A Química Da Libido
SAMYRA ASSAD
NICOLETTA CECCOLI. RECORDAR.
O gérmen, a letra
Química e libido, a princípio, parece-nos demonstrar dois termos que se opõem, a não ser quando, a partir de uma escolha (objetal) amorosa – seja ela permitida ou condenável, conveniente ou não –, frequentemente, escutamos: “existe uma química entre nós…” E ninguém ousaria explicar, prontamente, a razão disso. No máximo, fazemos poucas alusões, as quais cederiam o lugar, mais tarde, para transformar as alusões em ilusões. Desde aí, o impacto do corpo com o real, com o que não possui sentido, entra em cena na vida amorosa de um sujeito.
Assim, a química, a libido, enfim, certos aspectos do desejo, passam a ocupar lugares importantes no cenário de uma investigação psicanalítica, o que, inegavelmente, nos convida ao esforço de depurar, nessa mescla entre o eu e o objeto de desejo, o que advém de uma substância viva, ou, pelo menos, até aí chegar esbarrando com o que é inominável. Depurar a química da libido de um corpo vivo, marcado pela linguagem, certamente nos conduzirá a um corpo que a precedeu, portanto.
De algum modo, percebe-se uma conexão intrínseca entre esses dois termos com o lugar de uma inscrição no sujeito falante, dando partida à sua existência no mundo. A função dessa inscrição será dada a partir dos seus efeitos sobre o sujeito, sem que este, no entanto, possa a ela retornar senão sob a forma de um estranho familiar ou de um exterior totalmente íntimo. “O fenômeno da vida permanece em sua essência completamente impenetrável. Ele continua a nos escapar, não importa o que façamos” (RENNÓ, C., 1999, p. 5).
Ressalta-se nisso que “a psicanálise não se ocupa da substância viva, mas sim das forças que nela operam, (…) a pulsão” (Idem). Desse modo, é possível observar, através das forças que operam sobre a substância viva, um gérmen. Lacan afirma que “essas forças, de alguma forma, vão se estruturar em torno do que pode ser definido como a função da letra, fazendo desta um análogo do gérmen” (Idem, p.07). Miller prossegue:
(…) isso é ir muito longe na ‘biologização’ do significante. (…) o gérmen se inscreve no corpo, é distinto do soma, do corpo como soma; ele sobrevive ao soma. Por isso, podemos compreender porque a letra é análoga ao gérmen. Primeiramente porque sendo a letra aquilo que, do significante, se inscreve no corpo, ela é incorporada. (…) Em segundo lugar, ela não é o soma, e por último, a duração da letra se estende para além da vida do corpo, como nome próprio (…) a letra não é um gérmen; o gérmen é celular e a letra não (MILLER, 1999, p. 44-45).
A ideia de uma formação contingencial está presente nisso, nesse encontro do corpo com a linguagem, do qual resulta o traço como uma letra, trazendo consigo uma parte insondável, porém ali, sustentando a vida textual de um porvir do sujeito. Uma letra do destino, dizemos assim, podendo ser lida – contingencialmente também – em um modo de vida adotado: uma espécie de “marca registrada”, inventada, inimitável, única de cada um, singularmente patenteada. Letra do gozo, diríamos com Lacan. Uma espécie de nome próprio.
Portanto, através das forças que operam sobre a substância viva, um complexo caminho da necessidade ao desejo se desenrola. A química da natureza dos hormônios vai dando lugar a uma vida mental, à medida que um traço orientador de uma satisfação dá início a um circuito que tende a se repetir, já que o destino poderia ser entendido como um dos nomes do inconsciente.
Narcisismo, libido e objeto
A teoria da libido se baseia em grande parte no trabalho de Freud sobre o narcisismo. As formulações relativas à libido do eu e à libido do objeto são trazidas por ele especialmente pelo modo em que o eu e o objeto são peculiarmente interagidos, sendo o objeto invariavelmente uma representação mental. Podemos imaginar que isso acontece sob o foco de um olhar cujo ponto de onde advém a luz é faltoso.
Freud falava de uma “química especial”, através da qual se distinguiam quantidade e qualidade da libido. Logo, a produção, aumento ou diminuição, distribuição e deslocamento da libido do eu possibilitavam explicar os fenômenos psicossexuais observados em sua clínica.
Assim, na década correspondente aos anos de 1895 a 1905, Freud fazia recair a ênfase sobre a “química sexual”, dizendo-nos que “nos processos sexuais, substâncias de espécie peculiar decorrem do metabolismo sexual” (FREUD, S., 1905/1972, p. 222). No entanto, posteriormente, ele vai constatar: “estamos no escuro quanto ao órgão ou órgãos a que a sexualidade se prende” (Idem). Logo, restava ainda uma lacuna sobre a natureza da excitação sexual: “a análise das perversões e psiconeuroses mostrou-nos que essa excitação sexual não se origina apenas das partes chamadas sexuais, mas de todos os órgãos do corpo” (FREUD, S. 1905/1972, p. 223).
Freud, então, é levado a uma conclusão insatisfatória que emerge dos distúrbios da vida sexual, qual seja, a de “sabermos muito pouco sobre os processos biológicos que constituem a essência da sexualidade para podermos construir, com nossa informação fragmentária, uma teoria adequada à compreensão dos estados tanto normais quanto patológicos” (FREUD, S. 1905/1972, p. 250). Esse limite, por conseguinte, o impulsiona a recorrer ao mito, principalmente quando ele observa que existe algo que vai mais além do princípio do prazer.
Da biologia ao mito
Miller faz a leitura de que “é pelo viés da suplantação da biologia frente ao mito que ele (Freud) inventa a sua pulsão de morte e a inscreve no mito, não conseguindo que ela tivesse crédito no plano propriamente biológico” (MIILER, 1999, p. 14).
Parece-nos, então, que a biologia freudiana suplantada pelo mito que deu origem ao conceito de pulsão de morte foi sucedida pela biologia lacaniana, se posso dizer, trazida para sustentar o conceito de gozo ligado ao corpo vivo. Mas aqui não poderíamos supor, por exemplo, que haveria um saber próprio do corpo, o qual Freud teria revelado sob a espécie de uma química especial da função sexual, e que Lacan teria a relido como sendo o gozo próprio do corpo vivo?
Se assim o for, penso que isso sofisticaria, e de certo modo atualizaria, o que, enfim, diz respeito ao nosso objeto de investigação, a saber, o lugar da causalidade psíquica ligada à química da libido, portanto, no século XXI.
De Freud a Lacan
Pois bem. Como o regime da civilização na época de Freud se sustentava na interdição, o século XX se mostrou como sendo a era do Pai, do simbólico, de uma referência simbólica que orientaria as representações, o campo da significação. As transformações da puberdade contavam com essa referência; os sintomas eram interpretáveis a partir de uma cadeia simbólica inconsciente.
Os mitos de Édipo e de Totem e Tabu apresentavam a transmissão de um impossível acerca dos efeitos da libido sobre o corpo. Isso caracterizava, enfim, as neuroses sustentadas por uma lei que instaurava o desejo e a culpa, a partir da morte do Pai. Portanto, a inscrição da função paterna para o sujeito era trazida sob uma forma épica, implicando o aspecto simbólico da morte, da castração, em uma inscrição da linguagem no ser falante.
A adolescente Dora, o rapaz Homem dos Ratos e a jovem homossexual expressavam, portanto, no sentido mais restrito de uma subjetividade do século XX, a referência a um Pai, à castração – e, na perversão, o seu desmentido.
Em contrapartida, na nossa contemporaneidade, século XXI, o regime civilizatório não mais se assenta sobre a interdição, mas sobre o gozo. Observa-se, hoje, um quadro social em que a satisfação é exigida sem mesmo que o sujeito se pergunte sobre o que ele quer.
Situamo-nos, portanto, na era do mais além do Édipo. A predominância do real em detrimento do simbólico nos conduz, inclusive, a levantar uma hipótese – aquela de uma química inerente ao jogo libidinal do sujeito contemporâneo que não se interage com um traço constitutivo, mas com a sua pluralização, já que a referência paterna caiu. Encontrei depois um comentário de Marcelo Veras, em rede social, que me chegou como luvas: “Precisamos com urgência reler o texto Psicologia das Massas pensando os novos modelos de identificação, não mais organizados pelo traço, mas pelo gozo autista do objeto a”. (VERAS, M., 26/05/2016).
Quais seriam, então, os efeitos da libido sobre o sujeito diante da queda dos Ideais e, por conseguinte, da ascensão do gozo? Se aí o império é o da satisfação e da imagem, do olho absoluto e não o da castração, da desinibição e não o da inibição, qual será, enfim, a transformação da puberdade nos tempos atuais?
De outra ordem…
É notória a incidência crescente e expressiva das psicoses silenciadas ou ordinárias, provavelmente assentadas sobre uma ordem de ferro, sucedânea à queda do Pai. Assim Lacan a denominou em 1970, inclusive, preconizando a perda da dimensão amorosa na subjetividade. Podemos dizer que encontramos hoje essa ordem de ferro por meio de normas familiares, políticas, sociais e religiosas. Além disso, vemos as ofertas relativas aos dispositivos táteis e visuais, os quais favorecem uma conexão com o corpo através do uso superegoico inerente ao laço virtual entre os jovens adolescentes. Todos conectados![i]
Trago aqui, especialmente, um recorte clínico que tange os efeitos da libido sobre o caso de um jovem homossexual, por exemplo, que faz uso de aplicativos introduzidos em seu celular. Trata-se de um recurso para se distrair e fugir do tédio e da solidão. Esses aplicativos permitem ao jovem a exibição de seu corpo nu para que o outro o veja, e vice-versa, e, enfim, avaliam se querem ou não se relacionar sexualmente – não sem antes passarem pelo que se entende, assim, como crivo da beleza de um corpo, segundo o culto a ele dirigido via protuberância dos músculos.
De todo modo, parece haver aí a presença não de dois, tal como uma representação simbólica permitiria supor em se tratando de um endereçamento da libido, mas, de Um, de Um sozinho… Com o tato no celular através dos seus dedos, todo um império visual sustentado pela ordem de uma satisfação narcísica determina a sua excitação sexual. Eles marcam um encontro, se relacionam e vão embora, cada um depois permanecendo no anonimato do seu canto original, escuro, solitário, fazendo ressoar o vazio do silêncio quando o barulho da poeira abaixa.
Trata-se de uma ordem que permitiria ao jovem transitar entre elementos viventes dos mais diversos possíveis, inclusive descartá-los ou ser ele próprio descartado, em meio ao sexo casual e compulsivo: forte terreno do sadismo e do masoquismo, enfim, uma satisfação cujo pano de fundo pertence à pulsão de morte.
Aplicativos como Nude, Hornet, Grindr, Scruff e Tinder permitem o acesso e o descarte do gozo em nome de um uso narcísico cujas letras, para provar a existência do sujeito, passam por um aparelho, grosso modo dizendo, não propriamente mental… Possivelmente, isso demonstra outra transformação da puberdade nos tempos atuais. Outras letras ditam o destino do gozo para esse sujeito. A propósito, a materialidade fônica desses aplicativos é algo que salta aos ouvidos, acompanhada, inegavelmente, de um tom estrangeiro. Basta repeti-los seguidamente, lendo-os em voz alta…
Sirvo-me de uma pergunta de Miller, feita quando ele aborda o dispositivo da internet: “O que é que se multiplica nessas ficções? Multiplicam-se, finalmente, os semblantes de corpos. Isso torna apenas mais insistente a questão sobre o que está fazendo, de seu lado, o corpo original, enquanto seu semblante é mostrado” (MILLER, 1999, p. 32). Ou seja, nesse reenvio ao “corpo original”, algo de estranho, em ato, permanece.
Uma lacuna advém, tal como o jovem adolescente o demonstra: “O superficial é falso…” Sim, podemos concordar com ele, mesmo porque, “o elemento anulado pela distância não está presente, a saber, o que esses corpos não fazem juntos, presencialmente, pois, juntos, eles tornariam presente uma interdição, uma separação, uma não-relação” (MILLER, 1999, p. 32). O aforisma lacaniano – a relação sexual não existe – permanece intacto, independente das ilusões das quais o sujeito contemporâneo faz uso através do império das imagens. Talvez até o aguce.
Quando o sujeito enuncia a frase citada acima, vislumbra-se o caminho de sua desobjetalização, ou a uma submissão não-toda aos traços impostos nas ofertas de satisfação que o discurso da ciência e do capitalismo imprimiram na evolução dos tempos. Necessariamente, um ponto de angústia precederá tanto essa questão quanto uma solução singular.
Em se tratando da biologia dos corpos, do metabolismo sexual à substância gozante, ou do percurso que se inicia com a química da libido em Freud ao saber do corpo em Lacan, o adolescente freudiano transmite, com o seu sintoma, o dois em um; o adolescente lacaniano, o Um em dois, certa manifestação autística do gozo.
Parece ser assim que a solidão é trazida na cena analítica do século XXI.
[1] Com relação a esse aspecto, trabalhei um caso de uma adolescente que fez do seu inseparável iPhone uma extensão do seu corpo como uma solução. O lugar contingente que esse aparelho ocupou pôde ser extraído quando a fórmula confusional do sujeito, inicialmente trazida como “uma coisa pensa em mim”, adquiriu outro estatuto: esse aparelho como extensão do seu corpo alojou, justamente, esse fenômeno. O gozo se deslocou do corpo para o objeto inseparável de suas mãos, o que me permitiu introduzir um parêntesis especial para intitular esse caso: “I (am) phone…”. O trabalho foi apresentado na Jornada Clínica do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, “O Corpo Falante – Sobre o ICS no século XXI”, em abril de 2016 no Rio de Janeiro. Texto inédito.