A Psicanálise Em Relação Às Famílias
ROSE-PAULE VINCIGUERRA
Se o inconsciente é político, não é “fora das antinomias que constituem as relações dos homens com a natureza e a sociedade” (LACAN, 2001a, p.59)[1] que o psicanalista deve situar sua pesquisa. O que ocorre, então, nas famílias hipermodernas – famílias recompostas ou apresentando todas as variações que a procriação médica assistida autoriza nos casais heterossexuais ou homossexuais –, com as inevitáveis questões em que se coloca a criança no momento da sua entrada na sexuação genital, concernindo o mistério do nascimento, a relação sexual dos pais e a diferença dos sexos? E, especialmente, quando a separação entre sexualidade, conjugalidade e filiação é reivindicada pela liberdade contemporânea? Quando também a ideologia da igualdade reina em todos os níveis da parentalidade? Quando, enfim, uma suposta “fraternidade contratual” vem no lugar da figura irredutível e trágica do pai freudiano?
Desse ponto de vista, qual pode ser a eficácia do discurso analítico? Há aquilo que os psicanalistas podem constatar das relações reais no campo social e há o que eles podem fazer. Mas, quando o sofrimento insiste, o ato psicanalítico não pode se esquivar nem se opor – “boca fechada”.
Conjugalidade, sexualidade em suas relações à filiação: a era da liberdade
A psicanálise ensina que as esperanças colocadas na reconciliação do ser humano com sua sexualidade se verificam fechadas tão logo elas são abertas. O parceiro é sempre o parceiro-sintoma. A clivagem do desejo sexual e da conjugalidade já havia sido notada por Diderot no Supplément au voyage de Bougainville. Quanto a isso, a instituição familiar sempre tentou arrumar e tamponar esse impossível. Mas esse paradoxo, mascarado até então, tende hoje a aparecer claramente, pois a esfera do privado tende facilmente a se exibir, e a reivindicação do direito a gozar se afirma livremente; se revela, então, ao mesmo tempo, o real impossível em torno do qual a família era constituída. Mais ainda, nas famílias que nós hoje chamamos “hipermodernas”, chega-se até a pensar numa procriação “para além do sexo”. Assim, as relações sexuais, elas mesmas, se tornam separadas da gestação (especialmente com as procriações médicas assistidas).
Uma das consequências é que, na sociedade dita “pós-sexual”, a criança nascida sem ato sexual se torna objeto de direito ou de contrato quando não é pura questão de mulher. “Nós cortamos alguma coisa do pai”, notava Lacan (1994, p.350)[2] já há cinquenta anos. É preciso ver, nessa clivagem prazer sexual/gestação – e nas montagens das ficções jurídicas que as validam –, um progresso irreprimível das Luzes e do Direito contra o obscurantismo do segredo concernente ao desejo e ao gozo dos pais? O que se passa, a partir de então, para a criança que se vê tornar-se receptora do dever de transparência dos quais os adultos se dizem os portadores? Como se formulará essa exigência de transparência se, porventura, a tecnologia do útero artificial vier a se realizar?
No inconsciente, entretanto, a criança não cessa de colocar a questão de sua origem de ser vivo. O mistério da origem resta como aquele do sujeito. A criança particulariza a questão leibniziana “Por que existe alguma coisa ao invés do nada?” para uma “por que eu existo?”. Existe a “estúpida e inefável existência”. Existe o corpo falante, do qual nenhum saber objetivo pode esgotar o real. Fica a cargo de cada sujeito encontrar o significante mestre da sua existência.
Essa questão, a criança vai colocar buscando sempre desvendar o segredo da sexualidade dos adultos. O segredo do gozo parental é o lugar de uma cena primitiva, vista, ouvida ou fantasiada pela criança, e, como tal, é a tentativa de pensar o impensável. Freud foi o primeiro a reparar que esse enigma constituía o nó das questões infantis: o que fazem os pais na sua intimidade? Nós podemos então pensar que, no melhor dos casos, a criança reconstituirá a esfera do interdito, pois o recalque não se edifica da repressão do gozo; é o inverso. A família é, ela mesma, uma criação que se edifica do recalque, como evoca Lacan, que acrescenta: “Mesmo se as lembranças da repressão familiar não forem verdades é preciso inventá-las” (1956-1957/1994, p. 350)[3].
Igualdade e diferença
Nós podemos constatar que a família hoje não é mais vista como uma estrutura da parentalidade assegurando a passagem da natureza à cultura através de interditos e de funções simbólicas, ou mesmo como manifestando a deserção da autoridade paterna, mas como um lugar descentrado e polimorfo. Como já podemos dizer, essa família horizontal parece “uma rede assexuada (…) sem hierarquia nem autoridade” (ROUDINESCO, 2002, p. 191)[4]. Em resumo, a família é pensada como o lugar de uma igualdade formal, sem princípio de garantia nem de diferenciação. Será ela a última das comunidades utópicas? A criança não é mais como pensava o poeta romântico Wordsworth, o pai do homem; ao invés disso, temos que nos haver com a criança companheira.
Se há igualdade, essa só pode ser no encontro da linguagem com o pulsional, como Lacan o sublinhava no seu Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: “Do ponto de vista da instância da sexualidade, todos os sujeitos estão em igualdade, desde a infância até a idade adulta” (1973). Eles não têm, com efeito, “que se haver a não ser com o que da sexualidade passa nas redes da constituição subjetiva, nas redes do significante” (LACAN, 1973). Podemos então nos perguntar se essa igualdade formal no seio das novas famílias não esconde um delírio social partilhado, aquele da possibilidade de se emancipar da diferença e, especialmente, da diferença dos sexos. É preciso dizer que a fascinação pelas explorações da ciência moderna não contradiz essa ideia, que fez com que Michel Houellebecq sustentasse essa proposição delirante: “Logo vai haver três, quatro, cinco sexos diferentes”. Chegará talvez um tempo em que nós poderemos escolher o sexo das crianças. Mas o desejo de ter uma criança – a ser distinguido de querer – faz objeção a “mesmidade” (LACAN, 1965)[5] do Outro, ao amor a sua própria imagem, que é a essência da simetria. Ele aposta na contingência da anatomia, do aleatório do momento, do encontro.
Do mesmo modo podemos dizer que o que é o real do sexo é não sabido; ele está em falta no saber no Outro, escapa a toda mestria; ele é “à exaustão impossível” (Ibid.)[6], diz Lacan. O que vem aí fazer suplência é o phallus; é ao falo como significante da falta que é atribuída a dissimetria entre os sexos. É na medida em que o instrumento de conjunção (a cópula) é negativizado no inconsciente que o sujeito entra na verdade do sexo. Esse viés se chama castração. Nesse sentido, há sempre desigualdade do sujeito a toda subjetivação de sua realidade sexual. O voto de igualdade sem diferença é, então, um delírio sobre a abolição da cópula.
De uma dita fraternidade
Enfim, após a reivindicação de liberdade e de igualdade, não assistimos então ao aparecimento de uma falsa fraternidade contratual entre pais e crianças, que viria substituir a hierarquia implicada na lei do desejo? Se, com efeito, o pai não é mais essa figura “de peso” da história como havia pensado Freud, é a uma rede de aparência fraternal, em que cada um se sente “funcionalizado”, que parece a família. Essa forma de contrato é uma das figuras da própria ordem social, uma ordem social desde então sem transcendência, repartindo os lugares aos quais o sujeito se conforma em uma identificação às insígnias. Em 1974, Lacan notava que nós havíamos chegado a um ponto da história no qual o “nomeado à”, do qual o social detém o poder, se via ultrapassar o que era do Nome-do-Pai. Ele notava aí o caráter de “degeneração catastrófica” (LACAN, 1974)[7].
Esse “ser nomeado à”, perguntaríamos então, não é “indicado, traçado, projetado pela unicamente pela mãe?”. A mãe moderna não traduz o Nome-do-Pai por um não; ela pode agora bastar-se a si mesma para exercer essa função de “nomear à”. Essa mãe totalmente só não é o nome do gozo Da mulher colocada em posição absoluta, o que seria retornar a um aquém da essência classificatória devotada ao pai do nome e a um aquém do pai da aliança? Esse seria então o império ilimitado do gozo feminino para além do phallus, que daria o “a”. O contrato da ordem social, a fortiori o contrato fraternal pais-crianças, mascararia assim a ferocidade da “ordem de ferro” materna.
Como, desde então, a proibição do incesto pode ser ainda veiculada e, a função paterna, inscrita?
Se, como notava Lacan em 1971, as mães são incontáveis[8] – e não são os efeitos das novas tecnologias de procriação que poderiam o desmentir –, o mesmo não se pode dizer da função do pai, que, ele, resta “contável”.
Nesse sentido, não é a função do pai enquanto “valor de uso”, enquanto “utilidade social”, como Éric Laurent (2005)[9] havia observado, que pode conectar o desejo maternal faltoso ou seu gozo transbordante. Nem o jurídico, nem o biológico, nem mesmo o afetivo saberia responder de maneira apropriada ao que é a utilidade do pai, pois esse pai não é “de modo algum um ser consciente” (LACAN, 1973, p. 58.)[10].
Da mesma maneira, também não são com os “substitutos imaginários” do pai que as crianças se põem a forjar quando entram numa transferência analítica a que poderiam responder. Por esses substitutos, os sujeitos tentam simbolizar um real sem lei, inventar uma norma social de uso interno, mas essa ligação imaginária não parece ser suficiente para fazer um nó que segure. A partir de então a criança, confrontada cedo ou tarde à questão da emergência da sexualidade na puberdade, verá esse edifício desmoronar-se. O pai enquanto real permanece desconhecido. A ordem familiar, dizia Lacan, não faz senão traduzir que “o Pai não é o genitor” (LACAN, 2001c, p. 532)[11].
O que pode então a psicanálise, se um pai não vem particularizar em um desejo vivo o cuidado que ele pode assegurar à criança? É aqui que um analista pode, nos bons casos, fazer intervir uma nomeação que venha se sobrepor (e não se opor) ao real do gozo e permitir, assim, se servir dela, indo além do gozo. Certamente não é toda nomeação que pode ter essa função de particularizar o Nome-do-Pai em um desejo vivo. Entretanto, o analista, quanto a isso, não é menos requisitado em seu ato. O sujeito pode então reencontrar a falta, própria ao seu desejo, lá onde o peso do gozo do Outro havia feito traumatismo. Não há, portanto, nenhum conselho nem preceito geral do ato analítico, tampouco existem soluções ready-made face ao que fez carência paterna.
Assim, que a psicanálise tenha alguma coisa a dizer sobre a família não quer dizer que ela coloque a família no lugar. Ela permitiria, sobretudo, a cada um, reinventar sua família. Em todo caso, a psicanálise, se ela funda a liberdade de desejar, põe-se fora das promessas de liberdade e de fraternidade. É sobretudo no discurso analítico que nós podemos perceber o índice da fraternidade. Em 1972, Lacan dizia: “Não vos parece que esta palavra ‘irmão’, é justamente aquela a qual o discurso analítico dá a sua presença, ao menos pelo que ele traz da bagagem familiar?” Ele acrescenta: “Isso tem haver com muitas outras coisas e não somente a bagunça familiar. Nós somos irmãos de nosso paciente enquanto que como ele, nós somos os filhos do discurso” (LACAN, 1972)[12]. Não se trata aqui de uma relação “a eu e a mim” pois cada um sabe que ela pode ser “bastante conflituosa” (LACAN, 1966, p. 591)[13], nem de um contrato de boa intenção nem de bons sentimentos. É uma outra relação que está em questão.
Trata-se, sobretudo, enquanto somos filhos do discurso analítico, de sustentar com ele “o complô da verdade” (LACAN, 1974)[14]. A política da psicanálise consiste em liberar, contra “a ordem de ferro do nomear à”, o lugar da verdade; nós não podemos, com efeito, “ser nomeados à psicanálise” (LACAN, 1974)[15]. É o saber no lugar da verdade que pode se opor aos saberes que reinam na cidade.
Essa operação não é, entretanto, possível, senão porque, no interior de uma cura, o analista não é “um puro”. Sua posição tem “qualquer coisa de obscuro” (LACAN, 1968)[16]; ele sabe se fazer “o que o outro quer fazer dele” (LACAN, 1973, p. 58)[17] para permitir, no final, ao analisante, a báscula de sua posição e fazer nascer “o pivô no qual uma balança pode se estabelecer e que se chama justiça” (LACAN, 1972)[18]. O discurso analítico, só, permite “respeitar no Outro […] sua diferença, seu incomparável” (MILLER, 1997/1998)[19], que se esclarece a partir da destituição subjetiva; só, ele permite isso que Lacan um dia chamou “nosso irmão transfigurado que nasce da conjuração analítica” (LACAN, 1972)[20].