o que vem à cabeça é porque ele supõe um Outro que sabe sobre a causa de seu sintoma, suas verdades escondidas. Mas se a crença no SSS constitui o motor da transferência, não se trata, do lado do analista, de partilhar essa crença, mas de se servir dela. Portanto, é preciso que ele coloque em jogo, na transferência, um ato que possibilite ao sujeito separar-se desse lugar de objeto que ele se fez ser para esse Outro, em seu fantasma. A interpretação analítica, como ato de corte na cadeia significante produtora de sentido, visa desconsistir o Outro, desnudando assim o furo de estrutura. Como nos lembra Miller, uma análise avança em direção a isso de que não se pode falar e “tem de suar para chegar ao singular” (BRISSET, 2025, s.p.).
Nesse caminho, as defesas se levantam e podem se manifestar de variadas formas: nas reticências, no mutismo, na verborreia e, também, nas passagens ao ato ou no acting out (KUPERWAJS, 2025). Nesse momento, face ao que pode se apresentar como uma urgência subjetiva, ali onde a palavra é curto-circuitada, a prioridade imediata do analista é a de encontrar como ser um interlocutor para o sujeito, como “fazer par” (BRIOLE, 2019). O psicanalista é aquele que ocupa um lugar no ato. Um ato que não é um rito, nem protocolo, nem cálculo, mas é isso que surge num instante, e que verifica seus efeitos aprés-coup .
Rosine Lefort (2013, p. 129, tradução nossa), em uma entrevista dada a Judith Miller[2] na qual conta fragmentos de seu percurso em análise com Lacan, destaca como foi marcante para ela a forma com que Lacan se implicava em seu ato: “me ensinou o rigor e ao mesmo tempo a total não ritualização da análise: o ato analítico pode fazer-se em qualquer parte”.
Foi Jenny Aubry que a indicou para análise com Lacan, e assim que Rosine Lefort (2013, p. 130) o encontrou foi logo falando que era um “dejeto irremediável”. Passou os três primeiros meses de tratamento falando tudo que sabia dessa sua posição de dejeto. Na sua família, era tratada como uma “mulher débil”: sofria de fobias, de fugas, de sonambulismos – tudo isto em oposição a um irmão brilhante. Sua mãe era uma mulher muito humana, desde que não se tratasse de seus filhos. Seu pai era tão maternal que, quando ela tinha nove meses, ele quebrou sua perna de tanto apertá-la. Como ela chorou muito, foi deixada num canto da sala sozinha, e só mais tarde se deram conta de que ela estava machucada. Ela afirma que o próprio Lacan custou a acreditar nisso, chegando a pedir que ela mostrasse a marca (LEFORT, 2013).
Mas, após esse primeiro tempo, “Pouco a pouco o silêncio se instalou. Todos os dias, vinte minutos, meia hora, [eu ficava] em silêncio” (LEFORT, 2013, p. 131, tradução nossa). Para que ela saísse desse mutismo, Lacan tentou de tudo: falava ou se calava, fazia com que ela o acompanhasse no trabalho, corria atrás dela na saída, entre outras coisas. Confirma que “ele manteve sua pressão e eu toquei o que jamais verdadeiramente articulei, senão em eco, o outro lado de todas as palavras de meus pais que me haviam calado e das instituições que me insultaram” (LEFORT, 2013, p. 131, tradução nossa). Rosine afirma que, se Lacan não tivesse infiltrado o simbólico, mediante palavras, nem o vivo nas sessões, ela jamais teria voltado.
Durante oito meses que passou com Lacan, ela voltou a experimentar o terror frente ao furo da linguagem, e foi quando ele insistiu para que ela falasse das crianças, não só pelo que traziam à psicanálise, mas também como testemunho das curas efetuadas no passe, a partir desse lugar horrível que ela havia conhecido: “Esse mesmo furo encontrei nas crianças” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa). De sua experiência com as crianças e de sua análise, ela pôde dizer mais tarde que “O lugar imaginário no qual eu estava, enquanto a, resto, na análise com Lacan se inverteu: eu assumi esse lugar na análise [das crianças]” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa).
Dois sonhos vão delimitando a passagem desse lugar de dejeto para lugar de objeto causa. Aos dezessete anos, sonhou que era “sucessivamente um passarinho, um peixe vivo e um fogo fátuo[3]. […] eu seguia os passos, as pegadas, sem saber quem os fazia” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa). Ao final dessa sessão, Lacan lhe disse: “Adeus ao fogo fátuo”; e ela afirma: “Depois de muitos anos, achei isso extraordinário porque, de fato, era isso o que eu devia reter, do ponto de vista da marca” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa).
No segundo sonho, Rosine Lefort (2013, p. 132, tradução nossa) “estava no topo de uma duna extremamente afiada, em cujo extremo se encontrava Lacan, com seu olhar extraordinário”, e um precipício de cada lado: em um, encontrava-se “um carrinho [de bebê] despedaçado”; no outro, “absolutamente nada”. Para ela, esse foi o caminho percorrido em sua análise:
O lugar de resto e de dejeto foi a ferramenta e o gérmen do meu trabalho como analista. Dizer que me desembaracei disso na vida, é outro assunto. […] Lacan lutou contra minha debilidade e meu horror, e eu devia continuar nessa via. […] Ele manteve com rigor e vontade o fogo fátuo da marca, em uma via que desembocou na possibilidade de estar no lugar de a para as crianças. […] Essa é para mim a diferença entre um saber e meu desejo de saber. […] Falar em análise é falar, ou não, do ato, e é por isso que digo que luto tratando de escrever e de falar contra um resto débil. (LEFORT, 2013, p. 133-134, tradução nossa)
Se queremos nos fazer destinatários do que o falasser diz é preciso colocar em jogo uma clínica que se singularize no laço transferencial. Ali encontramos o ponto que orienta nosso trabalho: para falar com a criança, sem se perder no sentido, é preciso que o analista faça ressoar no corpo do parlêtre um dizer, um silêncio, um gesto que singularize sua relação particular com o gozo. Nesse sentido, Lacan (1971-72/2011, p. 84) dirá, a respeito dos pacientes do Hospital Sainte-Anne, que “todos são capazes de se fazerem ouvir , desde que existam ouvidos apropriados”.
Caro leitor,
O número 35 da revista Almanaque On-line inscreve-se na atualidade do trabalho de pesquisa proporcionado pela temática do XII Enapol, “Falar com a criança”. Em razão dessa convocatória, a Seção Clínica do IPSM-MG, com entusiasmo, consagrou-se ao tema no 1º semestre de 2025.
Se, em 2012, Jacques Alain-Miller formula a pergunta “o que é uma criança? Não é tarde demais para colocar a questão”, Lacan, em 1960-1961, orientava aos analistas a impedirem que o sujeito analisante respondesse à pergunta “o que sou?” com “eu sou uma criança”.
Tomar essa advertência de Lacan importa muito à clínica, pois desloca a ideia de desenvolvimento, que permitiria ter a cronologia como critério pelo qual os termos “criança” e “adulto” (este último pouco empregado no ensino de Lacan) excluiriam o sujeito analisante.
O que sairá da boca de uma criança, em uma análise, não será uma verdade que creditamos a uma certa “espontaneidade” provavelmente herdeira de nosso imaginário saudosista acerca da inocência de seu mundo. Tal como da boca de um adulto – para conservar os termos –, se algo vai se aproximar de uma verdade, advirá de outro território, fora do sujeito, ali onde há um buraco fora de representação.
Rosine Lefort, analista leitora fiel de Freud e de Lacan, reafirmou em diversos textos que infantil é a estrutura, isto é, o efeito do significante na constituição do sujeito do inconsciente, valorizando que a psicanálise é apenas uma. A leitura da obra de Freud do ponto de vista do infantil ensina o que se pode distinguir entre “criança” e “infantil”, dissociando infantil da teoria do desenvolvimento.
Dedicamos este número de Almanaque On-line, quase em sua totalidade, à abordagem do infantil. A rubrica Trilhamentos se inicia por um texto de Daniel Roy – a quem novamente apresentamos nossos agradecimentos pela generosa permissão para essa publicação –, no qual ele nos oferece um novo nome para criança, vindo de Lacan. Cito-o:
Tiramos proveito do último ensino de Lacan para liberar a criança dos ideais da infância e, para marcar essa ruptura, podemos nos aproveitar de um nome – P’titom – que vem sob a pena de Lacan, durante sua conferência sobre Joyce de junho de 1975, e que nos permite correlacionar a criança e suas ficções não mais ao verde paraíso dos amores infantis, mas ao sintoma.
Sim, P’titom ressoa com sintoma, uma maneira de cada um de nós lidar com a percussão da linguagem no corpo, o encontro caótico entre o significante e o gozo, como pura contingência.
São esclarecimentos que reavivam a importância da fórmula “Falar com a criança” evidenciada nesse texto: escutar o mundo próprio do sujeito, sempre original, tal como em Hans e em Alice no País das Maravilhas. Ao analista, cabe ler a marca singular da resposta do P’titom.
Falar do texto de Hélène Bonnaud inclui, primeiramente, expressar nossos agradecimentos pela amabilidade de nos conceder a autorização para sua publicação. Seu título? “O infantil”. Trata-se de uma escrita de inestimável clareza, em cuja transmissão oferece-nos uma passagem do conceito infantil vinda da clínica de Freud:
O que dizer, por exemplo, do sintoma de Dora de chupar o dedo, que marca a fixação em um gozo oral que decorre do autoerotismo (sugar o polegar), mas que também envolvia a ação de puxar a orelha de seu irmão, sentado tranquilamente ao seu lado? Freud […] observa que “trata-se de um modo completo de satisfação de si mesmo através da sucção”. O polegar, por um lado, e a orelha do irmão, por outro, constituem um gozo oral cuja manifestação é ilustrada em seu sintoma de afonia e posteriormente no de tosse. Lacan […] identifica essa cena como “a matriz imaginária em que vieram desaguar todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida” – no que diz respeito às relações entre homem e mulher.
Falar de infantil é falar da clínica, tal como Almanaque 35 o comprova. Gilson Iannini, a quem agradecemos pelo texto tão original e surpreendente, percorre, à luz do texto “Transitoriedade”, de Freud, o conceito infantil através de dois excertos clínicos. Ensina-nos, via os exemplos, o que chamamos comumente de “neurose infantil”, em sua manifestação do que não cessa de se inscrever, modalidade do sintoma. A articulação entre tempo, iteração e gozo permite-lhe definir o infantil como “não é o que passou, mas o que insiste”.
Ludmilla Féres, a quem igualmente endereçamos nossos agradecimentos, joga luz ao tema pela via da perspectiva “sob transferência”, trazendo-nos as palavras de Rosine Lefort na condição de analisante de Lacan. Dois sonhos vão conformando sua passagem do lugar de dejeto para o lugar de objeto causa. Ler esse texto permite-nos uma chance rara de apreciação – através das palavras da analisante Rosine Lefort – do Lacan analista.
Encontros é um encontro… com a Seção Clínica. Sérgio de Campos, futuro diretor do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, traz-nos um esclarecedor texto dedicado “aos jovens analistas”, como nos diz, desenvolvendo a história e a finalidade da criação da Seção Clínica, por Jacques Lacan. Para todos os leitores de Almanaque, uma leitura imprescindível.
Maria Wilma de Faria, diretora da Seção Clínica do Instituto, é a entrevistada de Almanaque 35. Assunto? Justamente, a Seção Clínica! Uma conversa que se inicia com a célebre pergunta de Lacan em seu texto de 1976 intitulado “Abertura da Seção Clínica”: “O que é a clínica psicanalítica?”. Na entrevista você encontra a resposta que Lacan mesmo se dá e, a partir dela, a formulação de Maria Wilma.
Vamos ler Almanaque On-line 35?
Baixe-o e leve-o com você!