Adeline, uma garotinha reservada[1]

Adeline, uma garotinha reservada1

Jacqueline Dhéret
Psicanalista, AME da École de la Cause freudienne/AMP

E-mail: jacqueline.dheret@wanadoo.fr

Resumo: Este texto discorre sobre a análise de uma menina de sete anos, cujo pai é transexual, coloca em cena questões que atravessam a nossa época, ligadas ao que se designou como parentalidade. A criança  em seu silêncio  “não sabe como fazer com seu pai”. Ao longo das sessões, junto à analista, ela constrói soluções que a ajudam a suportar seu mal-estar.

 Palavras-chave: criança; pai transexual; parentalidade, silêncio, mal-estar.

ADELINE, A RESERVED LITTLE GIRL

Abstract: This text discusses the analysis of a seven-year-old girl, whose father is transsexual, and raises issues that permeate our time, linked to what is known as parenthood. The child in his silence “does not know what to do with his father”. Throughout the sessions, together with the analyst, she builds solutions that help her cope with her malaise.

 Keywords: child; transsexual father; parenthood; silence; malaise.

A garotinha de sete anos e meio, que recebi durante dois anos e revi novamente quando esteve em Lyon, me contou suas preocupações. Ela “não sabe como fazer” com seu pai.

Ela veio acompanhada pela mãe, que explica a situação insustentável que vem enfrentando

há vários anos. O juiz de família encarregado do divórcio dos pais planeja encaminhar o caso ao juiz da infância, porque o pai de Adeline, que se afirma transexual,vive um relacionamento com um companheiro. O juiz esteve com os pais e está reticente em permitir que a criança  frequente a casa do pai, que está disposto a continuar a ver sua filha. A criança circula entre pai e mãe e permanece calada.

A mãe de Adeline deseja, inquestionavelmente, que o pai da criança, seu ex-marido, exerça seus direitos de visita, e manifesta a sua desaprovação com o fato de que é o companheiro que fica, na maioria das vezes, responsável pelo que chamamos de parentalidade.[2] É principalmente ele que cuida da criança a cada dois finais de semana. A mãe espera que a analista possa lhe dizer o que deve ser feito por sua filha.

Rapidamente eu compreendi que não estamos num impasse de gênero:

o discurso da mãe confirma que o ex-marido, ao se dizer mulher, encontrou uma solução para antigos tormentos. Ele não lida bem com a ambiguidade dos semblantes, não se dá ao trabalho de brincar com as aparências: ele se sabe mulher. Se ele aceitava seu gênero biológico, se ele se acreditou homossexual, agora ele não duvida mais de sua identidade. Depois do nascimento da filha, ele pôde confiar a sua perplexidade e a sua desolação àquela a quem conhecia desde o final da adolescência e com quem se casou. A mãe confirma que eram próximos, “faziam tudo juntos”, até o nascimento de Adeline.

Para a justiça, é um brutal encontro com a dissociação aqui realizada entre diferença sexual e função parental. Um pai legal que subverte as leis da natureza e uma mãe que afirma que um pai, mesmo que tenha se tornado mulher, continua sendo um pai. Lembramos que não ocorreu a ninguém dizer que essa criança teria agora duas mães. O pai de Adeline, que deixou o lar conjugal há vários anos, forma um casal heterossexual estável com seu companheiro, de acordo com o que ele experimenta em seu corpo, a partir de sua imagem.

Essa situação fora da norma não é um efeito da hegemonia da ciência no mundo moderno. O recurso à cirurgia de redesignação sexual, já praticada por volta dos anos 2000, encontrou na época grande relutância. Para o pai de Adeline, os tratamentos hormonais e cirúrgicos, encontrados no exterior, permitiu-lhe combinar a imagem do seu corpo com o que se apresentava para ele, como uma evidência. Supomos que a construção dessa certeza, que não corresponde exatamente à definição psiquiátrica,[3] foi a resposta desse sujeito à impossibilidade de integrar o pênis real, devido à Verwerfung, quando ela fez irrupção na criança (LACAN, 1956-57/1995, p. 429).

Construir um vazio

Adeline está claramente tão feliz quanto preocupada com nossos encontros. A partir de um comum acordo, deixamos de lado o burburinho que agita a justiça e os agentes sociais. Eu também interrompo o gozo voyeurista dos entes próximos que se manifestam pelo telefone: apenas Adeline e sua mãe, que a acompanha, irão atravessar a porta do meu consultório. Suas idas e vindas, a espera da mãe enquanto a filha fala comigo, se encarregam do real insuportável que faz com que os semblantes vacilem: eu respeito Sua mãe convoca as responsabilidades que um pai deve assumir, mas Adeline, na sua forma de aceitar a minha presença e permanecer em silêncio, me indica que ela percebe o quanto o significante “pai” é apenas uma hipótese ligada a um passado. Se ele teve valor de verdade, esse significante não pertence à sua língua íntima. O que resta é que “ela se preocupa com seu pai”.

Essa formulação, complementada por outra, sussurrada – “Não sei como fazer…” –, silenciará o território sonoro dos saberes do Outro (MILLER, 2012). Uma vez aberto no espaço do tratamento o direito à sombra, de que nos fala G. Wajcman (2004) em seu Chroniques du regard et de l’intime, Adeline tomará o gosto pela palavra.

Que reconstrução na lingua ela vai operar?

Estamos além do Édipo, mas a criança não abandona, durante a sessão, a nomeação “meu papai”; um “papai” que ela não pode nomear assim na frente de terceiros, quando eles estão juntos.

É essa vigilância obrigatória que a menina colocará no centro dos nossos encontros e que ela questionará, com um embaraço subjetivo, se esforçando ao longo das sessões em construir pequenas soluções suportáveis.

Tomemos um exemplo: na época do Natal, ela cria uma história em quadrinhos na qual encena a festa, seus preparativos e o ambiente familiar; a refeição acontece na casa dos avós maternos, onde estão seu tio, sua tia e seu primo. Um lugar, ao lado do lugar da mãe, está vazio: “O do papai”. Mas ela o desenha, de pé, perto da poltrona. Ela o contorna com um círculo de onde sai uma flecha que aterrisa no quadrinho seguinte, ao lado de um outro personagem, o de seu companheiro: “É para mostrar que papai não está conosco, que ele passa o Natal com Paul”. Ele está, contudo, presente para sua filha, na reconstrução familiar que ela está realizando e ele é um homem. A flecha o desloca, no quadrinho seguinte, ao lado de Paul. O impossível de representar diz respeito ao ponto em que o pai se vê como uma mulher. A astuciosa construção imaginária de Adeline usa a técnica específica dos quadrinhos para indicar que o ponto de apoio aqui é Paul, com quem é normal que o pai passe o Natal, já que vivem juntos. Uma narrativa se organiza a partir do significante “companheiro”, ao qual a criança soube se ater e  se apropriar e que não é, para ela, sem valor.

Endereçar-se a Paul para se fazer ouvir pelo pai e encontrar a sua voz

 Paul tem menos mérito em cuidar de Adeline nos fins de semana do que em cuidar do “papai”. Nas sessões, a criança vai formulando gradativamente seus medos de ir à casa de seu pai quando Paul não está lá. Estar cara a cara com o pai é difícil, não tanto por causa da aparência física dele, muito próxima a de uma mulher, mas por sua forma de falar, muito loquaz, sobre sua relação com o álcool e sobre suas insônias, que a impedem de dormir. “De manhã, tenho medo de encontrá-lo no sofá diante da televisão”, disse Adeline.

Quando Paul está presente, seu pai se comporta melhor e ela fica mais tranquila porque há “menos de tudo isso”. Ele se dedica a uma comunicação a três que evita o preocupante cara a cara. Por exemplo, ele pode dizer, quando Adeline apresenta um resultado escolar: “Muito bom!”; e, em seguida, dirigindo-se ao pai da criança: “Veja, a pequena se vira muito bem em matemática”. Ele é o conciliador que se encarrega da vida cotidiana. Adeline pode se endereçar a Paul, que transmite suas falas, e essa montagem evita os excessos. Com ele é possível bater papo “com delicadeza” e gentileza. Acima de tudo, ele parece saber fazer com o “papai”

Com o tempo e sem que a analista tenha algo a dizer sobre isso, Adeline dirá à mãe que não é necessário que ela vá com tanta frequência à casa do pai. A análise afrouxou o controle de um significante mestre e a voz de Adeline tornou-se mais firme. Ela conseguirá dizer o que é possível, o que ela não quer por ser muito difícil e o que ela demanda. Por exemplo, ela quer ir à casa do pai se Paul estiver lá, não quer mais ir ao restaurante porque é obrigada a tomar cuidado para não dizer “papai” a seu pai, ela quer fazer outras coisas que tornem complicado o exercício do direito de visita do qual sua mãe não abre mão. A maneira como ela formulará essas coisas junto à mãe irá esvaziar qualquer ímpeto de envolver serviços de proteção infantil e judiciário.

Aos poucos, ela limitará a permanência na casa do pai e não dormirá mais lá de forma sistemática. Quando sua mãe se muda para outra cidade, e antes que o pai e Paul fizessem o mesmo, ela se convida para ir para a casa de uma tia-avó paterna, uma figura civilizada desse ramo da família. “Não muito, mas um pouco com papai”, o que a mãe, o pai e seu companheiro admitirão sem muitos problemas.

O impossível de nomear

 O ponto explosivo diz respeito ao pedido do pai para que a filha o chame pelo seu nome de mulher quando estiverem fora do âmbito familiar, sendo seu desejo implícito de ser chamado de “papai” apenas em determinadas circunstâncias.[4]

Adeline se opõe a esse pedido com uma recusa obstinada, mas informulável. Fora de casa, durante as chamadas telefônicas na semana, ela ignora o pai quando estão em público. Nem um olhar, nem uma palavra! A tal ponto que esse nome feminino, que indica o sexo do qual o pai assumiu a aparência, impõe sua presença nas sessões por não ser jamais pronunciado. Carregado de um excesso de sentido, ele mobiliza a vergonha, tal como um grande segredo. Faz calar e reproduz o Outro ali onde a certeza paterna faz existir A mulher. Está para além das palavras; o risco é de que alguma coisa se feche sobre esse Outro absoluto.

Como alojar este nome na língua, sem abandonar o significante “papai”?

A analista, sensível ao estilo da menina, respeita o silêncio cauteloso com o qual ela envolve as suas afirmações. Adeline tem uma maneira muito íntima de se endereçar a ela, cuidadosa, concentrada e às vezes sussurrando; uma forma de guardar as palavras, de cobri-las de silêncio, até o momento em que ela decide dizê-las, em sua fragilidade. Então, ela pode se apoiar nelas, a voz fica mais firme e a analista diz: “Sim!”.

“Falar aqui me ajuda a refletir”, disse a jovem analisante, ansiosa por inventar sua resposta para a certeza paterna.

A analista optará por intervir o mais próximo possível da língua do sujeito, do seu estilo, a ponto de dizer baixinho: “E Paul então, como ele chama o seu pai?”. Ela responde com confiança, sem qualquer constrangimento.

Colocar Betty e Paul como um casal não é do mesmo registro que colocar o pai sob a vigilância cuidadosa de Paul.

No espaço público, Betty presentifica o horror do corpo materno que Freud (1940[1922]/1996) disse que se manifesta, para além da privação, no acúmulo, na efervescência. Adeline, que está de olho no pai, diz “não” a ele, mas a presença da Coisa provoca uma aniquilação do ser vivo. A montagem que ela encontrou não se sustenta mais: em público, o significante “pai” torna-se impronunciável, e Betty aparece, em sua inquietante estranheza, como a Medusa.

Alojar Betty na língua passa por Paul e essa operação reconstrói um ponto de opacidade sobre o que é ser mulher.

Por que minha mãe me deu um pai como este?

 O desejo, como nos indica J. Lacan, parte do Outro, e essa interrrogação, que supõe para a criança um valor fálico, a faz faltante. Em decorrência da banalização do nome de Betty, Adeline apresentará uma nova questão. Nós não estamos mais no tacere[5] do início; no Outro, algo não pode ser dito, e podemos querer saber.

“Por que minha mãe me deu um pai assim?”
“Um pai assim, como?”, pergunta a analista.
“Sim. Um pai que pensa que é uma dama.”

Observamos o uso de uma linguagem refinada, do significante que coloca um véu sobre A mulher, aquela que, se existisse, permitiria que a relação se inscrevesse. “Papai acredita nisso”, essa é a loucura dele.

A questão desta vez diz respeito ao enigmático desejo da mulher na mãe. Não se trata mais aqui da palavra de amor, nem da esmagadora igualdade da regra, de quem se espera que regule o enigma através do exercício dos direitos parentais. Uma lacuna foi cavada, um vazio, que instalou uma respiração.

Adeline precisou de um tempo para resolver o que era insuportável para ela; ela se afastou um pouco do gozo mortificante, construiu um julgamento em sua língua. Uma língua feita de um prudente respeito pelo delírio do pai e uma pergunta à qual ela responderá com outra avaliação igualmente calculada: “Será que ela se enganou… quando ela se casou com meu pai?”.

Consideremos essa alegação provisória como uma forma de se afastar do significante esplêndido, aquele que diria tudo, para manter aberto o campo do desejo, graças ao apoio dado pela transferência.

Uma mulher pode se enganar. Sim, na análise podemos descobrir que o “eu não quero saber de nada” do gozo do sintoma passa pelos enganos significantes.

O personagem excepcional na família materna é o avô. Um intelectual respeitado e admirado pela filha, a qual, desde a adolescência, formava um casal com o pai de Adeline.

Os semblantes que haviam organizado o casamento os colocavam, ela e ele, protegidos da questão sexual. Estamos, sobretudo, no registro da satisfaçao dessa mulher em ser o ponto de apoio para o outro e com a aceitação de uma quase assexualidade que tinha, no entanto, permitido a chegada da criança.

E, então, um dia, eu amarei alguém…

Na aurora da adolescência, Adeline compartilhou comigo um ponto de sofrimento: quando se é uma jovem, gostamos de contar tudo para as melhores amigas. Ela não pode fazer isso.

“Nem tudo pode ser dito”, pontua a analista, “e é isso que nos permite falar…”. (silêncio)

“Um dia amarei alguém e então terei que descobrir como falar sobre isso.” (silêncio)

“Há crianças que não veem o pai com frequência porque ele está longe. Há também crianças cujo pai está morto e talvez seja difícil falar disso. Eu posso falar um pouco sobre meu papai. Em todas as famílias também se pode ter amigos. Paul e Betty, eles também podem ser amigos da família: escrevemos para eles, convidamos para as grandes ocasiões.”

Essa situação desvela o artifício sobre o qual se funda o casamento: o princípio da imutabilidade, tão caro à justiça, que nos libertava dos dados naturais, repousa sobre um ponto de eternidade. Construído por ficções jurídicas, esse postulado não diz nada sobre os corpos. Na época freudiana, tratava-se de amarrar a questão do nome, da exceção, à interdição do incesto. Hoje percebemos melhor que as leis que pareciam, por um tempo, imutáveis, baseiam-se, de fato,  sobre uma permanência que é construida simbolicamente.

Hoje, trata-se de assegurar a continuidade de outra forma, o que pode ser respondido pelo discurso analítico ao dar crédito à linguagem do sujeito, aos fundamentos ainda que incertos que lhe dão abrigo, na língua comum.

Tradução: Letícia Mello
Revisão: Tereza Facury

Referências
CHAUMONT, O. D’un corps à l’autre. Paris: Robert Laffont, 2013.
FREUD, S. A cabeça de Medusa. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996, p. 289-290. (Trabalho original publicado em 1940[1922]).
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (Trabalho original proferido em 1956-57).
MILLER, J.-A. A criança e o saber. CIEN-Digital, n. 11, jan. 2012.
WAJCMAN. G. Fenêtre: Chroniques du regard et de l´intime. Paris: Verdier, 2004.

[1] Publicado originalmente em: Brochure des textes du colloque de mai: Le désir e la loi. 2013. Disponível em: http://ccbcn.info/xv-conversacion/docs/biblio/BrochureColloqueMai.pdf. Acesso em: 01 jan. 2023.
[2] Em 1990, o termo “parentalidade” foi introduzido no vocabulário comum e tornou-se um termo referencial de ação pública. Permite “repensar” a perturbação das formas de família, mas abre também esse campo aos cognitivos-comportamentais, que agora querem acompanhar nossas vidas. Atualmente, multiplicam-se os ateliês de parentalidade que visam capacitar os pais em dificuldades, o desenvolvimento de competências parentais, etc.
[3] “Transtornos precoces de identidade de gênero”. Outros exemplos clínicos mostram que essa  certeza, assim que toma forma, é interpretada como arcaica, já presente na infância.
[4] Olivia Chaumont (2013, tradução nossa), em seu livro  D’un corps à l’autre, diz, sobre sua filha, que esta, hoje em dia uma adulta, ainda a chama de “pai”. “Para que ela se sinta confortável em público”, acrescenta Olivia, “eu fico em segundo plano”.
[5] Tacere: termo em latim que significa “ficar em silêncio”.