A Incidência Do Narcisismo Na Esquizofrenia E Na Histeria
O estudo das neuroses de transferência — histeria e neurose obsessiva — tornou possível a Freud estabelecer uma teoria das pulsões. Basicamente, até 1914, os processos mentais giravam em torno da oposição entre as pulsões sexuais e as pulsões do eu. Contudo, no que diz respeito à sua aplicabilidade aos sintomas na paranoia e na esquizofrenia, essa concepção do funcionamento psíquico a partir da antítese entre os dois grupos pulsionais é insuficiente. Freud, ao escrever o texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1974), lança a hipótese de que a passagem do autoerotismo para a libido objetal não se faz de modo direto, há, entre os dois modos de satisfação da libido, a constituição do narcisismo. Aposta na ideia de que o estudo tanto da paranoia quanto da esquizofrenia esclarecerá o modo como a libido toma o eu como objeto de satisfação sexual, denominada de libido narcísica. Com esse trabalho, ele tem como objetivo demonstrar que o narcisismo é constituinte da teoria da libido, independentemente de qualquer patologia mental.
Num estudo comparativo, observa que, enquanto, nas neuroses de transferência, a libido, ao se retirar dos objetos, é investida na fantasia, já na paranoia, por exemplo, ela se retira para o eu, acarretando a megalomania. Mas essa retirada é, na maioria das vezes, parcial. Em consequência disso, Freud distingue, no quadro clínico da esquizofrenia, três grupos de fenômenos. Um deles se refere aos fenômenos residuais, que são aqueles que se assemelham aos processos normais de neurose. Essa discussão é retomada anos mais tarde, no texto “Esboço de psicanálise” ([1938] 1940/1974), ao afirmar que:
“Mesmo num estado tão afastado da realidade do mundo externo como o de confusão alucinatória, aprende-se com os pacientes, após seu restabelecimento, que, na ocasião, em algum lugar da mente (como o dizem), havia uma pessoa normal escondida, a qual, como um espectador desligado, olhava o tumulto da doença passar por ele” (FREUD, [1938] 1940/1974, p.231).
O outro grupo de fenômenos ele denomina de processos mórbidos, que corresponde ao afastamento da libido dos objetos. Nesse grupo, estão os sintomas da megalomania, da hipocondria, etc. E um terceiro grupo de fenômenos, que representa a tentativa de restauração, ou seja, a libido é novamente ligada aos objetos. De modo inesperado, Freud estabelece uma correlação entre esquizofrenia e histeria, ao afirmar que o retorno da libido aos objetos na esquizofrenia se dá como numa histeria. Embora ele ressalte que haja diferenças entre elas, não passa despercebida essa aproximação. A questão que coloco seria a seguinte: por que Freud aproxima a esquizofrenia da histeria no que diz respeito ao narcisismo?
Para que possamos iniciar uma discussão sobre o tema, sugiro partir do narcisismo, pois é ele o elemento que conduziu Freud a fazer essa aproximação. Devo esclarecer que este texto não tem a pretensão de realizar um estudo exaustivo sobre o narcisismo, desejando apenas abordá-lo por um viés que possa esclarecer nossa questão.
No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1974), Freud nos diz que o autoerotismo é o primeiro modo de satisfação encontrado pelas pulsões sexuais, é o que ele denomina de prazer do órgão. A pulsão encontra satisfação no próprio corpo sem recorrer a nenhum objeto, pois ainda não existe nenhuma unidade que possamos denominar de eu. “As pulsões autoeróticas, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo — uma nova ação psíquica — a fim de provocar o narcisismo” (FREUD, 1914/1974, p.93).
Segundo essa passagem de Freud, o eu é resultante dessa nova ação psíquica, é a representação que se tem de si mesmo e que pode ser investida pela libido, ou seja, pode ser tomada como objeto de satisfação da pulsão sexual. Isso quer dizer que, sem essa ação, não há formação do eu, consequentemente, o narcisismo não se funda. Segundo a teoria do narcisismo, o eu e o objeto surgem de um só golpe, isso porque o eu, ao se constituir, marca a diferença entre o que é eu e o que não é eu.
Identificamos na construção da fase do espelho a interpretação lacaniana sobre as considerações de Freud sobre o narcisismo. O estádio do espelho especifica que o eu se constitui como forma alienada na imagem do outro. Frente à sua própria imagem no espelho, a criança a toma, inicialmente, como se fosse a de um outro. Para se identificar a ela, é necessário que se cumpram duas condições. Uma é o consentimento de um adulto, confirmando que ela é essa imagem refletida no espelho. A outra é o investimento do Outro, reconhecendo a criança como um objeto real de um desejo singularizado. O estádio do espelho se concretiza, portanto, no encontro do sujeito com uma imagem que assume como sua, com o aval do Outro. É assim que a criança, que ainda não tem um domínio sobre seu corpo, que o experimenta de modo fragmentado, em decorrência de uma imaturidade neurológica, diante do espelho, vivencia o seu corpo a partir de uma Gestalt, tendo um domínio imaginário sobre ele. Ele se cristaliza nessa imagem, que não passa de uma imagem virtual, fazendo com que carregue em si algo de enganador e ilusório.
O estádio do espelho não está plenamente no imaginário, inclusive, ele opera a partir do simbólico representado pela presença do Outro. É esse Outro que, ao designar o significante que será o ideal do eu, I(A), livra a criança de ficar aprisionada na alienação dessa imagem. Então, o estádio do espelho comporta um duplo movimento. De um lado, está o elemento ilusório e enganador contido na assunção de uma imagem como sua, mas é o que lhe vai servir de referente em sua relação com a realidade, permitindo-lhe cernir o que é do eu e o que não é. Por outro lado, ele cria a possibilidade da criança de iniciar uma série de identificações significantes, favorecendo sua entrada no simbólico.
Se, para Freud, inicialmente, está o autoerotismo, é fundamental a constituição do eu, ou seja, a constituição dessa imagem i(a), pois é ela que irá dar forma, organizar as pulsões. Mas a criança só assume essa imagem como sua se ela estiver sustentada pelo olhar e pelo desejo do Outro. Ou seja, o corpo real só é vestido por uma imagem se houver a constituição de uma identificação simbólica I(A), que se apoia numa insígnia fornecida pelo Outro.
Nesse processo de constituição do eu, Elisa Alvarenga (1994) aponta três impasses e três soluções. O primeiro impasse seria a experiência da criança frente à sua impotência primitiva. A solução para esse impasse em que se encontra é a constituição da imagem especular, i(a), que organiza as pulsões. Essa solução, por sua vez, a conduz ao segundo impasse, que é a relação de agressividade narcísica — ou eu, ou você. A saída para ele é a presença do Outro simbólico, cuja função é posicionar o sujeito para além da relação especular, abrindo a série de identificações simbólicas. O terceiro impasse, Elisa Alvarenga discrimina a partir da falta de um significante no Outro que defina o ser do sujeito. A solução encontrada pelo sujeito para esse impasse é poder identificar-se com o objeto do desejo do Outro.
O que podemos pensar em relação à esquizofrenia? Com Freud, dizemos que essa nova ação psíquica não se efetiva. Ou seja, não há a constituição do narcisismo, e o tipo de satisfação que se experimenta é autoerótico.
Com Lacan, a partir de sua formulação sobre o estádio do espelho, dizemos que houve uma impossibilidade para a criança de se reconhecer nessa imagem, isso porque, do lado do Outro, há um desejo anônimo, nada vem nomear o desejo do Outro em relação a ela. Dito de outra forma, na esquizofrenia, é impossível, para a criança, isolar um nome no discurso do Outro materno que possa singularizar seu ser. É nesse sentido que Lacan, em O Seminário: a angústia (1962-1963/2005), diz que “a mãe do esquizofrênico articula sobre o que seu filho era para ela no momento em que estava em seu ventre — nada além de um corpo, inversamente cômodo ou incômodo” (LACAN, 1962-1963/2005, p.133).
O fato de o esquizofrênico não se reconhecer numa imagem como consequência de uma operação simbólica faz com que ele experimente um corpo despedaçado, sem limites precisos. Para Elisa Alvarenga (1994), não é possível ao esquizofrênico solucionar a impotência primitiva do ser com a constituição da imagem especular. Há, na esquizofrenia, uma impossibilidade de metaforizar, o significante incide sobre o corpo, em sua dimensão de real. Assim, o gozo retorna a um tempo anterior à construção dessa imagem gestáltica do eu, ficando o esquizofrênico entregue ao funcionamento real das pulsões. Em função disso, no campo imaginário do corpo, aparecem os fenômenos hipocondríacos, através dos quais o sujeito vivencia um gozo autístico; no simbólico, a cadeia significante se dispersa, havendo apenas o deslizamento significante.
Como pensar a histeria com base no desenvolvimento efetuado até o momento? Para isso, nortear-nos-emos pela seguinte questão: qual a consequência, na clínica da histeria, da inserção de uma função imaginária da imagem corporal entre o real do corpo e o processo do recalque?
Conforme se viu anteriormente, para que haja constituição da imagem corporal unificada, a função do Outro é decisiva, pois essa imagem depende da mensagem do Outro endereçada à criança. Na neurose, tanto há a constituição do eu ideal i(a), que corresponde à imagem unificada, como também a formação do ideal do eu I(A), que abre a série de identificações simbólicas e que se apoia num traço significante extraído do Outro — um desejo que particularize essa criança no desejo do Outro. É justamente essa identificação simbólica que permitirá que a criança possa ver ou não a imagem de si mesma. Essa imagem é uma espécie de vestimenta que confere uma unidade para esse corpo real experimentado pela criança como fragmentado, entregue à satisfação autoerótica das pulsões.
Observamos, na experiência clínica com mulheres, certo desconforto com sua imagem corporal, uma imagem que sempre vacila. Isso advém do fato de não existir, no Outro, o significante que especifique a condição feminina de uma mulher, fazendo com que a imagem corporal, numa mulher, não capsule e torne erótico completamente o real do corpo. Uma saída para isso é se fazer “toda fálica”, ou seja, abordar a sexualidade à maneira do homem, pela via da ostentação fálica, sem, contudo, assumir uma aparência masculina.
Talvez possamos identificar aqui o ponto que serviu de apoio para Freud (1914/1974) sustentar que, nas mulheres, “com o começo da puberdade, […] parece ocasionar a intensificação do narcisismo original, especialmente se forem belas” (FREUD, 1914/1974, p.105). Sob a perspectiva freudiana, é justamente porque não tem o falo que a mulher cuida de sua imagem corporal a ponto de fazê-la adquirir o valor de falo. Ou seja, por não ter o signo “pênis” que lhe confira uma identificação sexual, ela compensa tendo um corpo feminino. Na “Conferência XXXIII: Feminilidade”, Freud ([1932] 1933/1974) retoma essa questão trazendo um novo elemento. Ele diz o seguinte: “A inveja do pênis tem em parte, como efeito, também a vaidade física das mulheres, de vez que elas não podem fugir à necessidade de valorizar seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual original” (FREUD, [1932] 1933/1974, p.162). Interpretamos essa passagem dizendo que a exacerbação do narcisismo ligado à inveja do pênis teria como função velar essa falha no campo da imagem corporal.
Com a leitura lacaniana do narcisismo, ressaltamos que a identificação imaginária do corpo feminino, numa mulher, justamente por não existir o significante que defina o ser sexuado da mulher, é frágil e precária. Ela é experimentada como um artifício, um substituto.
Conforme Serge André (1987), a histeria teria como essência denunciar a falta de significante no Outro que identifique o que é ser mulher, e a consequência disso, no campo da identificação especular, é a produção de uma falha. Nesse sentido, a histeria traz em si um questionamento sobre o feminino.
Mesmo com toda essa problemática na construção da imagem especular, diferentemente da esquizofrenia, na histeria, a constituição de i(a) se dá, e, com isso, há um corpo sexualizado e uma imagem corporal erotizada. Por se tratar de uma neurose, o processo do recalque está presente, e seu efeito é determinar no corpo quais os lugares que servirão de ancoragem para a satisfação da pulsão sexual. A esses lugares Freud denominou de zonas erógenas. É nessas zonas que a pulsão sexual encontra não só satisfação, mas também se une a uma representação. A sexualidade, portanto, não está ligada estritamente aos órgãos genitais. A determinação dessas zonas erógenas implica uma seleção, algumas partes do corpo são eleitas, outras são abandonadas, pois, para Freud (1905/1974), qualquer região do corpo pode ser erotizada. Uma determinada zona do corpo é eleita se ela favorece a passagem da função orgânica para a satisfação da pulsão sexual.
Observamos que a noção de zona erógena comporta a ideia de que houve a incidência do simbólico sobre o corpo, efetuando uma separação entre gozo e corpo. A entrada da criança no discurso lhe possibilita estabelecer uma função para seus órgãos, segundo as leis significantes.
A histeria de conversão é um bom exemplo clínico disso. Os sintomas conversivos demonstram que qualquer lugar da superfície corporal pode ter uma função sexual a expensas da necessidade orgânica. No sintoma da cegueira histérica, trabalhado por Freud, em seu texto “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão” (1910/1974), o olho deixa de exercer sua função orgânica que é a visão e passa a legitimar a satisfação da pulsão sexual. O sintoma conversivo atesta que o limite entre o sexual e o não sexual, entre o desejo e a necessidade, não pode ser mais estabelecido. A fantasia, expressão do desejo sexual, se apossa do órgão e apaga sua função ligada à necessidade. Verificamos, no sintoma de conversão, que, entre a função real do corpo e a função simbólica — um corpo marcado pelo significante — se insere a função imaginária. Para Freud, essa função imaginária do corpo tem uma prevalência na histeria.
Na esquizofrenia, observamos uma falta de simbolização e, consequentemente, uma falta de sexualização. Isso porque, conforme abordamos anteriormente, a constituição de i(a) diz respeito a um investimento libidinal no eu que não se dá. Por conseguinte, não é possível que se forme uma Gestalt do corpo. O que prevalece é a “língua do órgão”, seguindo Freud em suas elaborações no texto “O inconsciente” (1915/1974), justamente porque o significante não está submetido à função simbólica, então, é tratado como coisa. Nesse caso, o significante é tomado pelo viés da identidade da expressão verbal, ou seja, a relação de palavra a palavra, e não pela via da significação, quando o recalque está presente. Para exemplificar o que quer dizer com isso, ele traz o caso de uma paciente de Tausk:
“Uma moça levada à clínica após uma discussão com o amante queixou-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos. Ela mesma explicou o fato, apresentando, em linguagem coerente, uma série de acusações contra o amante. ‘De alguma forma ela conseguia compreendê-lo, a cada vez ele parecia diferente; era hipócrita, um entortador de olhos, ele tinha entortado os olhos dela; agora via o mundo com olhos diferentes’” (FREUD, 1915/1974, p.226).
A palavra alemã Augenverdreher, entortador de olhos, possui o sentido figurado de enganador. Mas não foi pela via da significação, pela via da similitude das coisas designadas, que esse significante foi tomado por esse sujeito, mas pela relação de palavra a palavra. É uma prova de que o corpo do esquizofrênico não foi mortificado pela ação simbólica, sendo assim, não houve a disjunção entre significante e órgão, e, com isso, o corpo não passou de sua condição real para um corpo erógeno, um corpo recortado em zonas erógenas. Na esquizofrenia, o corpo é o lugar do gozo, um gozo não mediado pelo simbólico. O sujeito tem que se arranjar com seus órgãos quando nenhuma referência a um discurso estabelecido pode vir em seu auxílio.
Já na histeria de conversão, há não só um excesso de simbolização em decorrência do recalque, a representação ligada à pulsão sexual ganha a dianteira e se sobrepõe à função orgânica, como também um excesso de sexualização. Partes do corpo passam a ter uma função erógena.
O esquizofrênico atesta, através de sua fala e de seus sintomas no corpo, que há um impossível de simbolizar e de sexualizar, mesmo que possamos dizer que os fenômenos corporais aí presentes sejam uma tentativa de fazer a conjunção entre o real do corpo e a palavra. É o que Freud nos ensina, ao afirmar que a própria doença é uma tentativa de cura. Já os sintomas conversivos demonstram que são formações simbólicas passíveis de interpretações. Isso quer dizer que há, no sintoma de conversão, uma substituição metafórica de uma representação por um elemento significante do corpo.
Mas há aí um ponto de interseção. Há na constituição imaginária de um corpo dito feminino algo que fica fora de qualquer articulação significante que possa responder sobre a diferença anatômica. Há, portanto, um inefável, um não simbolizável sobre o ser feminino que é denunciado num ponto de falha na constituição de i(a), que, na histeria, fica tão evidente. O sintoma de conversão tenta reparar essa falha que se dá no campo da imagem, tenta revestir esse real do corpo, impossível de simbolizar.