A Radicalização Da Recusa Frente À Inexistência Da Relação Sexual
CRISTIANE DE FREITAS CUNHA VINICIUS MOREIRA LIMA
CRISTIANE CUNHA
Domenico Cosenza (2014) percorre a ‘delicada transição’ da adolescência em três tempos lógicos. O primeiro é o tempo dos sonhos; sem eles, não se pode pensar em fazer amor (LACAN, 1974). O segundo tempo é o do trauma; a inconsistência dos sonhos se revela, constata-se que, sob o véu, não há nada. No terceiro tempo, o percurso se bifurca; alguns adolescentes aceitam entrar no jogo da vida amorosa, sem garantia. O amor e a linguagem seriam saídas elegantes que podem fazer suplência à inexistência da relação sexual (LACAN, 1972-73/1975). Outros permanecem em uma posição de recusa. A posição da recusa coloca em cena o objeto nada, causa de não desejo (COSENZA, 2017).
No laboratório Janela da Escuta, temos nos deparado com casos de adolescentes que se nomeiam trans ou travestis nos quais a posição da recusa frente à inexistência da relação sexual é notável. O corpo se revela como um território de investimento pulsional intenso, que absorve o sujeito. Demandas são tecidas e endereçadas à tecnociência, abrangendo a administração de hormônios e intervenções cirúrgicas e, ao campo do direito, para a mudança do nome de registro. Temos, assim, o discurso universitário, na posição autoritária de semblante, com o objetivo de melhorar a relação entre os sexos (LACAN, 1973/1975, p.63) ou de velar a falta da relação entre eles. No discurso de alguns desses jovens, não há referência ao amor.
Um jovem trans, Ivan, procura o Janela da Escuta com a demanda de se submeter à mastectomia. Ele nos conta que a transição para uma identidade masculina foi harmônica: começou a se hipertrofiar com a musculação, depois começou a usar hormônios masculinos. Obteve o registro do nome social, com o qual se matriculou na universidade. Os pais têm aceitado o processo. A única ‘desarmonia’ é no campo amoroso, ao qual ele renuncia.
Do outro lado do Atlântico, na França, somos convidados a participar de uma pesquisa clínica com jovens extremistas que aderiram ao Estado Islâmico (EI). Na construção dos casos, desvela-se uma outra forma de recusa. Jovens que recusam qualquer dialética, qualquer opacidade, qualquer equívoco.
Hana, 13 anos, encontrava-se presa em uma cidade de fronteira, na França. Hana é neta de marroquinos e, assim como seus pais, nasceu na França. A infância é marcada pela violência sexual. Desde os onze anos, apresenta anorexia. A assistente social, que foi visitá-la na prisão, se impressionou com sua magreza, evidenciada pela retirada dos véus e túnicas. E, sobretudo, com o olhar de Hana: “ela já está morta”. A incorporação da morte que antecede a sua anunciada e abortada explosão de si mesma.
O radicalismo islâmico usa a tecnociência para se difundir, captando adeptos nas redes sociais. As redes e mídias são também o veículo de difusão do terror; as imagens captadas no momento dos atentados se impõem, sem mediação simbólica. Não há uma narrativa em torno dos atentados, uma demanda (LACHANCE, 2016). O enigma se instala do lado do Outro, assim como a angústia. Tentativa de fazer o Outro existir?
Do lado dos extremistas, vemos a simplificação do discurso islâmico, que produz conceitos inequívocos sobre a sexualidade e os papéis a serem desempenhados no laço sexual.
Relatos das conversões na Tunísia nos mostram as prescrições da incorporação dos textos, do treinamento corporal e da aquisição de hábitos e costumes (corte do cabelo, barba, comprimento da túnica, perfume). Diante das mulheres, o olhar deve se desviar para baixo. As mulheres são classificadas dicotomicamente: as muçulmanas são candidatas ao casamento, muitas vezes mediado por agências matrimoniais do próprio EI. As outras mulheres, as não crentes, podem ser objeto de violência sexual e/ou física. Há um esvaziamento do simbólico, que permitiria o equívoco do inconsciente, em favor de uma proliferação dos signos (SELAMI e SALEM, 2016).
Uma nova relação se instaura: entre irmãos. Oliver Roy (2016) enfatiza a inexistência de extremistas mais velhos. De uma forma diferente da observada em grupos como o Hamas, no EI há uma ruptura geracional. Quando já havia uma evaporação do pai, um enfraquecimento da função paterna, delineia-se um corte, a saída de casa, a adoção de ritos e referências alheios à família.
Os novos nomes trazem na raiz o Abu, o pai. Jeffrey (2016) nos lembra que o termo radicalização se refere à raiz, à filiação. Um novo pertencimento se instaura, destruindo o que havia antes. Assim, cada um porta um nome do pai, uma versão do pai, que dá acesso a uma relação fraternal e a uma relação regulada com as mulheres.
O ódio de si pode se externalizar no ódio do Outro, com a permissão e a exaltação da violência. É uma cultura da pulsão de morte. Oliver Roy (2016) diz que não se trata de um islamismo radical, mas da radicalização do islamismo. A radicalização seria a pura recusa da opacidade do sexual.