A Família Contemporânea E O Real Do Sexo
SUZANA FALEIRO BARROSO
Introdução
A constituição da posição sexual do sujeito, sua inscrição na sexuação – operação que se inicia de modo decisivo na infância –, parece estar cada vez mais desamparada da estrutura familiar do Outro. Da escuta dos pais na clínica, tenho recolhido uma posição de defesa decidida dessa igualdade e da liberdade suprema da escolha do sexo, deixada a cargo da criança. É o que se verifica no vídeo de uma entrevista com uma criança, Brinsen, e seus pais, apresentada no programa Fantástico da Rede Globo em 2015 e que podemos tomar como ilustrativa do que seria uma “educação sem gênero”[i]. Nesta família, que vive em Portland, no Oregon, EUA, são as crianças que escolhem se querem ser meninas ou meninos, não importa o gênero do nascimento. A mãe de Brinsen defende uma educação unissex, educação de gênero neutro e propõe deixar aos filhos a escolha da identidade sexual. Depois de ver nos livros o quanto pode ser difícil para uma criança ser um menino que se sente menina, essa mãe decidiu não dizer qual o sexo de seus filhos. Sua justificativa não deixa de indicar impasses próprios na subjetivação dessa diferença.
Diante da falha do saber sobre o enigma da diferença de sexos, visto que não há a priori uma fórmula que os defina, a mãe de Brinsen age em nome da liberdade da criança de se fazer sozinha no processo de sexuação. O pai do menino não deixa de mencionar sua preocupação com os efeitos da segregação que poderão atingir seu filho.
“Quando as pessoas perguntam se você é menino ou menina, o que você diz?”, pergunta a repórter a Brinsen, e ele responde: “eu sou principalmente menino, mas um pouco menina”. Essa suposta definição, segundo a mãe de Brinsen, se deu por volta dos três anos de idade, acontecimento que foi seguido de uma mudança no temperamento da criança e das ressonâncias sociais de sua posição – a saber, o menino passa a ser “zoado” pelos colegas. Chamou-me a atenção a resposta de Brinsen à entrevistadora, quando ela quis saber como ele descobriu que era principalmente menino e um pouco menina. Ele disse: “eu descobri sozinho, meu corpo me disse e eu aceitei”. O que quer dizer esse “meu corpo me disse” da resposta de Brinsen?
Qual a repercussão sobre o “ser-para-o-sexo” (LACAN, 1968/2003, p.363) dessa extrema liberdade concedida às crianças quanto à escolha do sexo? Se o ser para o sexo se define a partir da castração, ou seja, a subtração de gozo acarretada pela incidência do significante sobre o corpo, que liberdade se pode ter quanto à escolha do sexo?
Na Nota sobre a criança (1969), texto sobre a criança, seu sintoma e a família, Lacan tomou posição ao abordar a família para além dos ideais, definindo-a como agente da transmissão da verdade e como espaço no qual se coloca em jogo a estrutura da linguagem e o gozo. O psicanalista enfatizou a dimensão sintomática da família humana por reconhecer sua tendência ao recobrimento da verdade, a saber, aquela que implica o encontro sexual, que concerne ao gozo e ao desejo em jogo nas parcerias familiares. Trata-se, de fato, da verdade do dizer sobre o sexo, que encontra sempre um impossível. A família é uma resposta simbólica ao real do sexo, ao fato de que não se pode escrever a relação do sexo entre um homem e uma mulher. No lugar disso, tradicionalmente, a família escreveu a relação pai-mãe tal como se evidencia na fórmula da metáfora paterna. É o ponto de real da família que pretendo considerar aqui e ao qual a criança responde, no melhor dos casos, sintomatizando esse impossível.
Incidência da ciência na transmissão familiar
Segundo a “Nota sobre a criança”, uma especificidade da família, preservada, a despeito da evolução da sociedade e necessária à constituição do sujeito, diz respeito ao campo da transmissão, que implica a língua, o desejo e a relação falo-castração. Essa última se dá, particularmente, a partir da interdição do pai ao gozo supremo com a mãe. A transmissão familiar ganhou modulações na psicanálise em cada um dos tempos da obra de Lacan, dentre os quais podemos recortar três momentos. O primeiro momento, na década de cinquenta, correspondente à leitura da estrutura tradicional da instituição familiar, cuja transmissão dos significantes ideais do pai e da mãe, Desejo da Mãe e Nome do Pai, constitui o simbólico da família. O segundo tempo, no final dos anos sessenta, corresponde à leitura das transformações familiares à luz do resíduo da instância do Outro simbólico, que se condensa no objeto do fantasma e sua transmissão. E o terceiro tempo, a partir do final da década de setenta, destaca a função do mal-entendido na transmissão familiar e supõe a conjunção entre significante e gozo sob a forma da lalangue de família.
A família organizada pelo Nome do Pai e pelo falo estabelecia a correlação entre gozo e sexualidade, entre corpo e gozo, isto é, sustentava um modo de gozo localizado fora do corpo através da própria operação do recalque. Dessa maneira, a travessia do Édipo e a elaboração do complexo de castração possibilita ao ser falante sua inscrição numa posição sexuada referida à função fálica. A incidência da função fálica na subjetividade traduz a questão da intrusão do significante no gozo, significando-o como castrado. A introdução do sujeito na dialética do falo, seja menino, seja menina, supõe a lógica que se desenrola no inconsciente das diversas etapas da identificação, através da relação primitiva com a mãe e a entrada em jogo do Édipo e da lei. É pela via do desejo que a mãe tem para com o filho que este é confrontado com o significante falo na sua polaridade imaginária e simbólica.
A família designa um lugar de enlaçamento do Um e do Outro. De acordo com essa estrutura clássica, era impensável uma família que não fosse marcada pela oposição entre um homem e uma mulher, masculino e feminino. Essa diferença se apoiava na conjunção entre reprodução e sexuação. Dessa maneira, os signos imaginários da posição sexuada e os significantes mestres do masculino e do feminino tinham o propósito de domesticar o gozo sexual conectado à transmissão da vida. De acordo com Marie-Hélène Brousse, o discurso da ciência introduziu uma modificação profunda nessa estrutura familiar quando tocou o real da reprodução da vida e desencadeou uma separação entre reprodução e sexuação, entre reprodução e diferença sexual. A ciência hoje se incumbe do real da transmissão da vida mais além das imagens do corpo e dos sujeitos e suas identificações. Diferentemente da ciência contemporânea, para a psicanálise, “não tem marcadores claros da diferença de sexos, do lado genético, cromossômico, endócrino, cerebral, morfológico, ou de gênero. Nenhum deles permite saber algo sobre a questão do masculino ou do feminino” (ANSERMET, 2014, p. 16).
Na conferência “Fuera do sexo: extensión del império materno”, Brousse discute o desenlaçamento da reprodução da estrutura simbólica da família, que promoveu uma redefinição dos pais em termos de cuidados e não mais em termos da diferença sexual. São cuidados unissex, isto é, fora-do-sexo. A entrevista com Brinsen e sua família mostra essa nova configuração, a saber, a mãe e o pai em posições muito similares, ambos cuidando de seus filhos, penteando e trançando seus cabelos. É um cenário típico do discurso do mestre contemporâneo, que faz declinar toda a hierarquia dos lugares simbolicamente constituídos, seja o do pai, isto é, aquele que interdita e limita o gozo, seja o da mãe, aquela que exerce os cuidados da criança a partir de suas próprias faltas. A extensão do império materno fica também patente na entrevista, visto que a opção pela “educação sem gênero” é predominantemente um direcionamento da mãe, acatado pelo pai, não sem algumas reservas.
Na atualidade, portanto, a família não é mais necessariamente edipiana, o que repercute no tratamento do real do sexo. A articulação entre gozo e sexualidade característica da estrutura simbólica da família edipiana se torna cada vez mais precária. É o destino do gozo que fica em questão. Os corpos podem gozar de práticas que não têm necessariamente nada a ver com o gozo sexual, demonstrando a errância do gozo quando o Nome do Pai já não orienta a articulação entre o corpo e o gozo. O gozo se mostra cada vez mais deslocalizado em decorrência da falta de conexão com o Outro. Estamos, portanto, segundo as palavras de Lacan na “Nota sobre o pai” (1968), diante da “evaporação do pai” e de suas consequências.
A escolha do sexo
Falar de escolha do sexo implica o campo das sutilezas, isto é, da linguagem. É uma escolha que se orienta pelo labirinto da linguagem.
A linguagem está sulcada de canaizinhos, de sutilezas, de obstáculos criados para embolar as coisas e conduzir a lugares onde nos perdemos. A escolha do sexo, pega neste labirinto, nos deixa sem saída, falando como tontos, inventando sentidos, sempre se pode agregar um significante a mais. (LACAN, 1973-74).
A esse labirinto subjetivo podemos acrescentar os discursos sobre o sexo de cada época.
A sexuação, termo que vem acompanhado em Lacan da noção de escolha, definida como escolha de gozo, é diferente da identificação sexual. Esta última, embora implique a sexualidade, advém da transmissão familiar, mas não determina o sexo para o sujeito. A sexuação implica a escolha real do modo de gozo entre dois modos distintos de uso do falo no laço com o outro sexo. O encontro com o heteros, palavra grega que se refere ao outro, introduz uma descontinuidade, um antes e um depois, na questão do sexo. Ultrapassar a solução unissex significa passar de uma lógica cuja norma é que todos são iguais, isto é, uma lógica universalizante, para outra que sustente a alteridade. A teoria lacaniana da sexuação surge no início dos anos setenta e supõe o conceito de não-toda.
Na primeira etapa da sexuação está em jogo a diferença anatômica natural, assinalada desde o momento do nascimento. O segundo tempo desse processo é o do discurso sexual, no qual a diferença anatômica é simbolizada e recebe uma significação. A posição sexual, ser homem ou ser mulher, depende então do discurso do Outro, da significação particular atribuída a cada sexo. A terceira etapa da sexuação é aquela da escolha do sujeito, que, em última instância, é uma escolha forçada. Trata-se do que cada um faz com aquilo que lhe foi transmitido pelo discurso do Outro; mas não só. Porque nem tudo é possível de ser dito sobre o sexual. Nem tudo se resolve através da transmissão familiar. Há a dimensão real do sexo, que escapa à simbolização, à inscrição simbólica. Há algo relativo ao sexual que permanece enigmático, o real do sexo, que confere a essa questão seu estatuto de trauma. Lacan vai nos apontar uma orientação do real para o sexo, que ultrapassa a polêmica do binarismo do gênero.
O gozo sexual coloca em jogo o corpo a partir das primeiras marcas de gozo nele depositadas pela língua do Outro. “Na escolha do sexo sempre se enodam a invariante de um gozo primeiro e as variáveis que intervêm na resposta do sujeito” (TÁBOAS, 2011). A invariante do gozo diz respeito à pulsão enquanto eco de um dizer no corpo. As respostas do sujeito dependem dos encontros contingentes com o gozo do corpo escrito precocemente.
Conclusão
Vários aspectos da entrevista divulgada pela Rede Globo podem ser comentados a propósito da questão da escolha do sexo. De uma parte, o testemunho do menino Brinsen comprova o que a psicanálise desde sempre sustentou, ou seja, que a posição sexual do sujeito não se reduz jamais ao seu sexo biológico, tampouco às normas e convenções sociais e culturais. De outra parte, as respostas de Brinsen são respostas de um sujeito desamparado do ponto de vista da transmissão familiar das identificações sexuais, um sujeito sem o Outro. Sua fala evoca uma disjunção, uma dissociação entre o sujeito e seu corpo. Sua posição parece mais aquela do “fora-do-sexo” do que propriamente uma posição do ser sexuado. É preciso considerar que a escolha do sexo implica o assentimento ou a recusa do sujeito. Por isso Lacan nos diz que o ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo.
Embora a matéria divulgada pela Rede Globo tenha destacado a irreverência da educação do gênero neutro, para a psicanálise, os efeitos da não transmissão da significação fálica do desejo, dos traços de identificação sexual, não parecem trazer nenhuma ajuda à questão da escolha do sexo para cada sujeito. Aliada às demais transformações da família, deixa a criança muito mais exposta ao gozo do Um sozinho desenlaçado do Outro. Esse desenlaçamento parece evidente na resposta de Brinsen à entrevistadora ao dizer que foi seu corpo que lhe disse sobre ser principalmente menino e um pouco menina. Seus pais se abdicaram da transmissão quanto à identificação sexual do menino, demonstrando uma retirada do Outro familiar do assunto do sexo. É nesse contexto que o corpo vai ganhando sua soberania, contrariando a localização da sexualidade fora-do-corpo.