A presença real na análise1

GILLES CHATENAY
Psicanalista, AME da ECF/AMP
gilles.chatenay@orange.fr

 

Resumo:   A partir dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência, de Jacques Lacan, o texto se propõe a delimitar o que realmente está presente em uma análise sobre a expressão “presença real”.

Palavras-chave: presença real; transferência; falo; castração, inconsciente.

THE REAL PRESENCE IN THE ANALYSIS 

Abstract: From chapters XVI, XVII and XVIII of the Seminar 8: The transference, by Jacques Lacan, the text proposes to delimit what is really present in an analysis of the expression “real presence”.

Keywords: real presence; transference; phallus; castration, unconscious.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Orientei minha leitura dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência pelos termos de “presença real” (LACAN, 1960-61, p. 246-58). Tentei delimitar o que realmente está presente numa análise. É uma questão crucial, pois se não houvesse a presença do real em uma análise, parece-me que ela seria apenas um jogo de ilusões.

Signo, símbolo, significante

O capítulo que Jacques-Alain Miller intitulou “A presença real” encerra uma série na qual Lacan trata do complexo de castração e do símbolo Phi. No Capítulo XVII, ele diz: “introduzi (…) o símbolo grande Phi. (…) este símbolo nos é indispensável para compreender a incidência do complexo de castração no que tange à transferência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 233). Deduzo disso que a presença real, para Lacan, nesse Seminário – isso mudará mais tarde em seu ensino – tem a ver com o complexo de castração, o símbolo grande Phi e o dispositivo da transferência. Lacan cita Freud em “Análise finita e infinita” (FREUD, 1937/1996, p. 225-231): “A mensagem freudiana terminou nesta articulação, ou seja, que há um termo último (…) o rochedo – o termo está no texto – do complexo de castração” (LACAN, 1960-61/1992, p. 226-227). O final de análise encontra um rochedo impossível de ser dissolvido pelo significante, ele tropeça em um real. É preciso notar que Lacan assinala que “Trata-se do complexo de castração no homem, bem como na mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 227) que “não se trata das relações entre homem e mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 225).

Isto é digno de nota, pois poderíamos ter acreditado, a partir dos desenvolvimentos freudianos sobre ter ou não o pênis, que o falo estaria no princípio da diferenciação sexual e que o complexo de castração seria aquilo pelo qual mulheres e homens se diferenciariam. Mas, antes de entrarmos verdadeiramente na leitura a propósito do complexo de castração e do falo, esses capítulos tratam de signos, símbolos e significantes. Para me orientar na leitura, fiz pequenos esquemas. O signo representa alguma coisa. Eu insisto nessa expressão alguma coisa. O signo aponta para alguma coisa, em direção ao objeto. Digamos que o signo apresenta o objeto. Esquematizo desta forma:

Signo

Objeto

O símbolo, ao contrário, vem na ausência de alguma coisa – basta pensar nos primeiros símbolos gravados sobre os túmulos, quer dizer, sobre os mortos. O símbolo presentifica a ausência. Escrevo esta ausência com o conjunto vazio, e coloco uma barra entre o símbolo e o vazio para marcar que o símbolo vem no lugar do vazio.

Símbolo
_________

O símbolo presentifica a ausência: “aquele buquê de flores (…). Sua presença serve para recobrir o que é para se recobrir, (…) era menos o falo ameaçado de Eros (…), que o ponto preciso de uma presença ausente, de uma ausência presentificada” (LACAN, 1960-61/1992, p. 235). Esse símbolo, Lacan o escreve como grande Φ. E ele diz que “este talvez seja, com efeito, o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).  Escrevo-o assim:

Φ
___

O significante, ele mesmo, vem sob um fundo de ausência. Mas como significante, ele chama a dimensão do significado – senão não seria um significante. Entretanto, o sentido só pode surgir como efeito de uma articulação de vários significantes, de uma cadeia de significantes – quando falo, espero que vocês aguardem até o final das minhas frases para decidirem (mais ou menos) sobre seu sentido, se é que elas têm um sentido. O significante não aponta para o objeto presente, ele não só representa sua ausência, mas também aponta para outros significantes.

S1 → S2

Dito isto, esses esquemas do signo, do símbolo e do significante não são tão discriminatórios quanto poderiam parecer. Por exemplo, na frase que citei, Lacan nos diz que o símbolo grande Phi é um significante. Ou ainda, que os signos podem funcionar como significantes: basta que eles estejam ordenados em um feixe de índices que pede interpretação.

A falta de um significante 

O símbolo grande Phi é um significante, mas um significante bastante singular, pois ele vem “no lugar onde se produz a falta do significante” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).

O que isso quer dizer? Lacan nos dá um exemplo clínico dessa produção com as questões da criança:

O que é correr? O que é bater com o pé? O que é um imbecil? (…) De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de captar o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por esse algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

O momento da pergunta é o momento em que a criança experimenta a ruptura radical entre as palavras e as coisas.

Lacan retornou a esse momento da pergunta no Seminário 11, no qual ele explica que nenhuma resposta pode satisfazer a criança: “ele está me dizendo isso, mas o que ele quer?” (LACAN, 1964/1998, p. 203)

Imagino esse diálogo:

— O que você quer quando me diz isso?

— Eu disse isso porque queria lhe dizer que…

— Mas agora, por que você está me dizendo isso?

— Eu digo isso porque…

— Mas agora, por quê?

Não há fechamento. No momento em que digo não posso dizer por que agora digo o que digo. A questão subjacente às perguntas da criança é: O que você quer? É uma questão sobre o desejo do Outro, e não há nenhum significante do desejo do Outro – apenas signos. O momento da pergunta é o momento em que se experimenta a falta de um significante no Outro que diria sobre seu desejo. Em seu lugar vem o símbolo grande Phi.

É assim que creio entender por que Alcebíades, que sabe que Sócrates o deseja, “demanda vê-lo, quer vê-lo, como signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232): ele rejeita o símbolo grande Phi do falo que apenas presentifica a falta de um significante, o vazio, e pede signos, que apontariam para o objeto, a coisa, o gozo.

E é também por isso que Sócrates recusa. Pois não há ali mais que um curto-circuito. Ver o desejo como signo não é, por este fato, aceder ao encaminhamento por onde o desejo é tomado em uma certa dependência, que é o que se trata de saber. (LACAN, 1960-61/1992, p. 232)

O questionamento socrático está inteiramente orientado para a descoberta desse caminho: em direção à produção de saber. Sócrates pode desejar Alcebíades carnalmente, mas ele dedica sua vida a outro desejo, que é, eu diria, o desejo de saber.

O desejo de saber e o desejo do analista 

Lacan, mais tarde em seu ensino, falará do desejo do analista como desejo de saber. E nesta mesma página, ele também fala do desejo do analista: “Vocês veem, aqui, iniciar-se o caminho que tento forçar em direção ao que deve ser o desejo do analista. Para que o analista possa ter aquilo que falta ao outro, é preciso que ele tenha a nesciência enquanto nesciência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

O dicionário nos diz que a nesciência2 é o estado daquele que não sabe. Lacan é lógico: só se pode desejar saber se ainda não se sabe. Mas para o analista, é preciso pelo menos saber um pouco: “É preciso que ele esteja sob o modo de tê-lo, que ele também não esteja sem tê-lo, que não esteja de forma alguma tão nesciente quanto seu sujeito” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que ele não deve ser sem tê-lo, esse quase nada de saber? Lacan nos diz: “Para que o analista possa ter isso que falta ao outro”. Trata-se da transferência, da suposição de saber que o analisante faz ao analista, da transferência sobre a qual o analista deve estar advertido. Mas esta suposição, é enganosa? Sim e não. Há engano na suposição de saber dirigida ao analista na medida em que se supõe que ele tenha um saber, ele será suposto ter um saber – sobre o analisante – que não deriva apenas de seus ditos: tudo que o analista sabe sobre o analisante, ele constrói a partir disso que ele lhe diz e de como lhe diz.

É justamente outro saber que é exigido ao analista: aquele que ele produziu em sua própria análise, ou seja, por um lado, uma percepção sobre sua fantasia fundamental que lhe permite não interpretar apenas no seu quadro, e, por outro lado, um saber fazer aí com seu sintoma. E há ainda outro saber que o analista produziu a partir de sua análise: que falta um significante no Outro, que o Outro é incompleto e inconsistente, que o Outro da garantia não existe – o que Lacan escreve S(Ⱥ).

O signo da falta de significante e a angústia 

“De fato, ele também não é sem ter um inconsciente. Sem dúvida, ele está sempre para além de tudo aquilo que o sujeito sabe, sem poder dizer isso a ele. Ele só pode lhe fazer um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232). Isso é lógica: ele não pode dizer com significantes a falta significante. Portanto, ele só pode fazer signo disso. “Pois ao signo que há para dar, falta significante (…) porque é aquele que provoca a mais indizível angústia” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que a angústia? O signo aponta para o objeto. Mas, aqui, trata-se do signo da falta significante: esse signo aponta em direção a um vazio. Sartre, por exemplo, falou da angústia do sujeito diante de sua liberdade, ou seja, diante de um vazio de determinismo – em termos lacanianos, diante de uma falta no Outro. Mas eu disse que o signo aponta para o objeto – qual é o objeto aqui em questão? Eu arriscaria, antecipando o ensino de Lacan, que se trata do objeto nada. Dois anos após o Seminário sobre A transferência, Lacan fará seu Seminário sobre A angústia (LACAN, 1962-1963/2005), no qual ele dirá que é a presença do objeto que causa a angústia, que o objeto é causa. Anteriormente, o objeto era o objeto desejado; no Seminário sobre A angústia, o objeto pequeno a torna-se a causa do desejo.

Mas ainda não estamos neste ponto no Seminário sobre a transferência. Nas páginas que comento hoje, com qual objeto o sujeito está lidando?

A análise descobriu (…) que aquilo com o que o sujeito tem a ver é o objeto da fantasia, na medida em que este se apresenta como o único capaz de fixar um ponto privilegiado naquilo a que é preciso chamar (…) uma economia regulada pelo nível do gozo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

O principal exemplo que temos de que a fantasia fundamental regula a economia de gozo está no artigo de Freud “Uma criança é espancada” (FREUD, 1919/1996): os sujeitos confessam dolorosamente a Freud que só atingem o gozo sexual apelando para sua fantasia fundamental.

Mas continuo minha leitura desta página:

A análise nos ensina também que, ao referir a questão ao nível do que quer ele?, do que é que isso quer lá dentro?, encontramos um mundo de signos alucinados, e ela (a fantasia) nos representa a prova da realidade como uma forma de experimentar o quê? – a realidade desses signos. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

A questão é a questão sobre o desejo do Outro, e trata-se aqui da realidade dos signos. Retomo a citação: “O que está em questão, pois, na prova da realidade, vamos observar bem, é certamente controlar uma presença real, mas uma presença de signos” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Lacan disse que o símbolo grande Phi presentificava uma ausência (LACAN, 1960-61/1992).

Φ
___

Mas a presença real é presença de signos. Como percebermos isso, senão que diante do vazio, diante da ausência de significante significado pelo grande Phi, o sujeito convoca a presença real de signos?

O objeto da fantasia e os objetos das fantasias

Signos de quê? Signos “de uma relação com outra coisa” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240). E o que é essa outra coisa? “É isto o que quer dizer a articulação freudiana, que a gravitação de nosso inconsciente diz respeito a um objeto perdido, que jamais é senão reencontrado, isto é, jamais realmente reencontrado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Signo

Objeto a

Qual é esse objeto perdido? “O objeto jamais é senão significado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240) – como entender significado aqui? Escolhi lê-lo assim: do objeto se faz signo.  Qual é a relação do sujeito ao significante? No nível da cadeia inconsciente lidamos apenas com signos. Trata-se de incitar esse outro a quem me dirijo “a visar da mesma maneira que eu, o objeto ao qual se relaciona determinado signo, fazer dele um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Como está perdido, já que existe como tal apenas como perdido, estamos sempre lidando apenas com os signos desse objeto. “O objeto verdadeiro, autêntico, de que se trata quando falamos de objeto (…) está no horizonte daquilo em torno do que gravitam nossas fantasias” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241). No horizonte ele não é alcançado. O verdadeiro objeto não é, estritamente falando, o objeto de nossas fantasias no plural, por exemplo, o chicote fálico em “Uma criança é espancada”. O verdadeiro objeto é um objeto em torno do qual giram nossas fantasias. Isto parece nos convidar a distinguir o objeto verdadeiro, autêntico, em torno do qual giram nossas fantasias – e que não pode ser compartilhado ou intercambiado – dos objetos colocados em jogo nessas fantasias.

E para distinguir da mesma forma a fantasia fundamental, no singular, que implica esse objeto verdadeiro – a voz, o olhar, as fezes, o objeto o oral, o fonema, o nada – dos cenários imaginários fantasmáticos que colocam em jogo os signos desse objeto e que podem ser compartilhados. Os cenários e as imagens fantasmáticas, ao contrário da fantasia fundamental, podem ser compartilhados e intercambiados e, aliás, existe um mercado de fantasias. E, nos diz Lacan (1960-61/1992, p. 240), existe “um mercado de objetos”, objetos aqui a serem tomados no sentido comum do termo, quer dizer, objetos que se pode intercambiar. O que compramos quando nos oferecem o iPhone mais recente? Compramos um signo, signo de que temos o gozo, mas, além disso, o signo que aponta para o objeto pulsional de nossa fantasia fundamental, mas que não é esse iPhone. O mercado de objetos é o mercado dos signos do objeto.

Grande Phi, signo do desejo 

Esses signos, nós podemos desejá-los, mas qual é o signo do desejo? Nesse Seminário, é o falo, o grande Phi.

De todos os signos possíveis, não é aquele que reúne em si mesmo o signo e o meio de ação e a própria presença do desejo como tal? Deixar emergir o falo em sua presença real (…). [Do desejo] Não há signo mais certo (…). (LACAN, 1960-61/1992, p. 241) 

Já sabíamos disso para o significante e para o símbolo, mas acentuo que os signos também têm um efeito em si mesmos, que há uma eficiência dos signos. No fundo, isso é evidente se pensarmos na indústria publicitária, cuja única produção é a produção de signos, e que se baseia no pressuposto de sua eficiência.

E o grande Phi é seu meio de ação. Trata-se de tornar estes signos desejáveis – como? Não há desejo sem falta. Portanto, é necessário introduzir a dimensão da falta, e como melhor fazê-lo senão convocando o símbolo que presentifica a falta, grande Phi:

Φ
___

Ao presentificar a falta, grande Phi presentifica o desejo. Retomo a frase de Lacan: “Que o falo venha à luz em sua presença real”: através do signo ou do símbolo grande Phi, o falo deve vir à luz; o sinal ou símbolo grande Phi deve estar realmente presente. “Do desejo não há signo mais certo”, e Lacan acrescenta, “sob a condição de que nada mais haja além do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Para que o signo do desejo, o grande Phi, que é um signo da falta no Outro, venha à luz em sua presença real, é preciso que se rasgue o véu dos outros signos, que apontam para o objeto, pretendendo preencher a falta. “Do desejo não há signo mais certo, sob a condição de que não haja além do desejo”. O grande Phi é “o puro significante do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 242). O grande Phi foi “o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234). Por isso é um significante, mas um significante da falta de um significante no Outro. Como tal ele é indizível, inominável. Daí seu funcionamento como signo: dele só se pode fazer signo, em silêncio, eu diria.

A falta no Outro, a relação com a linguagem e sua projeção no órgão

Lacan escreve o significante da falta no Outro como S(Ⱥ). O Outro, neste caso, é o lugar do significante – digamos, a linguagem. Como tal, S(Ⱥ) escreve a relação conflituosa do sujeito com a linguagem – pensemos no momento da pergunta da criança:

De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por este algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

A relação inominada, porque inominável, porque indizível, do sujeito com o significante puro do desejo se projetada sobre o órgão localizável, preciso, situável em alguma parte no conjunto do edifício corporal. Daí este conflito propriamente imaginário, que consiste em ver a si mesmo privado, ou não privado, desse apêndice. (LACAN, 1960-61/1992, p. 242)

Acontece com o significante da falta no Outro com um grande A, algo análogo a isso que aconteceu anteriormente com o objeto imutável e não compartilhável da fantasia fundamental. O objeto da fantasia fundamental foi projetado sobre o objeto localizável e intercambiável do mercado. O significante da falta no Outro com A maiúsculo, lugar dos significantes, digamos da linguagem, é projetado no órgão do outro com um pequeno a, quer este pequeno outro seja o parceiro do sujeito ou o próprio sujeito. Escrevo essas projeções com duas pequenas setas:

Objeto pulsional, objeto a → objeto do mercado

S(Ⱥ) → falo imaginário, ϕ

A → outro

Antecipemos um pouco: no Seminário sobre A angústia, o objeto que se deseja se tornará causa do desejo, e no Seminário De um Outro ao outro (LACAN, 1968-1969/2008), o objeto a como causa responderá pelo objeto mais-de-gozar, permutável, compartilhável, mercantilizável.

Objeto causa → objeto mais-de-gozar

O que faz os termos à esquerda passarem para aqueles à direita? O que é colocado em função nessas projeções de localização?

A função grande Φ 

Nós tínhamos o sinal, o símbolo e o significante, agora eu apresento a função. Lacan fala da “função Φ do significante falo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244), e quando fala do neurótico obsessivo, fala de “colocar em função” e fala do “sinal da função fálica” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A clínica do neurótico obsessivo me parece falar particularmente da “da ativação da função fálica”, digamos, da falicização.

A formulação do segundo termo da fantasia do obsessivo faz, precisamente, alusão ao fato de que os objetos são para ele, enquanto objetos de desejo, colocados em função de certas equivalências eróticas – aquilo que temos o hábito de assinalar, ao falar da erotização de seu mundo, em especial de seu mundo intelectual. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Lacan escreve a fantasia do obsessivo da seguinte forma:

(Ⱥ) ◊ Φ (a, a”, a”, a”’, …)

(LACAN, 1960-61/1992, p. 248)

Ele especifica que o poinçon pode ser lido como desejo de. Eu li desta maneira: recuando diante da falta no Outro, face ao A barrado, o sujeito obsessivo deseja os objetos de seu mundo na medida em que eles são falicizados.

Na medida em que são falicizados, porque sua falicidade é medida:

(…) o j é justamente aquilo que é subjacente à equivalência instaurada entre objetos no plano erótico. O j é, de alguma maneira, a unidade de medida, onde o sujeito acomoda a função a, ou seja, a função dos objetos de seu desejo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Medida, equivalência: esses objetos são objetos do mercado:

(…) tantos ratos, tantos florins, não passa de uma ilustração particular da equivalência permanente de todos os objetos naquilo que é uma espécie de mercado (…). Ela se inscreve (…) numa espécie de unidade comum de padrão-ouro. O rato simboliza, ocupa propriamente o lugar daquilo a que chamo j, na medida em que ele é uma certa forma de redução de Φ, e mesmo a degradação deste significante. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Às projeções que já escrevi, acrescento uma:

Φ → φ

E Lacan acrescenta – trata-se sempre do obsessivo –: “a função Φ do falo, enquanto oculta por trás de sua negociação no nível da função do j (LACAN, 1960-61/1992, p. 254). Mas Φ representa “a função do falo em sua generalidade, para todos os sujeitos que falam” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A presença real 

O símbolo grande Φ tem a ver com a presença real: “Sabemos qual é a dificuldade do manejo do símbolo Φ na sua forma desvelada. (…) o que ele tem de insuportável é que não é simplesmente um signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244).

Ele não é simplesmente signo e significante: não é simplesmente imaginário, nem simbólico: ele é real, presença real, real da presença do desejo. “Esta presença real, trata-se, no entanto, de situá-la em alguma parte, e num outro registro que não o do imaginário. (…) que podemos entrever que o desejo vem habitar o lugar da presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 256).

“Mas então por que o falo, neste lugar e neste papel?” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257) – pois há “outros signos do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257). “O falo se apresenta no nível humano, entre outros, como o signo do desejo. É também o seu instrumento, e também sua presença” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257).   

No nível humano, ou seja, não se refere apenas ao perverso de quem Lacan fala nessas páginas. “O que ele designa não é nada que seja significável diretamente. É aquilo que está além de toda significação possível e, especialmente, a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 258).

E, como se trata da presença real na análise, e como essa não pode ser concebida sem a transferência ao analista à qual responde o desejo do analista, eu me arriscaria que a presença real, na análise, está situada de forma privilegiada na emergência do desejo do analista, em suas interpretações, suas escansões, seus cortes… ou em seu silêncio.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Tereza Facury

Referências
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 231-270.
FREUD, S. (1919). Uma criança é espancada. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 193-218.
LACAN, J. (1960-61). O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1962-1963) O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, J. (1968-1969) O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

1. Texto originalmente publicado em Ironik, n.33, boletim da UFORCA.
2. Característica de néscio, de quem não sabe ou não possui conhecimento para compreender alguma coisa. Alguns estudiosos diferem nesciência de ignorância, sendo a última relacionada a falta de conhecimento para compreender algo que se deveria saber. Disponível em: https://www.dicio.com.br/nesciencia/. Acesso em: 19 out. 2022.