A INTERPRETAÇÃO JACULATÓRIA[1]
MARISA MORETTO
Psicanalista, membro da EOL/AMP
marisamoretto@fibertel.com.ar
Resumo: A autora traz nuances da discussão teórica sobre a interpretação jaculatória situando-a no limite da palavra quando já não é mais possível o desdobramento da cadeia significante e pergunta se tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toca o corpo e incide no campo do gozo. Ali, onde a palavra se apaga, estaria o impacto, o que faz ressoar outra coisa que não a significação. Para Miller, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna.
Palavras chave: Interpretação jaculatória, jaculação, ressonância, gozo.
JACULATORY INTERPRETATION
Abstract: The author brings nuances in the theoretical discussion about the jaculatory interpretation, placing it at the limit of the word, when the unfolding of the signifying chain is no longer possible, and asks if it would be an effect of meaning that, by its resonance, touches the body and it focuses on the field of enjoyment. There where the word is erased is the impact, which makes something other than the meaning resonate. For Miller, it is an interpretation that precipitates an “it is like this” ending the urge to continue seeking the eternal decipherment.
Keywords: Jaculatory interpretation, jaculate, resonance, enjoyment.
O termo jaculatório, segundo o dicionário da RAE[2], designa uma oração breve e fervorosa. Seus sinônimos são: oração, prece, reza e invocação. Não só os cristãos a usam em suas preces. O Alcorão começa todas as suratas[3] com uma jaculatória.
Por que Lacan emprega esse termo, usado na cultura religiosa, para se referir à interpretação? Será porque a interpretação opera de maneira religiosa, ou é uma questão de fé, ou, talvez, de sugestão? É certo que também tem usos literários, aplica-se em sentido figurado a uma frase ou estribilho curto, repetitivo e sentencioso.
Entretanto, a expressão jaculatória é utilizada por Lacan não só em referência à interpretação, mas ao limite da significação, quer dizer, como cadeia rompida. Assim o li pela primeira vez em “De uma questão Preliminar a todo tratamento possível das psicoses” (LACAN, 1955-56/1998). Ali Lacan situa a opacidade nas jaculatórias do amor quando, diante da escassez do significante para chamar o objeto de seu epitalâmio[4], usa, para isso, o expediente do imaginário mais cru: “Eu te como… — chuchuzinho”. “Estás todo derretido… — gato!” (Ibidem, p. 541). Um significante que não faz cadeia expressando-se com crueza. Assim se expressam, a palavra de amor ou o insulto, diante da impossibilidade de significar de forma acabada.
Como adjetivo ele deriva do latim jaculari, que é: lançar. A jaculatória é lançada com fervor e tem entonação. Recordo, em analogia, o Homem dos Ratos quando, para insultar, expressava qualquer palavra despojada do enunciado. Desde muito pequeno, nos conta Freud, ao ser castigado por seu pai, uma ira se apodera dele e, como ainda não conhecia as más palavras, recorre então a nomes de objetos que iam lhe ocorrendo: “Eh, tu, lâmpada, lenço, prato! (FREUD, 1977, p. 208). O significante chega a um limite em que só é compreensível por sua dimensão de ato. Então, não se trata das palavras, mas do lançado. Modo que indica aquilo que não pode ser capturado pelo conceito, que não pode ser traduzido. Também em analogia em seu livro sobre o chiste, Freud se refere ao disparate, esses lançamentos que só em aparência são chistes, frequentes no balbucio infantil e também nas psicoses (FREUD, 1977, p. 148). Sem sentido, significantes que não fazem cadeia. Até aqui consideramos a jaculatória expressão que exterioriza o caráter nativo do sujeito com o significante, assim desenvolve Gorostiza em seu texto “O princípio do ininterpretável” (2014). Em seu texto “A interpretação-jaculação”, Laurent (2018) toma a aula do Seminário RSI (LACAN, 1975), de 11 de fevereiro de 1975, e faz referência ao dizer do analista: “Esse dizer do analista que põe em entredito as categorias linguísticas da enunciação e do enunciado. É a isso que Lacan pôde dar, entre outras, o nome de jaculação”. Vamos ao Seminário, Lacan situa:
“Antes de tudo se coloca a questão de saber se o efeito de sentido em seu real se sustenta no emprego das palavras — digo o emprego no sentido usual do termo — ou somente em sua jaculação. Muitas coisas, desde sempre, tem-lo feito pensar; mas deste emprego desta jaculação não se fazia a distinção. Acreditava-se que eram as palavras que as que produzem. Enquanto, se nos dermos ao trabalho de isolar a categoria do significante, vemos bem que a jaculação conserva um sentido, um sentido isolável.”
A palavra se apaga, a experiência não pode se traduzir, não obstante, o impacto está. De que sentido isolável se trata a diferença de uma palavra? Isso que lança e faz ressoar outra coisa que a significação. Quer dizer que não aponta para a continuação do desdobramento da cadeia significante. Tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toque o corpo e incida no campo do gozo? Em “Sutilezas analíticas”, Miller dirá: “Uma análise é concebível onde uma jaculação pode retificar… o gozo, isto é, que possa ser concebido como satisfatório” (2011, p. 268).
Alguns anos depois, em “O ser e o Um” (2011), Miller não falará de jaculação senão de constatação ou delimitação a propósito da interpretação. Assinala que, tratando-se do gozo impossível de negativizar e já havendo dado várias voltas sobre as verdades mentirosas que se constroem da má maneira diante do real que não enlaça com nada, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna. Da mesma maneira que o insulto ou a palavra de amor no dizer do sujeito delimita, constata o impossível de seguir pondo em palavras, já que não há S2 que signifique adequadamente — no sentido da inadequação, do não enlace, enfim, do real —, a interpretação jaculatória delimita, constata isso mesmo, e seu efeito é um gozo que, ainda iterando e intraduzível, é satisfatório. Então — não sei bem como ocorreu a Lacan a jaculatória que tem usos religiosos —, vale a pergunta se, por acaso, essa constatação jaculatória não tem, dado seu alcance transferencial, um caráter de crença. Se se trata do que resta, de uma marca, de um fora-de-sentido, no dizer de Laurent, isso que terminou por apagar a falsa cantoria da crença no sintoma, isso é, então, uma questão de crença? Como transmitir uma constatação, como fazê-la passar de uma boa maneira, para não ficarmos sugestionados e repetirmos ferventemente HáUm![5] Cada trabalho de Escola é instrumento para tentar, um a um, não obstaculizar cada descoberta incomparável que cerniu o analisante via sua jaculatória.
No limite, então, a transmissão será compreensível em ato, um por um e a cada vez. Parafraseando Vicente Palomera, em sua conferência dada na noite preparatória das Jornadas Anuais do último três de outubro, “Estes traços são estes e não são outros os que se pôde isolar, faz-se algo com eles e isso se corporifica”.
A pergunta freudiana se renova: qual é a diferença essencial entre o analisado e o não analisado? (FREUD, 1977, p. 260). Pareceria que, naquele não analisado, tanto a palavra de amor quanto o insulto ou o disparate possuem o mesmo estofo que escutamos nos finais da experiência analítica. Entretanto, não é do mesmo modo que uma palavra de amor ou a injúria jaculam tentando cernir em ato um gozo opaco ao sentido, ou a criança que balbucia via disparate, ou o Homem dos Ratos lançando expressões ante a fúria pelo castigo paterno, que, como em alguns testemunhos de passe, o analisante isola certa marca que se corporifica de uma boa maneira, ou de maneira satisfatória, via interpretação jaculatória. Um analisado é alguém que passou pela crença no sintoma até apagar sua sede por esses sentidos que o faziam sofrer demais. A interpretação-jaculação tratará então de deixar “… o analisante ter confiança no sinthoma que ele inventou, enquanto puder” (GUÉGUEN, 2012). Constatação, então. Ou, melhor dizendo, “desembrulhar-se, mas sem tomar a coisa em conceito” (LACAN, 1977).
Tradução: Tereza Facury
Revisão: Beatriz Espírito Santo