A PSICOSE, O INFAMILIAR E O INTRADUZÍVEL
FREDERICO FEU DE CARVALHO
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
ResumoO infamiliar é trabalhado por Freud como a emergência no campo da realidade de algo íntimo e secreto, que deveria permanecer oculto, e que é experimentado em seu oposto, ou seja, como algo estranho — infamiliar. O surgimento de alguma coisa que produz essa inquietante estranheza modifica, por um momento, nossa percepção da realidade. É possível se perguntar, por meio dessa palavra-conceito expressa por Freud, quais relações aproximativas podem ser feitas entre o infamiliar, o sentimento de estranheza e a “perda da realidade” na psicose.
Palavras-chave: Infamiliar; inconsciente; intraduzível; psicose
Abstract: The uncanny is a a word chosen by Freud to designate the emergency of something intimate and secret that should have remained hidden in the field of reality and that is experienced by the subject in its opposite form, that is, like something odd or uncanny. The emergency of something that produces this unsettling strangeness modifies, for an instant, our perception of reality. Through this word-concept proposed by Freud, one might ask what the possible relations between the uncanny and the loss of reality in psychoses are.
Keywords: Uncanny; unconscious; untranslatable; psychoses
No início de seu artigo “O infamiliar”, de 1919[1], Freud evoca o tratamento diferenciado que a disciplina da Estética dedica àquelas percepções que não pertencem ao campo do belo e do sublime e que, ao contrário, despertam a angústia e o horror. Entre essas percepções, Freud se dedica a investigar como aquilo que nos é íntimo ou familiar pode surgir, em determinadas ocasiões, como o seu oposto, ou seja, como estranho a nós, como algo que nos é infamiliar, provocando a angústia. No âmbito desse artigo, gostaria de examinar o estatuto teórico dessa palavra-conceito (Begriffswortes), como se expressa Freud, e como a emergência do infamiliar afeta a nossa apreensão da realidade e os laços sociais por ela circunscritos, na medida em que definimos a realidade como um compartilhamento de semblantes sociais. Nesse sentido, cabe perguntar que relações aproximativas podemos conjecturar entre o infamiliar e o sentimento de estranheza que caracteriza a relação com a realidade em algumas formas da psicose, por efeito do que Freud denomina “perda da realidade”, e que se reflete em falas como “eu não me reconheço neste mundo” ou “eu não consigo habitar este mundo”.
O ensaio “O infamiliar” é contemporâneo de “Além do princípio do prazer” e de “Psicologia das massas e análise do eu” e retoma um tema que Freud teria deixado na gaveta desde seu outro ensaio, “Totem e tabu”, de 1913, isto é, a sobrevivência da visão animista do homem primitivo na época da razão e da ciência. O ano de redação de “O infamiliar” é marcado pelo fim da Primeira Guerra Mundial e pela epidemia da gripe espanhola. A Europa estava, então, assombrada por uma sucessão de mortes, ora provocadas pelas pulsões destrutivas e pela intolerância de regimes totalitários fundados no amor ao pai, ora pela intrusão de um ser biológico invisível que ameaçava a espécie humana.
A angústia provocada pelo infamiliar, no entanto, não remete diretamente a uma angústia real diante da iminência da morte derivada de uma causa externa, como a guerra ou a epidemia. O infamiliar designa, antes, uma forma de manifestação da angústia, em geral transitória, associada a alguma coisa que nos é íntima e secreta, mas que, como a outra face de uma mesma moeda, surge inesperadamente no campo da realidade, quando deveria permanecer oculta. A longa meditação linguística desenvolvida por Freud no segundo capítulo desse artigo tem como objetivo mostrar o sentido antitético do termo alemão Das Unheimliche, ou seja, o fato de “infamiliar” derivar de “há muito familiar”, daquilo que se tornou íntimo e que, por meio de um deslocamento, passa a designar o que é oculto ou escondido. É essa derivação que o leva a associar a angústia do infamiliar ao retorno do recalcado inconsciente e, de uma forma genérica, à sobrevivência de crenças primitivas e complexos infantis em nossa apreensão da realidade.
Tal como ocorre no conto de Franz Kafka, “A preocupação do pai de família”, em que somos obrigados a conviver com o estranho ser chamado Odradek em nossa casa sem que possamos saber muito a seu respeito, sem que possamos capturá-lo. E, quando pensamos que ele se foi, Odradrek reaparece como que do nada, nas ocasiões mais insólitas, para nos lembrar de que não somos senhores em nossa própria casa; que somos habitados pelo estrangeiro em nós mesmos, apesar de nosso narcisismo original querer afirmar sempre o contrário, isto é, que, em nossa casa, somos soberanos.
Do ponto de vista fenomenológico, o sentimento do infamiliar pode ser comparado a outras formas de desencadeamento da angústia, como o susto, o medo e o pânico[2], levando-se em conta, por exemplo, a sua dimensão temporal, a sua intensidade ou as condições de sua irrupção. Freud busca discernir, nesse ensaio, o traço diferencial do infamiliar reivindicando uma leitura psicanalítica desse fenômeno, o que culmina na aproximação entre o infamiliar e o recalcado.
O que distingue o sentimento do infamiliar da angústia, em geral, no campo de nossas percepções, é a emergência de alguma coisa que produz uma inquietante estranheza, que “desrealiza”, por um momento, por assim dizer, nossa percepção da realidade. Segundo Freud, a relação com a realidade depende de uma operação psíquica: a substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade, obtida graças à moeda de troca da fantasia. A fim de que a realidade possa ser adequadamente enquadrada e funcionar como um semblante, é preciso que o objeto de gozo seja localizado na fantasia, e não no campo da realidade. Lacan nomeia essa operação “extração do objeto”. Em termos freudianos, a extração do objeto do campo da realidade equivale, portanto, à elaboração da fantasia inconsciente, ou seja, à configuração de uma Outra cena, graças ao investimento de objeto na fantasia, como condição para que a cena do mundo, sustentada pelo princípio de realidade, possa operar adequadamente.
O artigo “A negação”, de 1925[3], nos permite esclarecer em que consiste essa extração do objeto do campo da realidade. A tese de Freud, depois retomada por Lacan, sustenta que a realidade deve ser enquadrada pelo sujeito, não sendo, portanto, uma simples extensão de nossos sentidos. Freud sugere que as nossas primeiras cisões psíquicas, influenciadas pelo “Eu prazer”, modelam o campo da realidade incorporando ao Eu as representações agradáveis, ao passo que as representações desagradáveis são excluídas do Eu e se tornam, então, hostis a ele. Tal distorção será depois corrigida pela evolução psíquica do princípio de realidade, que impõe uma visão mais ajustada e menos vinculada ao princípio do prazer em nossa apreensão da realidade. Mas o princípio de realidade incide sobre um real já modelado, segundo a disposição inicial do “Eu prazer”, ou seja, por uma exclusão primária que recorta determinada região do real como inassimilável, fora do campo da representação.
Nesse artigo de 1925, Freud distingue a negação que caracteriza o recalque (Verdrägung) — que afeta as representações psíquicas inconscientes — daquela que resulta em exclusão do Eu — operação à qual ele deu o nome de Ausstossung —, que se refere a um núcleo real que permanece estranho a ele pelo fato de não se vincular a nenhuma representação psíquica, mesmo que recalcada. Para tratarmos das relações entre o infamiliar e a psicose, teríamos que nos reportar a essa primeira diferenciação. De fato, se, na neurose, podemos remeter o infamiliar ao recalcado inconsciente, àquilo do qual o neurótico nada quer saber, mas que surge no campo da realidade como uma intromissão da Outra cena na cena do mundo, na psicose, por sua vez, o infamiliar parece habitar o próprio campo da realidade pelo fato desta não estar enquadrada pela fantasia.
No entanto, apesar de Freud associar, na terceira parte de seu ensaio, o infamiliar e o recalcado, o infamiliar não é tratado ali como uma formação do inconsciente típica, vinculada à estrutura da linguagem e condensadora de sentidos (Sinn). O infamiliar evoca, ao contrário, uma forma inabitual do retorno do recalcado, sendo mais próximo do retorno no real que caracteriza a psicose. De fato, o tipo de fenômeno que interessa a Freud investigar em “O infamiliar” não se estrutura a partir do retorno da cadeia significante, mas da presença de um objeto que se comporta como um signo de gozo, como índice de um real, ou seja, que não se estrutura a partir da cadeia significante do sintoma como uma formação de compromisso, mas como algo intrusivo, como uma emergência de um real que retorna desde fora.
Esse índice do real, se tomamos como paradigma a neurose, tem como referente (Bedeutung) o objeto da fantasia, ou seja, o núcleo real que a fantasia encapsula com sua vestimenta significante e cuja presença no campo da realidade suscita angústia, borrando a fronteira entre a cena do mundo e a Outra cena. Trata-se aqui da emergência real de um objeto que havia sido extraído do campo da realidade, que volta a se apresentar onde deveria faltar para que então pudesse causar o desejo na neurose, no lugar da falta que condicionou a construção da cena do mundo e o enquadre da realidade devido à extração do objeto e do seu investimento na fantasia inconsciente.
É essa presença no real de um signo de gozo que satura o campo da realidade na psicose, conferindo-lhe uma aura de estranheza. A “perda da realidade” na psicose, evocada por Freud em 1924, na esteira das reformulações de sua segunda tópica, é uma consequência dessa saturação, se definimos o enquadramento da realidade a partir da extração do objeto da fantasia. A percepção da realidade, assim como o laço social, pressupõe o esvaziamento do gozo e sua redução ao objeto a, ou seja, ao objeto da fantasia que condensa, condiciona e particulariza esse gozo, que passa, assim, ao inconsciente. Quando o psicótico se queixa de estar ouvindo vozes ou de estar sendo olhado, perseguido ou vigiado, ele testemunha, justamente, a presença excessiva do objeto voz e do objeto olhar, que perturbam a relação com a realidade. A perplexidade da “vivência delirante primária”, descrita pela psiquiatria clássica, poderia ser, nesse sentido, comparada ao infamiliar generalizado e radicalizado que aponta para a presença de um signo de gozo no campo perceptivo que desencadeia a angústia e provoca o desmoronamento do sentido que suportava, para o sujeito em questão, a construção da realidade.
Podemos sustentar que a angústia suscitada por um filme de suspense ou de terror depende, igualmente, da expectativa de intromissão do infamiliar na realidade. Mas essa intromissão do infamiliar na realidade está resguardada pela ficção cinematográfica. Os efeitos assustadores de um filme de terror ou de suspense dependem da evocação de formas típicas do estranho que povoam o nosso imaginário, como os fenômenos de duplicação, de animação de seres inanimados, de ressuscitação de mortos ou, ainda, de emergência desmedida do gozo do Outro, que deveria permanecer aplacado pelas exigências da civilização que garantem a manutenção dos semblantes discursivos. A angústia em um filme de terror ou suspense se nutre, portanto, da expectativa do surgimento de um objeto na cena ficcional cuja falta permanece resguardada no campo da realidade graças à estrutura discursiva do laço social.
Essa estrutura discursiva se impõe a todo ser falante e tem como condição a renúncia ao gozo e o recalcamento daquelas representações que se vinculam ao gozo interdito. Como efeito dessa renúncia, o gozo interdito prolifera no inconsciente. Devido à estrutura de linguagem que caracteriza o inconsciente, a angústia pode, por exemplo, ser condensada em um objeto fóbico, com a conhecida proliferação de sentidos dessa formação do inconsciente e com a ajuda da qual se torna possível delimitar, no campo da realidade, aquilo que se deve evitar ou aquilo de que se deve defender. A fobia é, nesse sentido, uma forma suplementar de extração do objeto do campo da realidade que visa compensar as fragilidades do Nome-do-pai para levar a bom termo a interdição do gozo e sua redução inconsciente à fantasia.
Em uma vertente paralela, teríamos o objeto fetiche da fantasia perversa, que localiza a vontade de gozo do sujeito tamponando, ao mesmo tempo, o furo da castração. Uma das diferenças evidentes entre o objeto fóbico e o objeto fetiche pode ser assim formulada: na fobia, observamos a transmutação característica da angústia em medo a partir do trabalho metafórico e metonímico do inconsciente sobre o gozo, que leva à eleição do objeto fóbico; no fetichismo, ao contrário, o trabalho do inconsciente, como uma espécie de metáfora estancada, se detém diante de um objeto que desmente a castração e que captura a vontade de gozo do sujeito.
O objeto que podemos qualificar como infamiliar se distingue, por sua vez, tanto do objeto fetiche, que captura a vontade de gozo de um sujeito, quanto do objeto fóbico, ao qual podemos atribuir o “querer dizer” que caracteriza as formações do inconsciente. O infamiliar designa um objeto intraduzível, não recoberto pela vestimenta da cadeia significante, embora possamos referi-lo ao modo singular de gozo de um falasser. Nada se pode dizer do olhar vivificado da boneca Olympia, no conto de E.T.A. Hoffmann, comentado por Freud em seu artigo, a não ser que esse olhar obseda o personagem Nathanael. Olympia nada diz a Nathanael a não ser um balbucio, um rudimento de linguagem em tom de assentimento, sem que se possa atribuir a esse rudimento um valor metafórico ou metonímico. O objeto infamiliar poderia ser tomado, nesse sentido, como fora do simbólico — embora ele possa ser associado, eventualmente, ao recalcado —, na medida em que ele retorna no real sem a moldura da fantasia. Esse retorno no real, tão característico da psicose, acontece aqui sem se vincular a uma estrutura definida. O que é uma regra na psicose pode, assim, ser observado como uma contingência na neurose. Em outros termos, o valor conceitual do infamiliar consiste em demonstrar uma forma transestrutural do retorno no real que transtorna, mesmo que de maneira contingente, nossa apreensão da realidade e os semblantes sociais a ela referidos.
Em suma, na psicose, o infamiliar parece potencialmente associado ao desencadeamento da angústia em função do encontro no real de um signo de gozo que não se ligou a uma representação inconsciente. Por essa razão, o campo da realidade se mostra, nas psicoses, envolto em uma aura de estranheza generalizada, mais difícil de enquadrar, mais ameaçado pela onipresença do signo de gozo não desdobrado na cadeia significante da fantasia. O mundo na psicose é um mundo infamiliar, por assim dizer, na medida em que aquilo que foi uma vez excluído do Eu não encontrou seu retorno pela via da fantasia inconsciente e permaneceu inassimilável. Na neurose, teríamos que associar o infamiliar à possibilidade de o objeto da fantasia se apresentar inesperadamente onde deveria faltar, ou seja, de forma desvinculada da ficção da fantasia, sem o suporte da cadeia significante, na modalidade da disjunção que articula, entre outras possibilidades — conforme o matema lacaniano da fantasia $ <> a —, o sujeito barrado e o objeto.
Visto a partir da perspectiva do infamiliar, o tratamento das psicoses vai ao encontro daquilo que as soluções psicóticas evidenciam, ou seja, que esse objeto pode ser, por vezes, encapsulado ou, conforme a analogia lacaniana, posto no bolso. Isso não corresponde a uma “externalidade-interna” do objeto, como poderíamos esperar do investimento na fantasia inconsciente que faz desse objeto a causa do desejo na neurose. O objeto no bolso designa, na terminologia lacaniana, o objeto do qual o psicótico não se separa, ao qual ele permanece aderido, e que retorna no real como o signo da presença desse gozo inassimilável e para sempre intraduzível. Mas a possibilidade de colocá-lo no bolso pode ser pensada, no tratamento da psicose, como uma maneira de circunscrever esse objeto, seja através de uma construção delirante, ou de um objeto de arte, seja através de alguma outra invenção que possa operar como uma forma de suplência para a não extração do objeto e que lhe permita minimamente enquadrar a realidade, ou seja, proteger a realidade da presença insidiosa do gozo intraduzível, que torna o mundo tão infamiliar.