A Transferência E O Diagnóstico De Discurso Na Metodologia Da Construção Do Caso Clínico
DIEGO ALONSO SOARES DIAS
O diagnóstico, em psicanálise, tomado por Miller como uma arte (MILLER, 2003), e o conceito de transferência, desde a época de Freud, são caracterizados por diversas sutilezas, o que exige de nós extremo rigor no uso desses termos. Afinal, o sentido atribuído a uma noção em um determinado período da teorização psicanalítica pode não corresponder ao de outro momento. Algumas nuances podem surgir, o que abre novas perspectivas e formas de abordagem, não necessariamente se excluindo ou remetendo a uma ideia de evolução conceitual. Esse ponto se torna fundamental, dizendo de uma especificidade da psicanálise: a de que ela se caracteriza por ser sempre algo a se construir, ou melhor, a se reconstruir. Em certo sentido, o acompanhamento de um caso se torna similar à construção da teoria psicanalítica. Ambos comportam desdobramentos, aberturas, fechamentos, questionamentos e até mesmo abandonos de perspectivas. De que forma então poderíamos trabalhar os conceitos de diagnóstico e transferência sem corrermos o risco de cairmos em uma extensa revisão de literatura e em um delicado trabalho de apropriação da relação entre os dois? O que nos parece é que se faz necessário um terceiro elemento que possa auxiliar nessa amarração. Trabalhemos esses conceitos, portanto, sob a égide da construção do caso clínico, tal como formula Viganò (1999), procurando apreender em que medida tais perspectivas se entrecruzam para que um caso clínico possa efetivamente ser construído.
O que Viganò (1999) nos revela é que a construção do caso clínico deve ser entendida como uma prática que leva em conta prioritariamente a presença de um sujeito. É esse sujeito que, de maneira particular, nos revela algo do que se passa com ele e que direciona de que forma devemos intervir ou não. Dizermos então que é o sujeito quem nos conduz implica considerarmos que fundamentalmente não sabemos a priori muito a seu respeito. É necessário que ele fale sobre o que lhe ocorre. O sujeito será o guia na construção, o que se difere radicalmente de eventuais interpretações de sua situação, já que essas interpretações pressupõem a existência de algo sob a forma de um enigma. Não é isso que está em jogo nesse momento. Nesse sentido, a construção se dará a partir de palavras e atos, amarrados dentro de uma lógica norteadora. De acordo com Viganò:
A construção é o preliminar do ato analítico. Trata-se de um preliminar lógico, que concerne todo o movimento que caracteriza o tempo para compreender. […]. Esse tempo de compreender é, pois, o tempo para o diagnóstico inicial, é o tempo em que o diagnóstico vem a ser reconstruído (VIGANÒ, 1999, p.55).
A construção, dessa maneira, em seu momento inicial, implica a gradual construção de um diagnóstico. Que tipo de diagnóstico seria esse?
Miller, em seu texto denominado “A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan” (MILLER, 2003), trabalha a ideia do diagnóstico enquanto uma arte. Diz-se então a arte do diagnóstico. A arte, por sua vez, e com base em Kant, é definida por ele como uma “finalidade sem fim” (MILLER, 2003, p. 30). A finalidade sem fim do diagnóstico. O que poderia significar isso? O que Miller enfatiza, por meio dessa colocação, é a dimensão de sujeito à qual o diagnóstico deve servir. O diagnóstico, portanto, trata de uma “finalidade sem fim” por dois vieses. O primeiro, se entendermos finalidade sem fim como o que não acaba, relaciona-se às diversas formas contingenciais de manifestação do sujeito. Não há uma regra que dê conta dessas contingências, elas são particulares. Por outro lado, é possível estabelecermos outro sentido para tal afirmação, também depreendido da argumentação de Miller. Aqui, encontramo-nos com a noção do diagnóstico enquanto uma arte, uma vez que ela nos lança na tentativa de avaliar um caso sem uma regra que o predetermine. Trata-se de uma finalidade sem uma finalidade, pois, em última instância, o que se coleta do sujeito não poderá ser sistematizado ou englobado em classes.
Dessa forma, o que é digno de nota e é próprio da psicanálise é que a sua prática busca localizar justamente o que é a exceção à regra. Noções que dizem de alguma classificação ou enquadramento se revelam dimensões que anulam o sujeito. Para Miller, “chamamos de ‘sujeito’ o efeito que desloca, sem parada, o indivíduo da espécie, o particular do universal e o caso da regra” (MILLER, 2003, p. 27). Essa localização do que é a exceção à regra, por sua vez, implica um momento fundamental, que é o da capacidade do julgamento, referindo-se à aptidão de se julgar de que forma o caso pode-se inserir na regra.
Nesse sentido, de que maneira devemo-nos apropriar do diagnóstico estrutural? As estruturas clínicas formalizadas por Lacan (neurose, psicose e perversão) devem ser analisadas sob qual prisma, uma vez que é possível encará-las a partir da noção de categorização e classificação dos casos? Isso não poderia também dificultar a emergência do sujeito?
O que nos parece é que, ao pensarmos em estruturas clínicas, não devemos perder de vista a noção de sujeito. Para além de qualquer estrutura clínica, há sempre o sujeito. Ainda, é válido dizer que o sujeito, em certo sentido, lacaniano por excelência, é um efeito de estrutura, o que aproxima as duas perspectivas de maneira muito importante; uma se depreende da outra. Por outro lado, e de um ponto de vista mais operacional, quando se recorre ao “universal” da estrutura, em último caso, o que se procura é o que foge a qualquer classificação, a singularidade. O uso que se faz da estrutura procura, assim, potencializar a emergência do inclassificável. Mais uma vez, somos remetidos à noção do diagnóstico enquanto uma arte, já que é preciso que se julgue se o caso cabe na regra e, mais além, de que forma esse julgamento pode permitir o aparecimento dos efeitos de sujeito: “julgar, isto é, utilizar categorias universais num caso particular, não é o mesmo que aplicar uma regra, mas é decidir se uma regra se aplica” (MILLER, 2003, p. 28).
Temos, nesse contexto, a arte do diagnóstico como a complexa tarefa de julgar de que forma é possível que se dê a relação entre o caso e a regra. Viganò (1999), em suas colocações a respeito do caso clínico, pontua que a construção remete diretamente ao estabelecimento de um diagnóstico inicial, que, por vezes, deve ser reconstruído. Dessa forma, reconstruir um diagnóstico relaciona-se a um esforço constante, em que se presentifica a necessidade do julgamento para que se encontre o momento clínico a partir da lógica do caso. Nesse sentido, um mesmo caso pode-nos revelar diferentes diagnósticos, uma vez que o que se procura na construção do caso clínico é o diagnóstico do discurso (VIGANÒ, 1999). E o que seria isso?
Na perspectiva da construção, o diagnóstico do discurso refere-se a um momento específico, em que o sujeito revela qual a sua relação estabelecida com o Outro. Localizam-se, por meio disso, elementos que dizem de dificuldades e tensões próprias daquele sujeito em seu dia-a-dia e até mesmo em seu tratamento. De acordo com Viganò:
A construção do caso, dentro do grupo, é um trabalho que tende a trazer à luz a relação do sujeito com o seu Outro, portanto tende a constituir o diagnóstico do discurso e não do sujeito. […]. Não é um diagnóstico que afirma que ele é neurótico, psicótico, etc. A construção, ela serve para operar o deslocamento do sujeito dentro do discurso (VIGANÒ, 1999, p.58).
O diagnóstico do discurso, portanto, diz de uma manobra que procura incidir sobre o sujeito. Implica na busca de constâncias, ou de pontos invariáveis, que possam revelar a forma como o sujeito se posiciona frente ao Outro e de que modo o concebe. Além de comportar em si o ato do julgamento, que estabelece a ponte entre a teoria a que recorremos para caminharmos com o caso e o caso em si, o diagnóstico do discurso faz um apelo de que esse juízo se repita diversas vezes. O que se revela aqui é que, para se construir, são necessários juízos e que serão os efeitos que se coletam desses juízos que legitimarão uma conduta ou levarão a um esforço a mais de formalização.
A pergunta que orienta o estabelecimento de um diagnóstico de discurso refere-se ao Outro, ou seja, quem, ou como é o Outro, para o sujeito. Uma relação dialética se esboça entre o sujeito e o Outro, de inquestionável importância para o trabalho, seja no âmbito do trabalho nas instituições ou não. Nesse sentido, é o conceito de transferência que parece possibilitar-nos um aprofundamento maior em nossa investigação.
Viganò (2010) procura argumentar que o método da construção do caso clínico demonstra a possibilidade de um trabalho norteado pela transferência, enquanto um elemento clínico diferencial, motor de um trabalho possível. Dessa forma, a transferência se coloca como uma alternativa aos ideais culturais da eficácia e classificação, que anulam em diversos momentos a dimensão do sujeito.
A transferência, de acordo com o artigo de Freud denominado a “A dinâmica da transferência” (1912/1996), é definida como o veículo de cura e condição de sucesso (FREUD, 1912/1996, p.112). Caracteriza-se como um elemento indispensável para que um tratamento se dê. Ainda não nos interessa se ela, apesar de indispensável, é também uma das maiores resistência que se erguem no trabalho, conforme Freud mesmo pontua (1912/1996). O fato é que essa ideia de um veículo de trabalho também é enfatizada por Viganò (2010) na metodologia da construção do caso clínico. A transferência, para ele, ganha um lugar de destaque, na medida em que favorece a construção do caso por meio de uma abordagem que se coloca de maneira peculiar, estritamente desvinculada de ideais de cura ou mesmo de adaptação.
O que nos surge de maneira radical é a intrínseca relação entre a perspectiva do diagnóstico do discurso e a transferência. A transferência parece-nos como um momento privilegiado que permite que o diagnóstico do discurso se efetue. É ela, a partir do que é coletado pelo próprio caso, que poderá fornecer os caminhos a serem seguidos e os que devem ser abandonados. Se o diagnóstico do discurso objetiva, em última instância, possibilitar que ocorra um deslocamento discursivo por parte do sujeito (VIGANÒ, 2010) a transferência parece ser fundamental para a localização do momento de intervenção para o alcance de tal deslocamento.
Contudo, a forma peculiar como a transferência se insere no tratamento nos leva novamente ao texto de Freud e à pontuação de que, além de motor, a transferência também se configura como a maior das resistências ao trabalho analítico (FREUD, 1912/1996).
Dizer de tal resistência, no âmbito da construção, implica a localização do sujeito ao Outro. O Outro, muitas vezes o sujeito o concebe como aquele de quem advêm todos os seus males e desgraças. Todos os seus infortúnios se localizam aí, o que também diz de uma não retificação por parte do sujeito. Dessa forma, as resistências que se mostram até o momento em que o analista possa responder de outro lugar que não seja aquele esperado pelo sujeito são inúmeras. Porém, é importante que se leve em conta esse momento, pois ele é único em revelar a forma como se deve intervir para que se alcance essa modificação discursiva.
O que nos parece, portanto, é que a construção do caso clínico nos revela, de forma operativa, de que maneira diagnóstico e transferência se enlaçam na condução e reflexão dos mais diversos casos. O diagnóstico, tomado especificamente enquanto um diagnóstico de discurso, evoca a transferência como um elemento determinante para todo o manejo possível. A transferência, no sentido abordado pelo texto, deve ser encarada de maneira a comportar suas sutilezas, no trabalho institucional ou não. Ela, de fato, diz de uma resistência. Por um lado, revela as resistências de um sujeito frente ao Outro, muitas vezes encarado como a sede de todo mal. Por outro, em uma perspectiva mais ampla, relaciona-se a uma das principais orientações da construção do caso clínico, que age no sentido de fornecer uma alternativa aos ideais da contemporaneidade, resgatando a noção de sujeito e colocando-a em primeiro plano.